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Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes

Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes

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Desde 1982, quando as eleições estaduais voltaram a ser disputadas no Brasil, ainda em ambiente autoritário, a segurança tem ocupado uma posição destacada na agenda pública. Com a promulgação da primeira Constituição democrática brasileira, em 1988, criaram-se as condições para a participação popular ampla, removendo-se as barreiras tradicionais, que excluíam do direito ao voto vastos segmentos da população. Dado o novo contexto político, as agendas públicas tornaram-se ainda mais sensíveis às percepções, às demandas e aos medos do conjunto da sociedade. Sendo a segurança um item eminentemente popular -sem deixar de ser tema prioritário também para as elites e as camadas médias-, impôs-se com mais peso à consideração dos atores políticos. O crescimento da violência criminal, ao longo da última década, reforçou essa tendência. Hoje, segurança ocupa não só o centro das preocupações estaduais como penetrou as esferas municipais e federal, tornando-se uma das principais problemáticas nacionais, nas eleições e para além delas.

Na transição democrática, todas as instituições públicas e seus procedimentos tradicionais foram revistos e reajustados ao novo momento. Uma instituição, entretanto, foi esquecida nas trevas do passado autoritário: a polícia. Conservadores, liberais e progressistas debateram o destino de cada órgão público, discutiram propostas antagônicas e disputaram a liderança de cada processo de reforma. No entanto, com raríssimas exceções individuais, entre as quais nunca será demais destacar o papel pioneiro de Helio Bicudo, as correntes de opinião deixaram de apresentar à opinião pública projetos que adequassem a polícia à democracia. Afinal, o que seria a polícia do Estado de Direito Democrático?

Essa omissão histórica condenou a polícia (1) à reprodução inercial de seu hábitos atávicos: a violência arbitrária contra pobres e negros, a tortura, a chantagem, a extorsão, a humilhação cotidiana e a ineficiência no combate ao crime, sobretudo quando os criminosos vestem colarinho branco. Claro que há e sempre houve milhares de policiais honestos, corretos, dignos, que tratam todos os cidadãos com respeito e que são profissionais de grande competência. Mas as instituições policiais, em seu conjunto e com raras exceções regionais, funcionaram e continuam a funcionar como se estivéssemos em uma ditadura ou como se vivêssemos sob um regime de apartheid social. A finalidade era construir uma espécie de cinturão sanitário em torno das áreas pobres das regiões metropolitanas, em benefício da segurança das elites. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que o esquecimento da polícia, no momento da repactuação democrática, em certa medida, acabou sendo funcional para a perpetuação do modelo de dominação social defendido pelos setores mais conservadores. Ou seja, essa negligência talvez tenha sido mais um golpe de esperteza do que uma indiferença política. Mas o fato é que a polícia ficou no passado, permanece prisioneira dos anos de chumbo, continua organizada para defender o Estado, não para defender os cidadãos, suas liberdades e seus direitos, o que ocorreria se as leis fossem aplicadas com equidade e fossem respeitadas pelas instituições que as aplicam.

A conseqüência da ausência de projetos de reforma é tudo isso que conhecemos: degradação institucional da polícia e corrosão de sua credibilidade, ineficiência investigativa e preventiva, ligações perigosas com o crime organizado e desrespeito sistemático aos direitos humanos. Ou seja, a polícia, abandonada pelo processo da transição democrática, retorna do passado sombrio como um espectro a nos assombrar. Além disso, não acompanhou o processo de modernização técnica que caracterizou tantas outras instituições nacionais. Seu modelo gerencial permaneceu arcaico, reativo e fragmentário, refratário a procedimentos racionais, como a análise qualificada de dados consistentes, configurando diagnósticos, com base nos quais uma política seria planejada e, em seguida, avaliada, para que todo o processo pudesse ser monitorado, o que converteria o erro em instrumento de autocorreção sistêmica. Nada disso ocorre. A polícia continua respondendo aos chamados, correndo atrás das tragédias, atuando depois que os crimes acontecem, mesmo quando eles se repetem segundo padrões regulares.


I. O Quadro da insegurança pública brasileira

Hoje, o medo da sociedade não é ilusório nem fruto de manipulação midiática. O quadro nacional da insegurança é de extraordinária gravidade, por diferentes razões, entre as quais devem ser sublinhadas as seguintes: (a) a magnitude das taxas de criminalidade e a intensidade da violência envolvida; (b) a exclusão de setores significativos da sociedade brasileira, em diversas áreas pobres de nossas grandes cidades, que permanecem sem acesso aos benefícios mais elementares proporcionados pelo Estado Democrático de Direito, como liberdade de expressão e organização, e o direito trivial de ir e vir. Em outras palavras, segmentos expressivos da população brasileira permanecem submetidos à dupla tirania, imposta por criminosos armados e por grupos de policiais corruptos e violentos; (c) a degradação institucional a que se tem vinculado o crescimento da criminalidade: o crime se organiza, isto é, penetra cada vez mais fundo e de modo mais orgânico nas instituições públicas; as polícias se deixam invadir, em escala assustadora, pela corrupção, pela promiscuidade com o crime; as práticas policiais continuam marcadas pelo racismo, pelos estigmas de classe, pelos preconceitos contra as minorias sexuais e pela brutalidade.

Ainda que o problema da violência ou da criminalidade violenta diga respeito a todos, a vitimização mais grave, cujos efeitos são letais, apresenta um elevado grau de concentração, como tudo no Brasil. Também nesse caso, são os pobres e os negros que pagam, com o sacrifício de suas vidas, o preço mais alto. Nosso problema mais dramático, na área da segurança, é o verdadeiro genocídio a que vem sendo submetida a juventude brasileira, especialmente a juventude pobre do sexo masculino e, em particular, os jovens negros. No ano 2000, no estado do Rio, 2 816 adolescentes morreram assassinados (107,6 por cem mil adolescentes –a média brasileira é de 52,1, no ano 2000, tendo sido de 30, em 1980). O estado do Rio de Janeiro só é superado, nessa contabilidade mórbida, pelo estado de Pernambuco. Já a cidade do Rio de Janeiro fica atrás de outras três capitais: Recife, Vitória e São Paulo, nessa ordem. Em 1991, os homicídios dolosos no estado do Rio, nessa mesma faixa etária, correspondiam a 76,2 por cem mil jovens. Enquanto as mortes por homicídio não ultrapassam 4% do conjunto das mortes, no universo da população brasileira, entre os jovens, o número se eleva a 39%.

Em vários estados, a matriz da violência é o tráfico de armas e drogas (o segundo financiando o primeiro e ambos induzindo à expansão e à intensificação da violência envolvida nas práticas criminais), que se realiza no atacado e no varejo. A dinâmica do comércio ilegal atacadista é acionada sobretudo por criminosos de "colarinho branco", capazes de lavar dinheiro com habilidade de profissionais das finanças ilegais. Esses permanecem impunes, imunes às ações repressivas e ao foco investigativo das polícias estaduais, cujo obsessão unilateral tem sido o varejo, nas favelas, vilas e periferias. Nas áreas pobres em que o comércio varejista se instala, morrem os meninos em confrontos entre grupos rivais ou com policiais, nas incursões bélicas a que, quase sempre, se resumem as chamadas "políticas de segurança". Considerando-se a centralidade desse tópico, vale a pena deter-se no diagnóstico das condições que têm propiciado a reprodução ampliada do comércio ilegal de armas e drogas, em muitas cidades brasileiras.


II. Roteiro cotidiano da tragédia: bases sociais do recrutamento dos jovens (2)

Um menino pobre caminha invisível pelas ruas das grandes cidades brasileiras. Esse menino, que quase sempre é negro, transita imperceptível pelas calçadas sujas das metrópoles, em que muitas vezes se abriga, expulso de casa pela violência doméstica, esquecido pelo poder público, ignorado pela comunidade, excluído da cidadania. Sem perspectivas e esperança, sem vínculos afetivos e simbólicos com a ordem social, sem pontos de conexão identitária com a cultura dominante, o menino permanece invisível, enquanto perambula pelas esquinas. A invisibilidade pode ser produzida pela indiferença pública à sua presença -que nunca é somente física; é sempre também social- ou pela projeção sobre ele de estigmas, os quais dissolvem os aspectos singulares que o distinguem como pessoa humana. O estigma estampa sobre o corpo discriminado a imagem preconcebida, que corresponde à projeção de quem porta o preconceito, anulando a individualidade de quem é observado.

O menino carrega consigo, pelas ruas da cidade, as dificuldades comuns da adolescência, acrescidas dos dramas da pobreza, no contexto da imensa desigualdade brasileira. Sabemos que a adolescência é uma criação histórico-cultural recente, mas também sabemos como pode ser desafiadora, do ponto de vista psicológico, com seu rosário de ambigüidades, cobranças, promessas e frustrações. Quando sobre o adolescente pobre desce o véu escuro da invisibilidade social, seu corpo físico passa a suportar um espírito esmagado, subtraído das condições que lhe infundiriam autoestima.

Quando um traficante lhe dá uma arma, nosso personagem invisível recebe muito mais do que um instrumento que lhe proporcionará vantagens materiais, ganhos econômicos e acesso ao consumo; o menino recebe um passaporte para a existência social, porque, com a arma, será capaz de produzir em cada um de nós, em cada esquina, um sentimento: o medo, que é negativo, mas é um sentimento. Provocando no outro um sentimento, o menino reconquista presença, visibilidade e existência social. Recorrendo à arma, portanto, o menino invisível restaura as condições mínimas para a edificação da autoestima, do reconhecimento e da construção de uma identidade. Os seres humanos só existimos pela mediação do olhar generoso do outro, que nos reconhece como tais, nos devolvendo nossa imagem ungida de humanidade, isto é, qualificada, valorizada. Através do uso da arma, o menino errante estabelece uma interação, na qual se torna possível sua reconstrução subjetiva, na qual se torna viável o projeto –soi disant estético- de sua autoinvenção. Trata-se de uma dialética perversa, em que o menino afirma seu protagonismo e se estrutura como sujeito, sujeitando-se a um engajamento trágico com uma cadeia de relações e práticas que o condenarão, muito provavelmente, a um desfecho letal, cruel e precoce, antes dos 25 anos. Além disso, sendo o medo um sentimento negativo, sua autoafirmação trará consigo o peso da culpa que corresponde à magnitude dos ressentimentos e juízos críticos sobre o ato violento pelo qual se responsabiliza. Trata-se, portanto, de uma espécie de pacto fáustico, em que o menino troca sua alma, seu futuro, seu destino, por um momento de glória, por uma experiência efêmera de hipertrofia do protagonismo, em que as relações cotidianas de indiferença se invertem: o desdém superior do outro converte-se em subalternidade humilhante, temor e obediência à autoridade armada do menino.

Como se observa, a arma nas mãos de nosso jovem personagem é muito mais que um meio a serviço de estratégias econômicas de sobrevivência. Há uma fome anterior à fome física; mais funda, mais radical e mais exigente que a fome física: a fome de existir, a necessidade imperiosa de ser reconhecido, valorizado, acolhido. Por isso, pelo menos tão importante quanto as vantagens econômicas, na cena da violência, destaca-se a relevância dos benefícios simbólicos, afetivos, psicológicos, intersubjetivos.

Quando o menino tem acesso à arma, frequentemente, no Brasil, tem acesso também ao convívio com grupos de traficantes varejistas de drogas e armas, que se instalam nas vilas, favelas e periferias das cidades. Esse convívio proporciona um segundo benefício valioso para os jovens: a gratificação do pertencimento, a qual é tão mais intensa quão mais coeso for o grupo. Por outro lado, a coesão é diretamente proporcional ao grau de antagonismo vivenciado pelo grupo, em suas relações com os outros grupos com os quais se relacione, coletivamente. Essa é a lógica segmentar que os antropólogos conhecemos, sobretudo a partir das obras de Evans-Pritchard e Lévi-Strauss, e que os sociólogos já haviam codificado, desde Simmel. Por isso, é tão importante para meninos e meninas experimentar as emoções reconfortantes do pertencimento, aderindo a grupos segmentares, os quais tornarão a vivência do pertencimento tão mais forte quão mais violentamente confrontarem os grupos rivais. As gangues do tráfico encenam, com resultados trágicos, as regras inconscientes da vida social, na ausência de alternativas construtivas, capazes de sublimar a violência, simbolizando-a e a transferindo para outras linguagens, como a dos esportes, por exemplo.


III. Políticas de segurança na esfera municipal

Como os municípios, no Brasil, não têm polícias (apenas Guardas Civis, em geral limitadas à proteção do patrimônio público), só poderiam enfrentar a violência criminal com políticas preventivas de natureza não-policial, ainda que sempre contando com a colaboração das polícias estaduais (militar e civil). Mas a limitação pode converter-se em virtude, se houver criatividade. Seria necessário instituir fontes alternativas de atração ou recrutamento dos jovens, capazes de competir com o tráfico, oferecendo pelo menos as mesmas vantagens proporcionadas pelo tráfico. Em outras palavras, para competir, para disputar menino a menino, menina a menina com a fonte de sedução criminosa, o poder público municipal teria de proporcionar benefícios materiais, como emprego e renda, e simbólico-afetivos, como valorização, acolhimento e pertencimento, restituindo visibilidade e autoestima, o que, por sua vez, exigiria uma espécie de "customização" das políticas públicas, focalizando seus destinatários como indivíduos em grupo, não como massa amorfa ou mero segmento popular. Para valorizar cada jovem é preciso aplicar políticas públicas que criem oportunidades de exercício de suas virtudes e potencialidades criativas e expressivas. Mas isso ainda não basta. É necessário criar também as condições para que as virtudes expressas sejam identificadas e reconhecidas, o que requer estruturas dialógicas intra e inter-grupais.

O grande desafio está em combinar geração de emprego e renda com a sensibilidade para o imaginário jovem, para suas linguagens culturais específicas. Os jovens pobres das periferias e favelas não querem uma integração subalterna no mercado de trabalho. Não desejam ser engraxates dos nossos sapatos, mecânicos dos nossos carros ou pintores de nossas paredes. Não querem repetir a trajetória de fracassos de seus pais. Não pretendem reproduzir o itinerário de derrotas da geração precendente. Os jovens pobres desejam o mesmo que os filhos da classe média e das elites: internet, tecnologia de ponta, arte, música, cinema, teatro, tv, mídia, cultura, esporte. Desejam espaços para expressão de sua potencialidade crítica e criativa; espaços e oportunidades para sua afirmação pessoal; chances para alcançar reconhecimento e valorização, escapando ao manto aniquilador da invisibilidade social discriminatória. Há um grau de narcisismo que é saudável, indispensável, construtivo, como pré-condição da autoconstrução do sujeito, enquanto ser social cooperativo, solidário, disposto a jogar o jogo pacífico da sociabilidade. Portanto, as novas políticas públicas, voltadas para a disputa com o tráfico e para a sedução da juventude, teria de instituir-se em sintonia com os desejos e as fantasias que circulam nas linguagens culturais da juventude, combinando políticas de emprego e renda, capacitação e complementação educacional, com o desejo pelos temas e as práticas cujos eixos são arte, música, cultura e mídia.

No plano municipal, há muito a fazer, mesmo sem as polícias. Nesse nível, a intervenção efetivamente capaz de prevenir a violência e a criminalidade é aquela que visa alterar as condições propiciatórias imediatas, isto é, as condições diretamente ligadas às práticas que se deseja eliminar; não é a ação voltada para mudanças estruturais, cujos efeitos somente exerceriam algum impacto desacelerador sobre as dinâmicas criminais em um futuro distante - o que, evidentemente, não significa que essas mudanças, de tipo estrutural, não devam ser realizadas. Claro que elas são necessárias e urgentes, e em grande extensão, por suas virtudes intrínsecas, para melhorar o Brasil e para transformar as condições que favorecem a violência. Mas não são suficientes, nem substituem as intervenções tópicas, via políticas sociais indutivas, nas dinâmicas imediatamente geradoras da violência. Um exemplo: com freqüência, territórios limitados concentram as práticas criminais, que tendem à reiteração, conformando padrões e permitindo tanto a previsão quanto a antecipação. Esse quadro constitui fenômeno amplamente reconhecido pela criminologia internacional. Sendo assim, antes mesmo que as eventuais reformas das estruturas sócio-econômicas produzam seus efeitos, iniciativas tópicas bem focalizadas, que incidam de modo adequado e eficiente sobre as condições e circunstâncias imediatamente ligadas à dinâmica criminal, podem alcançar resultados excelentes. É preciso interceptar as dinâmicas imediatamente geradoras dos fenômenos, o que exige diagnósticos sensíveis às complexidades dos contextos sociais, e devem ser complementados por planejamento qualificado e por avaliações sistemáticas, que propiciem permanente monitoramento de todo o processo de intervenção pública, mesmo quando se dá em parceria com iniciativas da sociedade civil.

Essas foram as linhas gerais que marcaram o diagnóstico e o plano de segurança pública, com foco preventivo, elaborado pela prefeitura de Porto Alegre, ao longo de 2001, sob o comando do prefeito Tarso Genro (3).

Creio estar demonstrada a possibilidade de que os municípios colaborem para a redução da violência criminal, mesmo sem dispor de instituições policiais. Cumpre, agora, considerar os dados gerais do problema da violência criminal, no Brasil, incorporando as questões que envolvem diretamente as instituições estaduais, particularmente as polícias.


IV. Considerações Preliminares à Descrição das Novas Políticas Estaduais

(a) Da denúncia à proposição de alternativas

Um dos fundamentos das políticas de segurança elaboradas e aplicadas por governos progressistas, democráticos e populares, comprometidos com os direitos humanos, é a inversão das práticas convencionais: os agentes sociais identificados com os valores que tais governos pretendem expressar costumavam relacionar-se com a problemática da violência e da criminalidade pelo viés da crítica, da cobrança, da demanda e da denúncia. Demanda dirigida ao Estado por mais eficiência no combate à violência; cobrança pela incompetência dos programas governamentais; crítica a medidas tópicas e denúncias de violações dos direitos humanos por parte do aparelho policial. Hoje, cabe aos críticos assumir as responsabilidades de governo. Por isso, impõe-se a nós, experts na denúncia, o grande desafio de formular e aplicar políticas alternativas, capazes de reduzir a violência tanto do crime quanto da polícia. Passar do negativo ao positivo é difícil e exige uma preparação especializada, que não deriva automaticamente da experiência de militância na defesa dos direitos humanos, ainda que ela ajude bastante. Denunciar foi e continua sendo muito importante. Mas não é suficiente. E o que se exige de nós, na medida em que assumimos responsabilidades executivas, não são mais apenas propostas de mudanças legais, mas políticas objetivas sobre como conduzir os cerca de 550 mil homens e mulheres que atuam, profissionalmente, na segurança pública brasileira. A sociedade cobra de nós a resolução dos problemas ou, pelo menos, avanços significativos nessa direção positiva. Hoje, avanços expressivos implicam sucesso no aprimoramento da performance policial –que se traduz em redução da impunidade- e na redução da corrupção policial. O resultado de políticas exitosas, na área, se resumiriam na transformação de nossas polícias em instituições menos violentas e corruptas, mais respeitosas dos direitos humanos, mais inteligente e eficiente, mais apta a agir preventivamente, mais confiáveis e, portanto, mais legítimas e capazes de valorizar seus profissionais.

A tese fundamental que marca a originalidade das novas políticas de segurança, elaboradas e aplicadas por governos progressistas, sustenta que é possível e necessário combinar respeito aos direitos humanos com eficiência policial. Durante duas décadas de disputas políticas, desde os primórdios da transição democrática, esses dois pólos foram antepostos, como se fossem contraditórios entre si: os defensores dos direitos humanos negligenciávamos a questão relativa à eficiência do aparelho policial, pressupondo, tacitamente, a correlação entre eficiência e brutalidade. Com isso, assumíamos uma posição unilateralmente crítica e silenciávamos ante o quadro de avanço da violência criminal, reportando-nos, no máximo, à problemática social, à qual atribuíamos a responsabilidade pelo agravamento da situação. Por outro lado, os críticos dos direitos humanos afirmavam que a eficiência só seria alcançada com a liberação da polícia para ser violenta e para matar, independentemente dos marcos legais.

Hoje, observando as experiências internacionais mais bem sucedidas e analisando o que ocorreu no Brasil, onde o quadro de degradação das instituições policiais e de crescimento exponencial da criminalidade é fruto da hegemonia dos que defendem a brutalidade policial, conclui-se que o segredo do êxito, na segurança pública, depende exatamente da subordinação das polícias aos marcos legais. Por outro lado, todos os que nos identificamos com os direitos humanos, como valores matriciais e inarredáveis, também descobrimos que polícias eficientes constituem condição sine qua non para a realização desses direitos, que incluem o respeito à vida, à integridade e aos benefícios civis e materiais da sociabilidade civilizada. Quando esse respeito está ameaçado e o Estado não oferece instrumentos de proteção, isto é, quando as polícias são ineficientes, os direitos humanos sucumbem ao medo, à morte, à crueldade, às violações, ao arbítrio, à violência. Evidentemente, a eficiência objeto de nosso apreço está circunscrita pela subordinação radical das polícias aos marcos legais, que, no contexto em causa, corresponderiam ao universo normativo e axiológico derivado dos direitos humanos. Onde e quando houver contradição entre as leis constitucionais ou infraconstitucionais e essa pauta universal de direitos, a ação policial, enquanto se ativer ao estrito cumprimento das determinações legais, far-se-á contra os direitos humanos.

(b) Estado, Governo e o ciclo eleitoral

Indispensável é compreender que segurança pública é matéria de Estado, não apenas de governo. Para ser responsabilidade superior precisa constituir-se como responsabilidade de todo o governo, não só das polícias e das secretarias de segurança e justiça. A participação da sociedade civil é outro componente fundamental. Se todas as forças políticas compreendessem a complexidade do problema, a gravidade da situação e os riscos sociais e institucionais implicados, talvez se dispusessem a abandonar a postura predatória, que parece nutrir-se das tragédias e regozijar-se pelo fracasso alheio. Uma vez no poder, os críticos destrutivos costumam adotar as medidas convencionais, tradicionalmente malogradas, porque lhes falta compromisso com políticas alternativas consistentes –as críticas predatórias nada mais tendo sido que ataques políticos irresponsáveis. Preferem o voluntarismo inconseqüente e as pseudo-soluções espetaculares, porque se orientam, não pelo respeito a planos racionais e viáveis de mudança, mas pelo improviso que garanta recompensa imediatista, com reflexos eleitorais convenientes. Seria patriótico conceder uma trégua política -via celebração de um grande pacto pela paz- aos governos que adotassem planos consistentes, amplamente discutidos com a sociedade, profundamente comprometidos com a eficiência e o respeito aos direitos humanos. A segurança pública não será trabalhada com suficiente seriedade, no Brasil, enquanto não a preservarmos, minimamente, da demagogia oportunista associada ao ciclo eleitoral. Isso não significaria despolitizar o tema da segurança, mas, ao contrário, o politizaria em grande estilo.


V. Casos Estaduais em Foco: Amapá, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro

Por motivos operacionais, que obstaram o processo de levantamento de informações, dois casos de grande relevância não serão tratados: Acre e Rio Grande do Sul. Ambos os estados são governados pelo PT e foram responsáveis por realizações importantes, na área da segurança pública. Destaquem-se, por exemplo, as seguintes contribuições:

(a) no Acre, o imenso esforço de moralização das instituições policiais, associado ao –e como movimento indispensável ao- combate ao crime organizado. O resultado foi o desmantelamento da principal quadrilha que dominava o crime e os segmentos corruptos das polícias, perpetrando toda sorte de crueldade, tiranizando comunidades e se infiltrando na política local. Esse feito, ainda que mais diretamente afeto à área da segurança, alterou drasticamente as condições sociais, culturais e políticas estaduais, com impacto sobre todo o país. As instituições públicas acreanas, em seu conjunto, receberam um sopro renovador de vitalidade e legitimidade. O Acre converteu-se em exemplo nacional.

(b) No Rio Grande do Sul, o notável esforço de integração das instituições policiais, de democratização da Brigada Militar –com a implantação do novo regulamento disciplinar, que passou a ser modelo para as polícias militares de todo o país- e de qualificação dos dados e dos profissionais, com a participação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Também se destacaram as iniciativas de controle dos desvios de conduta e de valorização dos servidores públicos que atuam na segurança. Foi também marcante a abertura promovida pela secretaria de Justiça e Segurança à participação da sociedade, diretamente, através de Conselhos Comunitários, e indiretamente, através da Ouvidoria. O relacionamento dialógico, respeitoso e construtivo com os movimentos sociais constituiu outra virtude importante. Criou-se o Programa de Proteção às Testemunhas, o "Protege", e investiu-se bastante em equipamentos (coletes, armas e viaturas). Finalmente, mas não menos relevante, implantou-se o "Termo Circunstanciado", que autoriza a Brigada Militar a cumprir uma função simples, mas fundamental –convencionalmente exclusiva da Polícia Civil-, imprimindo grande agilidade aos atendimentos policiais: trata-se da elaboração de documento equivalente ao "boletim de ocorrência".

Cabe ainda observar que uma descrição completa das políticas voltadas para a área denominada "segurança pública", entendida em seu sentido mais amplo, deveria referir-se a todas as instituições que envolvem a Justiça Criminal, o que estenderia o espectro da presente exposição para que fossem incluídas análises do funcionamento do Ministério Público, da Justiça e do Sistema Penitenciário. Além disso, idealmente dever-se-iam incluir também considerações sobre a atuação das agências privadas de segurança, já que, mesmo fiscalizadas e regulamentadas por órgãos federais, elas interferem na conjuntura dos estados. Isso não foi feito, seja porque ultrapassaria a esfera de responsabilidade dos poderes executivos, no caso do MP, do Sistema Judiciário e até da segurança privada, seja porque escaparia ao campo limitado pelos propósitos do projeto que o presente estudo realiza: é o caso do Sistema Penitenciário, cujas peculiaridades e complexidades exigem um tratamento especializado. O Plano de Segurança Pública, elaborado pelo Instituto Cidadania, avança em várias das matérias aqui não abordadas.

V.1. A Política de Segurança do Estado do Amapá (governado pelo PSB, em aliança com o PT), descrita a partir de relato da diretora presidente do Centro de Formação e Desenvolvimento de Recursos Humanos do Estado do Amapá/CEFORH, Rita de Cássia Lima Andréa, que coordena as políticas de Formação de Segurança Pública desde 1996 e complementado por Katia Tork, assessora da vice-governadoria:

  1. A base conceitual que fundamenta a compreensão dos problemas, subjacente à política adotada, é a teoria da Complexidade, tal como elaborada por Edgard Morin, em cujos termos impõe-se como primado a perspectiva do sistema. Isso significa que as medidas não se devem perder na fragmentação, mas, ao contrário, articular-se de modo sistêmico, formando a unidade de uma política. Considerar uma questão complexa impõe uma mudança de paradigma e implica romper com o modelo simplificador dos fenômenos sociais.
  2. O primeiro ponto destacado nessa política -que vem mudando o Amapá e despertando o reconhecimento nacional- é a qualificação da polícia (através do Programa de Formação e Atualização Permanente em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania), enquanto instituição voltada para a cidadania. Em outras palavras, é a qualificação do corpo de servidores da segurança pública enquanto profissionais a serviço dos cidadãos, das cidadãs e da proteção de seus direitos. O investimento na formação é entendida como suporte da mudança de paradigma; a formação está no centro da mudança de atitudes. A meta visada é a integração de todo sistema de segurança pública cidadã, no Amapá.
  3. PM inclui batalhões, nos quais se incluem polícia ambiental e polícia interativa (interatividade envolve relações intra-institucional, inter-institucional e com a sociedade).
  4. Delegacias cedem lugar a Centrais Integradas de Segurança Pública, responsáveis por zonas identificadas e analisadas por diagnósticos da criminalidade.
  5. Haverá uma central que incluirá central de dados, Polícia Militar, Polícia Civil, Perícia (que é subordinada operacionalmente à Secretaria de Segurança, mas independente das Polícias –articula-se operacionalmente via comitê gestor), Tribunal de Justiça, Ministério Público, etc...
  6. Há módulos locais, envolvendo viatura e bicicletas, que garantem a capilaridade da presença policial integrada e a qualidade de sua intervenção, a qual requer sensibilidade (especialmente desperta e disciplinada) para as especificidades das configurações contextuais de problemas.
  7. Parceria com Guarda Municipal (agentes da cidadania -desarmados) é particularmente valorizada.
  8. Interiorizar e descentralizar, sobretudo via polícia ambiental, é a orientação política e administrativa estratégica.
  9. Salas de vidro como espaços para interrogatório estão sendo construídas, para promover a mudança das condições infraestruturais que, no passado, estimulavam a prática da tortura.
  10. A secretaria de Segurança é coordenadora de toda a política, via comitê gestor.
  11. Os dados criminais primários estão sendo revistos e corrigidos, através da introdução da informática e da central de ensino e pesquisa, com ênfase na interdisciplinaridade (exemplo de objeto: identificação das zonas de criminalidade). Essa revisão corresponde à reinvenção de todos os mecanismos gerenciais do aparelho institucional de segurança, cujas ações passam a ser regidas pelo tríptico racional: diagnóstico-planejamento-avaliação/monitoramento corretivo, que converte os erros e as falhas em instrumentos de autocorreção sistêmica.
  12. O traço distintivo que sustenta a eficácia desse conjunto de medidas é que elas são efetivamente tratadas como uma política pública de governo (idealmente, de Estado), à qual se infunde toda força política.
  13. A polícia interativa (ou comunitária) é ativa, não mais espera o chamado das comunidades. A formação envolve exame crítico da prática cumprida depois da primeira fase da qualificação. O Conselho Interativo (ou Comunitário) é que define a política do bairro, inclusive retirando policiais. Integração entre as políticas públicas é capital, para além da área específica da segurança: a formação envolve outros órgãos do governo e os próprios conselhos. Unificar sem integrar –por decreto- não funciona, pois não se unifica o diferente. Por isso, é necessário começar pela integração. Há uma lei para o sistema integrado. As academias estão se reunindo. O módulo integrado será oferecido na Universidade. Manter-se-ão as especificidades.
  14. É necessário assumir a incompletude da secretaria de Segurança, que não poderá dar conta das necessárias interfaces sociais.

V.2. A Política de Segurança do Estado do Mato Grosso do Sul (governado pelo PT), descrita a partir de relato do secretário de Segurança, Almir Paixão:

  1. No início do governo Zeca, as amplas alianças (PDT assumiu, inicialmente, a segurança) conduziram a uma solução provisória que afastou a secretaria de Segurança do PT. O governador encontrou o Estado falido e a falta de credibilidade era generalizada, contaminando também as instituições policiais. O processo de transformações teve início com a reforma do poder executivo, que fundiu as secretarias de Justiça e Segurança. A falta de controle sobre os órgãos interessava aos maus funcionários. No início do mandato, o quadro de caos administrativo e gerencial caracterizava as instituições públicas, de uma maneira geral. Dr. Almir Paixão, advogado e defensor público (em São Paulo, acumulara experiência como agente penitenciário) foi convidado, inicialmente, para ser auditor geral. Desde esse momento até assumir a secretaria de Justiça e Segurança enfrentou enorme resistência. Sua primeira medida foi acabar com a descentralização que duplicava ou triplicava instâncias adminstrativo-burocráticas e deslocar policiais para atividades-fim. Unificou-se a atividade administrativa dentro da secretaria. A unidade orçamentária é a da segurança pública (as corporações deixaram de ser unidades orçamentárias). A integração impôs expressiva economia –por exemplo, nas diárias.
  2. A nova gestão da segurança pública, sob o comando do Dr. Paixão e, portanto, do PT, evitou reduzir sua política à compra de armas, fardamento e viaturas. Preferiu investir em políticas públicas de segurança, as quais se definiam por reconhecer o caráter multidimensional da segurança. Para identificar áreas para localização de policiais, por exemplo, foram mobilizados outros órgãos governamentais.
  3. Privilegiaram-se as intervenções globais circunscritas territorialmente, nas quais a presença policial era acompanhada de atendimento social. Os resultados foram compensadores. Houve significativa redução dos crimes contra o patrimônio. As ações policiais passaram a guiar-se pela análise detida dos dados e a elaboração de diagnósticos sobre as dinâmicas criminais. Isso conduziu a estratégias que provocaram, por exemplo, a redução da violência contra a mulher, que tendia a concentrar-se em determinados períodos (próximo ao final do mês). Unidades integradas foram implantadas segundo mapeamento da criminalidade, atendendo aos princípios do planejamento racional e superando a tendência mais frequente do trabalho policial brasileiro, que se esgota no padrão reativo-inercial e fragmentário.
  4. A interação vaga entre polícia e sociedade não basta. É necessária a convivência para mudar a imagem que a sociedade formou da polícia e para conferir a esta a eficiência que só se alcança com presença contínua capilar e conhecimento das especificidades locais.
  5. Três unidades integradas estão sendo construídas especialmente para oferecer proteção às escolas que se situam nas áreas mais problemáticas.
  6. Campo Grande foi dividida em sete regiões. Haverá um comando integrado (articulando as polícias civil e militar) em cada área. Cada comando será responsabilizado pela criminalidade local, o que viabilizará avaliações sistemáticas do desempenho policial e o indispensável monitoramento corretivo, sempre com a participação da sociedade civil.
  7. Foram adquiridos (com recursos do Fundo Nacional, apoiado pelo Plano Nacional do Governo Federal) equipamentos de informática que permitirão a integração das comunicações. Será criado um Centro Integrado de Operações, cuja base será a análise regular geoprocessada de Campo Grande. As ocorrências serão atendidas de acordo com tipos e localidades. O sistema computadorizado indicará local de onde provém a chamada e localizará a viatura mais próxima, procedendo ao despacho automático. Jovens dispensados do serviço militar e que estejam cursando uma universidade (em certas áreas) serão selecionados: 130 universitários farão o atendimento no centro de operações. Os supervisores (policiais militares civis e membros do Corpo de Bombeiros) serão responsáveis pela intervenção operacional (caso a unidade acionada não esteja atuando adequadamente). O Centro Integrado de Operações se dedicará também à análise criminal, com base em um boletim único de ocorrência criminal (no qual constarão informações sobre tipo de crime, horário e local da ocorrência –com indicação de pontos de referência-, perfil da vítima e do suposto perpetrador, indicando também se a vítima é beneficiária de algum serviço do governo, etc...). Pretendem-se identificar, na medida do possível, as condições propiciatórias das diferentes modalidades de práticas criminosas. O Ministério Público terá acesso à Central de Operações e, portanto, ao geoprocessamento, para reduzir o risco de que haja desvio nos inquéritos, segundo interesses corruptos ou políticos. O Governador também poderá ter esse acesso aos dados.
  8. A secretaria de Segurança defende unificação, em nome do cumprimento de ciclo completo, e procura criar condições que favoreçam sua realização futura. Os policiais civis defendem a unificação. Na PM, é unânime a defesa da unificação entre as praças. A resistência cresce na medida em que se avança na hierarquia. Defende-se a tese de que a integração não pode ser apenas operacional. Tem de começar pelo planejamento e pela formação.
  9. Segundo o secretário, não há crime organizado; há, sim, segurança desorganizada;
  10. Destaca a experiência bem sucedida da polícia unificada, que se realiza no departamento de operações de fronteira.
  11. As polícias não devem ser subordinadas diretamente ao governador, mas ao(à) secretário(a) de segurança.
  12. Houve redução dos crimes contra a vida, no Mato Grosso do Sul, durante a gestão do PT, ainda que a mesma tendência não se tenha verificado no caso dos crimes contra o patrimônio.
  13. Há oito Delegacias de Defesa da Mulher, no estado, e quem define suas respectivas localizações é a coordenadoria de políticas para a mulher, vinculada ao gabinete do Governador, em diálogo com a secretaria de Segurança.
  14. Investe-se na criação da Escola de segurança pública, que formará os policiais até o nível médio. A academia de polícia formará os oficiais. Haverá currículo único para a área da segurança pública (envolvendo profissionais distintos, como bombeiros, agentes penitenciários, policiais civis e militares), sem prejuízo das especializações. Faz parte dos planos a inclusão de disciplinas como direitos humanos e questão de gênero.

V.3. A Política de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, elaborada e implementada no período em que o PT participou da coalizão de governo (de janeiro de 1999 a março de 2000) e retomada, com adaptações, pelo governo Benedita da Silva - cujo mandato se estendeu de abril a dezembro de 2002 - e seu secretário de Segurança, Roberto Aguiar:

  1. Investimos na reorganização institucional, respeitando os limites constitucionais: através da criação de uma autarquia, em dezembro de 1999, o Instituto de Segurança Pública, que celebraria um contrato de gestão com o Estado, re-selecionaríamos os policiais --segundo critérios éticos, psicológicos e profissionais- que exerceriam a atividade policial nos quadros da nova instituição, seja no Departamento de Polícia Ostensiva, seja no Departamento de Polícia Judiciária. Sua lotação continuariam sendo as Polícias, mas seu exercício seria transferido para o ISP. Todos os policiais seriam submetidos ao crivo. Os que não fossem aprovados por razões profissionais, teriam novas chances, depois de se subordinarem a processos de requalificação, ou seriam incorporados mediante a condição de se submeterem a cursos de reciclagem, no âmbito das iniciativas de capacitação do ISP. Aqueles que fossem reprovados por razões éticas ou criminais seriam definitivamente afastados da Polícia. O ISP proporcionaria formação básica comum, sem prejuízo das especializações, que continuariam sendo ministradas pelas acedemias policiais, todas, entretanto, reorganizadas no âmbito do ISP. A capacitação ou o investimento permanente na qualificação profissional consistiria em um dos eixos fundamentais e distintivos do ISP. Além da formação comum, as orientações tático-estratégicas também seriam integradas, graças à articulação orgânica entre os comandos, propiciada pela supervisão comum: o presidente do ISP, necessariamente o secretário de Segurança, trabalharia ao lado dos diretores dos departamentos responsáveis pelas polícias civil e militar, que seriam seus respectivos chefes, para evitar duplicidades e competições autofágicas. A corregedoria do ISP seria única e supracorporativa, operando segundo regimentos disciplinares modernos e flexíveis, que permitiriam rápidas respostas, ante eventuais desvios de conduta, sem ferir direitos e prejulgar os policiais: separando correição administrativa de acusação crminal, evitaríamos a subordinação do ritmo ágil da gestão do ISP ao tempo lento da Justiça. As atividades-meio seriam unificadas, o que não implicaria fusão entre as Polícias Civil e Militar e, portanto, não agrediria a Constituição Federal, mas implicaria economia e racionalização.
  2. Redefinimos as circunscrições territoriais sob responsabilidade dos Batalhões da PM e das Delegacias Distritais da Polícia Civil, de modo a fazê-las coincidir e a adaptá-las ao desenho instituído pelos Municípios e pelo Estado, em seus planejamentos estratégicos, adequando-as às Regiões Administrativas, aos Bairros e/ou aos limites municipais –e as fazendo corresponder a múltiplos dos setores censitários do IBGE, para tornar os dados criminais relativos às áreas comparáveis entre si, através da relação localizada com as informações demográficas. A redefinição criou 34 Áreas Integradas de Segurança Pública, no estado do Rio de Janeiro, tornando possível a análise do desempenho policial e o exame prospectivo sobre disponibilização de recursos, cujo cálculo depende da consideração de variáveis geográficas, demográficas e urbanísticas, entre outras. As Áreas Integradas constituem bases comuns de operação para as Polícias, as quais, mesmo antes da implementação plena do ISP, já começaram a experimentar, na prática, o planejamento solidário de ações e a avaliação compartilhada de resultados, pré-condições para o monitoramento integrado, prefigurando a integração mais ampla que o ISP materializaria. As AISPs entraram em funcionamento em agosto de 1999. A cada AISP corresponde um Conselho Comunitário de Segurança.
  3. A Delegacia Legal é o novo modelo de Delegacia e a plataforma operacional em que se reestruturam funções e rotinas, na Polícia Civil. Inauguramos quatro unidades, em 1999, e implantamos a Delegacia Legal modelo, na qual se situa o banco de dados central. As novas rotinas significam uma extraordinária economia de procedimentos burocráticos (eram regulados por livros cartoriais: havia 64, em média, no modelo tradicional de Delegacia, que foram reduzidos para 6, na Delegacia Legal), agilizando as investigações e deslocando o foco das atenções para o atendimento aos cidadãos. Redefinidas as rotinas, foram criados –sempre em parceria com a COPPE/UFRJ- quase 200 softwares, com os quais informatizamos o trabalho que se realiza nas DPs. Criamos um banco de dados, cercado de toda a segurança, e instalamos uma Central de Gestão de Informações, capaz de interconectar todas as Delegacias do estado, assim que estejam reformadas. Acesso a informação, troca de dados, intercâmbio interno e comunicação inteligente, e em tempo real, com outras instituições e seus bancos de dados são peças chave de qualquer política de segurança digna desse nome. Na Delegacia Legal eliminamos a carceragem, para cuja viabilização implementamos um programa de construção de Casas de Custódia. Em lugar da carceragem, construímos uma pequena sala de custódia, cujas dimensões destinam-se a impedir sua conversão perversa em nova carceragem, no futuro –afinal, a carceragem nas Delegacias é uma dessas ilegalidades com as quais a sociedade brasileira acostumou-se a conviver: portanto, dizer-se da nova Delegacia que é legal significa mais do que adjetivá-la com qualificativo simpático e próprio a um nome fantasia. Incorporamos atendentes universitários para recepcionar o público e um administrador, em cada Delegacia Legal, exclusivamente dedicado à manutenção dos equipamentos, do material de uso corrente e das instalações físicas. O espaço da nova Delegacia é tão aberto e transparente quanto possível, evitando-se salas isoladas, onde práticas ilegais tornaram-se usuais. Delegacia Legal é sinônimo de um outro comportamento policial: mais atencioso, mais rápido, mais eficiente, mais respeitoso dos direitos humanos. Celebramos convênios com o Tribunal de Justiça para que Juizados Especiais funcionem em espaços contíguos –oferecidos pela própria polícia-- a algumas Delegacias, viabilizando maior agilidade no tratamento dos casos correspondentes à aplicação da Lei 9 099, que constituem a grande maioria das ocorrências.
  4. O Centro Unificado de Polícia Técnico-Científica (CUPTEC) foi concebido e planejado para substituir os institutos de medicina legal, de identificação e de perícia, convertendo-os, inteiramente reformados, física e tecnologicamente, em Departamentos de uma mesma instituição, cujo princípio elementar era descentralização com integração sistêmica. Haveria 14 postos de polícia técnico-científica, equipados com unidades móveis, no estado, e núcleos radicados em todas as Áreas Integradas de Segurança. A política de pessoal seria reformulada, valorizando-se o aperfeiçoamento profissional contínuo e a colaboração com a comunidade científica. Ambos os objetivos dependeriam de convênios com as universidades, que começamos a celebrar, com a mediação da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia. O CUPTEC seria certificado pelo FBI e pela Scotland Yard.
  5. Desenvolvemos uma política específica para as mulheres, contra a violência de gênero e a violência doméstica, orientada para o aprimoramento dos meios de prevenção, a repressão e o atendimento às vítimas, em parceria com organizações da sociedade civil. Começamos a criar núcleos de atendimento à mulher em todas as Delegacias distritais; centros de atendimento especializado, em vários hospitais do estado, em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde; requalificamos todos os prifissionais que servem nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher; introduzimos a temática em todos os cursos oferecidos aos policiais --em 1999, 16 mil policiais foram submetidos a cursos. Em colaboração com o Disque-Denúncia, criamos o Disque Denúncia da Mulher, para cuja implantação treinamos atendentes para ouvir com sensibilidade e orientar, psicológica e praticamente, denunciantes de violência doméstica ou de violência contra a mulher. Afixamos cartazes com orientações à mulher, em caso de estupro, em todas as Delegacias e distribuímos cartilhas com informações relevantes, em todo estado (os serviços deveriam estar disponíveis na internet, no futuro imediato).
  6. Criamos Centros de Referência contra o Racismo, a Homofobia, de Proteção do Meio-Ambiente, de Proteção de Crianças e Adolescentes, em parceria com organizações da sociedade civil, identificando agendas de problemas, hierarquizando prioridades, definindo políticas específicas e organizando comissões representativas dos grupos envolvidos para acompanhar a aplicação das políticas e sugerir correções de rota e de metodologia, em cada caso. Os parceiros da sociedade civil participaram dos cursos de requalificação profissional dos policiais, oferecendo seminários temáticos, ligados a suas áreas respectivas de especialização e engajamento cívico. Criamos o DDH, Disque Defesa Homossexual com a participação de voluntários especialmente treinados para o atendimento personalizado e a orientação prática.
  7. Criamos a Ouvidoria da Polícia, órgão inteiramente independente, destinado, por sua autonomia e credibilidade, ao controle externo das Polícias, cuja função é decisiva, no esforço de mudança do comportamento policial e de recuperação da confiança popular nas instituições policiais. Essa recuperação é indispensável não só por razões éticas, mas também por razões práticas, pois a eficiência depende do respeito à cidadania, às leis e aos direitos humanos, conforme demonstram pesquisas empíricas internacionais. Portanto, nada mais equivocado do que a velha dicotomia: ou a polícia é eficiente ou respeita os direitos humanos. Essa falsa oposição tem sido politicamente manipulada, ao longo dos anos, por demagogos oportunistas e irresponsáveis, defensores da barbárie como arma contra a barbárie.
  8. Incluímos o estado do Rio de Janeiro no plano nacional de defesa de testemunhas, criando nosso Programa de Proteção às Testemunhas, gerenciado pela ONG Provita, conforme determina o convênio firmado com a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos.
  9. O esforço pioneiro em capacitação profissional dos policiais traduz-se no conceito de formação contínua para os policiais civis admitidos no programa Delegacia Legal, em cujo âmbito passaram a receber bolsa de R$500,00, assim como no conceito de requalificação continuada para policiais militares, reagrupados em vários núcleos novos (GEATs –Grupamentos Especiais de Ação Tática-, GEPAT –Grupamento Especial de Policiamento em Áreas Turísticas-, GEPE –Grupamento Especial de Policiamento em Estádios- e GETAMs –Grupamentos Especiais Tático-Móveis), que lhes estimula a autoestima, redefine a prática e modifica a imagem pública. Uma esfera chave de investimento em qualificação é o policiamento comunitário, cujo papel é crucial na política de segurança implantada em 1999.
  10. O Mutirão pela Paz visava oferecer policiamento ostensivo permanente e regular, de tipo comunitário (supervisionado com rigor com a participação da sociedade local), nas comunidades carentes, fazendo-o acompanhar da ação social do Estado, nas áreas de educação, saúde, cultura, esporte e lazer, saneamento, desenvolvimento urbano, habitação, transporte, etc...
  11. Foram abertas quatro mil vagas para a PM, das quais 2000 foram preenchidas. Mil viaturas foram compradas, em 1999. Além disso, auditorias organizacionais foram iniciadas, com vistas à racionalização do uso de recursos humanos, para que se reduzisse de 15% para 5% o efetivo aplicado em atividades meio, ampliando a disponibilidade de policiais para as atividades fim. As jornadas de trabalho irracionais (24 por 72 horas ou 12 por 48 horas) seriam revistas, em benefício da continuidade do trabalho e do aprimoramento das condições de vida dos policiais.
  12. Foi criada a primeira unidade multissetorial de investigação de lavagem de dinheiro, visando combater o tráfico de armas e drogas, na dimensão atacadista, já que o varejo estaria sendo enfrentado via Mutirões pela Paz. Segundo seu desenho original, participariam dessa unidade ou força-tarefa, liderada pela secretaria de Segurança, as polícias, militar e civil, a Procuradoria Geral do Estado, a Procuradoria da Justiça, a Secretaria de Fazenda, a Receita Federal, o Banco Central e a Polícia Federal. Esse é um exemplo que assinala a importância da cooperação entre as instituições e, especialmente, entre as esferas de poder federal, estaduais e municipais. Sem essa articulação, dificilmente uma política de segurança terá êxito.
  13. Foi deflagrada, em parceria com o Viva Rio e entidades da sociedade civil, a Campanha de Desarmamento, sob o lema "a consciência desarma o cidadão; a polícia desarma o criminoso". O combate ao tráfico de armas tornou-se prioritário, em função de seu papel indutor da expansão das práticas criminosas e da intensificação da violência envolvida na perpetração dos crimes. As tarefas do Estado concentravam-se em três focos: (a) capacitar os policiais no uso da arma (aproveitando-se para qualificá-lo no uso da força e na abordagem pessoal e de veículos –a blitz passaria a ser registrada em video pela própria PM e os procedimentos só teriam valor se fossem detectados pela câmera), seja oferecendo cursos de tiro, seja fazendo-os assimilar e automatizar as regras reconhecidas internacionalmente, segundo as quais o uso da arma pela polícia só é legítimo quando a vida, do policial ou de terceiros, está em risco; (b) Aumentar a eficiência na apreensão de armas; (c) Organizar um banco de dados sobre armas apreendidas e iniciar investigações sistemáticas sobre tráfico de armas.
  14. Sistema integrado de segurança nos bairros visava treinar porteiros na PM e prepará-los para ações de vigilância solidária, criando-se anéis de proteção mútua. Parcerias com empresas de telefonia celular garantia comunicação rápida com as unidades policiais locais, capilarizando, qualificando e conferindo mais agilidade ao atendimento policial. O sistema previa ampla participção comunitária, atribuindo responsabilidades aos condomínios e aos estabelecimentos comerciais dos bairros. Previa também a fiscalização rigorosa da segurança privada (o que exigia celebração de convênio autorizativo com o Ministério da Justiça) e a negociação de protocolos de ação concertada entre as empresas aprovadas –culos profissionais deveriam ser treinados pelas polícias, com custos assumidos pelas empresas- e as polícias. A Guarda Municipal seria uma parceira chave, nesse programa, que apenas começou a ser implementado, já em fins de 1999 e início de 2000.
  15. Circuito da Paz visava ocupar com cultura (sobretudo música e teatro), esporte e lazer os espaços nos quais se concentram os homicídios dolosos, nos dias e horários de risco: noites de sexta e sábado (esses fenômenos apresentam elevada taxa de regularidade, tornando-se previsíveis e, portanto, evitáveis).

As metas dos programas e projetos articulam-se, complementam-se e formam uma unidade orgânica. Eram as seguintes, as metas:

  1. integração, ainda que não fusão, entre as polícias, seja na formação básica, seja no trabalho cotidiano (projeto das Áreas Integradas de Segurança Pública), seja nas atividades meio, seja na supervisão operacional, na orientação estratégica e na correição (projeto Instituto de Segurança Pública). Tudo isso só tem valor porque pode transformar radicalmente o comportamento policial, reduzindo a corrupção e a brutalidade, e reaproximando as polícias da comunidade;
  2. reforma radical da Polícia Civil e das Delegacias, atentando para organização e processamento informatizado de informações, atendimento civilizado aos cidadãos, agilização das investigações, eliminação das carceragens nas Delegacias e aproximação com a Justiça (projeto Delegacia Legal) e reforma da polícia técnica (projeto CUPTEC). A nova delegacia suprime a atomização das unidades distritais, que constitui a infra-estrutura da ineficiência e da corrupção: a fragmentação impede a universalização de procedimentos, o controle sobre o trabalho na ponta, a partilha e a centralização das informações, a avaliação sistemática das medidas adotadas e das ações realizadas. A nova delegacia visa, antes e acima de tudo, promover uma revolução gerencial na polícia civil (e não só aí), transformando o arquipélago ingovernável de unidades dispersas em uma instituição orgânica, o que, por sua vez, propicia a renúncia ao voluntarismo reativo, o abandono da praxe inercial e a instalação de uma administração racional, em que dados consistentes dêem lugar a diagnósticos rigorosos, aptos a sustentar planejamentos regulares, avaliações permanentes e monitoramentos corretivos.
  3. o combate à violência de gênero e à violência doméstica, ao racismo e à homofobia, contra a agressão ao meio ambiente e a violência especificamente voltada contra crianças e adolescentes: projeto Centros de Referência.
  4. aproximação entre polícias e comunidades, via participação comunitária e investimentos na moralização, rompendo radicalmente com o corporativismo (projetos Áreas Integradas, via Conselhos Comunitários de Segurança, Centros de Referência, Policiamento Comunitário, Mutirões pela Paz, Circuito da Paz, Sistema Integrado de Segurança, Campanha de Desarmamento, Ouvidoria e Programa de Proteção às Testemunhas);
  5. capacitação profissional, em cujo processo, aspectos técnicos seriam combinados com orientações dirigidas a formar policiais voltados para a proteção dos cidadãos e não do Estado (projeto Instituto de Segurança Pública);
  6. melhoria das condições de trabalho e valorização dos policiais, que seriam alcançadas com a aquisição de melhores equipamentos, a construção de ambientes mais apropriados e dignos, e com políticas salariais ou de gratificações, associadas a salários indiretos –saúde familiar, habitação, educação dos filhos (projeto Premiação das AISPs por redução da criminalidade; gratificação para capacitação, acoplada ao projeto Delegacia Legal; valorização profissional via projeto ISP).

Em suma, estas são as linhas de ação privilegiadas, de janeiro de 1999 a fins de março de 2000: modernização tecnológica (sobretudo, equipamentos e interconexões, produção, organização e transmissão de dados); modernização gerencial (nossas estruturas policiais eram arcaicas e geridas irracionalmente, não havia sequer a cultura do diagnóstico, do planejamento, da avaliação e do monitoramento corretivo, institucional); modernização institucional (é possível avançar bastante, no campo das reformas organizacionais, sem ferir os limites estipulados constitucionalmente); moralização (sem a mudança profunda de nossas polícias, sem rigoroso filtro ético-disciplinar, qualquer esforço será vão, pois policiais cúmplices do crime evitarão o sucesso da luta contra o crime e aprofundarão o abismo que separa a população das instituições policiais, maculando as instituições e atingindo a imagem dos policiais honrados, que constituem a grande maioria); participação comunitária (a aproximação reverte práticas, imagens e torna o policiamento mais eficiente, conforme demonstra o êxito internacional do policiamento comunitário e dos conselhos locais).


VII. Explicitando pressupostos teóricos na contramão dos tabús

As observações expostas a seguir constituem um esforço talvez redundante, mas que julgo relevante, porque pode facilitar a compreensão de alguns aspectos dos programas de segurança pública descritos acima. Esses aspectos, ainda que ocupem posições lógicas estruturantes dos argumentos e das propostas, têm permanecido latentes, nos debates públicos. Poderiam escapar, portanto, aos leitores menos atentos. Vale a pena explicitá-los.

(1) A matriz conceitual com que operam essas políticas refuta, tacitamente, a bipolaridade "repressão dos efeitos" versus "tratamento das causas da violência". De um modo geral, salvo honrosas exceções, essa bipolaridade tem sido evocada para reduzir a uma caricatura simplória os significados das funções repressivas –funções, vale acrescentar, necessariamente implicadas no trabalho policial (1.1). Além disso, tem servido a uma definição equivocada, deslocada, para efeito das políticas públicas, da categoria "causas da violência"(1.2). Por fim, tem sustentado a afirmação de uma falsa contradição(1.3).

(1.1) Por razões perfeitamente compreensíveis, a palavra repressão provoca repulsa generalizada em todos os que resistiram à ditadura e lutaram pela democracia, no Brasil. O sentimento libertário rejeita a palavra e o espírito sombrio que a cerca. Por isso, quando discutimos segurança, todos os democratas nos apressamos a qualificá-la: desejamos uma segurança "cidadã", "humanista", orientada para o respeito aos direitos humanos e inspirada pelos direitos civis. Tudo isso é muito bom e serve para distinguir os democratas daqueles que defendem a brutalidade policial, a truculência do aparato de segurança, a tortura, o extermínio e a barbárie. No entanto, já é tempo de nos debruçarmos com rigor intelectual sobre a categoria repressão para ultrapassar as simplificações grosseiras, que servem a propósitos ideológicos e políticos, mas apenas obstam o aprofundamento da reflexão sobre a problemática da segurança, do controle social e do poder.

Iniciemos por um exercício semântico elementar: reprimir significa, sim, limitar a liberdade; todavia, que democrata se oporia a que fosse reprimida a ação contrária aos direitos humanos e civis? Deveria ser tolerada, em nome da repulsa à repressão, a liberdade de matar, torturar, humilhar, agredir arbitrariamente, violentar?

Pelas mesmas razões, o desrespeito ou a transgressão às leis não poderia ser aceito, se a legislação, em sua dimensão matricial, afirma direitos humanos e civis, e expressa um acordo institucional em torno de princípios legítimos. Nesse caso, tolerar a transgressão legal significaria admitir a violação de direitos e, quando no governo, tergiversar quanto à responsabilidade de fazer cumprir a lei implicaria trair o dever ético-político com a sociedade, celebrado no contrato constitucional, e implicaria também trair os interesses políticos históricos das classes subalternas, como veremos a seguir.

Se houver contradições entre a legislação específica e os princípios constitucionais, a primeira traindo ou limitando os compromissos democráticos dos segundos, ainda assim dever-se-iam considerar a inconveniência da mera transgressão e as vantagens da adoção de procedimentos políticos, voltados para a mudança das leis mas conformes à legalidade. Se uma Constituição democrática vigora, em cujos marcos se possam promover as mudanças que, progressivamente, removam suas eventuais limitações e contradições, a aplicação das leis constitui garantia de respeito ao contrato social, expresso na edificação das instituições jurídico-políticas. Zelar pelo cumprimento do pacto é dever ético-político dos agentes sociais que aceitam o jogo ditado pelas instituições que o traduzem. Além disso, é condição de avanço, rumo à radicalização dos compromissos democráticos, inibidos por resistências antepostas à afirmação plena dos princípios retores de uma Constituição que se proclama matriz da justiça e da liberdade. Em outras palavras, quando os marcos legais celebram a equidade e a liberdade como valores matriciais, até mesmo do ponto de vista estritamente utilitário, passa a ser do interesse dos grupos sociais subalternos, oprimidos e explorados, a defesa da institucionalidade jurídico-política, uma vez que o avanço progressivo em direção ao cumprimento das metas constitucionais (isto é, dos fins sócio-econômico-políticos contemplados pela enunciação dos valores axiais) representa a realização mesma do projeto de radicalização democrática, compatível com o que, grosseiramente, poder-se-ia definir como a vocação histórica dos grupos subalternos. Ou seja, estabelecidos pelo contrato constitucional os princípios da equidade e da liberdade, como regentes das regras do jogo político e articuladores dos códigos legais vigentes, os limites impostos à socialização da riqueza e do poder afirmam-se como contradições que ferem os princípios e exigem superação, o que confere ao processo histórico extraordinário vigor reformista, incorporador, democratizante, ainda que gradualista –sem prejuízo dos recuos naturais em uma dinâmica viva e tensa.

Portanto, o cumprimento do pacto constitucional é dever dos agentes políticos que admitem participar do jogo dos poderes constituídos, mas é também, e sobretudo, do interesse histórico das classes e dos grupos subalternos. Conseqüentemente, para os agentes políticos que pretendem representar essas classes e grupos, é um imperativo -tanto ético quanto pragmático- zelar pelo cumprimento desse pacto, o que implica zelar pelo respeito à legalidade vigente. Mudar as leis é função dos legisladores eleitos e missão da luta política; fazer cumpri-las é responsabilidade do governante, particularmente dos gestores da segurança pública, aos quais não cabem decisões sobre que leis deveriam ou não ser cumpridas. Por isso, o gestor que, por exemplo, se declarasse disposto a tolerar a prática do crime contra o patrimônio, entendida como expressão da luta de classes ou como expropriação da burguesia, faria melhor se renunciasse ao cargo, até mesmo porque, em permanecendo, exporia o partido no poder a intervenção legítima e legal, imediata e enérgica. A desobediência civil já cumpriu papéis históricos positivos da maior importância e, certamente, continuará a fazê-lo, mesmo em sociedades regidas por Constituições legítimas e democráticas, uma vez que haverá sempre diferenças significativas entre os compromissos constitucionais de fundo, quanto a princípios, e a legislação infra-constitucional, assim como a própria Carta Magna pode apresentar contradições internas. Haverá, portanto, sempre espaço para tensões, conflitos, disputas e pressões por ajustes e redefinições, mesmo quanto aos princípios axiais, sujeitos a revisões históricas. Contudo, a desobediência civil não é, definitivamente, função do gestor responsável pelo controle da força do Estado em benefício da aplicação da lei.

Outra esfera semântico-conceitual nos conduz à discussão sobre repressão como represamento de energias, forças, movimentos -individuais, subjetivos e coletivos-, e como controle social. No início do século XX, Sigmund Freud, em seu clássico ensaio "Mal-Estar na Civilização", referia-se ao caráter eminentemente repressor do processo civilizador, que afastava os humanos de sua natureza animal, na medida em que inibia seus impulsos primitivos, canalizando suas pulsões e criando mecanismos de sublimação, compatíveis com a assimilação progressiva e a difusão das disciplinas necessárias à vida coletiva pacífica. A cultura e a sociedade seriam tributárias da repressão. Em meados do século XX, em sua obra-prima, "Estruturas Elementares do Parentesco", Claude Lévi-Strauss reescreveu os fundamentos da antropologia, redefinindo o papel da interdição, mas reiterando seu papel estratégico na gênese da cultura e da sociabilidade. Ao longo da segunda metade do mesmo século, Norbert Elias descreveu o processo civilizatório como o progressivo deslocamento das armas e dos meios de força para o Estado, que se constituiria, concentrando-os com exclusividade. Nesse contexto, a repressão emerge como a atividade estatal, por excelência, correspondente à inibição da violência generalizada e difusa, cujas implicações fragmentárias impediam o desenvolvimento da economia e a expansão do controle democrático sobre os poderes, nas mais diversas esferas. A prática dos exércitos feudais e das milícias privadas dificilmente poderia ser confundida com o sentido moderno da categoria repressão, pois representava a afirmação de uma força segmentar, caução de um poder também segmentar sobre outra força segmentar. Quando os exércitos feudais e as milícias privadas cedem lugar, na Inglaterra, no início do século XVIII, ao primeiro embrião do que mais tarde denominaríamos força policial, a sociedade amplia o exercício da participação cívica e política, na mesma medida em que a lei se universaliza, em sua aplicação, e se liberta dos despotismos feudais e absolutista, em sua elaboração. Quando as primeiras experiências timidamente democráticas se instalam, na Europa, com as revoluções burguesas, a repressão assume seu sentido contemporâneo, associado à universalidade da lei e à legitimidade institucional do poder, cujos sentidos têm se aproximado, progressivamente, dos princípios que efetivamente regem as idéias de equidade e liberdade, graças a séculos de lutas sociais dos trabalhadores oprimidos.

Outras duas vertentes relevantes, nesse debate multissecular, remetem a Lênin e Foucault. O primeiro, enquanto autor de "O Estado e a Revolução", cuja tese central postula o caráter inexoravelmente ditatorial, parcial e classista de toda formação de poder, de qualquer regime político, de toda constelação estatal. As variações institucionais não passariam de manifestações formais distintas de uma mesma essência: a ditadura de uma classe sobre outras. Observe-se que essa tese já se esboçara em "A Questão Judaica", onde Marx denunciava por ilusória e mascaradora a igualdade formal, instaurada pela institucionalidade burguesa. Nesse quadro de referência, a lei e sua aplicação, ou seja, toda repressão -mesmo aquela orientada para a promoção do respeito às leis- representaria uma intervenção de força em benefício dos interesses de determinado domínio econômico. A ditadura do proletariado constituiria mais uma variante da mesma estrutura, ainda que Lênin a defendesse. Portanto, antes do tempo escatológico da utopia, em que o Estado deixaria de existir com o desaparecimento das classes, só haveria ditaduras. Aliás, o líder revolucionário soviético defendia a ditadura até mesmo em decorrência de sua suposta inevitabilidade: dada a premissa de que todo Estado, independentemente das aparências, seria ditatorial, preferia a ditadura dos proletários. Deduz-se que um leninista tardio, cultor da ditadura "revolucionária", considere o Estado democrático de nossos dias o império burguês sob disfarce constitucional e interprete a defesa das leis -vale dizer, a repressão policial legal- como o exercício armado e hostil do domínio de classe. Esse militante não admitiria a participação política enquanto envolvimento com as instituições burguesas, muito menos governar sob a égide da legalidade burguesa, exercício que seria identificado com a gerência do domínio burguês. Nesse contexto, para esse agente político revolucionário, segurança pública seria o império, por excelência, da ditadura burguesa, assim como as polícias seriam reduzidas a braços armados dessa ditadura. Não é preciso dizer o que significaria "repressão", nesse universo ideológico. Esse militante só admitiria a participação como a oportunidade para sabotar o domínio burguês e preparar o assalto insurrecional ao "Palácio de Inverno".

O líder soviético produziu obras de alto nível, como "O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia". Seria injusto julgar todo seu legado intelectual apenas por essa tese, cujo primarismo a experiência histórica do século XX incumbiu-se de revelar. A própria tradição marxista, pelo menos desde Gramsci, foi pródiga em contribuições sensíveis à complexidade da política e do Estado.

Outra referência inescapável, na matéria de que nos ocupamos, é Michel Foucault, cuja inspiração libertária contrasta com o viés assumidamente autoritário de Lênin. No entanto, ambos têm em comum a radicalidade simplificadora do tratamento crítico que conferem à disciplina estatal. Foucault concorda com o diagnóstico generalizante de Lênin, mas lhe confere significado cético, vale dizer, incorpora o Estado proletário ao repertório dos exemplos de tirania a repelir. Em outras palavras, o que causa repugnância a Foucault não é a natureza burguesa do domínio, é o domínio enquanto prática de poder. O autor de "As Palavras e as Coisas" e seus epígonos reagiriam à minha observação: não se trata de causar repugnância, diriam, mas de figurar no mapa da genealogia crítica. Ou seja, Foucault não é moralista, não pretende formular juízos de valor, não manifesta repulsa, nem hierarquiza regimes. Apenas descreve os jogos de poder, pervasivos e ubíquos. A repressão policial legal -respeitosa dos direitos humanos e civis, a serviço do Estado Democrático de Direito e de uma Constituição legitimamente promulgada, inspirada nos princípios da equidade e da liberdade- seria apenas uma variante na tábua de possibilidades e combinações, em que o mestre francês examinava as constelações dos poderes. Nesse sentido, o ceticismo niilista foucaultiano nivela todas as práticas policiais, indiferente às qualificações que se reportam à legalidade dessas práticas, à sua legitimidade ou conformidade com direitos, etc..., assim como nivela os dispositivos policiais aos médicos, jurídicos, acadêmicos, políticos, filológico-gramaticais e penitenciários. A partir desse quadro conceitual, soa inteiramente despropositado e até bizarro discutir políticas de segurança, na expectativa de que fariam alguma diferença significativa, ainda que dados empíricos revelassem a diferença entre seus respectivos impactos concretos, salvando vidas ou aumentando o número de mortes.

Por outro lado, a causticidade crítica de Foucault tem o mérito de nos alertar para o equívoco do dualismo que pensa a temática da repressão no contexto da oposição entre o suposto controle exercido pelo Estado e a suposta passividade individual ou coletiva, essa espécie de vazio que sujeita o objeto do controle à manipulação, ao cerceamento, à canalização ou à cooptação. Do ponto de vista arqueológico-genealógico foucaultiano, o que há são poderes confrontando-se, em espaços diversos e em direções variadas. A disciplina que caracteriza a sociedade moderna, segundo a teoria de Foucault, não corresponde à hipertrofia unilateral do controle panóptico do Leviatã, mas ao êxito de determinada modulação dos poderes, em arranjos que articulam fruições, gratificações e exercícios ampliados de micro-poderes, estimulados por determinadas constelações institucionais. Ou seja, se analisasse políticas de segurança, o mestre da genealogia pós-nietzscheana provavelmente se deteria na descrição dos jogos de poder estimulados pelos distintos métodos de policiamento e pelas diferentes ações implementadas, interpretando o crescimento do tráfico armado e a intensificação da violência criminal como afluentes do aparato repressivo do Estado. Ainda que extremamente aguda, a abordagem foucaultiana não ajuda a construir alternativas positivas, prospectivas e reformistas, no interior do Estado Democrático de Direito, dada sua concepção niveladora das distinções institucionais, mas certamente ajuda a evitar o maniqueísmo de tipo leninista, por levar às últimas conseqüências o reducionismo político adotado por Lênin e incluir o projeto ditatorial soviético no alvo da crítica.

Resta considerar o tratamento conferido à categoria repressão pelas tradições liberais, nesse breve inventário, que está longe de esgotar a apresentação dos paradigmas relevantes. No âmbito do liberalismo, repressão corresponde à ação do Estado contra a liberdade individual, inibindo a manifestação de opiniões, a organização cívica, a participação política, ou regulamentando o mercado, ou invadindo o espaço privado, abrigo doméstico da intimidade, reduto do cultivo da subjetividade e da experiência que alguns críticos denominariam solipsismo narcísico. Portanto, é nesse contexto categorial que "repressão" assume seu sentido mais usual de imposição, pela força, da vontade do Estado, ou de contenção, sempre pelo emprego da força, de ações individuais ou coletivas. É também nesse contexto que ganham sentido as distinções dos atos repressivos, segundo sua conformidade ou incompatibilidade com leis, direitos ou princípios, definindo-os como legítimos ou ilegítimos.

Essas considerações conduzem a uma conclusão: no campo retórico-ideológico das esquerdas, as referências unilateralmente negativas à categoria "repressão" derivam sua justa motivação da história concreta da repressão -com viés étnico e de classe, e com clara orientação política- praticada pelas polícias brasileiras, especialmente durante o período ditatorial. Essas referências encontram sustentação conceitual, quase sempre, nas tradições liberais, sem que haja, entretanto, consciência dessa dívida teórica e sem que se extraiam dessa fonte algumas implicações positivas, particularmente aquelas que propiciariam a distinção entre a repressão ilegítima, negativa, contra a qual devemos nos insurgir, e a legítima, positiva e necessária. Acredito que a fonte seja liberal, porque as referências unilateralmente críticas evocam, de um modo tácito, a possibilidade de uma ordem social edificada em bases democráticas, o que as distanciam das teses leninistas ou foucaultianas. Lamentavelmente, o senso comum das esquerdas tende, com freqüência, a repelir genericamente a "repressão", como se toda repressão fosse negativa e criticável (ética, social e politicamente), e como se fosse possível preservar a ordem democrática sem controle, polícia e repressão. O trabalho policial é visto como essencialmente sujo e repugnante, com o que se desestimulam e menosprezam os investimentos reflexivos e políticos na área da segurança, e se estigmatizam os policiais.

Já é tempo de olhar nos olhos a realidade da sociedade democrática, assumindo, no campo das esquerdas, nossos compromissos permanentes com sua realização, seu desenvolvimento e com a radicalização das conquistas que proporciona. Já é tempo de reconhecer que conviveremos com leis, limites e polícias, em benefício mesmo dos direitos, das liberdades e das conquistas sociais. Portanto, é hora de assumirmos com todas as letras que há uma dimensão positiva e indispensável nas tarefas legítimas de repressão e controle. Que elas podem e devem se dar em conformidade com o respeito aos direitos humanos e que, mais do que isso, constituem, na verdade, garantia prática de sua vigência histórica. Qualquer política séria e consistente de segurança pública envolve essa dimensão positiva da repressão, tem de preparar seu emprego, compreendê-la e valorizar sua qualidade legal e legítima. Tem de trabalhar o gradiente do uso da força e entender o papel do uso comedido da força na construção da paz e na manutenção da ordem pública democrática. As ambigüidades e hesitações de militantes e gestores de esquerda, nessa matéria, concorrem para a negação dos princípios que supostamente estariam defendendo. No vácuo de uma política correta, democrática, legítima, orientada pelo respeito aos direitos, tendem a prosperar a repressão ilegítima –aquela que desrespeita os direitos humanos-, a brutalidade policial, a violência criminal e a barbárie.

O medo da palavra-tabu "repressão" e os rituais discursivos celebrizados nas liturgias políticas da esquerda envolvem a recusa da expressão "segurança pública", que só é admitida nos planos de governo, isto é, só é incorporada como temática legítima ou preocupação pertinente, positivamente, quando acompanhada por um adjetivo que exorcize a referência tácita à dimensão repressiva envolvida nas funções policiais. Os adjetivos mais comuns são "cidadã", "democrática", "humanista". A suposição implícita é que "segurança cidadã" seja aquela da qual se possa falar sem vergonha e culpa, porque o qualificativo "cidadã" limpa a sujeira semântica da "segurança", preservando-lhe os sentidos sociais, positivos, preventivos, liberando-a de qualquer associação à "repressão". Por isso, não costuma haver planos de segurança dos candidatos de esquerda aos governos; há, sim, planos de segurança cidadã.

Depois de tudo que escrevi sobre repressão, recuperando seu valor positivo (leitor, imagine o ato que reprime a violência arbitrária contra um inocente, salvando-lhe a vida, e tome a grandeza, a generosidade, o compromisso que esse gesto tem com a liberdade e a justiça como o modelo ideal do que chamo dimensão positiva da repressão), acredito que se compreendam as razões pelas quais considero equivocado e contraproducente esse pudor que só admite segurança adjetivando-a. Defendo a tese de que, ao contrário, o correto seria assumir sem anestesia, sem analgésico, sem pudor e tempero o compromisso político com a segurança pública, integrando nessa expressão todas as dimensões pertinentes, inclusive a repressão, enquanto legítima e conforme à defesa dos direitos humanos. Essa a novidade política e esse o movimento criativo e arrojado que nos credencia a dirigir, politicamente, a sociedade, também nessa área decisiva. Não há qualquer chance de que uma força conquiste a hegemonia sem que se credencie a assumir a liderança na condução do processo de construção da paz e da ordem pública democrática, por métodos legais e legítimos. Nós é que temos de re-significar "segurança" e "repressão", na prática, nos programas e nos discursos, pois os novos significados que lhes atribuímos são aqueles para os quais reivindicamos o reconhecimento do conjunto da sociedade como os únicos pertinentes e adequados ao Estado Democrático de Direito. Que os adversários da democracia qualifiquem segurança como truculência. Para nós, segurança significa estabilidade de expectativas positivas, compatíveis com a ordem democrática e a cidadania, envolvendo, portanto, múltiplas esferas formadoras da qualidade de vida, cuja definição subsume dignidade e respeito à justiça, à liberdade e aos direitos humanos.

(1.2) É falso opor efeitos a causas da violência, quando se trata de elaborar políticas de segurança, sempre que essa dicotomia estiver a serviço do privilégio das causas, especialmente quando essas últimas remeterem a fatores estruturais. Simplesmente porque, além do fato de que a controvérsia científica é e permanecerá inconclusa, reaberta ante cada pesquisa, no caso da violência criminal as possíveis condições determinantes ou facilitadoras apenas cumprem suas eventuais funções criminogênicas através da mediação de dinâmicas bastante específicas, tópicas e contingentes, modeladas pelos respectivos contextos e variáveis com eles. Reformas estruturais não só exigem longo tempo de maturação e apenas produzem resultados a longo prazo, como podem ser promovidas sem que cessem seus supostos efeitos, desde que se autonomizem as mediações. Políticas preventivas de segurança têm de focalizar essas mediações, as quais constituem fontes que geram as dinâmicas em cujo âmbito emergem as manifestações da violência.

Uma metáfora exemplifica meu argumento: para prevenir incêndios, é indispensável cuidar das condições estruturais de uma casa, da fundação ao acabamento estético. É preciso, por exemplo, que o sistema hidráulico não prejudique o cabeamento elétrico. No entanto, engenheiros e arquitetos estarão imunes a toda culpa se o morador esquecer uma janela aberta e o vento balançar uma luminária suspensa, provocando um curto circuito e o incêndio -prevenido por tantas medidas cautelares, durante as obras. O gestor da segurança, além de zelar pela qualidade da obra, advertindo seus responsáveis e valorizando suas técnicas preventivas, tem de operar como o observador capaz de diagnosticar o risco que advém do gesto contingente do morador, antecipando-o e o evitando, ou interceptando suas conseqüências. No limite, tem de ser o bombeiro.

A especificidade das políticas sociais preventivas, na área da segurança, está em sua capacidade de gerar efeitos imediatos, o que depende de sua aptidão para identificar fontes geradoras dos problemas e de sua competência em interceptar as dinâmicas que produzem a violência. Para reduzir a violência, as causas que importam decisivamente, aquelas sobre as quais é necessário incidir, imediatamente, são as fontes das dinâmicas em cujo movimento se produz a violência, não são os fatores estruturais. O caso do tráfico de armas e drogas -fundamental, hoje, no Brasil- é bastante peculiar, uma vez que tem produzido uma singular superposição entre traços estruturais, traços contingentes, mediações culturais e dinâmicas muito particulares daquilo que se poderia denominar a política criminosa de recrutamento dos jovens. As unidades II e III discutem essa questão, extraindo as conseqüências pertinentes.

(1.3) É indispensável e urgente reformar as estruturas sociais, em benefício da justiça social, impondo uma inflexão nas desigualdades, reduzindo a miséria, expandindo a integração à cidadania e radicalizando a democracia, em todos os níveis. É igualmente indispensável e urgente interceptar as dinâmicas geradoras da violência, para salvar vidas, hoje. As duas metas são imprescindíveis e absolutamente necessárias, mesmo que a primeira não implicasse a produção dos efeitos visados pela segunda –ponto em torno do qual há forte controvérsia na comunidade acadêmica. Portanto, é inútil perder tempo discutindo se a primeira e a segunda são interdependentes ou autônomas. É preciso que o poder público se empenhe no cumprimento de ambas as metas, ao mesmo tempo e com a mesma energia. Nada mais falso, portanto, do que supô-las mutuamente excludentes ou contraditórias entre si. Mais uma vez cabe destacar o caso do tráfico de armas e drogas, para cujo enfrentamento esse duplo investimento é crucial.

(2) O investimento da qualificação e reforma das polícias é fundamental, valorizando-as, revigorando suas lideranças saudáveis, estimulando seu comprometimento com o trabalho preventivo, com os direitos humanos, apoiando sua presença interativa e dialógica nas comunidades, e, na esfera municipal, solicitando seu apoio permanente. Para que intervenções preventivas logrem êxito, freqüentemente, têm de ser acompanhadas por iniciativas policiais que garantam, por exemplo, a liberação dos territórios, quando eventualmente estiverem sob domínio de grupos armados. O poder público não pode permitir que espaços sociais sejam subtraídos à vigência do Estado Democrático de Direito. Todos os exemplos conhecidos de sucesso exigiram a colaboração estreita entre ações policiais qualificadas e intervenções sociais focalizadas.

Por essa razão, até mesmo um programa municipal deve ser construído em diálogo com as instituições policiais e em parceria com elas. O recrutamento dos jovens por fontes positivas que os atraiam para a sociabilidade pacífica precisa vir acompanhado da sinalização bem clara dos limites com que se chocarão, caso optem pela adesão às dinâmicas criminais e pelas práticas violentas. Os limites são estipulados pela legalidade, que garante a liberdade de cada indivíduo ante a eventual ameaça de alguma força arbitrária que pretenda violá-la.

(3) A segunda suposição consagrada no senso comum politizado -e subvertida nos programas de segurança pública progressistas comentados a seguir- é aquela segundo a qual a violência, sobretudo a violência criminal é filha bastarda da miséria e da desigualdade. Esse diagnóstico torna tudo muito fácil, porque reforça a crença de que a fonte única do mal é o capitalismo e, em especial, sua versão mais perversa, o neoliberalismo. O raciocínio permite que renunciemos a toda responsabilidade na matéria e fortalece a luta maior, ampliando o apoio popular à proposta de transformação social. Nossas convicções se revigoram e as propostas permitem síntese unificada, sob a bandeira única do combate ao neoliberalismo. Infeliz ou felizmente, o mundo social é bem mais complicado.

Os estados brasileiros mais pobres não são os mais violentos. Os países mais miseráveis não são, necessariamente, os mais violentos. Sociedades profundamente desiguais nem sempre são violentas. Os resultados dos estudos científicos realizados nas sociedades ocidentais variam e, com freqüência, se contradizem. Minha convicção pessoal é a seguinte: a miséria e a desigualdade são extremamente importantes, no Brasil, como fatores criminogênicos, apenas na medida em que incidem sobre esses fatores determinadas mediações culturais, cujo papel é decisivo. A reação criminal e, especialmente, a reação criminal violenta não representam uma resposta natural, universal, nem correspondem a uma solução lógico-racional, ideologicamente tematizada. Essa reação só se apresenta como possibilidade real quando incorporada ao repertório inteligível e valorizado de práticas de um grupo social, ou seja, quando culturalmente acessível e moralmente assimilada, no universo de referências simbólicas e afetivas, e nos códigos morais de determinados grupos e segmentos etários. A violência, como todas as práticas humanas experimentadas na vida social, é aprendida e ensinada, transmitida pela correia de relações, no âmbito de determinados dispositivos de subjetivação que organizam saberes populares, regras morais específicas, constelações psicológicas correspondentes, estruturas locais de micro-poderes, hierarquias comunitárias, valores, símbolos e linguagens compatíveis com o exercício de determinados procedimentos e métodos de ação. Ser capturado por essa teia psico-moral-simbólico-político-prática requer algumas predisposições, para as quais, a meu juízo, a fome de existir, de ser acolhido, reconhecido e valorizado, como pessoa singular e ser humano, é mais funda, radical, sentida e impactante, mais capaz de sensibilizar os agentes -ditando-lhes cursos de ação e adesões a configurações culturais e morais alternativas- do que a fome física, ainda que essa seja, evidentemente, de grande importância, em todos os níveis –que não paire qualquer dúvida quanto a esse último ponto, para que não se reduza minha posição a um idealismo simplório.

Por isso, saciar a fome de existir é imprescindível e urgente. Garantir visibilidade como ser humano requer proporcionar um olhar generoso que devolva ao outro a humanidade que só a relação e o reconhecimento podem proporcionar. Vale insistir: um ser humano não se identifica como tal sem a mediação do olhar alheio, do reconhecimento do outro, sem a relação que acolhe a alteridade, valorizando-a. Essa a matriz de qualquer intervenção que se credencie a competir com as fontes de recrutamento da juventude para práticas criminosas e modelos de autoconstituição subjetiva compatíveis com a experiência da violência. Essa a razão profunda para a abordagem sugerida, por exemplo, pelo programa de segurança municipal de Porto Alegre, referido acima, voltada para a disputa por cada destino individual (menino a menino) e para a competição com as fontes negativas de recrutamento dos jovens, através da constituição de fontes de recrutamento positivas.

A visão antropológica que proponho parte do caráter aprendido da violência, desnaturalizando-a, e se indaga sobre os mecanismos e instrumentos dessa educação para o crime, dessa formação para a violência, dessa anti-Paidéia, dessa Bildung perversa, dessa organização de carreiras marginais que visam o mercado clandestino. Os meninos e as meninas não caem no abismo, não são atraídos pelo vazio, assim como as práticas violentas e criminosas não são o avesso do mundo da ordem, da sociabilidade, da cultura que reconhecemos. Há conteúdo no que nossas metáforas denominam "abismo", "vazio", "avesso". Para mudar essas dinâmicas é preciso compreender sua complexidade, sua positividade sociológica, isto é, suas regras próprias de funcionamento, sua lógica específica, seus valores. O mundo que pensamos como o avesso da ordem tem densidade e apresenta vantagens comparativas, na competição com o mundo da ordem, não só por conta das inegáveis carências e injustiças desse último, mas também em razão de suas qualidades intrínsecas -qualidades que consideramos perversas e destrutivas, que tenderão a condenar esses jovens à morte precoce e estúpida, mas que apresentam atrativos e prometem vantagens para os jovens. Se não compreendermos essa "positividade", não entenderemos o funcionamento do universo com o qual competimos.

Portanto, a exclusão da cidadania, o empobrecimento provocado pelas políticas neoliberais, o aprofundamento da desigualdade são fatores da maior relevância, mas apenas se traduzem em mais violência pela mediação de determinadas condições culturais. Retomando a tese exposta no item anterior (1.3), é imperioso e urgente mudar esse quadro, por todas as razões imagináveis e até mesmo para reduzir a violência. Contudo, esse efeito só adviria se, além dessas mudanças estruturais, houvesse a interceptação das dinâmicas geradas nas fontes mais imediatamente vinculadas às práticas da violência, inscritas em sua esfera específica de realidade. Assim como poderíamos ter, se me é perdoado o contrafactual, o contexto econômico de carências e desigualdades sem a violência criminal que conhecemos, também poderíamos ter a redução das carências e desigualdades com a permanência e a expansão da violência criminal. As redes de condicionamentos recíprocos ultrapassa e transgride a lógica da causalidade linear. A centralidade da mediação desloca nosso problema para uma dimensão de complexidade superior, atravessada por múltiplas linhas de força e temporalidades. Por isso, todo programa consistente de segurança pública não pode furtar-se a trabalhar com mediações, ao nível do diagnóstico e da terapia.

(4) O terceiro tópico importante, nesse inventário de intervenções tacitamente questionadoras, diz respeito à tese tradicional sobre a importância do emprego como vetor de integração ao mercado e à sociedade. Esse ponto também já foi discutido acima, mas merece aprofundamento. Não é demais repetir, sublinhando a ênfase: os jovens pobres nem sempre estão interessados numa integração subalterna ao mercado, nem sempre estão dipostos a reproduzir o itinerário de fracassos econômicos de seus pais, sua trajetória de derrotas, sua biografia de infortúnios, tanto esforço sem recompensa. Como disse, anteriormente, nem sempre, esses jovens, são sensíveis a uma interpelação voltada para fazê-los mecânicos de nossos carros, pintores de nossas paredes, engraxates de nossos sapatos. Vale reiterar: os jovens pobres querem o mesmo que os filhos da elite e das camadas médias. Querem internet, tecnologia sofisticada, computador, mídia, televisão, cinema, teatro, fotografia, artes, cultura, música, dança e esportes. Se pensarmos em capacitação e emprego, trabalho e renda, temos de estar preparados para ouvir, para entrar em sintonia com o desejo dos jovens pobres das vilas e periferias, com suas fantasias, com suas linguagens, ou não seremos capazes de capturar seu imaginário e de promover a integração com que sonhamos. Nesse sentido, nossa política econômica dirigida tem de se articular com a globalidade de nossa política de redução de danos, de redução da violência, de interceptação das dinâmicas geradoras da violência. Por isso, dir-se-ia com propriedade que esse programa econômico é, simultaneamente, um programa cultural e intersubjetivo, e esteticamente orientado, porque sintonizado com o estilo adotado pelas estratégias locais de autoconstituição subjetiva.

(5) Outro ponto chave é o cuidado necessário para evitar que se pensem as políticas públicas anti-violência como políticas de massa, voltadas para metas funcionais e genericamente referidas a populações ou grupos sociais. O segredo do programa consistente, na área da prevenção à violência, é seu esforço original de "customizar" a política pública, isto é, trabalhá-la de modo a que ela satisfaça necessidades singulares e desejos individualizados. Para que uma política pública cumpra a função de restituir visibilidade, reconhecer o valor pessoal, acolher o indivíduo, é preciso que se ofereça aos sujeitos que compõem seu público alvo aberta a apropriações individualizadas e apta a distinguir cada beneficiário, identificando-o em sua singularidade, isto é, atribuindo-lhe o lugar de sujeito do processo de assimilação da oportunidade que se lhe proporciona. Daí também a importância crucial das famílias, nesse esforço de evitar que os jovens sejam recrutados pelo tráfico. Justamente pelas razões expostas, o fortalecimento social, econômico e subjetivo-psicológico ou cultural (em sentido amplo) das famílias constitui a melhor barreira de proteção para os jovens, uma vez que nenhuma política de Estado, assim como nenhuma ação de organizações da sociedade civil consegue ser tão individualizada, tão capilarizada, tão afetivamente competente e certeira quanto o acolhimento familiar. Portanto, as famílias devem ser o alvo prioritário das políticas públicas dirigidas aos jovens.

(6) "Protagonismo" é uma palavra emblemática, no léxico político das esquerdas e das tradições humanistas. Remete a participação, democracia e cidadania. Refere-se ao valor que se confere à sociedade, às suas iniciativas espontâneas, à sua própria organização e à sua autonomia. É sinônimo de respeito à independência dos agentes individuais e coletivos não-partidários, sobretudo dos sem-poder. Nessa medida, implica a recusa das velhas práticas da cooptação -à direita, pela via do fisiologismo cleintelista, e à esquerda, pela via do monopólio centralizador e burocratizante do partido stalinista, que se confunde com o Estado e a sociedade, esmagando-a.

"Protagonismo" muitas vezes é enunciado como um bordão saudável, libertador, que ajuda a exorcizar os riscos do poder. Como toda chave semântico-política, entretanto, pode degradar-se em chavão e, invertendo seu sentido, passar a servir aos propósitos que se destinava a evitar, reiterando o velho paradigma narodinik, em que é típico o vocabulário do protagonismo popular. Para evitar essa hipótese, impõe-se o cuidado de evitar seu emprego fácil, como um simples selo artificial de qualidade democrática, que se cola nos produtos e serviços fornecidos pelo Estado ou pela Prefeitura. Nem sempre a palavra se aplica. Só faz sentido usá-la, em alguns contextos, se há contextos e casos aos quais ela não se aplica. Como reconheço que faz sentido usá-la e como a valorizo, devo reconhecer que ela não se aplica a certos casos e contextos. Para identificá-los, sinteticamente, por dedução lógica e antecipadamente me desculpando pelo truísmo, diria que tais contextos são aqueles nos quais não é pertinente atribuir à população ou a indivíduos determinados a responsabilidade pela decisão ou pela condução de processos. Nos programas de segurança há casos em que o protagonismo popular deve ser proposto com ênfase, mas há também aqueles em que a palavra não deve aparecer, porque os processos em pauta não permitem. O mais interessante a destacar, aqui, é que há circunstâncias em que o protagonismo popular não apenas é impertinente como sua impropriedade é que deve ser enfatizada. Por mais estranho que soe, há situações em que a virtude da política pública está justamente no estabelecimento claro de que o "protagonismo" é função única e exclusiva do poder público.

Um exemplo: sem nenhuma dúvida é positivo, mais que isso, é essencial atribuir protagonismo aos jovens, para que se eduquem na participação cívica, cooperativa e solidária, para que valorizem sua inserção pacífica e construtiva na sociedade, e para que exibam suas virtudes, reforçando a autoestima. Por outro lado, quando jovens precisam de acolhimento e reconhecimento de seu valor, necessitam vivenciar uma relação plena, a qual, por sua vez, só existe se o outro assumir inteiramente sua diferença, sua autonomia, sua alteridade. Esses jovens precisam encontrar outros significativos, outros que exponham sem hesitações sua alteridade, sua autonomia, o poder que afirma e garante essa autonomia, isto é, sua autoridade. Esses meninos e meninas precisam de agentes públicos humanizados que se afirmem como autoridades e que os/as valorizem, e necessitam também do contato com a alteridade representada pela instituição pública enquanto tal, qualificada em sua alteridade pela autoridade de que se reveste e pela especificidade das regras que norteiam suas decisões. Essa tese vale para muitos casos que envolvem jovens em situação de risco social. Respeitar unilateral e ilimitadamente as vontades juvenis pode significar grave desrespeito aos direitos desses mesmos jovens à proteção, à segurança, a condições dignas de vida, saúde, alimentação, moradia, acolhimento afetivo e educação. Confusão análoga seria aquela que tratasse a problemática dos meninos e meninas de rua com a mesma categoria: "protagonismo". Isso levaria à suposição absurda de que essas vítimas lançadas à rua poderiam converter-se em sujeitos, enquanto personagens da rua, como se esse pudesse ser o espaço da realização de sua liberdade. O equívoco do raciocínio se desvela invertendo-se o contexto e perguntando-se a quem defende esse argumento: o que você faria se seu filho, criança ou adolescente, lhe declarasse que agora é livre e vai mudar-se para a rua? Você saudaria o protagonismo recém-conquistado de seu/sua filho/a ou imporia sua autoridade, dizendo-lhe que você o/a ama, o/a quer em casa, que seu lugar é em casa e que, mesmo que ele/a não entenda e não queira, será forçado/a a ficar em casa, onde o protagonismo continuará sendo dos pais?

(7) O sétimo argumento tematiza a unidade dos seis pontos precedentes e, por esse viés, focaliza a importância crucial da unidade de todo programa de segurança que se quer consistente, não apenas no sentido trivial de que a integração entre os projetos e as iniciativas os fortalece mutuamente, ampliando as chances de sucesso do conjunto, mas no sentido talvez contra-intuitivo de que a unidade de um programa desse tipo é diferente, qualitativamente, e mais importante do que o somatório ou mesmo a articulação orgânica de suas partes ou dos segmentos que o compõem.

A qualidade do programa, enquanto unidade, se reporta, produzindo-a, à legitimidade e à autoridade da agência gestora, cuja personalidade singular é igualmente indispensável, mesmo do ponto de vista político e simbólico, não só da perspectiva operacional. Ambas, a qualidade ou eficácia do programa e a legitimidade ou autoridade da agência gestora -sua liderança, sua capacidade de dialogar e, principalmente, sua sensibilidade e sua humildade para ouvir- constituem condição sine qua non para que se promova um efeito absolutamente decisivo: a circunscrição da problemática, sua inscrição na agenda pública por uma linguagem particular e a focalização política dos territórios ou espaços sociais nos quais se implantarão, gradual e progressivamente, os projetos –sempre que esse método de implantação for viável -considerando-se a natureza dos projetos e dos problemas visados-, ele deveria ser adotado.

Essa focalização é indispensável para que se dêem os resultados esperados. Por vários motivos, entre os quais a motivação dos atores locais, a mobilização societária que enseja, a convergência entre os movimentos suscitados e, sobretudo, a formação e disseminação de novo padrão de expectativas, geradoras de profecias positivas que se autocumprem, acionando ciclos virtuosos, nos jogos cotidianos da sociabilidade. Os operadores locais das agências públicas e os policiais passam a supor a presença insidiosa e pervasiva, quase ubíqua, do "observador societário universal", e tendem a acomodar-se às novas circunstâncias, agindo em conformidade com a transparência presumida. Dinâmica homóloga –com sentido invertido- se instala entre os operadores do mercado clandestino do crime e entre os agentes da violência.

Sendo a segurança pública matéria, por excelência, de expectativas, atua-se sobre o nervo mesmo da problemática, graças à focalização política, que depende, insisto, de circunscrição da problemática -com determinado tratamento da agenda pública- e de demarcação territorial, para que se potencializem os efeitos de contágio metonímico positivo, alterando padrões de expectativas.

***

Os sete pontos destacados talvez ajudem a esclarecer alguns aspectos dos programas expostos, aspectos insuficientemente explorados no corpo do texto que os expõe ou apenas tacitamente referidos. Convém salientar esses tópicos especialmente controversos para que o debate se enriqueça, mas, sobretudo, para que sua compreensão não seja prejudicada pela projeção acrítica das pressuposições inspiradas no senso-comum.

O conjunto dessas observações também serve para demarcar, com mais clareza, a especificidade das políticas propostas pelas políticas de segurança expostas, distinguindo-as das políticas usualmente elaboradas e aplicadas pelos governos conservadores.


VIII. Conclusão

O conjunto de empreendimentos municipais e estaduais, elencados acima, constitui um esforço sério e ambicioso na área da segurança pública. Essas políticas de segurança transformaram as experiências dos Governos do Amapá, do Mato Grosso do Sul e do Rio de Janeiro (em 1999 e em 2002), além do governo municipal de Porto Alegre, anteriormente citado, em arenas pioneiras de iniciativas imaginativas e racionalizadoras, que começaram a dar os primeiros passos rumo à criação de um sistema de segurança consistente, onde reinava o caos, oculto sob o voluntarismo febril de medidas improvisadas, desarticuladas, fragmentárias e reativas. A segurança, no Brasil, não pode mais ser tratada com paliativos improvisados. A população merece que se diga a verdade, com transparência: está na hora de construir pontes para o futuro e de buscar formas originais capazes de realizar a revolução inadiável nas instituiçõers policiais, assim como é urgente investir com absoluta prioridade na juventude pobre, protegendo-a via apoio às suas famílias e através de políticas públicas sensíveis às dimensões culturais, afetivas e subjetivas envolvidas. As reformas estruturais que estão acontecendo nos estados referidos não produzem soluções fáceis e mágicas. Demandam tempo de maturação e requerem a radicalização dos processos em curso para cumprirem suas metas. Além disso, não terão êxito enquanto não se obstruírem as fontes de recrutamento criminoso, permanentemente realimentadas pela falta de perspectiva e esperança, nas áreas mais pobres da sociedade. Não somos mercadores de ilusões. Só com seriedade, persistência e coragem é que se cultivam as verdadeiras soluções. Esse é o compromisso tácito das políticas apresentadas.


NOTAS

  1. Refiro-me ao complexo institucional – daí o emprego do singular – que envolve as duas corporações policiais estaduais, as polícias Civil e Militar, além da Polícia Federal.
  2. Esse trecho corresponde a passagem da palestra "Reforma da Polícia e a Segurança Pública Municipal", proferida na Universidade de Oxford, em 11 de maio de 2002, no Centro de Estudos Brasileiros, dirigido pelo Prof. Leslie Bethel.
  3. Esses pontos estão incluídos e especificados, em detalhes, no Plano de Segurança Pública, coordenado por Antonio Carlos Biscaia, Benedito Mariano, Luiz Eduardo Soares e Roberto Aguiar, confeccionado no âmbito do Instituto Cidadania, com a assessoria especial de Paulo Brinckman, dirigido por Paulo Okamoto e presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, apresentado à sociedade em fevereiro de 2002.

Autor

  • Luiz Eduardo Soares

    Luiz Eduardo Soares

    antropólogo, cientista político, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ex-secretário nacional de Segurança Pública

    foi também membro da comissão do Instituto Cidadania que elaborou o Plano de Segurança Pública, coordenador de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania, subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, consultor para Segurança Pública da Prefeitura de Porto Alegre, pesquisador visitante do Vera Institute, de Nova York, e professor visitante das Universidades de Columbia, Virginia e Pittsburgh.

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Informações sobre o texto

Apresentação das políticas implementadas na área de segurança pública, nos estados do Amapá, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e no município de Porto Alegre, segundo dados expostos por Rita Andréa, Katia Tork, Almir Paixão e Luiz Eduardo Soares, em reunião promovida pelo ILDES (Fundação Friedich Ebert) e pela Secretaria Nacional do PT, coordenada pelo Deputado Federal Jorge Bittar, em 25 de março de 2002, em São Paulo, cujos organizadores foram Cássio França, Regina Toscano e Jorge Bittar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Luiz Eduardo. Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 maio 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4096. Acesso em: 20 abr. 2024.