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Da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo: correta aplicação do art. 27 da Lei 9.868/99

Da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo: correta aplicação do art. 27 da Lei 9.868/99

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O trabalho versa sobre a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal como resultado da ponderação entre dois valores com assento constitucional.

1. INTRODUÇÃO

Como regra, a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo tem efeitos retroativos a data de sua edição. É como se a norma contrária ao texto constitucional jamais houvesse existido. No entanto, em algumas hipóteses, os efeitos da referida declaração são modulados em homenagem ao princípio da segurança jurídica.

Nesse trabalho, pretendemos debater o instituto da modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, esclarecendo as hipóteses legais de cabimento e o uso do instrumento pelo Supremo Tribunal Federal.

2. DESENVOLVIMENTO

Como é cediço, vigora no sistema jurídico brasileiro o princípio da primazia da Constituição, o que significa que as normas constitucionais ocupam o ápice da pirâmide jurídica. Vale dizer, na hierarquia das normas jurídicas, as normas constitucionais estão no topo e todas as demais devem a elas se submeter. Confira-se a propósito o escólio de Luís Roberto Barroso:

A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível. Para assegurar essa supremacia, a ordem jurídica contempla um conjunto de mecanismos conhecidos como jurisdição constitucional, destinados a, pela via judicial, fazer prevalecer os comandos contidos na Constituição. Parte importante da jurisdição constitucional consiste no controle de constitucionalidade, cuja finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam incompatíveis com a Constituição.

Conforme as lições de Hans Kelsen, todas as normas jurídicas retiram seu fundamento de validade de uma norma anterior que lhes precede. Em sendo a Constituição Federal a norma ápice, todas as outras lhe devem obediência. Walber de Moura Agra explica que:

A Constituição se coloca, segundo a Escola de Viena, na sua concepção de ordenamento jurídico unitário, composto de um conjunto hierarquizado de leis, cujo ápice da pirâmide normativa – a norma de autorreferência – desempenha o papel de fundar o sistema jurídico e legitimar as demais normas. Constitui-se na norma primária por excelência, referenciando as normas secundárias.

A Constituição Federal de 1988 é classificada como uma constituição rígida, porque exige um procedimento mais dificultoso e complexo para sua modificação. Uma lei ordinária não tem aptidão para alterar qualquer norma constitucional. Isso bem demonstra a natureza superior das normas positivadas no texto constitucional.

O controle de constitucionalidade das normas é um mecanismo próprio das constituições rígidas como a do Brasil. A produção da legislação infraconstitucional deve seguir o procedimento legislativo estabelecido na Lei Maior e as normas assim editadas não podem contrariar o conteúdo de qualquer norma constitucional.

Nosso sistema jurídico conhece duas formas judiciais de controle de constitucionalidade: i) controle incidental, concreto ou difuso e ii) controle direito, abstrato e concentrado.

O chamado controle incidental é feito incidentalmente no âmbito de processos subjetivos como um dos fundamentos da pretensão ou da defesa. Vale dizer, a declaração de inconstitucionalidade não constitui o objeto principal do processo, mas apenas um dos fundamentos da pretensão. Por exemplo, um cidadão ingressa com ação declaratória, objetivando o não pagamento de certo tributo, antes mesmo do seu lançamento, sob a alegação de que a norma que o institui contraria o princípio do não confisco (art. 150, VI, CF/88).

Nesse trabalho, focaremos nossa atenção no controle concentrado de constitucionalidade, o que é feito por meio de ação direta no Supremo Tribunal Federal ou no Tribunal de Justiça a depender do paradigma de controle: Constituição Federal ou Constituição do Estado.

O controle abstrato é feito independentemente de um caso concreto; o objeto da ação é a constitucionalidade da norma em si; trata-se de um processo objetivo, porque não existem partes propriamente ditas, mas interessados. Sobre essa forma de exercício da jurisdição constitucional, Gilmar Ferreira Mendes ressalta:

A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), permitindo que praticamente todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.

Na ação direta de inconstitucionalidade de competência do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, “a”, CF/88), para a qual se legitimam as autoridades e entidades elencadas no art. 103 da Lei Maior, o Advogado-Geral da União é citado para defender a validade da norma impugnada, conforme art. 103, §3º, da Carta Magna. O Procurador-Geral da República é chamado a dar seu parecer, conforme art. 8º da Lei 9.868/99.

A declaração de inconstitucionalidade, como regra, tem efeitos ex tunc, retroativos a data da edição da lei. É como se ela nunca houvesse existido. Conforme leciona Marcelo Novelino:

Isso ocorre porque a lei inconstitucional é considerada um ato nulo, ou seja, com um vício de origem insanável. Sendo este vício reconhecido e declarado desde o surgimento da lei, não se pode admitir que ela tenha revogado uma lei válida.

A lei como ato jurídico é considerada nula a partir do reconhecimento da sua inconstitucionalidade com efeitos retroativos a data da edição. Por isso, ocorre a repristinação de eventual norma revogada, conforme inteligência do art. 9º, §2º da Lei 9.868/99, verbis: A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.

Quem acompanha as atividades do Supremo Tribunal Federal, sabe que o Pretório Excelso, por vezes, leva muitos anos para julgar ações diretas de inconstitucionalidade. Uma lei inconstitucional pode vigorar por décadas até que o STF reconheça sua invalidade perante a Lei Maior. Para se ter uma idéia, a conhecida “Lei de Imprensa” - Lei 5.250, de 09 de fevereiro de 1967, editada na época da ditadura, foi declarada inconstitucional (rectius: não recepcionada) apenas em 30 de abril de 2009.

Não há dúvidas de que a passagem do tempo tem efeitos jurídicos. A lei vigente antes da declaração de inconstitucionalidade rege um sem-número de relações jurídicas e dita o comportamento de inúmeras pessoas. Os cidadãos pautam suas condutas pela lei e, de repente, ela é declarada inconstitucional. O que fazer? Os que realizaram negócios jurídicos amparados pela força normativa daquela lei ficarão desamparados? Nem sempre.

Sabe-se que o princípio da segurança jurídica tem matriz constitucional. A Constituição protege valores como confiança e boa-fé. Os cidadãos devem ter previsibilidade quanto ao resultado de suas ações. A respeito desse assunto, esclarece Pedro Lenza:

A regra geral da nulidade absoluta da lei inconstitucional vem sendo, casuisticamente, afastada pela jurisprudência brasileira e repensada pela doutrina.

Ao lado do princípio da nulidade, que adquire, certamente, o status de valor constitucionalizado, tendo em vista o princípio da supremacia da Constituição, outros valores, de igual hierarquia, destacam-se, por exemplo, o princípio da segurança jurídica e o da boa-fé.

(...)

O STF, portanto, à luz do princípio da segurança jurídica, do princípio da confiança, da ética jurídica, da boa-fé, todos constitucionalizados, em verdadeira ponderação de valores, vem, casuisticamente, mitigando os efeitos da decisão que reconhece a inconstitucionalidade das leis também no controle difuso, preservando-se situações pretéritas consolidadas com base na lei objeto do controle.

Sem dúvida, de maneira coerente, imprescindível essa tendência de mitigação do princípio da nulidade, tanto em sede de controle concentrado como em sede de controle difuso.

Todos aqueles que agem pautados pela lei devem ter os efeitos dos seus negócios preservados também em função do princípio da presunção de constitucionaldiade das leis, assim enunciado por Luís Roberto Barroso:

As leis e atos normativos, como os atos do Poder Público em geral, desfrutam de presunção de validade. Isso porque, idealmente, sua atuação se funda na legitimidade democrática dos agentes públicos eleitos, no dever de promoção do interesse público e no respeito aos princípios constitucionais, inclusive e sobretudo os que regem a Administração Pública (art. 37). Trata-se, naturalmente, de presunção iuris tantum, que admite prova em contrário. O ônus de tal demonstração, no entanto, recai sobre quem alega a invalidade ou, no caso, a inconstitucionalidade. Este, aliás, é o papel de uma presunção em Direito: determinar que o ônus da prova é da parte que pretende infirmá-la.

Pensando nisso, o legislador criou o art. 23 da Lei 9.868/99 que trata da famigerada modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, in litteris:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

A regra legal em questão é sábia, útil e necessária ao controle de constitucionalidade, porque protege a segurança jurídica.

Quando uma norma em vigor há tempo considerável é declarada inconstitucional, dois valores se põem em choque: a primazia da Constituição e a segurança jurídica. Esses dois valores são igualmente importantes, de maneira que nenhum pode ser sacrificado. Por isso, a modulação dos efeitos é fruto de um juízo de ponderação.

A técnica da modulação foi aplicada no julgamento das ações declaratórias de inconstitucionalidade nº 4357 e 4425, que tinham por objeto a Emenda Constitucional nº 62/2009. Essa emenda, conhecida como “emenda do calote”, criou um sistema especial de pagamento dos débitos da Fazenda Pública, dando aos devedores um prazo de até quinze anos para a satisfação dos créditos pendentes, mediante destinação de parte da receita corrente líquida para uma conta especial de liquidação dos precatórios. Metade dos recursos destinados a essa conta seriam empregados no pagamento das sentenças condenatórias por ordem cronológica e a outra parte por ordem crescente dos créditos, mediante acordo direto com os credores ou leilões.

Durante a vigência da referida emenda, vários precatórios foram pagos por acordo direto com os credores ou por leilão. As dívidas de vários Estados caíram bastante. Merece destaque o caso de Sâo Paulo, cujos precatórios em aberto somavam 19 bilhões em 2009 e foram reduzidos para 15 bilhões em 2012.

A declaração pura e simples da inconstitucionalidade da Emenda nº 62/2009 implicaria a invalidação de todos os acordos direitos firmados com os credores, os pagamentos feitos por ordem crescente do crédito, fora da ordem cronológica, além dos leilões realizados, o que seria desastroso para os cofres públicos e para aqueles credores que receberam antes da ordem de tempo, mediante concessão de deságio.

Então, o STF resolveu modular os efeitos da delcaração de inconstitucionalidade, nos seguintes termos:

1. Modulação de efeitos que dê sobrevida ao regime especial de pagamento de precatórios, instituído pela Emenda Constitucional nº 62/2009, por 5 (cinco) exercícios financeiros a contar de primeiro de janeiro de 2016.

2. Conferir eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade dos seguintes aspectos da ADI, fixando como marco inicial a data de conclusão do julgamento da presente questão de ordem (25.03.2015) e mantendo-se válidos os precatórios expedidos ou pagos até esta data, a saber:

2.1. Fica mantida a aplicação do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança (TR), nos termos da Emenda Constitucional nº 62/2009, até 25.03.2015, data após a qual (i) os créditos em precatórios deverão ser corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) e (ii) os precatórios tributários deverão observar os mesmos critérios pelos quais a Fazenda Pública corrige seus créditos tributários; e

2.2. Ficam resguardados os precatórios expedidos, no âmbito da administração pública federal, com base nos arts. 27 das Leis nº 12.919/13 e nº 13.080/15, que fixam o IPCA-E como índice de correção monetária.

3. Quanto às formas alternativas de pagamento previstas no regime especial:

3.1. Consideram-se válidas as compensações, os leilões e os pagamentos à vista por ordem crescente de crédito previstos na Emenda Constitucional nº 62/2009, desde que realizados até 25.03.2015, data a partir da qual não será possível a quitação de precatórios por tais modalidades;

3.2. Fica mantida a possibilidade de realização de acordos diretos, observada a ordem de preferência dos credores e de acordo com lei própria da entidade devedora, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado.

4. Durante o período fixado no item 1 acima, ficam mantidas (i) a vinculação de percentuais mínimos da receita corrente líquida ao pagamento dos precatórios (art. 97, § 10, do ADCT) e (ii) as sanções para o caso de não liberação tempestiva dos recursos destinados ao pagamento de precatórios (art. 97, §10, do ADCT).

5. Delegação de competência ao Conselho Nacional de Justiça para que considere a apresentação de proposta normativa que discipline (i) a utilização compulsória de 50% dos recursos da conta de depósitos judiciais tributários para o pagamento de precatórios e (ii) a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25.03.2015, por opção do credor do precatório.

6. Atribuição de competência ao Conselho Nacional de Justiça para que monitore e supervisione o pagamento dos precatórios pelos entes públicos na forma da presente decisão.

A decisão foi criticada pelo Procurador do Município de Santo André, Luiz Gustavo Martins de Souza, em artigo publicado no jus navegandi com os seguintes dizeres:

A modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, todavia, não veio em boa hora e, pela prematuridade, deixou de se pronunciar sobre questões importantes, incorreu em inconstitucionalidade ao delegar competência normativa ao Conselho Nacional de Justiça.

(...)

Com a modulação dos efeitos da decisão, após o período de 5 anos a contar de 1º/1/2016, retornar-se-á ao regime antigo, composto de ordem cronológica única, com as preferências dos alimentares dos idosos e portadores de doenças graves. Não haverá a possibilidade de quebra legal da ordem cronológica para pagamento dos precatórios em ordem crescente de valor, mantido apenas os acordos diretos, desde que observada à ordem cronológica de apresentação.

A pior das consequências aos credores é a desvinculação de percentual da receita corrente líquida e o retorno da administração do pagamento de precatórios aos entes federativos. Com efeito, a Fazenda devedora deverá pagar integralmente o primeiro da lista cronológica, revolvendo-se ao trancamento da quitação dos estoques de precatórios e a proliferação dos pedidos de sequestro, com a consequente inviabilização de políticas públicas essenciais.

(...)

Polêmicas a parte, consideramos que agiu bem o Supremo Tribunal Federal ao modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da EC nº 62/2009, nos moldes da Lei 9.868/99, porquanto razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social reclamavam a prorrogação da eficácia do regime especial de liquidação dos precatórios, a fim de validar os inúmeros acordos e pagamentos efetuados durante a sua vigência com significa redução do estoque da dívida pública.

CONCLUSÃO

A segurança jurídica é um dos pilares do Estado Democrático de Direito e, por isso, deve ser considerada em todas manifestações de exercício do poder estatal, notadamente no controle de constitucionalidade das leis.

Em que pese a ampla liberdade conferida pelo art. 27 da Lei 9.868/99 ao STF, permitindo que a eficácia da decisão seja postergada para o momento que vier a ser fixado pela Corte, não se tem verificado abuso ou má aplicação do instituto.

Embora o uso do conceito jurídico indeterminado “excepecional interesse social” confira certa margem de discricionariedade ao Pretório Excelso, a técnica vem sendo bem empregada para que a declaração de inconstitucionalidade não prejudique cidadãos de boa-fé.

O estabelecimento do quórum qualificado de dois terços do colegiado é medida salutar para evitar a banalização desse importante instrumento jurídico de estabilidade das relações jurídicas, sem prejuízo da primazia da Constituição no sistema jurídico pátrio.

REFERÊNCIAS

AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional.  8.a ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo : Saraiva, 2013.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo:  Saraiva, 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional : o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 6. ed. São Paulo : Saraiva, 2014.

NOVELINO, Marcelo. Manul de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO , 2014.

SOUZA, Luiz Gustavo Martins de. Reflexões sobre a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade parcial da Emenda Constitucional nº 62 sobre precatórios. Disponível em:  http://jus.com.br/artigos/37771/reflexoes-sobre-a-modulacao-dos-efeitos-da-declaracao-de-inconstitucionalidade-parcial-da-emenda-constitucional-n-62-sobre-precatorios#ixzz3ZK20563M


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