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O planejamento urbano municipal e o meio ambiente

O planejamento urbano municipal e o meio ambiente

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            Pode-se identificar a existência de cidades desde os primeiros tempos. Roma e Atenas são dois exemplos sempre lembrados por serem símbolos de civilizações que influenciaram hegemonicamente outras civilizações de sua época. As conquistas militares dos romanos e as descobertas no campo do conhecimento dos gregos até hoje são lembradas.

            No período denominado de Idade Média (séculos IV ao XIII), a sociedade se organizou basicamente na zona rural. As cidades viriam renascer com a retomada das trocas comerciais entre ocidente (Portugal, Espanha...) e oriente (Índias) e a descoberta de novos mercados consumidores (América). Apesar do renascimento das cidades, a sociedade continuou marcadamente rural.

            É, contudo, a partir do fenômeno da industrialização que as cidades começam o processo de inchamento e crescimento verificáveis ainda hoje. Pode-se verificar isso no Brasil através da cidade de São Paulo. Por volta de 1900, São Paulo inicia o seu processo de industrialização. Milhares de pessoas imigram para as cidades incentivadas pela promessa de uma vida melhor. A cidade cresce de uma forma desordenada. Inúmeras indústrias se instalam nas cidades. Proliferam-se os cortiços (como se verifica na novela Esperança). Milhares de crianças são empregadas nas indústrias. O rio Tietê começa a ser poluído. A criminalidade, desde essa época, passa a ser fonte de preocupações da comunidade.

            Esse breve relato da cidade de São Paulo indica que o processo de urbanização, ou seja, o processo de formação de uma cidade deve ser planejado. Uma cidade não se regula por si mesmo, seja por que os recursos naturais são finitos, seja por que os recursos financeiros são insuficientes para fazer frente aos prejuízos causados à saúde humana, ao meio ambiente e à qualidade de vida.

            Quantos litros de água são consumidos diariamente em uma cidade de 20 mil habitantes? Quanto se gasta para tratar o esgoto de uma cidade de 100mil habitantes? Qual a melhor alternativa para o transporte de uma cidade de 500 mil habitantes? Como deve ser a ação de um governo municipal em uma cidade de características agro-industriais? Essas e outras perguntas fazem parte de uma política de planejamento. A idéia de que uma cidade não se regula por si mesma implica numa ação preventiva e efetiva do poder público capaz de assegurar bem estar à sua população com o respeito ao meio ambiente.

            Pensar o espaço urbano, assim, é pensar qual a cidade que queremos para os nossos filhos. Uma cidade com áreas de lazer, com parques, onde se possa tomar banho de rio ou uma cidade marcada pelas queimadas e poluição, com a sua fonte de água contaminada e pessoas doentes por problemas ligados à deterioração do meio ambiente. Esse é o desafio do planejamento urbano que está colocado para os municípios.

            A perspectiva de associar desenvolvimento urbano com preservação do meio ambiente é recente. Informa-nos Portella que foi "a partir da primeira guerra mundial em 1914 que o mundo procurou ordenar o crescimento exagerado das cidades buscando atender especialmente as condições higiênicas da moradia, alinhamento das novas construções, regulamentação dos estabelecimentos insalubres ou inconvenientes". (1)

            A industrialização e o inchaço das cidades produziam conseqüências que atingiam o homem. A perspectiva do desenvolvimento urbano até então não levava em conta o bem estar humano ou a temática ambiental. O Dec. Lei 58/37 foi o primeiro regulamento urbano do Brasil, tendo surgido basicamente devido ao exagerado número de loteamentos irregulares e à necessidade de proteger o consumidor contra o mau loteador. (2)

            A necessidade de se repensar o sistema legal da cidade surge com a Constituição Federal de 1988 que em seus artigos 182 e 183 (3) explicita um novo quadro jurídico, apontando a necessidade da Reforma Urbana. Velhas formas de planejamento urbano, baseadas sobretudo em seu caráter legal, não são mais suficientes para garantir a eficácia do planejamento estratégico da cidade. No bojo dessa reforma, emergem temas como a função social da cidade, da propriedade, da justa distribuição de bens e serviços urbanos, da gestão democrática e da questão ambiental. (4)

            A reforma urbana preconizada pela Constituição Federal de 1988 pressupõe um planejamento urbano que leve em conta aspectos sociais (será que todos os grupos da cidade estão inclusos no planejamento? Exemplo: o sistema de transporte coletivo assegura aos portadores de deficiência condições de locomoção com dignidade?), aspectos políticos (o planejamento urbano é efetuado mediante a democratização da discussão com a população? Exemplo: os portadores de deficiência são ouvidos na elaboração do planejamento urbano) e aspectos ambientais (o planejamento urbano leva em conta o aspecto ambiental? Exemplo: será que os ônibus utilizados no sistema de transporte coletivo apresentam um índice de ruído e poluição dentro do limite aceitável?).

            O planejamento urbano efetivo é implementado mediante a elaboração de normas legais que o normatizem e, sobretudo, mecanismos de inclusão para a participação e intervenção da comunidade e entidades no processo de reflexão sobre a cidade em si. Não há dúvida de que

            "o planejamento urbano do Município deve ser capaz de pensar a cidade estrategicamente, garantindo um processo permanente de discussão e análise das questões urbanas e suas contradições inerentes, de forma a permitir o envolvimento de seus cidadãos." (5)

            A democratização das discussões, precedida do acesso às informações, possibilita que a variante ambiental e social seja incluída no planejamento urbano. Certamente, uma comunidade instalada às margens do rio Cuiabá sabe mais que ninguém que qualquer empreendimento industrial que se instale ali deve levar em conta o aspecto sócio-ambiental. Apesar disso, o impacto social e ambiental por vezes é desconsiderado. Um planejamento urbano pautado no respeito à dignidade humana e ao meio ambiente considera a participação na formação de leis e nos conselhos de meio ambiente e desenvolvimento urbano essenciais.

            Por outro lado, o planejamento urbano municipal deve

            "operacionalizar mecanismos e instrumentos que impulsionem o desenvolvimento urbano, fomentando e antecipando ações, bem como promovendo iniciativas compartilhadas que intensifiquem as relações do Estado com a iniciativa privada direcionando para uma melhor qualidade de vida." (6)

            O planejamento urbano municipal proposto pela Constituição Federal de 1988 não pretende impedir o crescimento econômico do município. Ao contrário, o crescimento econômico deve ser uma meta que, contudo, não exclua a preservação do meio ambiente, a necessidade de assegurar dignidade à pessoa humana e a possibilidade de participação da comunidade na elaboração do próprio planejamento urbano.

            Para isso, alguns instrumentos podem ser manejados para assegurar a melhoria da qualidade de vida da população. Passamos a seguir a analisá-los.


Lei Orgânica Municipal

            A lei orgânica municipal está para o município, assim como a Constituição Federal está para o País. A Lei Orgânica Municipal é a lei máxima do município. É preciso lembrar que, conforme os artigos 18, 29 e 30 da Constituição Federal de 1988, o Município possui autonomia para legislar em termos municipais, ou seja, o Município pode gerir os seus próprios negócios.

            De acordo com os artigos 23 da Constituição Federal de 1988, o Município é competente juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal para a proteção do meio ambiente e o combate a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI) e para a preservação das florestas, da fauna e da flora (art. 23, VII). O artigo 30, por seu turno, relaciona as competências normativas que cabem unicamente ao município, entre as quais se destaca legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, "a") e suplementar a legislação federal e estadual, no que couber (art. 30, "b").

            O município, erigido à condição de ente federativo, possui o dever de contribuir para a preservação do meio ambiente. Pode, inclusive, legislar, sobre a temática desde que haja interesse local. Nesse sentido, a constituição municipal, isto é, a lei orgânica pode e deve conter instrumentos relativos à preservação do meio ambiente. Como é novidade tamanha autonomia municipal, e dado às parcas informações sobre a matéria, parece, ainda, inexistir, ao menos no que se refira aos pequenos municípios, medidas e leis capazes de instrumentalizar o município em sua competência municipal.

            O fato é que, na Constituição Municipal, pode e deve existir dispositivos atinentes à concretização do poder público municipal de fiscalizar e assegurar um meio ambiente sadio. É evidente que os dispositivos da lei orgânica municipal devem levar em conta a realidade existente no município. Assim, ao município, "cabe estabelecer as formas mais adequadas, diante de sua realidade geográfica e econômica, de compatibilizar as suas atividades produtivas e sociais com a proteção e melhoria da qualidade ambiental". (7)

            Dois exemplos podem ilustrar como a lei orgânica pode atender ao fim de preservação ambiental, tendo-se como parâmetro as características locais. Antes, contudo, ressalte-se que a Constituição Municipal deve disciplinar o essencial, deixando para a legislação infra-constitucional o papel de pormenorizar os preceitos contidos na lei orgânica municipal.

            Exemplo 1: um município que tenha como principal atividade econômica a extração de madeiras. É interesse desse município a preservação ambiental, ao menos que se imagine que a extração de madeiras é um recurso natural renovável. Nesse caso, a lei orgânica municipal pode conter dispositivo em que o município entende ser fundamental a existência de um plano de manejo executado sob a fiscalização da secretaria municipal de meio ambiente para que qualquer projeto de extração de madeiras se realize.

            Além disso, poderia existir a prioridade na concessão de créditos para que a madeira extraída no município fosse processada ali mesmo, seja na confecção de móveis, seja na preparação para a utilização na construção civil. Perceba-se a compatibilização entre a preservação do meio ambiente e o crescimento econômico. A primeira serve de suporte para a segunda. Certamente, caso medidas como essa tivessem sido implementadas, não existiriam hoje municípios em estado pré-falimentar devido à ausência de madeiras, gerando desemprego e miséria.

            Exemplo 2: um município tendo como principal atividade econômica a mineração. Como se sabe, os minérios são recursos naturais não renováveis e, por isso, devem ser extraídos mediante um plano que reverta em dividendos para a comunidade local. Não é isso o que acontece no sonho de se encontrar o Eldorado. Desde Cabral, ao que parece, poucos lucram muito nessa atividade, enquanto muitos lucram pouco. Um dispositivo na lei orgânica municipal que assegurasse mecanismos para a formação de cooperativas de créditos entre os habitantes do município poderia ser um meio de evitar que apenas as grandes companhias internacionais mineradoras obtenham lucro com a extração de minérios.


Plano Diretor

            Prevista no artigo 182 da Constituição Federal de 1988 e regulamentada nos artigos 39 à 42 do Estatuto da Cidade lei nº 10.257/2001, a lei do Plano Diretor é um instrumento fundamental para o planejamento urbano por definir a política de desenvolvimento e expansão urbana, estabelecendo um modelo compatível com a proteção dos recursos naturais, em defesa do bem-estar da população. (8)

            Como pretende corrigir distorções e rumos no desenvolvimento, o plano diretor pressupõe um estudo das potencialidades e deficiências do município. Deve-se avaliar a dimensão territorial, econômica, social e ambiental do município. Daí a relevância de um diagnóstico bem elaborado que orientará a expansão urbana.

            Por outro lado, a elaboração do plano diretor pressupõe discussões com a comunidade sobre os rumos do desenvolvimento. Na verdade, essa participação da comunidade deve existir permanentemente, por exemplo, por meio dos conselhos. O fato é que a comunidade precisa estar envolvida na definição dos objetivos e estratégias que pautarão o desenvolvimento urbano.

            A questão ambiental deve perpassar a elaboração do plano diretor nos aspectos do patrimônio natural, cultural e artificial, dispondo sobre a utilização e preservação dos recursos naturais existentes no município (rios, córregos, tratamento de esgotos, exploração de madeiras, solo, espaço para a instalação de indústrias...), a utilização e a conservação do patrimônio cultural do município (criação de museus, incentivos aos tombamentos...) e o disciplinamento do patrimônio ambiental artificial (malha viária, sistema de transporte...)

            A idéia de sustentabilidade deve estar presente no plano diretor através da racionalização dos recursos físicos e naturais. Um exemplo disso, seriam as medidas existentes no plano diretor para estimular a densidade adequada da cidade. Assim, ao invés de se estimular que a cidade se disperse, espalhando-se, o plano diretor deve estimular a compactação e a concentração de moradias e estabelecimentos em áreas mais bem equipadas em termos de infra-estrutura. Tal situação representaria uma economia para a coletividade e, do mesmo modo, uma economia de recursos ambientais a serem instalados ou utilizados (águas, rede de esgotos, combustível...). O plano diretor abriga, assim, duas idéias fundamentais: a de que existem necessidades a serem supridas e a de que os recursos para supri-las devem ser utilizados de forma racional.

            Um aspecto importante a ser ressaltado se refere ao monitoramento das medidas previstas no plano diretor. Para que possuam efetividade, deve existir um sistema de avaliação do desenvolvimento urbano que avalie a compatibilidade entre o previsto no plano diretor e o realizado.

            Um belo exemplo de elaboração de plano diretor ocorreu no município de Porto Alegre/RS aprovado no ano de 1999. Nesse plano diretor, reconhece-se que a participação da comunidade é fundamental para o planejamento urbano e que o respeito ao meio ambiente é pressuposto do desenvolvimento urbano:

            Art. 1º A promoção do desenvolvimento no Município de Porto Alegre tem como princípio o cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, nos termos da Lei Orgânica, garantindo:

            I - a gestão democrática, participativa e descentralizada;

            II - a promoção da qualidade de vida e do ambiente, reduzindo as desigualdades e a exclusão social.

            O plano diretor da capital gaúcha apresenta uma concepção moderna, podendo servir de parâmetro à elaboração de outros planos diretores. São definidos sete estratégias básicas de atuação:

            I - Estratégia de Estruturação Urbana:

            Integrando os diferentes lugares que constituem a cidade (bairros, avenidas e ruas, praças e parques, morros e o Guaíba) ao valorizar os espaços existentes e estimulando a criação de outros.

            II - Estratégia de Mobilidade Urbana:

            Prevendo lugares onde as pessoas possam se divertir, passear, buscar atendimento médico, comprar ou vender e aprender. Chamados de Espaços Abertos, estes locais precisam estar espalhados pela cidade de uma maneira que cada habitante chegue até eles, a partir de suas casas, com facilidade, seja a pé ou de ônibus. Podem ser constituídos por áreas verdes (praças e parques), ou por edificações, como um shopping, um teatro ou mesmo um estádio de futebol.

            III - Estratégia de Uso do Solo Privado

            Estabelecendo as regras para as novas construções; quanto ao uso e à forma dos prédios e aos tipos de parcelamento (divisão de terra) que podem ser feitos na cidade. Estão propostos, também, meios de controle do número máximo de pessoas que podem morar ou trabalhar em cada zona da cidade (densificação), sem que haja problemas às redes de infra-estrutura.

            IV - Estratégia de Qualificação Ambiental:

            O termo ambiental, neste Plano, significa a cidade vista e analisada como um conjunto único, onde convivem entre si diferentes tipos de cidade, com características bem específicas. Assim, passa a tratar os aspectos culturais e naturais como questões igualmente importantes, cujos espaços representativos deverão ter sua ocupação e uso preservados para as futuras gerações. É fundamental que se valorize o patrimônio cultural com o reconhecimento de lugares importantes e se promova sua recuperação, quando necessário (Mercado Público, por exemplo). Também é preciso identificar locais onde a natureza deve ser protegida, bem como recuperar áreas que já sofreram agressões. Também é necessário propor medidas integradas entre os órgãos municipais quanto aos serviços de água, tratamento de esgoto sanitário e drenagem de terrenos na cidade, e quanto ao controle da poluição e do consumo de energia.

            V - Estratégia de Promoção Econômica:

            Promovendo ações para democratizar o conhecimento técnico, incentivar as empresas ao desenvolvimento e criar alternativas de trabalho e emprego.

            VI - Estratégia de Produção da Cidade:

            Orientando as empresas e os proprietários de terra para contribuir para o desenvolvimento urbano, reduzindo o desequilíbrio social, bem como promovendo uma política para a construção de moradias de baixo custo. A urbanização e regularização das vilas e loteamentos é o principal objetivo deste programa para que mais pessoas passem a contar com os serviços que a cidade oferece, como redes de água, esgoto, ruas pavimentadas e luz, além de acesso à escola, postos de saúde, praças e telefones públicos. A regularização ocorrerá, sempre que for possível, nos mesmos locais onde as pessoas se encontram.

            VII - Estratégia do Sistema de Planejamento:

            Dinamizando o Sistema Municipal de Gestão do Planejamento; articulando políticas e ações, bem como acompanhando o desempenho urbano de maneira que, quando forem identificadas mudanças necessárias, tanto pela Prefeitura, como pela população, o Plano Diretor possa ser readequado.

            O Plano Diretor é, assim, o instrumento capaz de definir as regras de um desenvolvimento urbano em que a sociedade se beneficia em harmonia com o meio-ambiente, propiciando-se o melhoramento da qualidade de vida para todos os habitantes.


Lei de Uso e Ocupação do Solo/Zoneamento ambiental

            O zoneamento ambiental é um dos instrumentos previstos na Lei 6.938/81, constante da Política Nacional do Meio Ambiente. Também o artigo 4º do Estatuto da Cidade (leiº 10.257/2001) estabelece que o zoneamento ambiental é um dos instrumentos do planejamento municipal. Visa o zoneamento ambiental oferecer subsídios ao planejamento municipal, incluindo-se aí a utilização dos recursos ambientais.

            Evidentemente, as diversas regiões do país possuem diferentes ecossistemas e, conseqüentemente, diferenciadas possibilidades de uso e ocupação do solo. O zoneamento ambiental é requisito essencial da Lei de Uso e Ocupação do Solo. Logicamente, somente pode haver uma Lei de Uso e Ocupação do Solo a partir de um estudo interdisciplinar e metodológico que revele as características do meio ambiente. Através de etapas definidas, o zoneamento vai desvendando o universo do ecossistema em questão, revelando as suas possibilidades e deficiências.

            O Zoneamento é apresentado em forma de representação cartográfica de áreas com características homogêneas. Desse modo, elucida a melhor alternativa para o uso e ocupação do solo. O zoneamento ambiental tem servido basicamente para a produção de leis que garantam condições adequadas de iluminação, ventilação, salubridade, melhor circulação de veículos, a proteção de áreas de interesse ambiental, e ainda compatibilizar os diversos usos do solo. (9) Revela-se, assim, o caráter de instrumento do zoneamento ambiental no processo de gestão dos ambientais, financeiros e humanos.

            Lembre-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que aos Municípios compete legislar sobre assuntos de interesse local, suplementando a legislação federal e estadual (art. 30, I e II). Do mesmo modo, todos os entes federativos têm competência comum para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI).

            Assim, o Município possui grande responsabilidade em produzir um zoneamento ambiental interdisciplinar e metodológico que se expresse, posteriormente, em uma lei de ocupação do solo. Esse diagnóstico ambiental do município levantará as características ambientais do município, delimitando as áreas mais adequadas aos diversos usos e ocupações do solo. Áreas destinadas às indústrias, à preservação permanente, aos loteamentos residenciais são alguns dos exemplos de definições de lugares efetuados pelo zoneamento municipal.

            A definição, por exemplo, de que determinada área deve ser reservada para a preservação permanente será a conclusão de que aquela área possui características ambientais necessárias ao equilíbrio do ecossistema na região; por outro lado, a destinação de determinada área para a instalação de indústrias levará em conta a menor possibilidade de poluição ou outro dano ambiental.

            O município de Belo Horizonte, por exemplo, foi dividido em 8 zonas diferenciadas segundo os potenciais de adensamento e as demandas de preservação e proteção ambiental, histórica, cultural, arqueológica ou paisagística, dentre as quais:

            Zona de Preservação Ambiental – ZPAM: destinada à preservação e à recuperação de ecossistemas, visando garantir espaço para a manutenção da diversidade das espécies e propiciar refúgio à fauna bem como proteger as nascentes e as cabeceiras de cursos d´água, evitando riscos geológicos.

            Zona de Proteção – ZP: destinada à ocupação com baixa densidade populacional e maior taxa de permeabilização, tendo em vista o interesse público na proteção ambiental e na preservação do patrimônio histórico, cultural, arqueológico ou paisagístico.

            Zona de Adensamento Restrito – ZAR: destinada a desestimular a ocupação de regiões em razão de ausência ou deficiência de infra-estrutura de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário, de precariedade ou saturação da articulação viária interna ou externa ou de adversidade das condições topográficas.

            Fica claro que a Lei de Uso e Ocupação do Solo somente pode ser elaborada após o trabalho de zoneamento ambiental, elemento fundamental para a preservação do meio ambiente e para a racionalização dos recursos financeiros do Estado.


Estatuto da Cidade

            A Reforma Urbana inaugurada pela Constituição Federal de 1988 em seus artigos 182 e 183 propiciou o surgimento do Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001), regulamentando aqueles dois artigos constitucionais. Estes artigos constitucionais estabeleceram a função social da propriedade urbana

            "sob pena de intervenção dos municípios, obrigando seus proprietários a utilizar adequadamente o solo, sob pena de parcelamento, edificação e utilização compulsórios, e não o fazendo, a incidência de IPTU progressivo até a desapropriação com títulos da dívida pública, para resgate em 10 anos." (10)

            O Estatuto da Cidade é uma verdadeira Revolução Social na Propriedade Urbana já que o imóvel deixará de ser uma forma de acumular riquezas, devendo ser dado ao mesmo um tratamento produtivo. Assim é que:

            "Os vazios urbanos tendem a desaparecer com o implemento da nova política urbana. Assim, os proprietários de extensões urbanas terão, como conseqüência do implemento do Estatuto, uma desvalorização imobiliária que os levará, sem dúvida alguma, à produção. (11)

            O objetivo do estatuto da cidade é disciplinar a função social da propriedade urbana. Essa questão deixou de ser assunto de interesse apenas às propriedades rurais passando a ser tema dos imóveis urbanos. Sem dúvida, a racionalização dos recursos ambientais, a inoperante política governamental de acesso ás habitações populares gerando as grandes favelas criaram condições para o disciplinamento da função social da propriedade urbana.

            A compreensão do Constituinte de 1988 foi de que uma propriedade urbana, mantida para fins de especulação imobiliária, produz um ônus social, econômico e ambiental à cidade.

            Social, pois, inúmeras pessoas são privadas do acesso à habitação popular, fato que supervaloriza os poucos empreendimentos habitacionais existentes. No mesmo sentido, a prática especulativa desestimula investimentos em habitações populares voltadas à população de baixa renda.

            O Ônus econômico advém do fato de que o poder público dispenderá mais recursos para assegurar benefícios sociais e ambientais às áreas da cidade de pouca densidade populacional.

            Por sua vez, o ônus ambiental existe já que mais recursos físicos serão empregados para sustentar toda a população.

            O Estatuto da Cidade é um mecanismo de regulamentação da função social da propriedade urbana em benefício da maioria da população que, possivelmente, terá maiores possibilidades de obter, por exemplo, o acesso a uma habitação própria, uma vez que combate-se a especulação imobiliária. Aliás, os especuladores imobiliários terão suas propriedades desvalorizadas já que sujeitas à cobrança de imposto progressivo.

            É no artigo 39 do estatuto onde se delineiam os caracteres da função social da propriedade: atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no plano diretor; assegurar o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto a qualidade de vida, a justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas.

            Tais caracteres pretendem alcançar uma das diretrizes gerais do estatuto previstas no art.1º, segundo o qual o equilíbrio ambiental condiciona a propriedade urbana. Todo o imóvel deve atender uma função ambiental. Há limitações à propriedade geradas a partir do direito civil, do direito administrativo. O Estatuto da Cidade limita-o com foco na qualidade de vida e do meio ambiente.

            Por outro lado, o artigo 2º faz referência a garantia do direito à uma cidade sustentável entendida como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações(inciso I); à ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a poluição e a degradação ambiental (inciso VI, "g"); à realização de audiência pública entre a população interessada nos processos de implantação de atividades que possam ter um caráter nocivo ao meio ambiente (inciso XIII). Há outros dispositivos que demonstram a indissociabilidade entre planejamento urbano, qualidade de vida e preservação do meio ambiente.

            O Estatuto da Cidade demonstra uma preocupação em efetivar as suas diretrizes. Pensando assim, há inúmeros instrumentos (art. 4º) destinados à efetivação do planejamento urbano ambiental. São eles:

            I - planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

            II - planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;

            III - planejamento municipal, em especial: a) plano diretor; b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; c) zoneamento ambiental; d) plano plurianual; e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual; f) gestão orçamentária participativa; g) planos, programas e projetos setoriais; h) planos de desenvolvimento econômico e social;

            IV - institutos tributários e financeiros: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;

            V - institutos jurídicos e políticos: a)desapropriação; b)servidão administrativa; c) limitações administrativas; d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; e) instituição de unidades de conservação; f) instituição de zonas especiais de interesse social; g) concessão de direito real de uso; h) concessão de uso especial para fins de moradia; i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; j) usucapião especial de imóvel urbano; l) direito de superfície; m) direito de preempção; n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; o) transferência do direito de construir; p) operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária; r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos; s) referendo popular e plebiscito;

            VI - estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).

            Todos esses instrumentos pretendem efetivar o planejamento urbano conforme as diretrizes elencadas nos artigos 182 e 183 da Constituição da República e nos artigos 1º e 2º do próprio Estatuto da Cidade.

            Ao final, ressalte-se a Revolução proposta pelo Estatuto da Cidade e a necessidade dos municípios se apropriarem dessa lei que disciplina inúmeros outros pontos que não foram aqui abordados. Os poderes executivos e legislativos municipais realmente preocupados em assegurar a qualidade de vida e o respeito ao meio ambiente terão no estatuto da Cidade um meio eficaz de realizar seus planos de governo.


IPTU Progressivo e Desapropriação do Imóvel Urbano

            O IPTU Progressivo e a Desapropriação do Imóvel Urbano são instrumentos de gestão urbana previsto no estatuto da cidade. Como já salientado, tal estatuto pretendeu regular os artigos 182 e 183 da Constituição da República. Ambos os institutos pretendem criar dificuldades para a especulação imobiliária urbana. O IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) é de competência municipal e visa retribuir os gastos e serviços dispendidos pela municipalidade.

            Por sua vez, o IPTU Progressivo é modalidade especial daquele tributo por importar verdadeira pena ao proprietário urbano que não edifique, subutilize ou não utilize, conforme as condições e os prazos fixados em lei municipal específica que determine o parcelamento, a edificação ou a utilização do solo urbano (art. 5º, Lei 10.257/2001).

            Notificado o proprietário e permanecendo a situação de ausência de função sócio-ambiental da propriedade, o município deve proceder à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos. (art. 7º, Lei nº 10.257/2001).

            É uma lei rigorosa que pretende o fim da especulação imobiliária. Os seus parágrafos abaixo transcritos dão nos conta do seu rigor:

            "§ 1o O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o caput do art. 5o desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento.

            § 2o Caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não esteja atendida em cinco anos, o Município manterá a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação, garantida a prerrogativa prevista no art. 8o.

            § 3o É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva de que trata este artigo."

            Por sua vez, a desapropriação do imóvel urbano é a medida extrema para conter o fim da especulação imobiliária, pois, estabelece que decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública (art. 8º, caput, Lei 10.257/2001), sendo que os títulos da dívida pública terão prévia aprovação pelo Senado Federal e serão resgatados no prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais de seis por cento ao ano (art. 8º, § 1º, Lei 10.257/2001).

            Verifica-se que, tanto o IPTU Progressivo, quanto a desapropriação do Imóvel Urbano visam atender às finalidades do estatuto da cidade, quais sejam, melhor qualidade de vida, respeito ao meio ambiente. São instrumentos que devem ser aplicados pelos municípios, não se permitindo juízo discricionário quanto à oportunidade de implantar tais medidas, já que o meio ambiente, conforme interpretação do art. 225 da Constituição da República, é direito de todos e das futuras gerações, revelando o seu caráter de indisponibilidade.


Notas

            01. PORTELLA, Luis. EVOLUÇÃO JURÍDICA DAS CIDADES Noções gerais sobre a propriedade: CURIOSIDADES HISTÓRICAS NA VERDADE TUDO TEM UM MOTIVO. A PROPRIEDADE. RETIRADO DO SITE http://www.estatutodacidade.com.br em 15 de setembro de 2002.

            02. PORTELLA, Luis. EVOLUÇÃO JURÍDICA DAS CIDADES Noções gerais sobre a propriedade: CURIOSIDADES HISTÓRICAS NA VERDADE TUDO TEM UM MOTIVO. A PROPRIEDADE. RETIRADO DO SITE http://www.estatutodacidade.com.br em 15 de setembro de 2002.

            03. Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

            § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

            § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

            § 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.

            § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

            I - parcelamento ou edificação compulsórios;

            II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

            III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

            Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

            § 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

            § 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

            § 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

            04. GREEN, Eliane D’Arrigo.. SISTEMA MUNICIPAL DE GESTÃO DO PLANEJAMENTO. Retirado do site http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja em 15 de setembro de 2002.

            05. GREEN, Eliane D’Arrigo.. SISTEMA MUNICIPAL DE GESTÃO DO PLANEJAMENTO. Retirado do site http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja em 15 de setembro de 2002.

            06. GREEN, Eliane D’Arrigo. SISTEMA MUNICIPAL DE GESTÃO DO PLANEJAMENTO. Retirado do site http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja em 15 de setembro de 2002.

            07. Manual de Saneamento e Proteção Ambiental para os Municípios, Município e Mio Ambiente, 2ª ed., Belo Horizonte, FEAM, 1997, volume I.

            08. Manual de Saneamento e Proteção Ambiental para os Municípios, Município e Mio Ambiente, 2ª ed., Belo Horizonte, FEAM, 1997, volume 1, pág. 50.

            09. Manual de Saneamento e Proteção Ambiental para os Municípios, Município e Mio Ambiente, 2ª ed., Belo Horizonte, FEAM, 1997, volume I, pág. 54.

            10. Portella, Luis. Um ano do Estatuto da Cidade. RETIRADO DO SITE http://www.estatutodacidade.com.br em 15 de setembro de 2002.

            11. Portella, Luis. Estatuto da Cidade. RETIRADO DO SITE http://www.estatutodacidade.com.br em 15 de setembro de 2002.


Autor

  • Rinaldo Segundo

    bacharel em direito (UFMT), promotor de justiça no MPE/MT e mestre em direito (Harvard Law School), é autor do livro “Desenvolvimento Sustentável da Amazônia: menos desmatamento, desperdício e pobreza, mais preservação, alimentos e riqueza,” Juruá Editora.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGUNDO, Rinaldo. O planejamento urbano municipal e o meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3836. Acesso em: 19 abr. 2024.