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O princípio da razoabilidade e as exigências da Lei nº 8.212/91 quanto aos benefícios do art. 195, § 7º, da CF/88 às entidades de assistência social

O princípio da razoabilidade e as exigências da Lei nº 8.212/91 quanto aos benefícios do art. 195, § 7º, da CF/88 às entidades de assistência social

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A discussão acerca da normatividade dos princípios restou definitivamente resolvida após a concepção fornecida por Dworkin, levantando a cátedra de Harvard contra a concepção positivista fornecida por Herbert Hart, da Universidade de Oxford.

Portanto, inegável o valor dos princípios na estrutura normativa do direito, sendo que desempenham papel preponderante na solução de conflitos, tendo em vista a questão axiológica a eles inerente que se reveste de critérios de avaliação completamente diferente das regras.

Dentre os princípios, pretende o presente estudo dedicar uma atenção especial ao da razoabilidade ou proporcionalidade, no caso específico das exigências contidas na Lei 8.212/91, que em seu artigo 55, traça os requisitos para que as entidades filantrópicas e de assistência social possam usufruir do benefício da isenção da quota patronal para a contribuição social.

O tema é de relevo, pois as entidades de assistência social desempenham papel relevante na estrutura da sociedade, avocando para si a realização de atividades que seriam de responsabilidade do Estado.

Por esse motivo, o Estado tem interesse em fornecer a essas entidades determinados benefícios, para que possam atingir seu desiderato, que de forma oblíqua é o do próprio Poder Público, sendo importante a análise dos princípios que fundamentam a concessão do benefício constitucional da imunidade ou isenção [1].

O dispositivo constitucional que trata do assunto é o artigo 195, § 7º, determinando que "São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei".

Neste momento ganha relevância o tema deste trabalho, pois as exigências, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial de certa parcela dos operadores do direito, devem ser regulamentadas pelo artigo 55, da Lei 8.212/91.

Nesta linha de pensamento, será necessária uma abordagem a respeito das diferenças existentes entre regras e princípios, segundo as concepções fornecidas pela Teoria Geral do Direito, utilizando-se dos autorizados ensinamentos de Dworkin e Alexy (1993), maiores expoentes da atualidade nesta matéria.

De outro tanto, o princípio da razoabilidade, objeto deste trabalho, será estudado de acordo com as exigências previstas na Lei 8.212/91, para que entidades de assistência social possam ser agraciadas com o benefício constitucional da isenção da quota patronal referente à seguridade social, ou seja, de que forma os pressupostos previstos na regra podem ser considerados razoáveis, de acordo com a máxima da proporcionalidade preconizada por Alexy, bem como a existência, in casu, do confronto existente entre princípio e regras, e de que forma solucioná-lo.


REGRAS E PRINCÍPIOS

Antes de se explicitar os conceitos, diferenças e semelhanças entre regras e princípios, torna-se de mister importância discorrer, ainda que superficialmente, a respeito da norma jurídica.

Jhering [2] tinha a norma como uma regra de caráter eminentemente imperativo, dado que sua elaboração partia da vontade geral, impondo aos cidadãos uma determinada conduta a ser observada.

Contudo, não mais se admite referido posicionamento, sendo que as normas jurídicas são hodiernamente concebidas, apesar de inexistência de consenso com relação à conceituação, como normas de dever-ser, e não direcionadas ao comportamento humano de forma coativa.

Neste sentido, importante trazer à baila o escólio feito por Tércio Sampaio Ferraz Jr. [3], ao ponderar que

De há muito se reconheceu que as normas jurídicas não têm, senão por exceção, a forma de um juízo imperativo (faça isso, não faça aquilo), mas de um juízo hipotético – caso isto ocorra, deverá ocorrer aquilo, se houver crime, segue a pena.

A Profª. Margarida Maria Lacombe Camargo [4] aduz que "A norma jurídica encontra-se sempre referenciada a valores na medida em que defende comportamentos ou serve de meios para atingirmos fins mais elevados, como é o caso das normas de organização".

Novamente é Tércio Sampaio Ferraz Jr. [5] quem fornece um conceito de norma jurídica, ao explicitar que "do ponto de vista estrutural, podemos dizer que, em síntese, como um todo, normas jurídicas são expressões de expectativas contrafáticas, institucionalizadas e de conteúdo generalizável".

Todavia, é preciso buscar, no conceito de norma, suas espécies, ou seja, em que tipo de mandamentos ela se divide, valendo neste ponto dizer que o posicionamento mais aceito neste sentido, diz respeito à divisão em regras e princípios.

Eros Roberto Grau preleciona que "Norma jurídica é gênero que alberga, como espécies, regras e princípios – entre estes últimos incluídos tanto os princípios explícitos quanto os princípios gerais de direito" [6].

As regras seriam sempre dotadas de menor caráter de abstração, ou seja, seriam direcionadas à conduta humana de forma mais objetiva. Já os princípios teriam incidência condicionada a determinadas situações, sendo que seu grau de abstração seria muito mais elevado do que o encontrado nas regras..

Segundo o Dworkin [7], as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada (an all or nothing), ou seja, em caso de confronto, não será possível a aplicação de uma sem o afastamento da outra, mas somente se houver o acréscimo de alguma cláusula de exceção, ou se uma delas for considerada nula.

Já com os princípios, ainda de acordo com os ensinamentos do Mestre de Harvard [8], em caso de colisão entre princípios, nada impede que se aplique um deles, com o afastamento do outro, sem que isso implique na declaração de sua invalidade, mas tão somente de que, naquele caso concreto, um teve peso maior do que o outro. Portanto, a colisão entre princípios resolve-se na questão do peso exercido por cada qual na solução do caso concreto.

Deve-se frisar que o traço característico entre regras e princípios é que estes inter-relacionam-se pela dimensão peso, ao passo que aquelas regulam-se pela questão da validade, sendo estas condicionantes os fatores de solução quando houver conflito entre eles.

Não foi sem percalços e discussões doutrinárias que se chegou a esse quase consenso a respeito das regras e princípios como integrantes da norma jurídica. A evolução da Teoria Geral do Direito, passando pela Escola da Exegese, ao positivismo de Kelsen [9], que até os dias atuais ainda exerce sua influência, vem a ganhar relevo com a aceitação dos princípios como espécie de norma jurídica, conferindo-lhes a efetiva importância na aplicação do direito, sendo Crisafulli [10] um dos autores que mais contribuíram para a sua normatização.

Com efeito, não mais seria sustentável a posição da Escola Exegética [11], diretamente influenciada pela elaboração do Código Napoleônico, onde, dada a simplicidade das relações sociais de então, seria possível uma previsão satisfatória para os conflitos daí decorrentes.

A Profª. Margarida Maria Lacombe Camargo ensina que "Crédulos nas inúmeras virtudes daquele corpo sistemático de normas (Código de Napoleão), os componentes da Escola da Exegese propugnam uma atuação restrita do poder judiciário, mediante o apego excessivo às palavras da lei" [12].

Essa foi realmente a forma de retirar dos juízes, ligados ao Antigo Regime, o poder discricionário na tomada de decisões, sob a concepção de que a lei era expressão da vontade geral, que, por conseguinte, não dava ao julgador o poder de conferir interpretações particulares a respeito de seu conteúdo.

A insustentabilidade desse entendimento foi demonstrada pela própria evolução das relações sociais, onde as normas até então editadas mostraram-se insuficientes para a solução de todos os conflitos daí decorrentes, sendo que os julgadores, nesses casos, deveriam buscar a solução em questões abstratas, iniciando-se neste momento, a construção da teoria a respeito da validade e normatividade principiológica inerente do direito.

Da mesma forma insustentável se mostrou o entendimento externado pelos positivistas, que encontraram em Augusto Comte [13] um de seus principais expoentes, onde a regra seria a principal expressão da norma, sendo a fonte suficiente para a solução de todos os conflitos existentes.

Obviamente que seria impossível, no âmbito deste estudo, desenvolver uma ampla abordagem a respeito da evolução da Teoria Geral do Direito, donde exsurgiu a importância da distinção existente entre regras e princípios, bem como a sua aplicação da solução dos casos concretos.

No que importa ao tema, deve-se conferir a Ronald Dworkin, em um primeiro momento, a criação de uma teoria sobre princípios e regras que tem sido comumente aceita pelos doutrinadores de um modo geral.

Deve-se também a Robert Alexy o desenvolvimento, ou melhor dizendo, o aprimoramento da teoria construída e defendida por Dworkin, especialmente no que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, objeto deste estudo.

Bonavides considera não só Dworkin, mas também Alexy, como pós-positivistas, sendo que referidos doutrinadores, o primeiro nos Estados Unidos, o segundo na Alemanha, têm conferido inestimável contribuição à Teoria Geral do Direito, em especial no que diz respeito ao estudo dos princípios e sua aplicação na solução dos conflitos existentes nas relações sociais [14].

Consoante ensinamento desses autores, os princípios, assim como as regras, são componentes do ordenamento jurídico, no qual a norma seria o gênero, cada qual possuindo suas especificidades.

Obviamente, que em um sistema jurídico dotado de regras e princípios, casos surgirão onde haverá o confronto de referidas normas, vale dizer, determinadas situações serão impostas ao julgador, que estará diante da necessidade de aplicação determinada norma para a solução do caso concreto, sendo importante o estudo da validade (das regras) e do peso (dos princípios) que cada qual deverá exercer na esfera do julgamento.

Neste ponto, ganha importância o ensinamento de Dworkin [15] a respeito dos inevitáveis conflitos existentes entre estes tipos de normas, já citado alhures, que inclusive é o caso do estudo ora elaborado, bem como das diferentes soluções em cada caso concreto.

Para Alexy [16] os princípios são mandatos de otimização, ou seja, determinam a prática de certa conduta da maneira mais abrangente possível, enquanto as regras são mandamentos que encontram na objetividade sua principal característica.

No que diz respeito às regras, e esse entendimento é praticamente o mesmo entre Dworkin e Alexy, essas ou têm aplicação direta no caso ou não têm, ou seja, aplicam-se imediatamente ao caso concreto, sem a necessidade de maiores abstrações.

No que importa ao estudo desenvolvido, deve-se mencionar que a isenção concedida pela Constituição Federal (art. 195, § 7º) às entidades de assistência social tem cunho inegavelmente axiológico, pois visa privilegiar princípios outros insculpidos em seu texto, como o direito de todos à saúde, educação, o respeito à dignidade humana, à igualdade, dentre outros, garantindo que a manus estatal possa atingir a mais ampla gama de cidadãos possível, pela atividade exercida pelas pessoas jurídicas que prestam serviços neste setor.

Feitas essas considerações iniciais a respeito de regras e princípios, é possível traçar um norte sobre o estudo a ser realizado, ou seja, a existência de conflitos entre regras e princípios, e de que forma seria proferida a decisão mais correta, especialmente em se considerando que a regra, por não raras vezes, não se reveste da devida razoabilidade.


O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

O princípio da razoabilidade, objeto deste estudo, apesar de não constar, na real acepção da palavra, na grande maioria dos ordenamentos jurídicos, ganha importância com o amadurecimento dos países ocidentais neste particular, influenciado por países como os Estados Unidos, que o reconhecem expressamente através das emendas nºs 05 e 14 à Constituição Federal, bem como pela Alemanha, através dos ensinamentos de Robert Alexy.

Apenas para efeito de escorço histórico, inicialmente, nos Estados Unidos, somente se admitia a utilização do princípio da razoabilidade para corrigir defeitos de ordem processual (procedural due process), ou seja, não era atribuído ao Judiciário investigar os critérios de atuação do Legislativo, exatamente pela forte concepção da separação e autonomia dos Poderes.

Importante a menção ao ensinamento de Luís Roberto Barroso [17] ao aduzir que:

A primeira versão do due process, como se disse, teve ênfase processual, com expressa rejeição de qualquer conotação substantiva que permitisse ao Judiciário examinar o caráter injusto ou arbitrário do ato Legislativo. Tratava-se, inicialmente, de uma garantia voltada para a regularidade do processo penal, depois estendida ao processo civil e ao processo administrativo [18].

Contudo, não mais se mostrou possível somente a aplicação da razoabilidade como forma de conceber às partes o direito de regularidade processual, sendo que por diversas vezes surgiam questionamentos a respeito da razoabilidade dos meios e fins utilizados pelo legislador.

Era o nascimento do substantive due process, ou seja, a ascensão do Poder Judiciário, quando se lhe conferiu a prerrogativa de examinar a compatibilidade dos atos praticados pelo Poder Público, ou seja a adequação dos meios e a legitimidade dos fins que se buscavam.

No direito brasileiro, pode-se dizer que o princípio da razoabilidade encontra-se inserto na Constituição Federal quando se assegura aos jurisdicionados o direito ao devido processo legal (art. 5º, LIV), também conhecido como due process of law [19].

Todavia, a utilização desse princípio, especialmente por parte dos julgadores, tão profícua para o exercício da jurisdição, tem-se revestido de certa timidez, apesar do crescente número de julgados que, muitas vezes sem o saber, acabam utilizando a proporcionalidade para emitir um juízo de valor a respeito de determinado caso.

Bonavides [20], utilizando-se do ensinamento de Xavier Philippe, aduz que existem princípios mais fáceis de entender do que definir, sendo que a proporcionalidade se enquadraria nesta situação.

Para Pierre Muller [21], a proporcionalidade, em sentido lato, é a regra fundamental a que devem obedecer, tanto os que exercem quanto os que padecem o poder. Já em uma situação mais restrita, seria a presunção de existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são levados à cabo.

Pode-se concluir, segundo entendimento do autor citado, que toda vez que os meios destinados a realizar determinado fim não forem adequados, ou ainda, quando houver desproporção entre eles.

Consoante ensinamento de Luís Roberto Barroso [22]"O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça".

As definições acima demonstram o prestígio de que desfruta referido princípio nos ordenamentos jurídicos modernos, sendo de fundamental importância a sua aplicação para os casos em que existe evidente dissonância entre os fins pretendidos pelo Estado e os meios por ele empregados.

Por certo que em diversas situações seja extremamente complicada a aferição desses requisitos na atividade do Poder Público, especialmente em se considerando a aplicação do princípio da legalidade, valendo mencionar Dworkin [23], para quem a colisão de princípios resolve-se pelo ato de sopesar cada um deles, em conformidade com as particularidades do caso concreto.

O âmbito de aplicação da razoabilidade é deveras extenso, e a contrario sensu de outrora, não se invoca referido princípio tão somente para garantir a regularidade da atividade processual, podendo e devendo ser invocado inclusive para o controle dos atos do Poder Público em geral.

Celso Antônio Bandeira de Mello [24], no que diz respeito ao princípio da razoabilidade no âmbito do direito administrativo, pondera que:

Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida.

Conclui-se, portanto, que onde o ato praticado não se revestir dos meios adequados e necessários, para a consecução de fins legítimos, não haverá a razoabilidade, e o ato legislativo será eivado de inconstitucionalidade, bem como o ato administrativo será jurisdicionalmente invalidável quando ausentes esses requisitos.

Pode-se dizer que foi com Alexy que se encontrou a fórmula mais correta para a aferição da existência ou não da razoabilidade, seja nos atos da Administração Pública, ou ainda, do Poder Legislativo.

Segundo o autor, deve-se utilizar da máxima da proporcionalidade para a aferição da razoabilidade do ato do Poder Público, seja ele administrativo, executivo ou legislativo. No que importa ao tema, abordar-se-á somente o ato legislativo.

Assim, a máxima da proporcionalidade, segundo Alexy, reveste-se de três requisitos, cuja verificação é prejudicial de um para com outro. São eles: adequação, necessidade (meio mais benéfico ou menos oneroso para o cidadão) e a proporcionalidade em sentido estrito.

A aferição da razoabilidade do ato legislativo será verificada, em primeiro lugar, pela adequação dos meios e fins utilizados, e em estando ausente destes pressupostos, não mais será necessário perquirir pela presença dos demais elementos, pois a razoabilidade não estará verificada no ato praticado.

Todavia, caso se verifique que o ato tenha utilizado-se dos meios adequados para os fins pretendidos, isso tão somente não basta, pois ainda é importante verificar pela sua necessidade, vale dizer, se foi realizado pelo meio menos gravoso, através do princípio da menor ingerência possível.

Em sendo visualizável que o ato poderia ser praticado em grau de menor onerosidade ou ingerência na vida do cidadão, também aí haverá a falta da razoabilidade, o que o sujeita à correspondente invalidação ou declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário.

Por fim, verificados os três requisitos acima (adequação e necessidade), deverá o operador do direito verificar pela proporcionalidade em sentido estrito, que é a justificativa do ato administrativo, especialmente quando se tratar de norma restritiva de direitos.

Como dito, o presente artigo visa conferir uma abordagem do princípio da razoabilidade na interpretação do benefício de que trata o artigo 195, § 7º, da Constituição Federal, que, segundo alguns, é regulamentada pela Lei 8.212/91, que em seu artigo 55 estabelece os requisitos para o gozo do benefício constitucional.

O dispositivo constitucional diz, de forma clara, que as entidades de assistência social serão imunes (apesar de no texto constar a expressão isentas) do recolhimento dos impostos devidos à previdência social.

O presente estudo, portanto, destina-se a interpretar as exigências previstas no artigo 55 da Lei 8.212/91, especialmente a prevista no inciso II, à luz do princípio da razoabilidade, ou seja, demonstrando até em que ponto poderiam ser considerados como razoáveis referidos requisitos como forma de conceder ou não o benefício constitucional à entidade de assistência social, sendo necessária ainda uma abordagem a respeito dos princípios que inspiraram o legislador originário [25].


A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A ISENÇÃO CONFERIDA ÀS ENTIDADES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

O artigo 6º, da Constituição Federal preceitua que "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

Percebe-se de forma clara que o legislador constituinte reservou a certas matérias, como a educação e saúde, por exemplo, especial relevo, denominando-as como direitos sociais de todos os cidadãos.

O dispositivo supramencionado somente vem a confirmar o que preceitua o artigo 1º da Carta Política, quando, ao enunciar os fundamentos que devem reger a atividade do Estado, explicita a cidadania, dignidade da pessoa humana.

Logo após, no artigo 3º, dispõe que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, construir uma sociedade justa, livre e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos.

Da mesma forma o artigo 203 do Texto Político explicita a amplitude que se deve conceder à assistência social, de modo a abranger todos aqueles que dela necessitarem, sendo irrelevante no caso a contribuição para a seguridade social.

Roque Antonio Carrazza [26] ensina que, "nos termos da Constituição Federal, a assistência social abrange a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, máxime quando estas medidas favorecerem os economicamente mais fracos".

Ocorre que o Estado não pode estar presente e atuante em todas as esferas da vida em sociedade, muitas vezes naqueles setores que são considerados como de especial importância, como é o caso da saúde e da educação, o que torna necessária a atividade do setor privado, no sentido de suprir as deficiências do sistema.

Portanto, nos dizeres de Roque Antonio Carrazza [27]:

[...] é entidade beneficente de assistência social, para os fins do predito art. 195, § 7º, da Constituição Federal, aquela que, sem "espírito de ganho" (isto é, "caritativamente"), auxilia o Estado no atingimento de pelo menos um dos objetivos apontados no art. 203 do mesmo Diploma Magno.

Todavia, atribuir ao sistema privado o ônus de atuação nas áreas onde o Estado não consegue alcançar seria o mesmo que negar a importância que a Constituição Federal concedeu aos dispositivos supramencionados.

Neste contexto surgem as entidades filantrópicas e de assistência social, cujo intuito realizar as atividades previstas no artigo 203 da Constituição Federal, avocando para si o exercício de funções que são designadas ao Poder Público, mas que esse, devido a problemas que extrapolam o âmbito de discussão neste estudo abordado, não consegue atingir.

Todavia, é necessária uma contrapartida do Poder Público para que essas entidades possam se interessar em atingir esse desiderato, até mesmo por uma questão de sobrevivência, pois muitas delas são eminentemente filantrópicas.

A importância a disposição contida no artigo 195, § 7º, da Constituição Federal, reside no fato de estipular que são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.

Note-se que o dispositivo constitucional refere-se à expressão exigências estabelecidas na lei. Assim, deve-se perguntar: qual lei?

Como já observado alhures, existe dissenso quanto ao entendimento de qual diploma legislativo seria o competente para regulamentar as exigências para que as entidades gozem do benefício constitucional, se o Código Tributário Nacional (art. 14), norma de natureza complementar, ou se a Lei 8.212/91 (art. 55), que é lei ordinária [28].

Frise-se que o entendimento mais adequado é no sentido de que o benefício tratado pelo artigo 195, § 7º, da Carta Magna é imunidade e não isenção, sendo que se trata de limitação ao poder de tributar do Estado.

Em assim sendo, o artigo 146, inciso II, da Constituição Federal, determina que será a lei complementar que deverá regulamentar a verificação da presença dos requisitos para a concessão do benefício.

Nada obstante, ainda existe entendimento no sentido de que seria a Lei 8.212/91 o diploma legal competente para regular a questão, residindo neste fato o direcionamento deste estudo, ou seja, para demonstrar que, ainda que se entenda ser o referido diploma legal que deve prever os requisitos para a concessão do benefício constitucional, tem-se que seus elementos, especialmente o previsto no artigo 55, inciso II, é totalmente desprovido de razoabilidade.


AS EXIGÊNCIAS CONTIDAS NO ARTIGO 55 DA LEI 8212/91 E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

O controle acerca dos requisitos para a verificação da possibilidade de gozo do benefício da isenção de que trata o artigo 195, § 7º, da Constituição Federal, reveste-se de salutar importância, pois impede que pessoas jurídicas de direito privado, desviando-se dos fins pretendidos pelo legislador originário, deixem de atender aos interesses previstos no Texto Maior no que diz respeito à assistência social.

Com efeito, a partir do momento em que o Estado reconhece ser impossível sua presença em todos os seguimentos da sociedade, autoriza que pessoas jurídicas de direito privado realizem tais objetivos, no caso em análise, o acesso à educação e à saúde, por via oblíqua acaba por privilegiar o intento constitucional de reduzir as desigualdades sociais, melhorar a distribuição de riquezas.

Ocorre que é necessária a concessão de determinados benefícios para que se possa impulsionar a prática dos atos de filantropia em geral, bem como a atuação nas áreas de saúde e educação de forma desinteressada no que diz respeito ao enriquecimento pessoal.

O legislador, ciente das dificuldades do Estado em abarcar toda a espécie de situações onde se espera sua atuação, optou por conceder benefícios fiscais (imunidades e isenções) às entidades que se prestarem a esses fins, como é o caso do artigo 195, § 7º, da Constituição Federal.

Da mesma forma, deve-se ressaltar que não é possível conceber a realização destas atividades como forma de enriquecimento, razão pela qual deverá o legislador, ao mesmo tempo em que autoriza referidas pessoas jurídicas a realizarem estes atos, criar meios de fiscalização para evitar o desvio do instituto.

Nesta linha de pensamento, deve o legislador buscar certas exigências para que as entidades de assistência social demonstrem que não se aproveitam da isenção do pagamento da quota patronal para a seguridade social, como forma de enriquecimento de seus sócios, em patente desvirtuamento da finalidade a que se propõem, bem como estão a realizar efetivamente aquelas atividades previstas em seus estatutos.

O objetivo do sistema jurídico (evitar o locupletamento por parte de entidades apenas travestidas como se de assistência social fossem), deve pautar-se na elaboração de diplomas legislativos com o fito de fiscalizar o funcionamento dessas empresas, mas sem criar exigências descabidas e dissonantes com os princípios que inspiram o benefício de que trata o artigo 195, § 7º, da Constituição Federal (a dignidade humana, direito à saúde e educação, dentre outros).

A despeito da já citada controvérsia doutrinária e jurisprudencial a respeito de qual tipo de norma deveria regular a questão (lei complementar ou ordinária), certo é que a Lei 8.212/91 prevê requisitos para o gozo da isenção, devendo-se mencionar ainda que parte da jurisprudência tem aceito essa lei como apta a regulamentar o problema.

Assim, o diploma legal em comento, em seu artigo 55, estabelece as seguintes exigências, cumulativamente, para que a entidade filantrópica ou de assistência social possa isentar-se da contribuição: I - seja reconhecida como de utilidade pública federal e estadual ou do Distrito Federal ou municipal; II - seja portadora do Certificado ou do Registro de Entidade de Fins Filantrópicos, fornecido pelo Conselho Nacional de Serviço Social, renovado a cada três anos; III - promova a assistência social beneficente, inclusive educacional ou de saúde, a menores, idosos, excepcionais ou pessoas carentes; IV - não percebam seus diretores, conselheiros, sócios, instituidores ou benfeitores, remuneração e não usufruam vantagens ou benefícios a qualquer título; V - aplique integralmente o eventual resultado operacional na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais, apresentando anualmente ao Conselho Nacional da Seguridade Social relatório circunstanciado de suas atividades.

Prima facie é possível afirmar que os três primeiros incisos do artigo em análise são completamente desprovidos de razoabilidade, eis que os meios não são adequados para os fins pretendidos. Tanto é verdade que o inciso III encontra-se com sua eficácia suspensa por liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade, nº 2028-25.

Todavia, o inciso II do citado artigo é o que guarda maior grau de incompatibilidade com o princípio da razoabilidade, e será objeto de análise mais detida neste momento. Depreende-se da leitura deste dispositivo que, uma vez verificada a ausência do certificado de entidade filantrópica, concedido a cada três anos, não poderá ser considerada como entidade filantrópica, para fins de usufruir da benesse constitucional de isenção do pagamento da contribuição à seguridade social.

Note-se ainda que o artigo 55, da Lei 8.212/91 utiliza-se da expressão cumulativamente, quando se refere aos requisitos que deverão estar presentes para o gozo da isenção, vale dizer, a ausência de qualquer deles obsta a aplicação do artigo 195, § 7º, da Constituição Federal.

Ainda, percebe-se ser o Conselho Nacional de Assistência Social o órgão competente para a concessão dos certificados de entidade filantrópica, sendo que caso a entidade perca o prazo para a renovação, deverá aguardar por mais três anos para que possa novamente recebê-lo, e por conseguinte, isentar-se do pagamento da quota patronal para a seguridade social.

Conseqüência lógica dessa situação é que no período de três anos, enquanto estiver aguardando o fim do período de carência, para que possa novamente receber o certificado, sobre a entidade incidirão todos os tributos que normalmente encontrariam impedimento para verem sua hipótese de incidência, em face da limitação ao poder de tributar prevista na Constituição Federal (art. 195, § 7º).

Induvidosamente mostra-se de todo irrazoável essa exigência, pois em completa dissonância com os princípios que inspiraram o legislador constituinte ao prever que as entidades filantrópicas, por atuarem em área que deveria estar ocupada pelo Estado, no desempenho de atividades extremamente relevantes para a sociedade de modo geral, deveriam ser agraciadas com a isenção de pagamento de impostos.

A exigência contida no dispositivo em análise é completamente confrontante com os princípios e a intenção do legislador ao regular a questão da assistência social na Constituição Federal, onde o objetivo claro e inequívoco foi de conceder uma contraprestação pelos serviços realizados por essas entidades, qual seja a isenção de impostos.

Nada obstante essas ponderações, consoante a interpretação extraída do inciso II, do artigo 55 da Lei 8.212/91, caso uma pessoa jurídica deixe de requerer a renovação de seu certificado, ainda que preencha todos os outros requisitos (especialmente a não distribuição de lucros entre os sócios e a aplicação integral dos resultados na realização de suas atividades), que são aqueles considerados realmente importantes para a fiscalização das atividades dessas empresas, ainda assim não estará apta a gozar da isenção de que trata o artigo 195, § 7º, da Carta Magna.

Percebe-se, portanto, que existe, in casu, um conflito entre normas, ou seja, entre princípio (dignidade humana, acesso de todos os cidadãos à saúde e à educação), de natureza constitucional, com uma regra (inciso II, do artigo 55, da Lei 8.212/91, que prevê os requisitos necessários para a concessão do benefício constitucional).

Para resolução de conflitos dessa natureza, tem-se adotado a regra da máxima da proporcionalidade, criada por Alexy (1993), de modo a verificar se o requisito previsto no inciso II do artigo 55, da Lei 8.212/91, reveste-se da razoabilidade necessária para que possa ser considerado como constitucional.

O primeiro questionamento diz respeito à adequação dos meios utilizados pelo legislador quanto aos fins pretendidos. Como dito, o intuito das exigências previstas na legislação infraconstitucional é no sentido de que não haja enriquecimento sem causa das entidades de assistência social (ou melhor dizendo, de seus administradores) em virtude do benefício concedido (isenção de pagamento de impostos), com a subseqüente inatingibilidade do fim pretendido no estatuto social.

Entende-se que já nesse caso o dispositivo não resiste a uma análise mais acurada e por via de conseqüência, torna-se irrazoável. Ora, se o objetivo pelo legislador diz respeito a criação de meios para fiscalizar as entidades de assistência social, para que não se desviem de seus objetivos, tem-se que a maneira mais adequada para que se atinja tal desideratum deve ser a não distribuição de lucros entre seus sócios, bem como a aplicação integral dos resultados operacionais obtidos em sua atividade regular, e ainda, a mantença dos livros contábeis tidos como obrigatórios, o que aliás já vem previsto no mesmo dispositivo, em seus demais incisos.

Através da presença desses três requisitos pode-se verificar, com o acerto necessário, se a entidade de assistência social apresenta os pressupostos para que possa usufruir do benefício constitucional.

Mas também com relação à necessidade (ainda de acordo com a regra da máxima da proporcionalidade, proposta por Alexy [1993]), é de se dizer que a exigência legal não teria melhor sorte.

Com efeito, a ingerência do Estado na atividade dos particulares deve dar-se sempre da forma menos gravosa possível, residindo neste ponto a verificação da necessidade, consoante a máxima da proporcionalidade.

Outra resposta não deve exsurgir quanto a referido questionamento, pois evidentemente não se trata do meio menos gravoso para a fiscalização das entidades de assistência social por parte do Poder Público, no sentido de verificar a presença dos elementos necessários à concessão do benefício.

A partir do momento em que se exige a apresentação de um certificado para que a empresa possa usufruir do benefício da isenção de impostos, devendo este ser renovável, e em não o sendo, haverá a perda de referido direito, ainda que situação fática (prestação de serviços de filantropia), não se pode aceitar referida exigência como compatível com o princípio da proporcionalidade e, por via de conseqüência, com a Constituição Federal.

O Tribunal Constitucional da Alemanha [29], manifestou-se acerca da proporcionalidade no ato legislativo, no sentido de que:

[...] os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados à consecução dos fins visados. O meio é adequado se, com a sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos fundamentais.

Da mesma forma que o inciso II, do artigo 55 da Lei 8.212/91 não resiste aos questionamentos sobre a adequação e necessidade, o mesmo ocorre quanto à proporcionalidade em sentido estrito, cujo ponto nodal é a ponderação acerca da justificativa de referida exigência.

Ora, não existe justificativa plausível para que as entidades de assistência social apresentem o certificado que as caracterize como tais, sob pena de não concessão ou revogação do benefício, posto que as características importantes são a efetiva prestação de serviços na área de assistência social, e ainda, que se observem as exigências quanto a distribuição de lucros e aplicação de resultados operacionais.

Se a presença dos outros requisitos previstos na lei (não distribuição dos lucros entre os sócios e aplicação integral dos resultados operacionais em suas atividades) é suficiente para a fiscalização do Poder Público perante essas entidades, e certamente é, deve-se entender como desprovida de razoabilidade a exigência contida no inciso II deste diploma legal, o que o eiva de irremediável inconstitucionalidade.

Um exemplo deve bem delinear o problema. Imagine-se uma entidade de assistência social (como as Santas Casas de Misericórdia) que sempre gozou do benefício da isenção, inclusive possuindo certificados anteriores, mas que por descuido de seu setor administrativo deixa de requerer a renovação do certificado, e por conseguinte, tem seu benefício suspenso.

Ainda que uma entidade de assistencial, como no caso acima citado, venha a perder o certificado, por falta de renovação (providência meramente administrativa), mas continue a exercer suas funções eminentemente filantrópicas, atendendo aos demais requisitos previstos em lei, conforme a interpretação extraída desse dispositivo (em especial a expressão cumulativamente), não poderá deixar de recolher a quota patronal referente á seguridade social.

Pergunta-se então: até que ponto seria razoável, no exemplo dado, a exigência prevista no artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91, como forma de obstaculizar o acesso da entidade ao benefício constitucional? O formalismo exacerbado da lei seria suficiente para transpassar os princípios previstos pelo legislador na Constituição Federal? Ainda, seja justo exigir que referida entidade ficasse desprovida do certificado pelo período de três anos, sofrendo a incidência de impostos?

Apesar de parecer-se com um caso difícil, o juiz Hércules [30] não encontraria maiores dificuldades para a solução do caso concreto, onde certamente daria preferência ao princípio, ou melhor dizendo, princípios, que norteiam o instituto, de modo a conferir a declaração de irrazoabilidade para o requisito previsto na lei.

Note-se que no caso trata-se de colisão de regra com princípios, sendo que segundo ensinamento de Dworkin, deverá haver a prevalência destes perante aquela, dada a diferença qualitativa existente entre eles.

Como dito, no caso dos princípios existe a dimensão peso ou importância, ao passo que a regra regula-se pela questão da validade. Assim, deve perquirir, para a solução do caso, pelo real intento do legislador (quais os princípios que o inspiraram), para que se possa, ao depois, analisar até que ponto a lei infraconstitucional vai de embate ao Texto Maior, por violação a um de seus princípios (proporcionalidade).

Seguindo nesta esteira, deve-se analisar o poder do legislador ordinário em criar as exigências ora tratadas, vale dizer, até que ponto houve a observância aos princípios constitucionais que regulam a questão, de modo a aferir a presença ou ausência da razoabilidade no ato legislativo.

"O conceito de discricionariedade no âmbito da legislação traduz, a um só tempo, idéia de liberdade e de limitação. Reconhece-se ao legislador o poder de conformação dentre de limites estabelecidos pela Constituição" [31].

Portanto, conclui-se que a exigência prevista no inciso II, do artigo 55, da Lei 8.212/91 é totalmente irrazoável, e dessa forma, inconstitucional, dado que nela não se verifica a presença da adequação dos meios aos fins pretendidos, bem como sua necessidade, tendo em vista que os demais requisitos previstos na lei são suficientes para que se atinja o desiderato do legislador (fiscalização das entidades), e ainda, a proporcionalidade em sentido estrito, pois não existe justificativa plausível para sua declaração de validade, desde que presentes os demais pressupostos legais.

A lei deverá ser declarada inconstitucional, desde que verificado que poderia interferir de meio menos gravoso para que pudesse atingir o seu desiderato, o que mostra-se patente, pois não é crível que a exigência de um certificado seja condicionante da concessão do benefício.

Gilmar Mendes [32], novamente traduz com sapiência a necessidade de verificação acerca da presença da proporcionalidade dos atos legislativos, ao ponderar que:

[...] a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.

A assertiva acima se reveste de mais importância quando se analisa a questão do ponto onde a perda do prazo para a renovação exige-se o prazo de três anos de carência (isto é, sem o certificado e com a subseqüente incidência de impostos), para que possa novamente gozar da isenção.

Assim, toda vez que a exigência feita na lei (regra) for dissonante com princípios norteadores de toda uma sistemática jurídica, como o caso ora abordado, em havendo a referida colisão, deve-se sempre se pautar pelo peso desses, de modo a afastar a incidência daquela.

Feitas as considerações acima, exsurge clara a conclusão de que o preceituado pelo inciso II, do artigo 55, da Lei 8.212/91, objeto de análise mais detida neste momento, não se reveste de razoabilidade, ao determinar às entidades filantrópicas que cumpram com exigência totalmente incompatível com os objetivos previstos pelo legislador originário.


CONCLUSÃO

Como é possível perceber o intuito deflagrado neste estudo foi de delimitar a aplicação do princípio da razoabilidade a uma situação específica, que é a concessão do benefício de isenção das contribuições para a seguridade social às entidades que prestam serviços de assistência social, o que não impede, todavia, que essas considerações sejam estendidas a outros casos onde também haja a colisão de normas jurídicas.

Procurou-se, nesta linha de raciocínio, fazer uma abordagem da importância dos princípios nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, inclusive e especialmente o brasileiro, dando ênfase à razoabilidade, que deve revestir todos os atos do Poder Público, sob pena de inconstitucionalidade, dado que referido princípio goza de status constitucional.

Denota-se, assim, que a influência dos doutrinadores representantes da moderna Teoria Geral do Direito (pós-positivistas, segundo pensamento de Bonavides), em especial Ronald Dworkin e Robert Alexy, esse último dando inegável impulso à aplicação do princípio da razoabilidade, tem sido de inestimável valor para o amadurecimento do direito como ciência, bem como da solução dos casos concretos que se colocam no dia a dia à apreciação do Judiciário.

Através desse princípio, de larga aplicação, é possível encontrar-se solução para a mais variada gama de situações, dado o seu alto grau de abstração, sendo que neste caso a sistemática utilizada por Alexy (máxima da proporcionalidade) desempenha papel de relevo na evolução da aplicabilidade do princípio.


NOTAS

01. A despeito da Constituição Federal, em seu artigo 195, §7º, estabelecer que as entidades filantrópicas serão isentas do pagamento da contribuição social, atendidas das exigências da lei, deve-se dizer que se trata de limitação ao poder de tributar, o que por via de conseqüência, tem como denominação mais correta a palavra imunidade. Outro ponto importante a respeito do tema, e que não será abordado neste artigo diz respeito a qual tipo de norma é o adequado para a regulamentação dos requisitos necessários para o gozo do benefício constitucional, sendo que o entendimento doutrinário mais abalizado pende para a conclusão de que somente a lei complementar (CTN, art. 14) tem competência para a matéria. Todavia, como existe entendimento não menos expressivo, especialmente na jurisprudência dos juízos monocráticos federais, no sentido de que é a Lei 8.212/91 o diploma ato a regular a matéria, exsurge o interesse prático do presente trabalho, à luz do princípio da razoabilidade.

02. Segundo o doutrinador alemão, para a Teoria Imperativista sobre a norma, deve-se reconhecer como seu núcleo central a noção da vontade, que inclusive em termos históricos desfrutava de inegável prestígio. Existe, portanto, uma relação de superioridade de vontades, entre aquele que ordena (detentor da vontade geral) e aquele que deve se submeter a determinado comportamento ou conduta traçada pela norma, sempre em caráter impositivo.

03. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 60.

04. Hermenêutica e argumentação, uma contribuição ao estudo do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 13

05. Introdução do estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 117

06. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39.

07. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

08. Ronald Dworkin foi responsável por verdadeira evolução no estudo da Teoria Geral do Direito, ao combater o positivismo de Hart, que somente admitia que as normas eram dotadas de textura aberta, mas não conferia o peso necessários aos princípios como informadores do Direito.

09. A incredulidade de Kelsen quanto à questão do valor no direito mostra-se patente e inescondível quando demonstra sua concepção do direito, que deve encontrar na norma todas as respostas para os problemas que surgirem do relacionamento social, não conferindo elasticidade de interpretação jurídica.

10. O autor italiano defende a teoria da positividade dos princípios de modo que sejam aplicáveis como se regras fossem, ou seja, ressaltando a importância de sua eficácia interpretativa.

11. A influência do racionalismo é traço marcante dessa escola, sendo o Código de Napoleão, promulgado em 1804 como o seu maior exemplo. Com efeito, dada a simplicidade de relações sociais da época, a codificação francesa pôde, por um longo período de tempo. A principal intenção da escola era a criação de sistema normativo que fosse de amplitude tal que evitasse a indesejável obscuridade, a ambigüidade a incompatibilidade entre dispositivos, e ainda a redundância da lei, vale dizer, a perfeição externada através das leis.

12. Op. cit.

13. Comte entende que a sociologia é a única ciência todos os fenômenos nela verificados, dado que se fundamenta nos fatos, deixando de lado a ideologia metafísica. Sua obra faz alusão ao que será tardiamente denominado de sociologia jurídica.

14. Referidos autores, de incontestável expressão, desenvolveram uma teoria a respeito da normatividade dos princípios, bem como de sua aplicação, especialmente nos casos difíceis, que causaram uma evolução na Teoria Geral do Direito, pois conferiu-se-lhes a condição de normas valores, com positividade maior nas Constituições do que nos Códigos, ou seja, seu peso deriva da norma suprema.

15. Os conflitos são inevitáveis, seja entre regras e regras, princípios e princípios, ou ainda, entre princípios e regras, sendo que, exsurge de forma clara da doutrina do autor em questão a prevalência de que desfrutam os estes em relação àquelas.

16. Conforme ensinamento de Alexy, outra importância distintiva entre princípios e regras, reside no fator qualitativo, sendo que os primeiros encontram-se, nesta hipótese comparativa, em nível superior.

17. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 210.

18. Pode-se dizer, neste passo, que ainda havia um certo receio da intervenção do Poder Judiciário nos demais atos da Administração, especialmente do Legislativo, pois conforme a concepção vigente à época, não havia legitimidade para essa fiscalização, razão pela qual a incidência desse princípio recaía tão somente nos processos judiciais, ou seja, onde o Judiciário teria legitimação para atuar.

19. Apesar deste dispositivo constitucional não fazer menção explícita ao princípio da razoabilidade, extrai-se de seu conteúdo que se trata de uma proteção aos direitos do cidadão, que devem ter assegurado o direito de verem suas pretensões apreciadas pelo Judiciário, especialmente quando verificados os casos de excesso. Nada obstante, cumpre registrar que alguns diplomas legais nacionais já prevêem expressamente a respeito da razoabilidade, como é o caso do artigo 111, da Constituição do Estado de São Paulo, bem como a Lei 9.784/99, art. 2º.

20. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 356.

21. In: BONAVIDES, Paulo Curso de direito constitucional. Op. cit , p. 356

22. Op. cit., p. 215

23. Como dito, para Dworkin as regras ou são aplicáveis ou não, ao passo que os princípio regem-se pelo elemento peso, verificado de diferentes modos para cada caso concreto. Contudo, em havendo colisão de regra com princípio, inegável a posição do autor, bem como o seu acerto, no sentido de privilegiar o segundo com relação ao primeiro.

24. In: Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, p. 91.

25. Torna-se importante, para os objetivos deste estudo, uma abordagem a respeito dos princípios que inspiraram o legislador ao prever o benefício para as instituições de assistência social que estivessem desenvolvendo serviços destinados à área da saúde e educação especialmente, posto que isso será fundamental para a verificação da existência ou não da razoabilidade dos dispositivos de lei que prescrevem as exigências para a concessão da isenção.

26. In: Curso de Direito Constitucional Tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 716.

27. Op. cit., p. 522.

28. A menção a referida controvérsia já foi feita acima, todavia, nunca é demais lembrar que o entendimento mais adequado seria de que o Código Tributário Nacional é o diploma legal apto a regulamentar a matéria, sendo importante a demonstração da ausência da razoabilidade no artigo 55 da Lei 8.212/91 justamente para corroborar essa tese.

29. In: Mendes, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 248.

30. O juiz Hércules foi uma figura criada por Dworkin quando trata das soluções para os denominados casos difíceis, onde a atividade cognoscitiva não se restringe tão somente à aplicação ou não das regras, mas a interpretação de princípios como forma de encontrar a solução mais correta dentre as diversas disponíveis, sendo que Hércules sempre encontra a única correta, na real acepção da palavra. No caso em exame existem princípios de natureza constitucional que propugnam pelo acesso dos cidadãos à saúde e à educação, em especial, ao passo que uma lei de natureza infraconstitucional (ordinária), passa a fazer exigências totalmente descabidas e desproporcionais, dissonantes do fim pretendido pelo legislador.

31. Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 247.

32. Idem, ibidem, p. 250.


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Autor

  • Gustavo Passarelli da Silva

    Gustavo Passarelli da Silva

    Advogado e Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul - UFMS, Universidade Católica Dom Bosco - UCDB, Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal - UNIDERP, em cursos de graduação e pós-graduação, de Direito Civil na Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul e Escola da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Processual Civil e Mestre em Direito e Economia pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro - UGF/RJ, Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires - UBA. Diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia/ESA da OAB/MS.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gustavo Passarelli da. O princípio da razoabilidade e as exigências da Lei nº 8.212/91 quanto aos benefícios do art. 195, § 7º, da CF/88 às entidades de assistência social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3747. Acesso em: 24 abr. 2024.