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As portarias instauradoras de processos disciplinares e a violação a princípios e regras legais

As portarias instauradoras de processos disciplinares e a violação a princípios e regras legais

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A violação a princípios e regras legais na publicação de portarias instauradoras de processos administrativos disciplinares, com a indicação do nome, qualificação e descrição da irregularidade cometida por servidor.

Trata-se, o presente, de ensaio acerca da violação a princípios e regras legais na publicação, em Jornais Oficiais, de portarias instauradoras de processos administrativos disciplinares com a indicação do nome e da qualificação do servidor, acompanhada da descrição minuciosa da irregularidade cometida.

O processo administrativo disciplinar (PAD) é o instrumento por meio do qual a Administração Pública procede à apuração de eventual responsabilidade de servidor público, em determinada infração disciplinar. Ele é instaurado quando já apurados, pela Administração, os fatos e a autoria, por meio de sindicância investigativa ou averiguação preliminar.

A sua instauração não é facultativa, uma vez que a ocorrência de uma infração disciplinar não fere apenas a ordem jurídica, mas demonstra, também, uma nítida situação de ineficácia de gestão, do serviço público e da própria Administração. Talvez não por outra razão que todos os estatutos consultados preveem o dever do servidor levar ao conhecimento do seu superior as infrações/irregularidades de que tenha conhecimento, e, à Autoridade, o dever de instaurar o procedimento específico para a sua apuração.

Vê-se, aí, o interesse público na resolução da questão e a indisponibilidade desse interesse pela Administração.

O processo administrativo disciplinar deve servir, dentre outros objetivos, para mostrar aos servidores mal intencionados e/ou despreparados que existem regras, prévia e legalmente estabelecidas, e que a Administração, na gestão da coisa pública, está de olho nos atos por eles praticados. Isso contribui para moralidade e eficiência do serviço público, e amplia a democracia de acesso, pois possibilita que servidores melhores preparados e/ou melhores intencionados possam assumir os cargos.

O PAD, porém, não pode ser utilizado para a satisfação de caprichos de Autoridades despreparadas, com a única intenção de perseguir ou diminuir a autoestima de determinado servidor, grupo ou classe de servidores.

Além disso, como o PAD é um processo que envolve um servidor determinado, deve ser a ele garantido, ao longo de todo o seu procedimento, o direito ao contraditório e a ampla defesa, nos termos do art. , LV, da Constituição Federal.

E, nesse sentido, alguns juízes de primeiro e de segundo grau vêm entendendo que o contraditório e a ampla defesa se iniciam com a portaria inaugural. Ou seja, esses direitos são garantidos quando da publicação da portaria instauradora do PAD, sustentando a ideia de que ela deve conter, além da qualificação do servidor, a descrição minuciosa dos fatos e a qualificação legal da infração, segundo os moldes da denúncia criminal.

Esse entendimento, data maxima venia, e com todo o respeito aos que dele se filiam, não parece ser o mais adequado, especialmente quando essas portarias são publicadas em Diários Oficiais.

Isso porque a portaria de instauração do PAD é apenas o ato por meio do qual a Autoridade delega, normalmente a um trio processante, a sua competência para apurar a responsabilidade de servidor a ela subordinado, a fim de evitar eventual parcialidade na apuração. A portaria, dessa forma, não é e não pode ser confundida com o indiciamento ou mandado de citação do acusado.

Além disso, a publicação de portaria nesses moldes, em Diário Oficial, apenas expõe o servidor a uma situação vexatória, propondo à comunidade local, onde muitas vezes reside, uma ideia de culpabilidade em determinada situação em que a sua responsabilidade ainda nem mesmo fora apurada.

A fim de exemplificar essa questão, basta imaginar o servidor de um Município pequeno, que ali nasceu e cresceu, e que teve o seu nome e a sua “condenação” publicada no Diário Oficial desse Município. Veja, que, ainda que presente o dever de publicidade dos atos, não parece razoável que o servidor seja exposto dessa maneira.

Esse, resguardadas algumas peculiaridades, também é o entendimento da Controladoria Geral da União (CGU). Vejamos:

A portaria instauradora do processo administrativo disciplinar deverá conter os seguintes elementos:

a) autoridade instauradora competente;

b) os integrantes da comissão (nome, cargo e matrícula), com a designação do presidente;

c) a indicação do procedimento do feito (PAD ou sindicância);

d) o prazo para a conclusão dos trabalhos;

e) a indicação do alcance dos trabalhos, reportando-se ao número do processo e demais “infrações conexas” que surgirem no decorrer das apurações.

(...)

Não constitui nulidade do processo a falta de indicação, na portaria inaugural, do nome do servidor acusado, dos supostos ilícitos e seu enquadramento legal. Ao contrário de configurar qualquer prejuízo à defesa, tais lacunas na portaria preservam a integridade do servidor envolvido e obstam que os trabalhos da comissão sofram influências ou seja alegada a presunção de culpabilidade.

A indicação de que contra o servidor paira uma acusação é formulada pela comissão na notificação para que ele acompanhe o processo como acusado; já a descrição da materialidade do fato e o enquadramento legal da irregularidade (se for o caso) são feitos pela comissão em momento posterior, somente ao final da instrução contraditória, com a indiciação.

(...)

Em suma, não é demais ressaltar que na portaria inaugural deve a especificação dos fatos (irregularidade) se dá por meio de menção ao processo ou documento que ensejou sua abertura. É recomendável que a autoria e o enquadramento legal não sejam abordados.

(Manual de Processo Administrativo Disciplinar, 2015, páginas 92 e 94)

Nesse sentido, aliás, também, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. ATO DE DEMISSÃO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. NULIDADES AFASTADAS. ORDEM DENEGADA. (…) 4. A Portaria inaugural de processo administrativo disciplinar está dispensada de trazer em seu bojo uma descrição minuciosa dos fatos a serem apurados pela Comissão Processante, bem como a capitulação das possíveis infrações cometidas, sendo essa descrição necessária apenas quando do indiciamento do servidor, após a fase instrutória. Precedentes.

(STJ – MS 14836/DF, 2009/0231373-9, Relator Ministro: Celso Limongi, Data do Julgamento: 24/11/2010, 3ª Seção, Data de Publicação: 03/12/2010)

EMENTA: ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGU-RANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PORTARIA INAUGURAL. DESCRIÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO RELATIVO AO DOLO OU À CULPA QUANDO DA PRÁTICA DA CONDUTA FUNCIONAL. DESNECESSIDADE. SER-VENTUÁRIA DA JUSTIÇA. LEI DE REGÊNCIA DO PROCESSO DISCIPLINAR. CÓ-DIGO DE ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO JUDICIÁRIAS DO ESTADO E ACÓRDÃO Nº 7.556, DO CONSELHO DE MAGISTRATURA. LEI ESTADUAL Nº 6.174/70. APLI-CAÇÃO ANALÓGICA. IMPOSSIBILIDADE. 1. É firme o entendimento nesta Corte Superior de Justiça no sentido de que a portaria de instauração do processo disciplinar prescinde de minuciosa descrição dos fatos imputados, sendo certo que, tão somente, na fase seguinte o termo de indiciamento que se faz necessário especificar detalhadamente a descrição e a apuração dos fatos. Com maior razão, portanto, não implica em nulidade a ausência de descrição dos elementos relativos à culpa ou ao dolo quando da prática da conduta infracional.

(STJ - RMS 24138/PR, 2007/0107695-0, Relatora Ministra: Laurita Vaz, Data do Julgamento: 06/10/2009, 5ª Turma, Data da Publicação: 03/11/2009)

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. ATO DE DEMISSÃO IMINENTE E ATUAL. JUSTO RECEIO EVIDENCIADO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM RECONHECIDA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INEXISTÊNCIA DE AFROTNA AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.

(...)

3. A portaria inaugural tem como principal objetivo dar início ao Processo Administrativo Disciplinar, conferindo publicidade à constituição da Comissão Processante, nela não se exigindo a exposição detalhada dos fatos imputados ao servidor, o que somente se faz indispensável na fase de indiciamento, a teor do disposto nos arts. 151 e 161, da Lei nº 8.112/1990.

(STJ – MS 8030/DF, 2001/0158479-7, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Data de Julgamento: 13.06.2007, 3ª Seção, Data Publicação: 06.08.2007)

E, se não bastassem todos esses argumentos, oportuno mencionar que o PAD é um processo legalmente sigiloso, como se pode verificar, por exemplo, na leitura do artigo 150, do Estatuto Federal (Lei nº 8.112/90); do artigo 72, § 2º, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94); entre outros.

Art. 150 A Comissão exercerá suas atividades com independência e imparcialidade, assegurado o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da administração.

Art. 72 (...)

§ 2º O processo disciplinar tramita em sigilo, até o seu término, só tendo acesso às suas informações as partes, seus defensores e a autoridade judiciária competente.

Sendo ele legalmente sigiloso, não poderiam suas informações ser expostas na portaria inaugural, muito menos publicadas em um Jornal Oficial do respectivo Ente.

Ademais, o PAD é constituído de informações pessoais e a Lei de Acesso à Informação (LAI - Lei nº 12.527/11) prevê, em seu artigo 31, que as informações pessoais são sigilosas, devendo ser preservadas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, bem como as liberdades e garantias individuais.

Art. 31.  O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e

II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.

A LAI prevê, ainda, em seu artigo 23, VIII, que devem ser sigilosas as informações que possam comprometer as atividades de inteligência, de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Art. 23 (...)

VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

E que devem ser respeitadas as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça (artigo 22,).

Art. 22.  O disposto nesta Lei não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o poder público.

Dessa forma, de se concluir que as informações relativas à infração disciplinar, cuja responsabilidade deva ser apurada, não podem constar da portaria inaugural, especialmente se essa portaria for publicada em Diário Oficial, por se tratar de informações pessoais, cujo sigilo é legalmente previsto, e comprometer todo o trabalho apuratório da Administração.


Referências:

1. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm

2. http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8906.htm

3. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8112cons.htm

4. Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Controladoria Geral da União, 2015.


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