Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/41869
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Comportamento corrupto

Se não sabem, são estúpidos; e, se sabem, são maus

Comportamento corrupto: Se não sabem, são estúpidos; e, se sabem, são maus

|

Publicado em . Elaborado em .

A corrupção não entende de vítimas e, quando se acumula, tolerante e/ou impunemente, dentro de uma sociedade, acaba por transmitir a aterradora mensagem de que é aceitável comportar-se mal em grande escala: onde a corrupção triunfa, a moral capitula.

“La esperanza de una mala ganancia  es el comienzo de una pérdida. El  olvido de las propias faltas trae consigo la desfachatez. La vergüenza miedosa produce servilismo; pero la disposición amistosa no tiene esa recompensa. Para nada debe uno avergonzarse más frente a otros que frente a si propio, ni debe contar, en un acto de maldad, el que no se entere nadie o el que se entere la humanidad toda. Ante nosotros mismos debemos primordialmente avergonzarnos, y esto tiene que figurar como ley a las puertas del alma: nada hacer que sea indigno”. Demócrito

A compreensão que tenho da Moral carece da mais mínima sintonia com o chamado "comportamento corrupto". Digamos que minhas intuições e valores morais me predispõem contra qualquer indício de corrupção em qualquer de suas modalidades e sucedâneos. Um tipo de comportamento que resulta nauseabundo para qualquer concepção acerca de um sentido moral próprio do ser humano. Por que isso é assim? Qual a razão de uma conduta tão estranha e corrosiva? Quais são as causas, os motivos, as condições que fazem possível esta forma de ser?

Aristóteles, em seus debates sobre a moralidade, insiste nas habilidades pessoais e sociais para prosperar no âmbito moral. Segundo esta perspectiva, a aquisição e o exercício das habilidades morais dependem da prática de hábitos adequados, e podem ver-se influenciado pelos modelos, as práticas sociais e as instituições que encontramos na vida diária. De fato, o entender a moralidade como um tema essencialmente prático e resultado de um longo treinamento nos recorda a enorme importância que têm as habilidades que diariamente costumamos exercer sem esforço, de modo fluido e contumaz, como uma virtuosa extensão de nosso caráter e de nossa vontade.

O problema é que a maioria das pessoas dá por descontado que, embora levem a cabo condutas social e moralmente reprováveis, continuam a crer que são boas, que são distintas, que são melhores, diferentes ou superiores. Construímos umas ideias preconcebidas interessadas e egocêntricas, que melhoram a imagem que temos de nós mesmos e fazem com que nos sintamos especiais, nunca normais e correntes, sempre «por cima da média», em qualquer prova de integridade pessoal ou ética. Esses prejuízos cognitivos e egocêntricos desempenham uma função valiosa, porque reforçam nossa autoestima e alimentam nossa sensação de invulnerabilidade moral. Permitem-nos justificar nossas faltas, atribuir-nos o mérito de nossos êxitos e eludir a responsabilidade de nossas más decisões, fazendo-nos ver nosso mundo subjetivo através de uma lente multicolor (P. Zimbardo). Um agente corrupto, em última instância, sempre se perguntará se não é também ele um ser humano. (B. Brecht)

Da mesma forma, não são poucas as pessoas que se negam a reconhecer que, embora a virtude se exerça de maneira unificada, em um conjunto de situações significativas, em determinadas situações podem existir forças externas e internas potentes, mas sutis, com poder potencial de transformá-las. Se negam a admitir que certos estados de coisas influem em nossos próprios estados motivacionais, alterando o comportamento e que é necessário uma grande disposição e força de vontade para paliar as falhas e debilidades do autocontrole. Ignoram que nosso velho «eu», vulnerável ao atrativo que exerce o «lado escuro», sempre pode não atuar da maneira esperada, quando as regras básicas cambiam.

A questão, portanto, reside em saber o que impulsa a conduta humana. O que determina nossos juízos e comportamentos morais? No contexto do complicado atuar humano, o que faz com que algumas pessoas levem uma vida reta e honrada, enquanto que outras parecem cair com certa facilidade na imoralidade e no delito? Que fatores ou influências guiam nossos pensamentos, nossos sentimentos e nossos atos para o bom ou o mau caminho? Até que ponto nosso comportamento moral está à mercê de acontecimentos situacionais cumulativos, isto é, da situação e do momento em que nos encontramos? Em que medida a conduta viciosa está condicionada por nossa natureza inexoravelmente «corrupta e caída»? Quais são os mecanismos institucionais e mentais que fazem possível a corrupção? Que passa na cabeça dos corruptos quando levam a cabo atividades delitivas, a incorrer e aceitar a corrupção? É possível ser ético em um entorno corrupto de uma sociedade distorcida em seus valores?

É indubitável que os verdadeiros expertos na corrupção são quem a praticam e que a análise deste fenômeno nunca poderia estar completa se não prestamos atenção a estes atores. Afinal, são os indivíduos que outorgam um determinado significado a suas ações e decidem que tipo de elementos do entorno em que atuam se convertem em incentivos que lhes estimulam a levar adiante determinados comportamentos.   

E, uma vez que a prática depende fundamentalmente das circunstâncias em que se apresentam, os desafios e da personalidade de quem os enfrenta, começarei por recordar que é um erro frequente perguntar se o ser humano é bom ou mau por natureza (agressivo ou pacífico, ou, por exemplo, se nossa sexualidade é monógama ou polígama). Os seres humanos não são essencialmente nem bons nem maus (agressivos nem pacíficos, nem monógamos nem polígamos). Os humanos respondem com bondade ou maldade (agressivamente ou cooperativamente, de forma monógama ou polígama) dependendo de histórias vitais específicas e dos ambientes em que se encontrem (e isto não é coisa dos seres humanos exclusivamente - ainda que tenhamos mais variedade -, senão também de outros animais).

O melhor recurso contra o descaro antropológico de que a corrupção estaria na «natureza humana» é a evidência de que somos tanto o resultado dos extensos sistemas – riqueza e pobreza, educação, predomínio cultural e religioso etc. - que governam nossa vida como das situações concretas em que nos encontramos cotidianamente; forças que interagem com nossa biologia e nossa personalidade. Desde um ponto de vista objetivo, a ideia (sustentada por muitos) de que o ser humano é corrupto por natureza é ridícula, um autêntico despropósito transparentemente inventado para proteger de qualquer desafio moral comportamentos humanos eminentemente discutíveis.[1]

Somos uma mescla de instintos em que o potencial para a bondade e para a perversão é inerente à complexidade da mente humana. Juntos, o impulso para o mal e para o bem compõe a dualidade mais básica da natureza humana – o que implica que a trajetória da ação que adotamos em um determinado momento e situação é o resultado de um estado mental emergente selecionado pela interação do complexo meio circundante em que opera o cérebro, isto é, de que existem infinidades de influências que guiam nossas condutas e nossos juízos morais. (M. Gazzaniga)

Dito isto, o que tratarei de fazer à continuação será conjecturar sobre algumas das possíveis causas do comportamento corrupto. 


Corrupção, comportamento corrupto e «maldade»

Geralmente, a corrupção se define como o abuso por parte de um servidor público em favor do benefício próprio ou de interesses privados, “un acto de deslealtad hacia los valores constitucionales” (A. Calsamiglia). No caso de corrupção pública, dá-se um uso incorreto ao dinheiro público e, a partir deste fato, se assegura que o ato afeta toda a sociedade: posto que o dinheiro público está destinado a satisfazer interesses de toda a sociedade, desviar este dinheiro tem como consequência afetar os interesses gerais em favor de um interesse particular.[2]

Independentemente da prática levada a cabo por estes tipos de sujeitos malfeitores (políticos e funcionários, por exemplo) que, locupletando-se dos «benefícios» da corrupção e sem nenhum tipo de escrúpulo, multiplicam seus patrimônios «estando dentro do governo», está claro que o fenômeno estendido da corrupção pode ser analisado desde distintas perspectivas. O primeiro que salta à vista é o ponto de vista moral. Mas, este enfoque moral pode variar desde uma relativamente simples convicção de rechaço ao «roubo» puro e duro, da apropriação de algo que não pertence ao agente corrupto, até uma maior consciência das consequências desse tipo de depredação social, entre as quais está a certeza do dano, sofrimento ou miséria de alguém que o agente corrupto não necessariamente conhece e de quem, geralmente, não verá jamais seu rosto.

Para o que aqui interessa, e evitando perder-me em disquisições filosóficas ou em realizar um exame exaustivo do amálgama de teorias e crenças que conformam o pot-pourri da corrupção, limitar-me-ei a analisar este último aspecto: o do comportamento corrupto como uma forma perversa, imoral e diluída de rapinagem social, nomeadamente no que se refere à conduta de indivíduos vinculados à Administração Pública que, no uso de suas prerrogativas funcionais, direta ou indiretamente, obtêm e utilizam, de forma fraudulenta, desonesta e indecente, recursos ou meios públicos para enriquecimento pessoal. Dito do modo mais simples possível: do comportamento corrupto (ou da corrupção) como hábito antimoral de «crime contra a sociedade» (L. Boff) [3]. Que Deus os maldiga!

Também assumirei que a corrupção é um ato de maldade (de «erosão da empatia» ou «desconexão do circuito da empatia no cérebro», para utilizar a expressão empregada por Simon Baron-Cohen - “Zero Degrees of Empathy. A New Theory of Human Cruelty” -, que intenta explicar o problema do mal utilizando o conceito de empatia[4]), cuja definição é elementar, fácil e tem uma base psicológica: “A maldade consiste em obrar deliberadamente (por ação ou inação) de uma forma que provoque dano, maltrate, humilhe, desumanize ou cause sofrimento a pessoas inocentes, ou em fazer uso da própria autoridade e do poder sistêmico para praticar, alentar ou permitir que outros obrem com a mesma finalidade”. (A. G. Miller)

Por outro lado, admitirei que estes atos de autêntica «maldade administrativa» são praticados por indivíduos «terrorífica y terriblemente normales»: pessoas normais e correntes, que «educam» seus filhos e amam seus companheiros (as), que frequentam clubes e eventos sociais, que (provavelmente) oram e vão à igreja ou templos etc., e não uns «aliens» com rabo e chifres procedentes de outro mundo. Em definitiva, pessoas ordinárias - alguém como o amável leitor (a) ou eu – cujo comportamento parece dotado de um tipo de normalidade que, desde o ponto de vista de “nuestras instituciones jurídicas y de nuestros criterios morales, resulta mucho más terrorífica, por cuanto implica que este tipo de delincuente comete sus delitos en circunstancias que casi le impiden saber o intuir que realiza actos de maldad”. (H. Arendt)[5]

E para que nos entendamos, este tipo de análise, em modo algum, pretende escusar ou quitar responsabilidade a quem atua de maneira imoral ou ilícita, a esta espécie de ser humano animado única ou primordialmente por seu próprio interesse egoísta - ou, como se diz agora, com feio anglicismo, «auto-interesse» -  e que lhe costuma ir muito bem a arte do autoengano para a autorregulação moral ou limpeza moral mental. Tampouco é minha intenção desconsiderar o fato de que nenhuma conduta complexa em seres humanos livres se deve a uma série linear e aditiva de causas. Qualquer resultado importante, como a conduta corrupta, apresenta inumeráveis causas interrelacionadas, cada uma das quais tem inumeráveis efeitos potenciais, o que a sua vez origina uma prodigiosa complexidade prática, antes, inclusive, de chegar à certeza de que os efeitos práticos se codeterminam uns a outros.

Nada obstante, ainda que o esclarecimento da fonte de tal ou qual comportamento humano resulte endiabradamente difícil de localizar e determinar (e se incluímos os inumeráveis efeitos dos genes, então o problema se eleva à enésima potência - Eric Turkheimer), especular sobre os mecanismos mentais que usamos para desconectar os princípios morais de nossa conduta (ou de nossa empatia), talvez nos situe em uma posição melhor para combater esse fenômeno, sobretudo no que se refere à justiça e ao castigo, reafirmando a relevante e urgente necessidade de  combater, erradicar ou minimizar o alcance do monstruoso fantasma da corrupção.

Sigamos, pois, por esta senda.


Filosofia moral experimental: «roubo à mão armada», «trem assassino» e  «afogamento»

Alguns estudos sobre o fenômeno da corrupção argumentam que uma forma de inculcar a importância da defesa do patrimônio público, porque os danos a este afetam à sociedade em geral, seria a de articular complexas reflexões (emocionais) de causalidade ou estabelecer vínculos causais complexos – quer dizer, nexos entre causa e  consequências que costumam ser distantes no tempo e no espaço -, embora reconheçam que somente uma pequena proporção da população tem a capacidade de conceber esses vínculos causais pouco evidentes (E. Salcedo-Albarán et al.). Voltarei a esta questão mais adiante.

Retomando a teoria da interpenetração das emoções e a razão na construção de condutas e juízos morais, é possível inferir que, somente se há sentimentos («pessoalidade», «empatia», «cercania» etc.) em relação às pessoas, teremos motivos para não causar-lhes danos; isto é, que um fato capaz de suscitar uma reação emocional possui um espectro de impacto mais profundo que qualquer outra forma tradicional de interação ou comunicação racional no que ao ato causar dano aos demais se refere.

Aqui é onde parece jogar um papel fundamental a denominada filosofia moral experimental, desenvolvida por um grupo de investigadores e filósofos que descobriram que, para entender como atua o ser humano, “no bastaba con quedarse reflexionando sobre ello en el sillón de su despacho”(J. Knobe). Não, por certo, com o intuito de substituir as elaborações integrais da Ética, da filosofia e das ciências sociais e jurídicas, senão dando-lhes um aporte fático e prático – quer dizer, sem negar o papel determinante da cultura, mas sim reconhecendo a inegável relação entre «nature-nurture».

Ademais, a proposta de usar experimentos sobre os comportamentos para confirmar hipóteses acerca da natureza e do comportamento humano é antiga. Trata-se, o estudo experimental dos pensamentos e comportamentos chamados «morais» ou «imorais», de um programa de investigação que tem como objetivo comprovar hipóteses sobre nossos juízos e condutas, mas cujo interesse é mais evidente, e com métodos um pouco mais sérios, menos especulativos e um pouco mais respeitosos com a ciência.[6]

A ideia subjacente consiste em que uma vez que cheguemos a entender a natureza humana (ou ao menos alguns de seus aspectos) quiçá possamos cambiar a maneira de contemplar os problemas importantes do mundo real e o modo de afrontá-los. Como disse em certa ocasião Jonathan Haidt: “Vivimos la edad de oro de la nueva síntesis en el campo de la ética que predijo E. O Wilson en 1975: la «consilience»”. 

Vejamos por partes.

i) Anonimato, «desindividualização» e vínculo causal

Simulemos mentalmente o seguinte cenário. Se alguém rouba um banco à mão armada, com crianças entre as vítimas mortais, e o agarram, toda a opinião pública se voltará sobre o ladrão. E a justiça operará com diligência contra esse indivíduo para que cumpra uma longa pena em alguma cárcere. Isso sucede porque o autor e o delito são muito evidentes e porque houve vítimas diretas que sofreram muito: um horror sofrido por muitos. Igual passará com todos os delitos similares que sucedem, cotidianamente, em nossas cidades. A cidadania se solidariza com a vítima de imediato, e as notícias cumprem seu papel para que essa solidariedade seja cada vez maior.

Em contrapartida, quando um delito não tem vítimas imediatas, quando não são visíveis as feridas ou os mortos, será difícil que a cidadania possa ser solidária, porque não há dor ou sofrimento à vista. Isto é precisamente o que ocorre com o desfalque de dinheiro público. Se um político ou funcionário público «rouba», silenciosa e descaradamente, um enxame de dinheiro, todo mundo (meios de comunicação e cidadãos) cairá sobre ele por «corrupto» ou «ladrão» (refiro-me aos grandes escândalos de corrupção, porque, nos «pequenos» e muito mais frequentes, apesar de igualmente nocivos, o anonimato e a indiferença institucional é a regra[7]). No entanto, dificilmente se chegará a ser solidário com as vítimas desse desfalque, porque, insisto, estas não se veem.

Mas existem e são muitas. Se todo esse dinheiro foi usurpado, por exemplo, do sistema de saúde, haveria que se fazer o esforço colossal para se imaginar a quantidade de gente que foi deixada (ou deixará) de ser atendida em um hospital por falta de recursos, as mortes que se produzem em decorrência dessa defraudação, as caras amargas dos enfermos apinhados às portas de um hospital, a dor das mães com suas crias enfermas e sem tratamento etc. E, se todo esse dinheiro foi tirado do sistema público de educação, também seria necessário um grande esforço e energia mental para imaginar as daninhas consequências sobre suas potenciais vítimas.

Em síntese: é de esperar que a maioria dos indivíduos empatize ou se solidarize com as vítimas e reaja com profunda indignação ante um roubo ou ataque físico que causa um dano, direto ou indireto, a uma ou várias pessoas. Por que? Porque neste caso o vínculo causal entre o ato e o sofrimento (atual e futuro) de uma pessoa específica resulta evidente, porque os eventos «causa e efeito» não se encontram distantes no tempo e no espaço. Nada obstante, em alguns delitos, dado que os eventos «causa e efeito» não são tão evidentes, é comum que as pessoas (e, inclusive, o próprio agente corrupto), na medida em que não percebem ou identificam um vínculo causal, não experimentem qualquer sentimento de empatia ou solidariedade com as vítimas, nenhum sentimento de rechaço, repugnância ou repulsão contra os autores de tais atos (a maioria anônima) e, dessa forma, não se indignem como Deus manda, e nem atuem em consequência.

A corrupção, baixo o véu do anonimato do agente e/ou a «desindividualização» da vítima, ao exigir estabelecer relações causais complexas, pertence a este segundo tipo de crime. Como sentir-nos comprometidos com dramas que se situam distantes e aos que somente nos vincula uma série causal infinitamente tênue? Ao contrário dos outros delitos, seu secretismo (a distância e a delgada causalidade) encobre a maldade e dilui a responsabilidade do agente entre o bando e o grupo a que pertence: «Esto funciona así. Todo el mundo lo hacía. No va a pasar nada. Sencillamente no hables de ello, no lo menciones», parecem dizer os amigos, familiares, conhecidos e cúmplices dos corruptos, como se também eles temessem ver-se arrastados ao purgatório.

É a comédia suprema, a hipocrisia absoluta... Um “hecho que se ha vuelto odioso”, como diria Camus.

ii) Impessoalidade, razão e emoção

A pesquisa mais ampla sobre nossas intuições e juízos morais foi realizada por uma equipe de investigadores em psicologia, dirigida por Marc Huaser, no marco de uma investigação massiva através da internet e na qual participaram pessoas de ambos os sexos, de distintas categorias de idade, distintas religiões, distintos níveis de estudos, de diferentes comunidades étnicas ou culturais e em vários países. Consistia em apresentar o clássico dilema do trem, proposto inicialmente nesta forma por Phillipa Foot: “Um trem circula sem controle e se aproxima em direção a cinco pessoas que morrerão se o veículo mantiver a mesma trajetória. Pablo, que está passeando junto à via do trem, é testemunha da cena anterior e tem a oportunidade de salvar-lhes a vida mediante o simples movimento de pulsar um interruptor que desviará o trem para outra via diferente, donde só matará a uma pessoa em lugar de cinco.  Deve acionar o interruptor e desviar o trem com o fim de salvar a cinco pessoas a expensas de uma?”.

Se o amável leitor é como a maioria das pessoas, não vacilará à hora de pulsar o interruptor: experimentamos poucas dificuldades à hora de decidir o que fazer nessa situação. E, ainda que a perspectiva de pulsar o interruptor não seja precisamente agradável, a opção utilitarista (matar a uma pessoa em lugar de cinco) representa a «opção menos má». De fato, a grande maioria das pessoas que responderam em todo o mundo, aproximadamente 89%, afirmou que estava bem ou que era correto que Pablo acionasse o interruptor.

Em seguida, propuseram-lhes a seguinte variante, proposta por Judith Jarvis Thomson: “Como antes, o trem ameaça matar a cinco pessoas. Frank se encontra em uma passarela (ponte) sobre a estrada de ferro e tem ao seu lado uma pessoa corpulenta e de grande estatura. Se empurra o desconhecido e o joga às vias, deterá a marcha do trem. O desconhecido morrerá, evidentemente, mas se salvarão as cinco pessoas. Está bem ou é correto que Frank salve as cinco pessoas matando a este desconhecido? Deveria empurrar-lhe?”.

Se o amável leitor for como quase todo o mundo, se sentirá um pouco mais cauto e angustiado ante a sugestão de que Frank deveria empurrar uma pessoa inocente, ainda que seja para salvar outras cinco almas. Aqui poderíamos dizer que nos encontramos ante um dilema «real». Neste caso, 89% dos entrevistados respondeu que não. Esta coincidência em todos os grupos culturais e de idade, assim como a dicotomia na resposta, resulta assombrosa quando em realidade as cifras (salvar cinco pessoas permitindo a morte de uma) não variam entre os dilemas. E mais: quando se pediu aos entrevistados que justificassem suas respostas, estes ofereceram diversas explicações, nenhuma especialmente lógica.

Desde outra perspectiva e metodologia, Joshua Greene e colaboradores se perguntaram se as pessoas utilizavam a mesma parte do cérebro em ambas as circunstâncias, isto é, para a solução de ambos os dilemas. Assim que «escanearam» os sujeitos em um experimento com neuroimagem enquanto decidiam suas respostas. Descobriram que com o primeiro dilema, que era de caráter «impessoal» (pulsar o interruptor), incrementava-se a atividade nas áreas do cérebro associadas ao raciocínio abstrato e à resolução de problemas, enquanto que, no segundo caso, que era um dilema «pessoal» (havia que tocar fisicamente e empurrar a um desconhecido), incrementava-se a atividade nas áreas associadas com a emoção e a cognição social.

Agora mudemos o cenário.

“Passas por casualidade ante um pequeno lago e vês uma criança que se está afogando. Não há nem pai, nem mãe, ou nenhum outro transeunte por perto para socorre-la. Tu podes salvar-lhe a vida facilmente. Basta que corras até ela sem sequer desnudar-te e a tragas até a borda. Não é necessário que saibas nadar, pois o lago não é profundo. Se o fazes, só te expões a estragar os belos sapatos que acabas de comprar e a chegar tarde a teu trabalho. Não seria monstruoso deixar morrer essa criança para não estragar os sapatos novos e evitar a reclamação de um chefe?”.

Se o amável leitor responde que sim, também terá que admitir que é monstruoso deixar morrer de fome crianças que vivem em países mais pobres, quando bastaria que dedicasse uma parte ínfima de seu salário para salvá-las. J. Greene também explora esta hipótese para explicar o contraste entre nossa indiferença à sorte das crianças que morrem de fome distantes de nós, com as quais não temos contato pessoal, e nossa sensibilidade ao sofrimento exposto ante nossos olhos. Ao analisar este tipo de dilema, Greene e colaboradores descobriram que, ainda que as opções sejam superficialmente as mesmas – não faças nada e preserve teu interesse próprio ou salva vidas com pouco custo pessoal -, a diferença estriba em que o primeiro cenário é «pessoal», enquanto que o segundo é «impessoal».

No que concerne à (boa) neurociência, o mais interessante e o que realmente importa não é tanto as respostas que formulam os participantes desses experimentos, mas sim as áreas cerebrais que se lhes ativaram de forma distinta quando enfrentavam os dilemas morais pessoais e os dilemas morais impessoais, isto é, que tipo de dilemas as ativa e que zonas do cérebro intervêm quando se tomam decisões morais desse tipo. E posto que se trata, tanto no dilema do trem como do afogamento, de casos similares que requerem respostas similares, os correlatos neuronais diferenciais para a resolução dos dois grupos diferentes de dilemas se distinguem pelo modo de chegar a um mesmo resultado: um em que os sujeitos se encontram implicados «pessoalmente» em uma determinada ação (em que se incrementa a atividade nas áreas associadas com a emoção e a cognição moral/social) e outro que implica uma maior distância pessoal para quem atua (em que se incrementa a atividade nas áreas do cérebro associadas com o raciocínio abstrato e a resolução de problemas).

De acordo com as investigações procedentes das ciências, que se ocupam do cérebro e da conduta, parece razoável supor que não estamos frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de dois juízos diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e do envolvimento pessoal do agente que atua. Em realidade, esses resultados parecem indicar que, quando se apresenta um problema moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte emocional do cérebro não se ativa.

No caso de comportamento corrupto, o abuso do poder, os vícios da avareza e da cobiça não são os únicos que sacam a reluzir as tendências assustadoramente egoístas e desonestas que, tão frequentemente, determinam o proceder dos indivíduos cujo comportamento perverso, imoral, cínico e perigoso não pode suportar que a luz da virtude brilhe com demasiada força no fascinante mundo da imoralidade. A incapacidade ou cegueira (deliberada ou não) para perceber o vínculo causal, a impessoalidade e/ou a distância emocional do agente em relação aos membros «invisíveis» da sociedade também parecem facilitar a prática de atos corruptos.

Resultado: um agente corrupto está sempre disposto a abraçar a ideologia de que «dinheiro público não é de ninguém» e a enriquecer-se como uma «impessoal» máquina de caça-níqueis, mas seguramente não estaria disposto a enriquecer-se utilizando uma arma e/ou provocando pessoalmente o sofrimento de membros concretos de uma comunidade.


Comportamento corrupto: impessoalidade, distância e indiferença emocional

De todas estas investigações é legítimo perceber ou depreender a seguinte conclusão: qualquer coisa ou qualquer situação que faça com que um indivíduo se sinta distante (psicológica e emocionalmente), anônimo ou que lhe provoque um sentimento de impessoalidade e inexistência de nexo causal entre seu comportamento e a miséria ou o sofrimento dos demais, debilita seu sentido da responsabilidade pessoal e, em consequência, faz possível que possa atuar com maldade e imoralidade. E esta possibilidade aumenta quando se acrescenta outro fator: se a situação, sua função institucional ou alguma autoridade lhe dá permissão para atuar, de maneira antissocial ou desonesta, contra outras pessoas, o agente corrupto seguramente estará disposto, inclusive, a «fazer a guerra» em benefício próprio.

Uma explicação evolucionista do diferente comportamento das pessoas nas situações acima indicadas seria que durante a maior parte de nossa história evolutiva os seres humanos viveram em pequenos grupos onde se conheciam todos e onde a violência ou a maldade somente podia infligir-se de uma maneira direta, «pessoal» (golpear, estrangular, empurrar). Para tratar com estas situações desenvolvemos umas respostas emocionais aversivas imediatas, de base afetivo-emocional. O pensamento de arrojar a uma pessoa pela ponte, de deixar afogar-se a uma criança ou de praticar diretamente o ato de «roubar» dispara estas respostas emocionais aversivas. Pulsar um interruptor que desvia o trem, não enviar dinheiro para crianças que vivem em outros continentes ou desviar em proveito próprio dinheiro público destinados a vítimas que não se veem, não guarda nenhuma semelhança com qualquer probabilidade de haver ocorrido nas circunstâncias em que nossos ancestrais viveram no passado. Por isso, estes tipos de pensamentos ou condutas não disparam a mesma resposta emocional que arrojar uma pessoa às vias, deixar afogar-se a uma criança ou praticar um roubo à mão armada.

Este fenômeno, cuja distância com respeito à vítima facilita cometer uma agressão ou um ato imoral (ilícito), explica por que pessoas que não roubariam um dinheiro diretamente de outros podem cometer atos de corrupção devido à qualidade etérea e invisível de suas vítimas, que faz com que se perca essa relação pessoal ou direta que atuou de freio em nossa história evolutiva.[8] 

Ademais, essa sensação de impessoalidade e distância, somada à indiferença e ao exercício de uma função institucional tem múltiplas consequências para o agente corrupto, entre elas a suspensão da consciência em geral e da consciência de si mesmo. As limitações habituais da maldade e dos impulsos desonestos se diluem nos excessos da impessoalidade e da distância (psicológica e causal). O cinismo se impõe por cima do nível moral que reservamos a nossos congêneres verdadeiramente humanos e a percepção de impunidade suspende a consciência ética e o sentido de dever, desvaloriza a dimensão da responsabilidade pessoal, da obrigação, do compromisso, da fides, da boa fé, da moralidade, do sentimento de culpa, da vergonha e do medo, assim como da análise dos próprios atos em função de seus custos e benefícios.

Em última instância, reduz o interesse do agente corrupto em autoavaliar-se, projetando sua responsabilidade para o exterior, para as circunstâncias ou os demais, em lugar de dirigi-la ao interior, para si mesmo, para as deficiências e defeitos de seu próprio caráter. Já não há um sentido do bem nem do mal, não há sensação de culpabilidade por atos ilegais nem infernos por atos imorais. Quando os controles internos se suspendem, a conduta se acha por completo sob o controle externo da situação: o exterior se impõe ao interior. O que é possível e está disponível, o que é impessoal e está distante, impõe-se ao correto, ao bom, ao justo e ao virtuoso.

Chegado a esse ponto, a bússola moral desses indivíduos perde o norte. Não há aqui a menor consideração à advertência de Demócrito de que em um ato de maldade devemos envergonhar-nos principalmente diante de nós mesmos e que há uma regra que deve figurar como lei às portas da alma: «Nada hacer que sea indigno».


Seres sem dignidade: retribuição e castigo

Se Dante Alighieri pudesse regressar, que círculo do inferno reservaria aos agentes corruptos? Para Dante, os pecados que brotam desta raiz são os piores, os «pecados do lobo», a condição espiritual de ter no interior de si mesmo um buraco negro tão profundo que nunca se poderá completar com quantidade alguma de poder ou de dinheiro. Para os que sofrem desse mal mortal, o que existe fora do ego só tem valor se o ego pode apropriar-se dele ou explorar-lhe. No inferno de Dante os culpáveis deste pecado se acham no nono círculo, congelados no lago de gelo. Por não haver-se ocupado em vida de outra coisa salvo de si mesmos, estão presos em um ego gelado para toda a eternidade.  

A corrupção é nossa própria versão (moderna) dos «pecados do lobo», a demonstração cristalina do que faz com que “el ser humano haga del ego su único bien, un bien que acaba siendo su prisión”. Uma cegueira mental que encerra o corrupto em um lugar sombrio, congelado em uma prisão autoimposta, donde recluso e carcereiro se fusionam em uma realidade egocêntrica (uma espécie de sórdida impessoalidade, servil indiferença e ablepsia empática autoimpostas) que lhe impede de ver os vínculos causais entre o ato praticado e as consequências negativas que suas ações  têm sobre outras pessoas.

É evidente que o tema da corrupção já deu muito ao longo da história humana, e ainda dá muito de si. Mas sabemos tão pouco da corrupção que ninguém ainda foi capaz de ilhar suas causas, nem de averiguar categoricamente por que determinados desequilíbrios neuroquímicos afetam aos seres humanos de formas completamente distintas. De fato, ninguém sabe exatamente a causa, o sinistro, inescrutável e tóxico mundo (interior) dos motivos do «cidadão» corrupto, desses homens e mulheres sem dignidade, da esquizofrênica incapacidade para calibrar seu caráter e da demencial busca de autojustificação para seus atos nos rincões mais escuros de uma mente doentia - sua «consciência moral», se desejamos chamar assim. E o mais assombroso é que nenhum corrupto, ao distorcer ou ignorar deliberadamente essa sua natureza imoral, se considera como tal e que quanto maior é seu grau de impostura e adição ao crime, mais difícil é que se dê conta de sua maldade, “ya que atañe directamente a su carácter” (J. Epstein). Em qualquer caso, sempre trata de escapar das consequências dos próprios atos, com esse intento frenético e patológico de gozar das vantagens da imoralidade sem sofrer nenhum de seus inconvenientes.

Mas há algo mais. Nos delitos de corrupção, dado que se está dando mau uso a recursos públicos, o prejuízo é de toda a sociedade e, dado que toda a sociedade não é o nome próprio de uma pessoa ou de um sistema físico intencional concreto e identificável, com rosto próprio, resulta quase impossível que causar dano à sociedade gere sentimentos de arrependimento ou aversão. Em um mundo racional, seria óbvio supor que a consequência de causar dano a uma sociedade deveria ter um efeito persuasivo muito forte, maior que o de causar dano a uma única pessoa. Isto é relativamente claro porque em termos utilitários e de cálculo racional é pior causar dano a muitas pessoas que a um só indivíduo.

Nada obstante, não está claro que nos pareça ou que percebamos como mais grave causar dano a muitas pessoas de uma sociedade, especialmente quando não nos inteiramos quem são essas pessoas e não estamos convencidos (ou temos a “certeza”) de que efetivamente nosso ato lhes causa algum prejuízo tangível. Na verdade, tendemos a pensar que é mais persuasiva a imagem ou o som de uma pessoa morrendo cruelmente como resultado de um ato que executamos, que o argumento de que muitas pessoas serão afetadas por esse mesmo ato; sobretudo se o dano a essas pessoas somente se pode estabelecer mediante relações causais complexas, impessoais e distantes no tempo e no espaço (E. Salcedo-Albarán).[9]

Daí que, embora consciente que a maioria “de los penalistas se les eriza el vello corporal cuando oyen hablar de justificaciones retributivas de la pena o del punitivismo actual que día tras día endurece las penas” (J. A. García Amado), estou convencido de que, para certos delitos, quando o castigo ou a pena é proporcionalmente alta, sim que dissuade grandemente (desde que, evidentemente, ninguém seja castigado em medida maior do que por sua conduta merece).

Os trabalhos revisados por Roy Baumeister – ainda que não seja politicamente correto dizê-lo - demonstram claramente que o castigo é mais potente para dissuadir, corrigir e aprender que qualquer outra forma de «recompensa» que tenha por escopo salvar o infrator para que se torne útil à sociedade, apregoar o fim da sanção punitiva, preconizar a substituição da pena por uma pedagogia ou instrumental de controle informal do comportamento, pugnar por sanções penais mais brandas, adequar perfeitamente a pena ao criminoso e ao fato delituoso etc. Sem (justa) retribuição não há pena justa e o conjunto do corpo social se vê induzido a repudiar a ideia mesma de responsabilidade (“ese es exactamente el peligro de la corrupción: ridiculizar la honradez, convertirla en una excepción tan vana como trasnochada” – P. Bruckner).

A corrupção não entende de vítimas e, quando se acumula tolerante e/ou impunemente dentro de uma sociedade, uma pessoa, em muitos indivíduos ou em determinados grupos, acaba por transmitir a aterradora mensagem de que é aceitável comportar-se mal em grande escala - ali donde a corrupção triunfa, a moral capitula! E, que eu tenha notícia, nenhuma teoria inventada, por brutal que seja (ou tenha sido) em nome de seu próprio idealismo, conseguiu, até o momento, desarraigar com utopias a prática da corrupção daqueles que não conseguiram o que Platão considerava como o mais difícil do mundo: “experimentar e abandonar a vida pública com as mãos limpas”.

O mundo em que vivemos é demasiado complicado para que as fantasias que criamos o mantenham em ordem; e, quando não há castigo para os que cometem abusos e excessos, basta apenas um egoísta para arruinar a cooperação no grupo, diminuindo suas possibilidades de êxito. Isto valeu para os monos, valeu para os hominídeos e vale para qualquer grupo humano hoje – seja uma empresa, seja uma escola, seja um pelotão da infantaria naval, seja a administração pública...

Não olvidemos que tanto os atuais modelos teóricos como as evidências de provas experimentais indicam que, à falta de castigo, a solidariedade mútua e o significado social de uma vida digna não se sustentam na presença de aproveitadores, e decaem. Com o fim de que sobreviva a cooperação social, é imprescindível e iniludível controlar, julgar, condenar e punir os desonestos, quer sejam estúpidos ou maus. Se a responsabilidade e o castigo se eliminam, a sociedade se desmorona (M. Gazzaniga). A mera possibilidade de aplicar uma penalização não somente favorece atuações morais, senão que também funciona como uma forma eficaz de incrementar a cooperação: a moral e a cooperação prosperam se o controle e castigo são possíveis e deixam de funcionar se são eliminados (P. Churchland). Para dizê-lo do modo mais simples possível: a virtude unifica, os vícios dispersam e o castigo corrige.

De outro modo, teremos que esperar, segundo o suplemento à Terceira Parte da Suma Teológica, pela contemplação das penas dos agentes corruptos condenados no inferno para incrementar nossa felicidade (ou desfrutar da caída: «Schadenfreude») e saciar nosso sentimento ou genuína fome de justiça («Quum contraria juxta se posita  magis  elucescant, beati in regno coelesti videbunt poenas damnatorum, ut beatitudo illis magis complaceat»). Pessoalmente, desde meu assumido ceticismo e reconhecendo que, quando penso sobre a corrupção sai o pior de mim, limito-me a agourar - parafraseando a máxima de Jean Meslier - que a praga da corrupção só será definitivamente erradicada quando o último corrupto houver morto estrangulado com as tripas do último sacerdote pedófilo. Mas essa é outra história.  


Notas

[1] Tanto é assim que o comportamento humano também é compatível com a hipótese contrária: alguns políticos e funcionários são claramente honrados, não atacam a moral, não traem a ideia de virtude e não se empenham em destruir tudo aquilo o que uma sociedade decente defende. Embora existam razões suficientes para acreditar que estes tipos de políticos e funcionários sigam sendo uma espécie ameaçada, a mera existência dos mesmos deveria ser suficiente para pôr em dúvida as posturas que tendem a apresentar ao ser humano como uma criatura incapaz de frear o lado mais escuro, amoral e associal de sua natureza - o preço da «caída», a dívida que todos devemos satisfazer por causa do «pecado original».

[2]“La corrupción es un cáncer de la política. Genera descrédito y desconfianza de la ciudadanía en las instituciones, desmoraliza a los trabajadores de los servicios públicos, corrompe a los proveedores que deben convertirse en corruptores y facilita la entrada en el circuito a empresarios delincuentes, abre paso a los procesos de privatización, y a la larga, afecta al conjunto de los ciudadanos contribuyentes, forzados a optar entre pagar servicios básicos como la sanidad o la educación al sector privado o aceptar la progresiva degradación de unos servicios públicos que terminan siendo residuales. La corrupción sociovergente […] no solo es corrupción; es un atentado directo a la calidad de vida de los ciudadanos“.(J. Borja) 

[3] Objetivamente, a corrupção é a arma da hipocrisia que abunda, uma depravação da moralidade que prende nas culturas em que se combinam quatro elementos principais e interconectados: (i) um sistema de relações e de organização, em que os laços e as fidelidades pessoais, corporativas e /ou políticas contam mais que qualquer consideração institucional, jurídica e de interesse geral; (ii) uma forte incapacidade de alguns políticos (e funcionários) para a responsabilidade e o comprometimento ético-social, gerando um crescente e perigoso divórcio entre representantes e representados; (iii) um arrogante narcisismo de determinadas pessoas, uma pervertida egolatria, que é indício de que não se consumou em muitos o desenvolvimento moral que faz de um indivíduo um sujeito moralmente adulto; (iv) uma forte incapacidade para o pensamento abstrato, por exemplo, Estado, ética pública, honradez, dignidade moral etc.

[4] Como se sabe, David Hume tratou de fundamentar a ética no naturalismo, baseando na existência de uma emoção simpática a capacidade de entender e valorar os problemas alheios. Hume empregava o termo «sympathy» («simpatia»), enquanto autores mais modernos, como Martin L. Hoffman, utilizam «empatia». Alguns autores fazem uma distinção entre estes dois termos, entendendo a «simpatia» centrada em um interesse pelos demais sem sentir necessariamente as mesmas emoções que os demais sentem, enquanto que a «empatia» se centra explicitamente no estabelecimento de uma correspondência entre as emoções de quem as manifesta e as do observador, isto é, imaginando-se a si mesmo «na pele de outra pessoa». Simon Baron-Cohen, por exemplo, amplia a definição de «empatia», sugerindo que requer não somente a capacidade de identificar os sentimentos e os pensamentos da outra pessoa, senão também de responder ante seus pensamentos e sentimentos com uma emoção adequada. Também há autores que concebem a «empatia» como uma capacidade neutra (que pode ser algo negativo) e a «simpatia», relacionada com a ação, como uma capacidade quase sempre positiva (Frans de Waal).

[5] Uma breve observação paralela: Se deixamos a um lado o conceito religioso do mal (um conceito moral inexistente na natureza), a alternativa  mais conhecida é a análise da teoria política de Hanna Arendt em termos da «banalidade do mal». Arendt assistiu, em qualidade de observadora, no tribunal de Jerusalém, o juízo contra Adolf Eichmann, um dos principais arquitetos do Endlosung der Judenfrage (a «solução final à questão judia»). Durante o juízo, para Arendt, resultou evidente que este homem não estava louco nem era diferente do resto dos mortais. Era bastante comum. É neste sentido que cunhou a frase: «a banalidade do mal». Ademais, a frase «a banalidade do mal» faz referência ao fato de que muitos alemães foram cúmplices no Holocausto. A muitos deles “no se les pudo acusar de crímenes de guerra más tarde, ya que tan sólo estaban realizando su trabajo, cumpliendo órdenes o simplemente habían sido responsables de un pequeño eslabón en la cadena” (S. Baron-Cohen). Eichmann e seus companheiros burocratas se viram imersos nos detalhes dos planos, como elaborar o horário dos trens que transportavam os judeus aos campos de concentração. Seguiram ordens de forma mecânica e sem questioná-las. Quase nada! Pois bem, a noção da «banalidade do mal» foi posta em tela de juízo. David Cesarini sustenta que Hanna Arendt somente esteve presente no começo do juízo, quando Eichmann queria parecer  o mais normal possível. De fato, “si se hubiese quedado más tiempo habría visto que en los asesinatos hacía uso de su creatividad, no solo se limitaba a seguir órdenes. En ese sentido, el comportamiento de Eichmann necesita explicarse no solo en términos de fuerzas sociales (aunque sean importantes), sino también en términos de factores individuales (su reducida empatía)”. (D. Cesarini, Eichmann: His life and crimes)     

[6] O método dos experimentos empregado neste programa científico serve, sobretudo, para dois propósitos: (i) identificar nossas intuições morais a fim de submeter à prova a validez das grandes doutrinas morais; (ii) ajudar a eliminar as teorias mais irrealistas, as que não têm para nada em conta a «natureza humana».

[7] Não resulta fácil (e tampouco traz publicidade ou fama) identificar ou individualizar um agente corrupto em um sistema de relações e de organização em que há um sem-número de envolvidos direta ou indiretamente, e que se caracteriza por uma insolvência moral compartida, dominações e interesses recíprocos, cumplicidades múltiples e ganâncias colaterais, desonestidades aprendidas e insensibilidades voluntárias. No fundo, trata-se de uma forma de «desindividualização» coletiva. (P. Zimbardo)

[8] Este mecanismo explica os problemas para levar a cabo o Holocausto que tiveram que enfrentar os nazistas. Quando utilizavam métodos muito diretos como disparar frontalmente às pessoas, os soldados vomitavam, sofriam crises nervosas, havia que ajudar-lhes com álcool e drogas, e muitos deles não podiam realizar essas matanças. Quando o método utilizado passou a ser as câmaras de gás, se facilitou enormemente a execução dessas atrocidades. Isto explica também o porquê de um soldado americano, que não daria um sopapo a uma criança indefesa, ser capaz de disparar um míssil desde um F-18 a centos de quilômetros do objetivo e provocar a morte de 200 crianças igualmente indefesas. Nos famosos experimentos Milgram, quando a vítima estava na mesma habitação que o sujeito experimental e este podia ouvir seus gritos, e inclusive tinha que participar ativamente em sujeitar-lhe para administrar a descarga elétrica, a porcentagem de sujeitos que se negou a seguir administrando os shocks eléctricos aumentava notavelmente. Nas palavras de Pascal Bruckner: “Los periodistas llaman «kilómetro sentimental» a la ley según la cual nuestro interés por los demás es inversamente proporcional a la distancia que nos separa de ellos: un muerto en casa es un drama, diez mil allende los mares una anécdota”. Em suma: é necessária a pessoalidade, a cercania emocional, a ação presente e que esta dane um sistema físico cuja antropomorfização seja praticamente imediata para gerar um sentimento de dor, angústia ou mal-estar próprio e, com isto, arrependimento em caso de que o ato seja cometido em primeira pessoa ou aversão em caso de que o ato somente seja percebido.    

[9] Nota bene: Uma das propostas para combater a corrupção consiste na ideia de prevenção feita a partir das emoções (a partir da ação de mecanismos neuronais e psicológicos automáticos), que poderia ter uma efetividade mais ágil e se aplicaria a uma maior quantidade de pessoas. Segundo essa proposta, somente através da geração de cenários para que a sociedade em geral se enfrente cara a cara com as vítimas da corrupção, dar-se-ão as condições emocionais necessárias para que qualquer prática de corrupção comece a reconhecer-se como uma prática criminal comum. Quer dizer, dadas as condições emocionais para que a sociedade reconheça que a corrupção é um delito, estará aberto o caminho para um câmbio cultural de rechaço e aversão a esta prática, reconhecendo-a como um delito mais que atenta contra a integridade das pessoas. E uma vez que se identifiquem os vínculos causais entre um ato de corrupção e as consequências danosas que este ato tem sobre outras pessoas, começaremos a admitir que a corrupção, como todos os crimes, perturba a ordem econômica, social, política e, em últimas, atenta contra o bem-estar da sociedade em seu conjunto. “Por el contrario - afirma E. Salcedo-Albarán e colaboradores (que estudam certas condutas criminais utilizando os neurônios espelho e a Teoria da Mente - ToM) -, “si continúa la situación en que quien comete un acto de corrupción nunca se entera de que dicho acto tuvo implicaciones sobre el bienestar de otras personas, entonces ni siquiera el propio corrupto se reconocerá como criminal o infractor”. O único inconveniente é que o universo de pessoas frente ao qual este tipo de estratégia pode resultar efetivo é mínimo e francamente limitado. Pretender e/ou insistir que todos deveríamos seguir determinadas estratégias, técnicas, fórmulas ou emoções «corretas» e «compartidas» é simplemente um ato de fé ou de um otimismo pasmoso. Porque se isto fosse possível não existiria, por exemplo, a obesidade, nem o consumo de drogas, o alcoolismo ou as corrupções. Explicaríamos às pessoas obesas que têm que levar uma dieta equilibrada e fazer exercício e pronto, solucionado, não haveria obesidade. Aos consumidores lhes explicaríamos que não têm que consumir, que isso está prejudicando sua vida e suas relações; aos corruptos que seus crimes produzem consequências negativas para a sociedade, perturbam a ordem econômica, social e política, e atentam contra a integridade e o bem-estar de outras pessoas... e eles diriam: “É verdade, não me havia dado conta!”… E problema resolvido, mundo feliz. Mas não crê o leitor que um obeso, um consumidor ou um corrupto sabe melhor que ninguém o que deveria fazer? Muitas vezes parece que albergamos a estranha ideia de que se alguém é capaz de fazer uma coisa todo mundo pode fazê-la. Que se alguém é capaz de fazer uma dieta, todos podem fazê-lo. Não nos damos conta de que as pessoas são diferentes em tudo: na velocidade com que digerimos uma salada, na  velocidade com a que corremos, na velocidade com que aprendemos ou abraçamos determinado assunto, em nosso interesse pela comida ou pelo sexo, em nossa capacidade de autocontrole etc. Parece que é impossível que entendamos que, quando um endocrinologista dá umas instruções a 100 pessoas com relação à dieta, as 50 pessoas que as seguem são diferentes das 50 que não as seguem, que a efetividade da dieta variará de pessoa para pessoa, totalmente. (P. Malo)


Autores

  • Atahualpa Fernandez

    Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

    Textos publicados pelo autor

    Site(s):
  • Marly Fernandez

    Marly Fernandez

    Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

    Textos publicados pela autora

    Fale com a autora


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. Comportamento corrupto: Se não sabem, são estúpidos; e, se sabem, são maus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4430, 18 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41869. Acesso em: 19 abr. 2024.