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UM EXEMPLO DE CONTRABANDO QUE DEVE SER COMBATIDO

UM EXEMPLO DE CONTRABANDO QUE DEVE SER COMBATIDO

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O ARTIGO ANALISA OS CRIMES DE CONTRABANDO E DESCAMINHO E TRAZ À DISCUSSÃO CASO CONCRETO.

UM EXEMPLO DE CONTRABANDO QUE DEVE SER COMBATIDO

ROGÉRIO TADEU ROMANO

Procurador Regional da República aposentado

O artigo 334 do Código Penal, na redação anterior,  previa o crime de contrabando ou descaminho ao dizer: ¨Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.¨

O crime é sancionado com pena de um a quatro anos. Porém, se o sujeito se utiliza de transporte aéreo, para o crime de contrabando ou descaminho a pena deve ser dobrada, parágrafo terceiro.

Desde já, na linha de Júlio Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, São Paulo, Atlas, 2006, pág. 370), lembro que a doutrina orienta  que contrabando designa a importação ou exportação fraudulenta da mercadoria e descaminho o ato fraudulento destinado a evitar o pagamento de direitos e impostos.

Do que se tem do artigo 89 da Lei 9.099/95, se for o caso, poderia  o Parquet apresentar pedido de suspensão condicional do processo.

Na redação do artigo 334 do Código Penal, já se entendia que se tratava de crime instantâneo de efeito permanente, não se confundindo com o crime permanente.

Especial interesse havia na interpretação do antigo artigo 334, § 1º, ¨c¨, que hoje tem a redação no artigo 334, § 1º,  III, do Código Penal, na redação da Lei 13.008, de 26 de junho de 2014.

Já se entendeu que para a antiga figura do caput do artigo 334 do Código Penal não se exige destinação comercial ou industrial da mercadoria(TRF 1ª Região, Ap. 6.352, DJU de 6 de agosto 1990, pág. 16.619). Ainda se decidiu que para a modalidade da alínea “c” do § 1º, deve ficar comprovada essa especial destinação da mercadoria(TFR, AP. 7.097, DJU de 7.5.87, pág. 8.234), mas deve se pressupor a finalidade mercantil. O crime não exige a habitualidade(STF, RTJ72/176).

Já de algum tempo, há censura a forma de um tratamento único para duas figuras penais distintas.

Foi o que disse Alfredo Pinto Araújo Corrêa(O contrabando e seu processo, Rio de Janeiro, 1907)que já censurava a reunião num único dispositivo de fatos sensivelmente diversos.

O contrabando é a exportação ou importação de mercadoria proibida, não sendo ilícito fiscal. Por sua vez, o descaminho representaria, para a doutrina,  uma fraude ao pagamento de tributos aduaneiros, configurando um ilícito de natureza tributária, apresentando uma relação fisco-contribuinte, algo que não existe no contrabando.

Para Paulo José da Costa Jr(Comentários ao Código Penal, São Paulo, Saraiva, volume III, 1989, pág. 521), o  descaminho representa uma fraude fiscal, insista-se, importando verificar se os impostos, taxas ou direitos são realmente devidos, se foram calculados com exatidão, se as formalidades legais foram obedecidas.

Assim o núcleo verbal do crime de descaminho se observa na ação de iludir, burlar, enganar, ludibriar, fraudar o pagamento, total ou parcial, de imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

Inegável que os efeitos do contrabando e o descaminho são causas crescentes de desequilíbrio em diversos setores da economia, impulsionando o desemprego em decorrência do fechamento de empresas, prejudicando a economia formal e logicamente a arrecadação tributária.

Sabe-se  que as chamadas mercadorias subterrâneas não recolhem os tributos e não passam pelos devidos trâmites burocráticos de entrada em território nacional, criando concorrência desleal com aqueles contribuintes que recolhem regularmente seus tributos e encargos.

Por ocasião do julgamento pelo STF do HC 110.964/SC, de relatoria do ministro Gilmar Mendes (7.2.2012), além de reafirmar a diferenciação dos crimes de descaminho e contrabando, o Supremo Tribunal Federal deixou de aplicar o princípio da insignificância ao delito de entrada de cigarros de origem estrangeira desacompanhados de regular documentação e pagamento de tributos, ao fundamento de que se tratava de crime de contrabando, e não de crime de descaminho. Naquela oportunidade entendeu a Suprema Corte que o bem jurídico tutelado na hipótese de contrabando de cigarros não era apenas o caráter pecuniário dos tributos sonegados (no caso inferior a R$ 10.000,00), mas, principalmente, a proteção à saúde pública.

No que se refere à referida proteção à saúde pública, destaca-se o caso da maciça entrada de cigarros contrabandeados do Paraguai, que, além de não pagarem tributos e concorrerem de forma desleal com as companhias nacionais, não se sujeitam a controle sanitário algum e possuem formulação duvidosa, visto que já se verificou na composição de cigarros paraguaios que ingressaram clandestinamente no País a presença de diversas substâncias pesticidas que são proibidas no Brasil há décadas.

A situação de potencial lesividade à saúde da população no caso dos cigarros contrabandeados é apenas uma dentre várias, de modo que há inúmeros outros setores altamente sensíveis aos efeitos danosos do contrabando, como, por exemplo, medicamentos, agropecuário, bebidas etc.

Dessa forma, a primitiva redação do art. 344 do CP se mostrava tanto quanto obsoleta frente aos anseios surgidos com o advento da globalização, uma vez que a repercussão dessas práticas criminosas tem se mostrado cada vez mais danosa tanto pelo seu aspecto econômico quanto pelo aspecto social.

Agiu bem o Congresso Nacional na matéria.

A recorrência desses crimes e os seus efeitos deletérios motivaram a elaboração pelo Congresso Nacional do PL 62/12, que visava dar nova redação ao art. 334 ao Código Penal e acrescenta o art. 334-A. O referido projeto foi aprovado por ambas as Casas do Congresso Nacional e sancionado pela presidente no dia 26.6.2014, sobrevindo a lei 13.008/14.

Ficou assim a redação legal:

Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

§ 1o Incorre na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

I - pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

II - pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

III - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

IV - adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

§ 2o Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

§ 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

Contrabando

Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida: (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos. (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

§ 1o Incorre na mesma pena quem: (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

I - pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando; (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

II - importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente; (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

III - reinsere no território nacional mercadoria brasileira destinada à exportação; (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

IV - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira; (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

V - adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira. (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

§ 2º - Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. (Incluído pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)

§ 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de contrabando é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial. (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)

Com a nova redação, os tipos penais (contrabando e descaminho) passam a ser tratados separadamente, recebendo penalidades diversas, sendo coerentemente mais gravosa para o crime de contrabando do que para o crime de descaminho.

Outra alteração que deve ser elogiada  que reforça o descompasso histórico da redação anterior, é a inserção dos termos “marítimo” e “fluvial” no § 3º do referido artigo 334, uma vez que as formas de transportar as mercadorias foram aprimoradas e essas previsões não se encontravam contempladas na redação anterior, que era restrita à conduta delituosa praticada em transporte aéreo, o que ensejava inúmeras discussões doutrinarias e jurisprudenciais, notadamente porque o Direito Penal é rígido pelo princípio da tipicidade cerrada.

Cita-se o  Habeas Corpus 148.375/AM, que teve como relator o Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 12/04/2012 junto ao Superior Tribunal de Justiça, pelo preciosismo dos votos. Constou na ementa deste julgado:

"HABEAS CORPUS. PENAL. CONTRABANDO E DESCAMINHO. QUALIFICADORA. TRANSPORTE AÉREO. ART. 334, § 3º, DO CP. VOO REGULAR. APLICAÇÃO. DESCABIMENTO. PENA. REDUÇÃO. PRESCRIÇÃO. CONSUMAÇÃO.

1. É descabida a aplicação da qualificadora do art. 334, § 3º, do Código Penal quando a prática delitiva é realizada por meio de transporte aéreo regular, sendo justificada a incidência da majorante tão somente quando se tratar de voo clandestino. [...]"

Em seu voto, o Ministro relator, manifesta que a ratio essendi existente no contrabando ou descaminho praticado por transporte aéreo está justamente no fato de dificultar a atividade fiscalizatória. Continua em seu voto esclarecendo que o empeço ao órgão fiscalizador somente existe em voos clandestinos. Em suas palavras:

"No entanto, a dificuldade de fiscalização somente ocorre quando se trata de voo clandestino, pois apenas nele é criado empeço à atuação das autoridades alfandegárias. No caso de transporte aéreo efetivado por meio de voos regulares, não há a criação de nenhum obstáculo à atuação fiscal, tanto que, no caso, a mercadoria foi apreendida no aeroporto da Capital da República, durante uma fiscalização de rotina."

Em seu voto, o Ministro Relator ainda colacionou o seguinte ensinamento do Ministro Francisco de Assis Toledo:

"Neste caso a aeronave não está posta a serviço do crime, que só se desenvolve oculto sob o falso rótulo de bagagem ou de encomenda, tal como aconteceria se, no lugar do avião, imaginássemos um navio, um ônibus, ou um trem internacional. O avião nada acrescenta ao fato, já que por um processo mental podemos substituí-lo por outro meio de transporte regular, sem que nada se altere. O mesmo já não acontecerá com o voo clandestino, orientado para regiões ermas, com o intuito de evitar a fiscalização por quem de direito. Ora, a qualificadora do transporte aéreo só encontrará justificativa na grande dificuldade de se coibirem o contrabando e descaminho realizados em voos clandestinos, em geral, com aparelhos de pequeno porte, de fácil manejo, que utilizam pistas disfarçadas, situadas fora do alcance da fiscalização. Parece-nos, pois, lícito – e assim temos feito – interpretar restritivamente o preceito em exame, tomando-o como aplicável exclusivamente ao contrabando e descaminho de direito penal tributário, realizados através de voos que se furtem ao controle alfandegário."

No entanto, a posição do referido julgado não é unânime nas Cortes brasileiras, tanto assim, que o próprio caso ora em análise é motivado por uma decisão de primeiro grau, confirmada por um Tribunal (até aqui ambos aplicando a majorante em voo regular) e que, somente no Superior Tribunal de Justiça, ascendeu por sua modificação, afastando a causa especial de aumento de pena. No entanto, sequer o referido julgado é unânime:

"Prosseguindo no julgamento após o voto-vista divergente do Sr. Ministro Og Fernandes denegando a ordem de habeas corpus, cerificou-se o empate na votação. Prevalecendo a decisão mais favorável ao paciente, a Turma concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator, vencidos a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura e o Sr. Ministro Og Fernandes."

Vamos para o exemplo concreto.

Há poucos dias, o Paraguai emitiu uma nova oficial contra o governo brasileiro, relativa a uma suposta ingerência dos militares brasileiros em seu território. O Brasil rechaçou fortemente essa declaração, porém ela é, em si mesma, reveladora. Na verdade, as Forças Armadas, sob a coordenação de seu Estado-Maior Conjunto, estavam realizando a operação Ágata, de proteção de fronteiras.

Ocorre que essa operação flagrou vários barcos que estavam infiltrando contrabando em nosso país. Os militares foram recebidos a tiros e revidaram. Exerciam a defesa de nossas fronteiras. No entanto, o Paraguai parece considerar que teria o direito de contrabandear produtos para o Brasil, pois é disto, precisamente, que se trata. Correto o entendimento de que uma eventual retratação brasileira significaria, de fato, o reconhecimento de que o contrabando, em nosso país, deveria ser algo “natural”. Isso é inconcebível e deve ser objeto por parte do governo brasileiro das medidas cabíveis.

Para se ter uma ideia dos efeitos perniciosos que disso podem vir, observe-se que o contrabando de cigarros está inviabilizando a indústria nacional, com perda de tributos, desemprego crescente, podendo atingir, se persistir, a agricultura familiar aqui envolvida. Seus efeitos são perversos com prejuízos econômicos e sociais, inclusive de queda de arrecadação.

Estão aí os efeitos perniciosos do contrabando lembrando dizer que não estamos diante de um caso de aplicação do princípio da insignificância. A situação exige da parte dos aplicadores do direito a devida preocupação e a aplicação das normas já existentes na matéria.


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