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Por uma perspectiva constitucionalmente adequada da Jurisdição e do Processo Constitucional em um paradigma democrático de Direito

Por uma perspectiva constitucionalmente adequada da Jurisdição e do Processo Constitucional em um paradigma democrático de Direito

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Sumário:Introdução1 – Processo e Constituição; 2 – Princípios Fundamentais na Constituição de 1988, 2.1 – Do Acesso à Justiça, 2.2 – Do Devido Processo Legal, 2.3 – Do Contraditório; 3 – A Jurisdição e o Processo Constitucional diante dos direitos fundamentais da cidadania, 3.1 – Ação Declaratória de Constitucionalidade: uma abordagem constitucionalmente adequada;Referências Bibliográficas


Introdução

Habitamos um mundo cada vez mais complexo e dinâmico, onde as certezas e verdades inquestionáveis não mais existem, resultado de um progresso técnico jamais visto, obrigando-nos, a todo momento, a revermos nossos pontos de vista e relermos velhos conceitos, impondo a problematização de temas até recentemente impensáveis, como, por exemplo, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, a eutanásia e matérias relativas à bioética.

É dentro desse contexto que buscamos estudar e compreender a Jurisdição e o Processo Constitucional, já que os mesmos, ainda mais quando pautados por um Estado Democrático de Direito plural e aberto, encontram-se no centro deste turbilhão de idéias e transformações, assim sendo, antigos dogmas formais devem ser questionados em prol de uma perspectiva libertária da mesma Jurisdição e do mesmo Processo Constitucional.

Direitos e garantias fundamentais do seres humanos, antes apenas inscritos e consagrados em um plano meramente formal, necessitam, hodiernamente, serem materializados, implicando em uma internacionalização e no aperfeiçoamento da proteção jurídico-constitucional, fazendo com que inúmeras novas ações e procedimentos aparecessem com a finalidade de reforçar os ideais do constitucionalismo e assegurar plenitude ao princípio da supremacia da Constituição.

Com base nestes pressupostos é que erigimos como objetivo geral deste artigo procurar demonstrar a dimensão essencial que a Jurisdição e o Processo Constitucional possuem na defesa e proteção dos direitos e liberdades fundamentais da cidadania, buscando revelar que a jurisprudência constitucional, ao discutir temas "perturbadores", dentro de padrões processuais democráticos, acaba por impulsionar a sociedade em direção de uma estrutura mais transparente e, por isso mesmo, mais justa e coerente, já que não nega a diversidade e a alteridade constitutivas de nossos contextos sociais, reforçando o sentimento de Constituição.

Daí, admitirmos como ponto de partida deste trabalho o fato de que "os direitos elencados na Constituição podem ampliar-se, de modo que a juridicidade, a efetividade e a justiciabilidade possam tornar concretos os direitos da cidadania. A jurisprudência constitucional propiciou a ampliação dos conceitos básicos de direitos e liberdades fundamentais." (BARACHO, 2003: 11)

Os direitos fundamentais não podem ficar a mercê da boa vontade e da indulgência dos governantes e dos poderes públicos, não bastando apenas o seu reconhecimento na Constituição, requerendo para a sua aplicabilidade que instrumentos processuais acessíveis e não herméticos estejam à disposição da população, denotando que princípios processuais constitucionais, como os do acesso à justiça e o devido processo legal, entre outros, são basilares em uma compreensão realmente democrática da Jurisdição e do Processo Constitucional, como mecanismos que possibilitem a plenitude desses mesmo direitos fundamentais.

Nessa ordem de idéias, pretendemos demonstrar que, por vivermos em uma época como a contextualizada acima, o estudo sistemático da Teoria Geral da Jurisdição e do Processo Constitucional se revela por demais necessário, fazendo-se mister que reconheçamos as decisões constitucionais mais controvertidas como as mais importantes, pois são nelas que encontramos os temas nevrálgicos para a nossa sociedade, fator este que é essencial para não admitirmos que discursos e/ou institutos jurídico-processuais que tenham como finalidade desqualificar e imutabilizar o elenco dos direitos fundamentais sejam implementados acriticamente, revelando, mais uma vez, a força viva da jurisprudência constitucional.


1 – Processo e Constituição

O estudo que agora iniciamos é de extrema relevância no presente, haja vista a importância que a doutrina e a jurisprudência têm dado aos institutos processuais como forma de garantir o pleno exercício dos direitos fundamentais consubstanciados nos modernos textos constitucionais democráticos, sendo esses mesmos direitos fundamentais entendidos como direitos processuais, assegurados que são por mecanismos e instrumentos jurídico-constitucionais que potencializam, em muito, o seu emprego por todos os cidadãos.

Assim, qualquer análise da Teoria Geral do Processo tem que se remeter, ainda que indiretamente, aos ditames constitucionais, pois são estes que traçam e delimitam seu desenvolvimento, não se admitindo, desta maneira, que os institutos processuais sejam compreendidos em uma perspectiva estanque, isolada, isto é, em um marco democrático o processo demonstra ser não apenas um instrumento formal e técnico a serviço da idéia de justiça, mas também um forte aliado do exercício da liberdade e da igualdade.

Denota-se que é o processo, quando os princípios basilares deste estão inseridos em um paradigma democrático e constitucional, que garante que todos os cidadãos terão, ainda que potencialmente, o mesmo tratamento por parte do aparato do Estado, revelando que somente a partir de uma inter-relação entre Processo e Constituição é que a integridade, coerência e validade do próprio ordenamento jurídico, como um todo principiológico considerado, será concretizada.

Verificamos, desde já, que a garantia de que os institutos processuais observarão as disposições elencadas em uma Constituição democrática pressupõe admitirmos a superioridade ou supremacia do texto maior, sendo todos os mecanismos e noções do processo subordinados às suas determinações, as quais objetivam tornar efetivas as garantias básicas e os direitos individuais.

Ora, a partir dessas considerações, podemos apreender que:

"As garantias constitucionais do processo alcançam todos os seus participantes. O processo como garantia constitucional consolida-se nas constituições do século XX, através da consagração de princípios de direito processual, com o reconhecimento e a enumeração de direitos da pessoa humana, sendo que estes consolidam-se pelas garantias que os tornam efetivos e exeqüíveis." (BARACHO, 2000a: 50)

Essa constitucionalização do processo deve dar o norte para todos os ramos do direito em uma democracia participativa e inclusiva, sendo extremamente necessária diante dos riscos e contingências existentes em nossa sociedade contemporânea, na qual vem imperando uma anomia e um niilismo crescente, pois possibilita que todos os destinatários das decisões e provimentos jurisdicionais reconheçam-se nas sentenças emanadas pelos órgãos competentes, já que as suas pretensões a direitos terão maior oportunidade de serem expostas, avaliadas e debatidas, pública e transparentemente, propiciando uma salutar legitimidade para as instituições estatais, configurando um procedimento que acaba por salvaguardar a noção de liberdade.

Daí afirmar José Alfredo de Oliveira Baracho que:

"O Processo Constitucional tem por objeto essencial a análise das garantias constitucionais, como são vistas atualmente, isto é, como instrumentos predominantemente processuais, dirigidos a reintegração da ordem constitucional, quando ocorre o seu desconhecimento ou violação pelos órgãos do poder." (BARACHO, 2001: 139)

Eis aí alguns pressupostos que nos permitem diagnosticar que tal visão e compreensão do processo está configurada, profundamente, em algumas das garantias fundamentais estabelecidas em nossa Constituição Federal que, entre outras, são aquelas relacionadas com o acesso ao judiciário ou o também denominado direito de ação e defesa (art.5°, XXXV) e ao princípio do devido processo legal e do contraditório (art.5°, LIV e LV), bem como a necessidade de que todas as decisões sejam públicas e fundamentadas, não mais se admitindo os absurdos tribunais de exceção e qualquer outra espécie de mecanismo ou legislação que possa vir a negar a densificação de uma simétrica participação no processo. Diga-se que neste ponto nos limitaremos a indicar ou identificar esses princípios, sem adentrar em pormenores, já que ao longo deste artigo os mesmos serão abordados com maior profundidade e cautela.

Afere-se, claramente, que, no presente, nenhum dos ramos do direito, por estarem os mesmos em um Estado Democrático de Direito plural e complexo, podem deixar de considerar e aplicar, acima de tudo, os dois princípios nucleares de um processo libertário, quais sejam: o que garante, o mais amplamente possível, a todos os cidadãos, o acesso ao Poder Judiciário, e aquele que concretiza em toda a sua dimensão o devido processo legal, já que esses podem ser entendidos como pressupostos necessários ao exercício de todos os outros princípios.

Contudo, convém lembrarmos, para reforçar ainda mais os argumentos supra citados, que a partir do artigo 5º, parágrafo segundo, da nossa Constituição de 1988, podemos vislumbrar que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

Percebe-se, com a passagem acima transcrita, toda a dimensão que a proteção à dignidade da pessoa humana atingiu em nosso ordenamento constitucional, proteção essa que, em grande medida, é efetivada através de instrumentos processuais realmente acessíveis, os quais, quando plenos, são essenciais para permitir o surgimento de uma cidadania mais ativa.

Em outras palavras, o processo, em todo seu âmbito de atuação, deve ser reinterpretado à luz dos princípios elencados na Carta Constitucional de 1988, a qual pressupõe a compreensão da idéia de cidadania em um ambiente de reconhecimento dos direitos fundamentais, os quais são fonte inegável de inclusão e integração social.

Não basta, todavia, que os direitos fundamentais estejam consagrados constitucionalmente, sendo necessário implementá-los e garanti-los na prática, pois do contrário teríamos um esvaziamento do seu significado, o que seria perturbador, já que tais direitos possuem um alto valor simbólico para a democracia constitucional, haja vista carregarem consigo a exigência de justiça, decorrendo daí a importância de um processo voltado para a sua concretização, ou seja, os direitos fundamentais são uma espécie de referência constitucional para toda atividade processual em um Estado Democrático de Direito.

Neste sentido, Flávia Piovesan assinala:

"Com efeito, a busca do texto em resguardar o valor da dignidade humana é redimensionada, na medida em que, enfaticamente, privilegia a temática dos direitos fundamentais. Constata-se, assim, uma nova topografia constitucional, na medida em que o texto de 1988, em seus primeiros capítulos, apresenta avançada Carta de direitos e garantias, elevando-os, inclusive, à cláusula pétrea, o que, mais uma vez, revela a vontade constitucional de priorizar os direitos e garantias fundamentais." (PIOVESAN, 2000: 55)

Princípios processuais, como os citados, a partir de posicionamentos como os retratados anteriormente, revelam-se inatingíveis até mesmo por Emendas Constitucionais que, por algum motivo ou razão, pretendam reduzir seu campo de incidência, já que os mesmos podem e devem ser entendidos como garantias constitucionais pétreas do exercício da cidadania e da própria sociedade, requerendo que estejam sempre presentes quando das decisões judiciais.

A compreensão da Teoria Geral do Processo, em um paradigma democrático-constitucional como o da Carta de 1988, impõe a consideração e a prevalência dos argumentos levantados por todos os cidadãos e jurisdicionados envolvidos, em uma igualdade processual que não se confunde com o direito material pretendido.

Com efeito, o Processo Constitucional tem como escopo primordial e central a defesa e garantia de todos os princípios dispostos em nosso texto maior, sempre dentro de um parâmetro moldado pelo Estado Democrático de Direito, mas dando um relevo maior e significativo à proteção daqueles princípios diretamente referidos aos indivíduos, buscando evitar que atos e decisões ilegítimas das autoridades e entidades estatais possam ficar sem a devida resposta.

É o processo, por exemplo, como igual proteção ao exercício do direito à diferença, entendida esta, em toda a sua amplitude, ou seja, diversidade religiosa, de orientação sexual, de concepções e projetos de vida os mais díspares possíveis, que afirma a circunstância de que toda decisão judicial, em si mesma, tem de estar e ser conforme a Constituição.

Daí, a necessidade premente de que a sociedade civil possua meios e instrumentos processuais de ação e defesa efetiva, como por exemplo, um controle de constitucionalidade eficiente e democrático, o mandado de segurança coletivo, a ação civil pública e a ação popular, entre outros mecanismos, contra a sempre presente possibilidade de arbitrariedades e abusos por parte dos poderes públicos, isto é, de uma provável interferência indesejável do Estado e do mercado na configuração das relações jurídicas e sociais.

Como bem ensina e lembra Aroldo Plínio Gonçalves:

"A primeira proteção que o ordenamento jurídico necessita oferecer aos jurisdicionados é a proteção de seu direito de, quando destinatário dos efeitos da sentença, participar dos atos que a preparam, concorrendo para sua formação, em igualdade de oportunidades." (GONÇALVES, 1992: 173)

Desta maneira, e mesmo que não pretendendo entrar especificamente no campo da filosofia do direito, não há como negar que o processo não pode ser descrito ser ter em mente a idéia da justiça, já que esta se mostra de fundamental importância na formação e justificação de todas as decisões judiciais dentro de um Estado Democrático de Direito.

Sem objetivar a justiça, mesmo que essa seja de difícil determinação e possua diversos significados, o processo se contradiz e, paradoxalmente, ao invés de ser um valioso instrumento para compor os conflitos existentes, acaba por ampliá-los, pois não conseguirá acomodar as diversas pretensões e reivindicações que se manifestam na nossa sociedade.

Além disso, somente quando os procedimentos determinantes das decisões jurídicas forem verdadeiramente democráticos, e potencializarem uma participação positiva dos interessados na formação dessas mesmas decisões, é que poderemos assegurar não a existência de um processo justo abstratamente, mas de um direito processual, que por estar sedimentado nos princípios constitucionais, busca, incessantemente, realizar a justiça concretamente.

"A formulação de um Processo Constitucional que possa ser instrumento de absorção das crises e dos conflitos, a nível institucional, torna-se necessária para o Estado democrático, que somente assim poderá corresponder aos apelos da sociedade contemporânea. Este Processo não será, apenas, instrumento de realizações particularistas, assentadas em concepções individualistas, que se satisfazem, com composições judiciais, que não ultrapassam interesses de minorias ou de grupos." (BARACHO, 1984: 354)

Daí, que a possibilidade de uma participação cidadã o mais crítica e ativa possível é considerada requisito essencial para se ter uma identidade constitucional democrática, e os instrumentos processuais, abrindo espaço de discussão e argumentação a todos, são mecanismos centrais para o direito moderno, permitindo que sejam aplicadas, por exemplo, através de um efetivo procedimento contraditório, as normas aos casos concretos, assegurando a plenitude ao devido processo legal, reconhecendo que só nas situações de aplicação se devem fundamentar as decisões judiciais, em uma noção processual de justiça.

Pasquale Pasquino, ao tratar do Recurso Constitucional Direto existente no ordenamento alemão, ao qual todo cidadão germânico é legitimado, deixa muito claro essas novas perspectivas que o Processo Constitucional, em sua relação com as formas democráticas, tem tido necessidade de assumir.

"Vale la pena di osservare, tornando sul rapporto fra giustizia costituzionale e democrazia, che questo tipo di ricorso sviluppa una dimensione nuova della partecipazione dei cittadini alla vita pubblica. È forse possibile descrivere questo sistema come uno in cui i cittadini hanno di più che i semplici diritti politici di partecipazione al processo legislativo, esercitati attraverso la scelta dei rappresentanti (e del governo) in occasione di elezione periodiche e competitive. Essi hanno anche il diritto di entrare in un dialogo continuo ed ininterrotto con i loro governanti, inviando ricorsi diretti ai giudici costituzionali e ottenendo risposte alle loro domande e rivendicazioni." (PASQUINO, 2002: 364 – 365) (Grifos Nossos)

Seguindo essa linha de pensamento é que podemos verificar que o Processo Constitucional e a Jurisdição Constitucional tem adquirido, a cada dia, maior importância, pois novos temas e questionamentos, os mais complexos e polêmicos possíveis, têm sido trazidos ao debate através da jurisprudência constitucional, jurisprudência esta que, em uma sociedade tão dinâmica como a nossa, assume um papel de destaque crescente [1].

Como leciona José Alfredo de Oliveira Baracho, em seu artigo Processo e Constituição: O Devido Processo Legal:

"Como instrumento de atuação das fórmulas constitucionais, o processo acarreta a transformação de mero direito declarado em direito garantido. O nível constitucional a que são levados muitos dos preceitos processuais possibilita a efetiva defesa das partes e a sustentação de suas razões." (BARACHO, 1980,81,82: 67)

Consequentemente, a relevância que se confere ao tema ora em estudo, justifica o exame sistemático, a ser iniciado, de alguns dos princípios processuais fundamentais inseridos em nossa atual Constituição, com ênfase ao acesso à justiça, o devido processo legal e seu corolário lógico, o contraditório, buscando demonstrar que os mesmos devem ser interpretados de acordo com o respeito à alteridade e à pluralidade, a partir de uma perspectiva principiológica da Constituição, ressaltando que argumentos como os de maior segurança jurídica ou celeridade processual não podem se sobrepor aos direitos e garantias fundamentais de exercício da cidadania, pois a participação dos destinatários na elaboração e aplicação das leis é um valioso mecanismo de controle democrático das instituições, o que nos conduzirá, no final deste trabalho, a uma crítica ao procedimento adotado na denominada Ação Declaratória de Constitucionalidade.


2 – Princípios Processuais Fundamentais na Constituição de 1988

2.1 – Do Acesso à Justiça

O princípio do acesso à justiça, também conhecido doutrinariamente como direito ao exercício de ação e de defesa, possibilita, a grosso modo, que todos os cidadãos compareçam em juízo para a defesa de direitos seus que julguem estarem sendo lesados ou ameaçados. Tal garantia constitucional está consagrada entre nós no artigo 5º, inciso XXXV, o qual dispõe que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."

Denota-se que tal princípio, em um marco democrático como o assumido pelo texto constitucional de 1988, deve ser entendido em sentido amplo, pois para efetivá-lo devem ser tomadas todas as medidas que facilitem o acesso ao Judiciário, daí a importância de legislações, entre outras, que garantem o auxílio judicial aos mais necessitados ou a não cobrança de custas daqueles comprovadamente carentes, sendo que a partir de 1988 os Estados devem implementar, em igualdade de condições com o Ministério Público, as chamadas Defensorias Públicas, como mais uma forma de ampliar as possibilidades de acesso à justiça. [2]

O acesso irrestrito ao Poder Judiciário pode ser visto como uma das maiores aquisições do processo democrático, já que representa a garantia de que todas as pessoas, de modo indistinto e sem discriminações, poderão defender os seus direitos mais elementares, configurando-se em um mecanismo fundamental para assegurar o respeito e a dignidade do ser humano, revelando ser um verdadeiro direito da cidadania.

"O direito de ação consolida-se na compreensão de que todas as pessoas têm de obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais, na concretização e exercício de seus direitos e interesses legítimos. A ação, considerada como direito público constitucional, é aceita pela doutrina." (BARACHO, 2000a: 53)

Há também a circunstância de que em razão da amplitude dada, pela Constituição de 1988, à garantia do exercício do direito de ação e defesa, não há necessidade de que a pessoa, física ou jurídica, esgote todos os recursos da esfera administrativa para comparecer em juízo, não podendo qualquer legislação impor ou determinar condições, além daquelas constitucionalmente previstas quando da declaração do estado de defesa ou do estado de sítio (CF/88, arts. 136 e seguintes), que restrinjam o livre acesso ao Judiciário.

Como bem observam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Cândido Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, ao tratarem da Teoria Geral do Processo:

"Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente, em ‘acesso à ordem jurídica justa’". (ARAÚJO CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1998: 33)

Contudo, não obstante reconhecermos o inegável avanço que a Carta de 1988 produziu, existem ainda inúmeros obstáculos para a positivação plena do princípio processual em tela, haja vista que somente uma parcela ínfima da nossa população vai ao Poder Judiciário para tentar fazer valer os seus direitos, o que apenas dificulta o nosso amadurecimento institucional, refletindo, de certo modo, uma descrença, por parte da nossa sociedade civil, com a instância judicial.

Em síntese, podemos verificar a exigência de uma democrática e transparente justiça processual, pois somente assim o princípio constitucional do acesso à justiça será observado em toda a sua integridade, demonstrando que em torno desse mesmo princípio gravitam todas as demais garantias processuais fundamentais, já que sem ele nenhum dos outros princípios sairá do papel, permanecendo inertes perante um contexto que se mostrará fechado.

Assim, o acesso à justiça reforça a tese de que necessitamos trabalhar com uma idéia de um espaço público de discussão e decisão que se fundamente em processos os mais abertos possíveis, permitindo que todos os temas e questionamentos de interesse da sociedade possam vir a ser levantados e problematizados, em uma prática jurídico-política democraticamente efetiva, sabedores que as garantias de exercícios de direitos inseridas em uma visão processual, como a aqui tratada e admitida, referem-se não apenas aos interesses dos indivíduos, mas concernem a toda a nossa contemporânea sociedade. [3]

Neste mesmo diapasão, valemo-nos, mais uma vez, dos ensinamentos e conhecimentos do Professor Aroldo Plínio Gonçalves, o qual afirma que:

"A instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos." (GONÇALVES, 1992: 171)

Tomado sob esse ângulo mais participativo e democrático, o qual se coaduna com a ordem principiológica encontrada na Constituição brasileira de 1988, ordem esta que marca uma profunda ruptura com o ordenamento constitucional anterior, de viés demasiadamente autoritário e centralizador, o processo mostra-se como um grande discurso, onde todos os cidadãos possuem o direito e a garantia de levarem ao Poder Judiciário os seus argumentos e demandas, revelando que o mesmo processo não é um fim em si mesmo.

Em outros termos, o exercício do direito de ação e de defesa processual é um princípio nuclear da organização jurídico-constitucional em uma democracia participativa, pois potencializa a possibilidade que todos os litígios sejam solucionados em um ambiente de maior clareza, de livre convencimento dos juízes e de publicidade das decisões.

Concluí-se esta passagem, com a afirmativa de que "a segurança da proteção jurídica consiste no fornecimento de benefícios, através de meios jurídicos e financeiros para atender as necessidades, para chegar a uma solução justa, em qualquer litígio, fazendo valer os direitos de defesa, nos mais amplos caminhos que percorre a sociedade civil democrática." (BARACHO, 2000b: 60)

2.2 – Do Devido Processo Legal

Partindo de um ponto de vista histórico, podemos já encontrar, com as devidas cautelas, na famosa Magna Carta inglesa, do ano de 1215, de grande relevo no direito anglo-saxão, as noções centrais do moderno princípio do devido processo legal, pois o referido documento, em seu artigo 39, já dizia que:

"nenhum homem livre será preso ou privado de sua propriedade, de sua liberdade ou de seus hábitos, declarado fora da lei ou exilado ou de qualquer forma destruído, nem o castigaremos nem mandaremos forças contra ele, salvo julgamento legal feito por seus pares ou pela lei do país."

Ainda buscando demonstrar o enorme valor que o princípio em tela possui na trajetória humana em direção a uma justiça mais concreta, devemos também citar os artigos VIII e XI, n°1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, in verbis:

"art. VIII – Toda pessoa tem o direito de receber dos Tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais, que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

art. XI – 1 – Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."

A Constituição brasileira de 1988, assumindo a democracia constitucional, em sua dimensão plural e libertária, consagrou, em seu artigo 5º., inciso LIV, abaixo transcrito, o devido processo legal como uma das garantias fundamentais para a plenitude da cidadania.

"Art.5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...................................................................................

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal." (Grifos Nossos)

Afere-se, a partir dos textos acima expostos, a dimensão que esse princípio possui em um Estado Democrático de Direito, pois o mesmo corporifica, juntamente com a garantia do acesso à justiça e do efetivo respeito ao contraditório, a espinha mestra de todo o nosso arcabouço de garantias processuais constitucionalmente asseguradas. [4]

Tal princípio exige que os instrumentos jurídicos sejam guiados por uma verdadeira isonomia processual, sendo essa pressuposto necessário para a edificação de uma jurisdição democrática, ou seja, faz-se mister, entre outras, que as seguintes garantias, que serão mais analisadas no decorrer deste ponto, por terem sido elevadas à categoria constitucional com o texto de 1988, sejam levadas em consideração e concretizadas:

a)direito a um juiz previamente estabelecido – o juiz natural;

b)direito ao duplo grau de jurisdição;

c)igualdade processual das partes;

d)direito à ampla defesa;

e)direito ao contraditório;

f)publicidade e dever de motivar as decisões judiciais.

Vemos, assim, que o princípio do devido processo legal liga-se não ao direito material controvertido, mas ao processo como caminho realizado em igualdade, como condição adjetiva para que as decisões emitidas pelo Judiciário reflitam, dentro de suas humanas possibilidades, sem qualquer perspectiva ontológica, a idéia de justiça que perpassa todo o paradigma participativo e democrático inserido em nosso texto maior.

Verifica-se que o devido processo legal impõe o respeito ao contraditório, o qual será melhor trabalhado no próximo ponto, garantindo-se às partes, envolvidas em qualquer matéria litigiosa, o direito de realizar e produzir provas, levando para o interior da relação processual todos os elementos que acreditam revelar a verdade, além de poder sustentar os seus argumentos e razões, mesmo que isso signifique manterem-se em silêncio, pois ninguém é obrigado a fazer provas contra si mesmo, dando vida ao postulado constitucional da ampla defesa.

Nessa mesma linha, José Alfredo de Oliveira Baracho escreve que:

"O devido processo exige que os litigantes tenham o benefício de um juízo amplo e imparcial, perante os tribunais. Seus direitos não se medem por leis sancionadas para afetá-los individualmente, mas por disposições jurídicas gerais, aplicáveis a todos aqueles que estão em condição similar." (BARACHO, 1980,81,82: 89)

O devido processo legal, quando efetivado em consonância com o princípio da igualdade de todos perante e na lei, revela ser uma fonte de legitimação para toda a estrutura institucional, pois o mesmo, nessas circunstâncias, ao afastar ou pelo menos imunizar argumentos de base autoritária, acaba por gerar decisões participadas, que por essa razão, são mais legítimas e coerentes.

Daí, o nosso texto constitucional exigir que todas sentenças devam ser motivadas, justificadas, e fundamentadas, pois só assim é possível pensarmos em um controle democrático da jurisdição, isto é, todas essas medidas não visam, intrinsecamente, à proteção tão-somente das partes que estejam no processo mas, sobretudo, demonstrar a toda coletividade a justiça e correção presentes em cada sentença determinada, realçando o fato de que "in una democrazia il potere giudiziario non può sottrarsi a forme di controllo della pubblica opinione..." (ANDOLINA, VIGNERA, 1990: 174 – 175)

É o devido processo democrático que nos possibilita ver que o direito, enquanto ordenamento, ao ser aplicado pelos juízes aos casos concretos, não pode simplesmente seguir, de modo acrítico e absoluto, os textos normativos, não considerando os princípios processuais em tela, pois são esses últimos que garantem a igual chance de ser ouvido e de falar em juízo, fazendo com que as decisões judiciais sejam resultado de uma participação livre e simétrica, onde todos as partes possam controlar o desenvolvimento progressivo dos atos processuais.

Na verdade, o princípio constitucional do devido processo legal, por tudo até aqui afirmado, é entendido como uma das pedras fundamentais de todo o funcionamento da jurisdição, possuindo um papel primordial no que se refere à compreensão da contemporânea Teoria Geral da Jurisdição e do Processo Constitucional.

A guisa de erigirmos uma singela conclusão deste ponto, poderíamos, para ficarmos com um escrito, dizer que:

"A expressão devido processo significa o processo que é justo e apropriado. Os procedimentos judiciais podem variar de acordo com as circunstâncias, porém os procedimentos devidos seguem as formas estabelecidas no direito, através da adaptação das formas antigas aos problemas novos, com a preservação dos princípios da liberdade e da justiça." (BARACHO, 1980, 81, 82: 89)

Tais argumentos serão subsídios importantes, quiçá essenciais, para a compreensão de uma concepção constitucionalmente adequada do que seja o princípio do contraditório, ou seja, a simétrica e potencial participação de todos os afetados pelas decisões judiciais, no plano processual, na conformação das mesmas, refletindo efetivamente a garantia do acesso à justiça e a cláusula do devido processo legal, em uma perspectiva democrática do processo, significando, desde já, que "se a justiça não se apresentar no processo não poderá se apresentar, também, na sentença."(GONÇALVES, 1992:125)

2.3 – Do Contraditório

Como vimos, os princípios processuais devem ser compreendidos a partir da ótica do Direito Constitucional, reafirmando a sólida relação entre Constituição e Processo em um Estado Democrático de Direito, pois neste vários instrumentos do processo estão inseridos no texto fundamental como garantias elementares da cidadania.

É neste contexto que devemos estudar o princípio do contraditório, o qual refere-se a uma técnica instrumental do processo que determina, em um ambiente de democracia plural, que todos os atos do processo sejam pautados por uma bilateralidade, ou seja, as partes não devem ser vistas como puramente opostas ou antagônicas, mas muito mais como colaboradoras, em uma exteriorização do princípio da ampla defesa, em um processo dialético que conjugue a possibilidade do direito de ação com o direito de defesa, significando, em última instância, "una effettiva corrispondenza e equivalenza fra i vari partecipanti, realizata attraverso la distribuzione de posizioni simmetricamente uguali e mutuamente implicate fra loro." (PICARDI, 1998: 679)

Percebe-se que o contraditório decorre, em grande medida, do antigo adágio romano audi alteram partem, que significa que todos os atingidos terão as mesmas chances de influir, com a força de seus argumentos, no livre convencimento do juiz, sendo que o contraditório deve estar presente em todas as fases e atos processuais que possam vir a atingir o exercício de quaisquer direitos das partes envolvidas, conferindo, como já salientado, legitimidade às decisões.

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, ao analisar o tema, afirma que:

"O que garante a legitimidade das decisões são antes garantias processuais atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e a ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz, mas também do Ministério Público e fundamentalmente das partes e dos seus advogados." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 78 – 79)

Ora, denota-se que o relacionamento e a interação entre a Teoria Geral da Jurisdição e do Processo Constitucional e a Teoria Geral do Processo, em virtude do reconhecimento da supremacia da Constituição, têm inserido conceitos e noções clássicas do processo na categoria de garantias fundamentais, já que os mesmos tornaram-se centrais e essenciais para se compreender o próprio funcionamento processual.

Com efeito, a consagração de princípios como o contraditório na esfera dos direitos fundamentais dos homens, só reforça a tese de que não se pode mais admitir mecanismos jurídicos que, ainda que indiretamente, criem obstáculos à efetivação desses mesmos preceitos, constitucionalmente assegurados, os quais, como realçado, são agora norteadores de toda a estrutura do processo.

Nesta ótica, o processo, por ser caracterizado pela observância do princípio do contraditório, passa a ser não mais um dado meramente formal, onde imperava unilateralmente a força impositiva do juiz, mais uma construção deliberativa e participada, em que todos os interessados influem na elaboração do ato final, coroando o desenvolvimento de um processo justo com uma decisão prolatada pelo Poder Judiciário. [5]

Em outros termos, podemos verificar que o "direito ao contraditório decorre da exigência de co-participação paritária das partes, no procedimento formativo da decisum judicial." (BARACHO, 2000a: 58)

É o contraditório que determina que todas as partes envolvidas sejam adequadamente citadas, impondo que as mesmas tenham oportunidades iguais de se manifestarem sobre os fatos e argumentos apresentados antes que qualquer decisão seja tomada pelo órgão judiciário. Assim, na falta desse princípio, todos os atos processuais produzidos sem a sua inteira observação, quando prejudiciais a qualquer dos envolvidos, é fator de potencial nulidade, demonstrando, mais uma vez, a sua relevância, não podendo o mesmo ser desconsiderado.

A grosso modo, podemos descrever, com o auxílio dos mestres processualistas italianos, Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera, o contraditório como um instrumento que objetiva "garantire anche alle parti diverse dall’attore la possibilità di far sentire la loro voce prima che il giudice provveda sulla domanda..." (ANDOLINA e VIGNERA, 1990: 108)

Abra-se, neste momento, um pequeno parêntesis, para salientar-se que todas essas afirmações possuem como pano de fundo o paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual se deve buscar o reforço constante da tolerância com a diferença, com o outro, aferindo que a democracia é um projeto em contínua construção, o que implica ainda mais o respeito e o reforço do princípio do contraditório, haja vista que o mesmo, em uma perspectiva moldada pelo moderno Direito Constitucional, não pode ser mais descrito como tão-somente mais um elemento técnico-formalista configurador do processo, pois agora é elevado à categoria de princípio fundamental do texto constitucional.

Em síntese, podemos determinar que o princípio do contraditório é uma ferramenta processual poderosa do exercício da liberdade e de garantia da Constituição, pois como bem escreveu outro grande estudioso italiano da matéria processual, Elio Fazzalari, ao se referir ao processo: "la sua essenza di struttura privilegiata per la gestione democratica di attività fondamentali; e, dunque, di strumento per la realizzazione e per la salvaguardia delle libertà." (FAZZALARI, 1994: 618)

São esses os pressupostos que nos permitem afirmar, já com vistas ao próximo ponto, que o "Processo Constitucional não é apenas um direito instrumental, mas uma metodologia de garantia dos direitos fundamentais. Suas instituições estruturais (jurisdição, ação e processo) remetem-nos à efetivação dos direitos essenciais." (BARACHO, 2000a: 93)


3 – A Jurisdição e o Processo Constitucional diante dos direitos fundamentais da cidadania

A busca pela concretização dos denominados direitos fundamentais, em uma escala jurisdicional e processual, deve ser entendida como um pressuposto para a efetivação da cidadania, já que há uma interdependência entre o exercício pleno desses direitos com a própria idéia de uma democracia constitucional.

É a democracia vista como se fosse um "direito" consolidado no texto constitucional de modo positivo, tornando-se, em grande medida graças a uma dinâmica jurisdição constitucional, mais do que uma simples teoria política ou filosófica, afirmando-se, concretamente, através da realização dos direitos básicos à dignidade humana.

"El constitucionalismo actual no sería lo que es sin los derechos fundamentales. Las normas que sancionan el estatuto de los derechos fundamentales, junto a aquéllas que consagran la forma de Estado y las que establecen el sistema económico, son las decisivas para definir el modelo constitucional de sociedad." (PÉREZ LUÑO, 1995: 19)

Deve existir então, como já dito anteriormente, arenas públicas de debate e decisão, nas quais as decisões judiciais implementadas tenham de ser justificadas em uma estrutura que preserve e amplie os princípios centrais de um processo democrático, característica esta que determinará novos padrões de aprendizado institucional, evitando que o discurso do Estado Democrático de Direito se torne vazio de sentido.

Evidencia-se, então, que em época de uma crescente internacionalização do Processo e da Jurisprudência Constitucional, o sentido de cidadania necessita ser reconstruído a partir de uma base não assistencialista, a qual equipara o cidadão a um menor impúbere, como se este necessitasse de um "tutor", reconhecendo a igualdade dos indivíduos enquanto membros plenos, ativos e responsáveis de uma dada sociedade, e ao mesmo tempo reconhecendo e tematizando o pluralismo existente, em espaços locais mais próximos dos indivíduos e de suas relações intersubjetivas, valorizando os fundamentos de uma jurisdição constitucional em um Estado Democrático de Direito.

A cidadania impõe a concretização dos direitos fundamentais, demonstrando que a simples menção a estes pode nada significar, se junto com o reconhecimento textual, não forem asseguradas garantias potenciais e plausíveis de torná-los efetivos, ou seja, o ponto central, quando da interpretação e aplicação das normas legais, é a dignidade do ser humano, o que está explicitamente consagrado na Constituição brasileira de 1988. [6]

Vejamos, com José Alfredo de Oliveira Baracho, a importância que uma proteção jurisdicional efetiva tem na esfera dos direitos fundamentais, a citação é um pouco longa, mas ver-se-á logo o seu interesse:

"O reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais não é suficiente, desde que não vem acompanhado de garantias que assegurem a efetividade do livre exercício de tais direitos. As liberdades adquirem maior valor quando existem garantias que as tornam eficazes.

O sistema de proteção dos direitos fundamentais concretiza-se na sua viabilização em sede jurisdicional. O bloco garantista consagra mecanismos variados, alguns têm caráter abstrato. Certos instrumentos ou previsões constitucionais não estão vinculados a uma vulnerabilidade real e concreta de um direito fundamental, mas são condições e requisitos, de caráter geral, para atuação dos poderes públicos ou que limitam sua atuação.

Os direitos fundamentais vinculam o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, e a própria jurisdição, como direitos diretamente aplicáveis. É neste sentido que a jurisdição em suas distintas instâncias, em razão das normas constitucionais, está obrigada à imediata aplicação dos direitos fundamentais." (BARACHO, 2000a: 100 – 101)

Seguindo essa linha de raciocínio, é importante lembrarmos que, não obstante a redemocratização ocorrida com a promulgação da atual Constituição e, com a presença no cenário político-jurídico de novas linguagens e atores, ainda se faz necessário um implemento verdadeiro dos princípios processuais democráticos inseridos no texto constitucional vigente, já que entendemos ser a consolidação desses um fator relevante para sairmos da "simples" proclamação dos direitos e liberdades fundamentais e passarmos para um plano de realizações plenas dos mesmos, configurando uma Justiça Constitucional que se revele, em tese, como um instrumento "pedagógico" contra idéias autoritárias do exercício do poder.

Sendo assim, mostra-se primordial na compreensão dos direitos da cidadania no Brasil o marco de que estes terão uma possibilidade maior de realização quando transformações profundas, em inúmeras dimensões, tornarem os procedimentos jurisdicionais e decisórios mais acessíveis a todas as camadas sociais, imperando uma gestão plural e democrática dos temas e interesses públicos.

Desse modo, a formação de uma Jurisdição Constitucional mais independente e atuante, assumindo posições mais firmes e críticas em relação aos atos da Administração Pública, é um dos elementos-chave na inserção da sociedade civil organizada brasileira em um contexto mais solidário e justo, permitindo uma inclusão social verdadeiramente democrática, já que a mesma se alicerçará na garantia de que os princípios mestres do processo serão empregados para reforçar a integridade, a coerência e a supremacia das disposições constitucionais.

Desta sorte, a pretendida concretização do exercício dos direitos e liberdades fundamentais do homem está, intrinsecamente, vinculada à exigência de que sejam edificados mecanismos jurídico-processuais que possibilitem, em princípio, que quaisquer violações ou abusos que venham a ocorrer no âmbito desses mesmos direitos sejam passíveis de controle e aferição por parte dos órgãos do Poder Judiciário, isto é, a garantia constitucional reconhecida aos direitos fundamentais implica, óbvia e logicamente, na existência de um instrumental de defesa e proteção, o que nos remete, novamente, para a importância de compreendermos os institutos processuais a partir da Constituição.

Como vislumbra o Professor Marcelo Cattoni:

"Ao possibilitar a garantia dos direitos fundamentais processuais jurisdicionais, nos próprios processos de controle jurisdicional de constitucionalidade, em via incidental ou principal, a jurisdição em matéria constitucional também garantirá as condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos, pela aplicação a si mesma do princípio do devido processo legal, compreendido, aqui, como ‘modelo constitucional do processo.’" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 155 – 156)

Em suma, a estruturação da Jurisdição e do Processo Constitucional, como meios democráticos que objetivam a efetiva aplicação dos direitos fundamentais, determina uma noção tautológica das garantias e dos direitos por elas assegurados, ou seja, direitos garantidos implicam na garantia dos direitos. Tem-se assim, caracterizada a circunstância de que os problemas e questionamentos que giram em torno da efetividade e aplicabilidade dos direitos fundamentais vinculam-se, direta e indiretamente, ao papel exercido pela referida Jurisdição e Processo Constitucional.

Eis aí, em rápidas pinceladas, os pressupostos que nos permitem verificar que:

"Torna-se cada vez mais importante o aperfeiçoamento dos institutos que completem o papel do processo constitucional na efetivação da cidadania plena. Como titulares de direito, os cidadãos, no exercício da cidadania plena, não podem ser impedidos do gozo de seus múltiplos direitos, reconhecidos e elencados na Constituição e na legislação infraconstitucional, mesmo daqueles cujas leis não foram promulgadas ou que se tornem menos efetivos e eficazes na ausência destas." (BARACHO, 1995: 55)(Grifos Nossos)

3.1 – Ação Declaratória de Constitucionalidade: uma abordagem constitucionalmente adequada

Pautando-nos pela linha de pensamento delineada no ponto anterior e em todos os posicionamentos desenvolvidos até esta parte, e assumindo o pressuposto fundamental de garantia democrática da supremacia constitucional, é que passaremos agora a analisar a Constituição de 1988, no que tange à aferição de compatibilidade e adequação das leis e atos normativos aos parâmetros e princípios inseridos no texto maior, vislumbrando que o mesmo texto constitucional adotou um sistema híbrido, misto, configurando uma estrutura complexa, onde convivem as formas concentrada/direta e difusa/incidental de controle de constitucionalidade.

Na espécie difusa de controle, a qual é resultado da influência de doutrina constitucional norte-americana, estando já presente durante a vigência da primeira Constituição Republicana (1891), determinada, claramente, desde a edição da Lei n° 221, de 20 de novembro de 1894 [7], qualquer órgão jurisdicional, juiz ou tribunal, é competente para averiguar a constitucionalidade de normas legais que tenham de ser aplicadas em casos concretos, ou seja, quando o julgador reconhece a inconstitucionalidade de determinada lei, deixa de aplicá-la naquela situação específica, sendo o efeito de tal procedimento restrito às partes em tela (eficácia inter partes). É a declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum. Para que ocorra o denominado efeito erga omnes a partir de tal decisão, faz-se mister que o Supremo Tribunal Federal julgue definitivamente a matéria e que, além disso, o Senado Federal se pronuncie sobre a suspensão de sua execução (CF/88, art.52, X).

Ora, uma análise, ainda que por demais brusca e sucinta, da nossa conformação constitucional, revelará, de plano, que o sistema difuso é um mecanismo de controle de constitucionalidade que já fixou firmes raízes na prática institucional brasileira, densificando-se, na atualidade, essencialmente através do Recurso Extraordinário (art.102, III), demonstrando ser um valioso instrumento processual de dinâmica constitucional, com o qual os cidadãos podem levantar as suas pretensões e seus questionamentos, contribuindo para a formação do que Häberle chamou de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. (HÄBERLE, 1997)

"Assim, no País, nosso controle de constitucionalidade pode dar-se como preliminar de mérito em qualquer processo, cível ou penal, de tal forma que todo cidadão tem o direito de se opor ou de argüir uma inconstitucionalidade e todo juiz ou tribunal, da primeira à última instância, não só pode mas deve, como atividade típica e função intrínseca à jurisdição brasileira, apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo de qualquer espécie, negando a aplicação de ‘comando’ eivado de inconstitucionalidade." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 123)

Já o controle concentrado, também conhecido como controle abstrato, de inspiração européia, kelseniana, que já pode ser vislumbrado, em princípio, na chamada representação interventiva da Constituição de 1934, passando depois por um longo processo de maior concretização, adquirindo contornos mais nítidos com a representação de inconstitucionalidade consagrada na Emenda Constitucional n°16/1965, consolidando-se plena e efetivamente naqueles legitimados da Constituição de 1988, é, em síntese, aquele realizado originária e diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, na função precípua de Guardião da Constituição, conforme determinação constitucional disposta no artigo 102, caput, da Lei Maior. Nessa forma de controle, quando declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo examinado, exame esse que independe de uma situação concreta, sucedendo uma aferição de compatibilidade em tese, a mesma é retirada do ordenamento pátrio, tendo a sua decisão eficácia erga omnes. [8]

É no âmbito desse controle concentrado de constitucionalidade que podemos verificar o implemento de substanciais transformações, as quais vão desde a ampliação do rol de legitimados para propor as ADIns (art.103, I a IX) até o surgimento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade, passando por propostas centralizadoras como a da Súmula Vinculante e pelas disposições normativas, de duvidosa constitucionalidade [9], encontradas em recentes legislações (Leis n°. 9868 e 9882, ambas de 1999), tendo um profundo impacto no que concerne ao nosso tradicional modelo de controle de constitucionalidade das leis, em uma acentuada tendência de forte reforço do modelo abstrato de controle.

Neste sentido, o atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, expoente máximo dessa vertente que pugna pela ampliação e predomínio do controle concentrado, empregando um sofisticado arsenal teórico para restringir o controle difuso, pretendendo demonstrar que o modelo concentrado propicia maior segurança jurídica, pois mais célere e uniforme em termos processuais, afirma que a Constituição Federal de 1988, ao aumentar o números dos que possuem legitimidade ativa para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, como acima exposto, reduziu sensivelmente o alcance do controle incidental/difuso, "permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas." (MENDES, 1997: 13)

Neste mesmo tom, Nagib Slaibi Filho afirma que com a adoção da ADC, o "poder constituinte albergou a pretensão de se fazer induvidosa a constitucionalidade do ato normativo federal e, em conseqüência, excluir a eficácia do controle incidental de constitucionalidade sobre ele." (SLAIBI FILHO, 2000: 114) [10]

É dentro e a partir desse contexto, e sempre tendo como pano de fundo os raciocínios em pontos anteriores elaborados, que devemos buscar compreender a Emenda Constitucional n°. 3, de 17 de março de 1993, que entre outras alterações constitucionais, introduziu a já mencionada Ação Declaratória de Constitucionalidade, sendo a mesma, além da Ação Direta de Inconstitucionalidade, regulada, posteriormente, em seu processo e julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, pelos dispositivos elencados na referida Lei nº 9.868, de 10 de Novembro 1999.

Desse modo, a partir dessa Emenda Constitucional, o artigo 102 da vigente Constituição da República passou a ter a seguinte redação:

"Art.102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar originariamente:

a)a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;

...................................................................................

§ 2°. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo."

Uma observação inicial acerca da problemática em torno das ADCs já pode ser aqui formulada, haja vista que em nossa estrutura e organização jurídica todas as leis e atos normativos devem ser, até decisão em contrário proferida por autoridade ou órgão competente, presumidos como constitucionais por aqueles que são seus destinatários, sendo a boa-fé do cidadão que age em consonância com essa noção preservada. [11]

Como doutrinava o mestre Lúcio Bittencourt:

"É princípio assente entre os autores, reproduzindo a orientação pacífica da jurisprudência, que milita sempre em favor dos atos do Congresso a presunção de constitucionalidade. É que ao Parlamento, tanto quanto ao Judiciário, cabe a interpretação do texto constitucional, de sorte que, quando uma lei é posta em vigor, já o problema de sua conformidade com o Estatuto Político foi objeto de exame e apreciação, devendo-se presumir boa e válida a resolução adotada." (BITTENCOURT, 1997: 91)(Grifos Nossos)

Nesse sentido, o também saudoso Celso Agrícola Barbi ensinou:

(...) "quando há dúvida quanto à constitucionalidade da lei, deve ela ser aplicada, pois presumem-se constitucionais as leis, presunção essa que só deve ceder quando em inequívoco vício." (BARBI, 1968:43)

Com efeito, a lógica presente nas Ações Declaratórias revela-se em aberta contradição não só com a idéia de presunção de constitucionalidade, mas com toda a nossa tradição de controle difuso, pois pode vir a possibilitar que uma lei se torne imune a argumentos de inconstitucionalidade, reduzindo de maneira drástica, o alcance desse controle em sede incidental, já que no caso de o Supremo Tribunal Federal decidir pela procedência do pedido contido em uma ADC, todo cidadão que já havia recorrido processualmente ao judiciário, pretendendo o reconhecimento de um direito que julgava estar sendo ofendido pelo instrumento normativo que teve sua constitucionalidade declarada, não mais terá meios jurídicos de fazer as suas pretensões serem ainda examinadas pelos órgãos executivos e judiciais, como pode ser depreendido do parágrafo segundo do artigo 102 do texto constitucional.

Esta conclusão também se impõe pela leitura do artigo 26 da Lei n° 9868/99, in verbis:

"Art. 26. A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória."

De fato, todas as recentes transformações ocorridas em nosso sistema de controle de constitucionalidade têm sido caracterizadas, ainda que sutilmente, por um discurso que objetiva negar o modelo difuso de aferição de compatibilidade das leis com o texto fundamental, pautando-se por uma contínua concentração no âmbito do Supremo Tribunal Federal das questões envolvendo o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, além de dar à nossa mais alta Corte poderes discricionários cada vez mais amplos no que diz respeito aos efeitos de suas decisões, o que pode ser verificado com o estudo dos dispositivos contidos nos artigos 27 e 28 da mesma Lei n° 9868/99, circunstâncias essas que, em nosso entendimento, são de flagrante inconstitucionalidade, pois como já doutrinava o saudoso Afonso Arinos, "lei que amplia jurisdição de tribunal é inconstitucional." (MELO FRANCO, apud FRANCO BAHIA, 2000: 51)

Corroborando ainda mais com essas tentativas crescentes de desprestigiar e desqualificar o controle difuso de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro, podemos citar alguns posicionamentos jurisprudenciais [12], nos quais afere-se a plausibilidade de impetração da ação rescisória, respeitado o prazo desta, para rescindir julgados que deixaram de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional diante da situação concreta de aplicação, se posterior declaração julga constitucional essa mesma lei, desconstituindo, em princípio, anterior decisão de inconstitucionalidade incidental, o que praticamente inviabilizaria, de maneira plena, qualquer efeito do controle difuso de constitucionalidade.

"Nesses casos, portanto, a sentença que deixa de aplicar uma lei ‘x’ em determinado caso concreto, sob o argumento de sua inconstitucionalidade, torna-se passível de demanda rescisória, uma vez a constitucionalidade da lei inaplicada venha a ser reconhecida pelo Supremo." (FIGUEIREDO GONÇALVES, 2002:535)

A nosso ver, tais abordagens jurídicas, como anteriormente afirmado, fortalecem demasiadamente o controle jurisdicional concentrado, em detrimento do tipo difuso ou incidental, o qual, em razão de sua maior abertura e proximidade com a coletividade, permite uma constante e salutar atualização interpretativa do texto constitucional, que em um paradigma democrático de direito, como o consubstanciado na Constituição de 1988, deve estar sempre apto a ser relido e tematizado por todos os interessados e destinatários do mesmo.

Assim, a partir da reflexão até aqui realizada acerca da conseqüências jurídico-institucionais de um instrumento como a Ação Declaratória de Constitucionalidade, percebemos que a mesma é fruto de uma interpretação no mínimo equivocada e imperfeita dos princípios basilares inclusos no texto maior de 1988, chegando tal instrumento a ter uma infeliz semelhança com a famigerada avocatória da Emenda Constitucional n°7, de 1977, ainda em tempos de autoritarismo, já que o mesmo instituto e a forma de seu processamento enfeixam competências extremamente amplas nas mãos de pouco legitimados (art.103, §4° da CF/88 e art.13 da Lei n° 9868/99).

Eis aí alguns pressupostos que nos permitem diagnosticar que tal mecanismo jurídico, que nasceu com a finalidade de dar mais celeridade, uniformidade e certeza às decisões do judiciário, afronta profundamente garantias fundamentais estabelecidas em nossa Constituição Federal, como aquelas em passagens anteriores abordadas, além de chocar-se com a presunção de constitucionalidade, revelando-se uma ação anômala e desconhecida em nosso ordenamento, pois na mesma não é possível identificar-se o requerido, demonstrando ser um grave obstáculo à dinâmica e evolução do ordenamento jurídico, desejando congelar a nossa identidade constitucional.

Todavia, aqueles [13] que defendem o emprego do instrumental em tela, afirmam que essas críticas não se justificam, pois as ADCs seriam um progresso natural do nosso controle concentrado de constitucionalidade, sendo um desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial inevitável da anterior representação de inconstitucionalidade (EC.16/65), a qual era de exclusiva iniciativa do Procurador-Geral da República. Na visão destes, a grosso modo, quando o Procurador-Geral, no uso de suas atribuições constitucionais, encaminhava ao STF representação de terceiros, com o parecer em contrário, estava a solicitar, em realidade, uma declaração de constitucionalidade, o que demonstraria que a mesma seria portadora de um caráter dúplice, além de permitir afirmar que as ADCs não são nenhuma novidade, mas tão-somente uma evolução, a qual começou a se delinear necessária a partir da decisão proferida na Representação n° 1349, em que essa condição de duplicidade foi em muito reduzida, pois entendeu o STF naquela oportunidade que a representação era prevista, em princípio, para a postulação de inconstitucionalidade, não podendo o seu titular discordar, desde o início e frontalmente, das inconstitucionalidades argüidas. [14]

Na perspectiva de Gilmar Ferreira Mendes, uma análise restrita e superficial dos aspectos da representação de inconstitucionalidade e a supra citada decisão do Excelso Pretório, impuseram, em sede de controle abstrato de normas, "a positivação de um instituto específico no ordenamento constitucional." (MENDES, 1994:79)

Ainda nesta linha "meramente evolutiva", o então Ministro do STF, Paulo Brossard, quando do julgamento da ADC-1, proferiu voto a respeito da Ação Declaratória de Constitucionalidade no Brasil, do qual nós reproduzimos abaixo algumas passagens:

"De modo que vejo na atual criação legislativa um complemento, um enriquecimento, um aperfeiçoamento do nosso sistema tal como ele vinha evoluindo." (...) "A criação da ação direta de constitucionalidade vem completar, vem fazer companhia à ação direta de inconstitucionalidade e que representou avanço notável e extremamente útil ao aperfeiçoamento do nosso sistema jurídico." [15]

Ora, não obstante a sofisticação de alguns dos argumentos supra expostos, entendemos que a introdução da ADC entre nós resultou mais de uma opção político-ideológica, do que de uma evolução, no sentido positivo do termo, já que não há como trabalhar com conceitos sem considerar o contexto em que estão inseridos, no caso o paradigma do Estado Democrático de Direito encontrado na Constituição "cidadã" de 1988, o qual marca uma profunda ruptura com as concepções jurídicas anteriores, já que, à luz dos princípios consagrados constitucionalmente, tomam enorme vulto garantias processuais fundamentais e inafastáveis de participação dos cidadãos, seja tanto na esfera política como na jurisdicional, revelando que todos estamos autorizados a sermos intérpretes do texto constitucional, respaldando a nossa tradição de controle difuso, circunstância essa que um instituto como a Ação Declaratória de Constitucionalidade parece desconhecer, haja vista o reduzido rol de "esclarecidos" que são titulares do direito, quiçá privilégio, de propositura da mesma.

Em outros termos, como ensina Cattoni de Oliveira, "há muito tempo questões jurídicas deixaram de ser tão-somente um problema de experts para se tornarem questões de cidadania." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000: 105)

Contudo, o que temos observado no Pretório Excelso é uma radical opção por mecanismos e interpretações que apostam na "qualidade" dos intérpretes, "desqualificando" o controle difuso, que a despeito de todas as recentes alterações, continua sendo aquele que se mostra o mais apto em uma perspectiva constitucionalmente adequada, pois não oculta a complexidade e o pluralismo constitutivos da nossa sociedade, permitindo que toda e qualquer pretensão a direito seja levantada, problematizada, em uma democrática abertura temática.

Essas assertivas são confirmadas, em certa medida, por um trecho do voto, quando da questão de ordem na já citada ADC-1, do também então Ministro Francisco Rezek, ao discorrer sobre o motivo que levou à necessidade da instituição da Ação Declaratória na EC/3 de 1993, que em sua perspectiva era o grande número de ações que haviam sido impetradas por todo o Brasil no caso dos 147% dos aposentados, desenhando, ousaríamos dizer, o que Marcelo Cattoni, parafraseando Häberle, denominou de uma "sociedade fechada de intérpretes da Constituição".(CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:124)

"Foi para evitar a reprodução de situações como aquelas que em passado recente o país enfrentou, foi para simplificar o procedimento, foi para fazer com que quem tem qualidade para isso, o mais cedo possível dissesse uma palavra final sobre a questão controvertida, que o legislador entendeu instituir a declaratória de constitucionalidade." (Grifos Nossos) [16]

Verifica-se na passagem acima, a dificuldade em se admitir que a sociedade civil, como um todo, seja co-intérprete necessária do texto maior, além de vislumbrarmos a crença iluminista em que um método ou racionalidade infalível, no caso em questão, a ADC, seria capaz de produzir, ontologicamente, certeza e segurança jurídica, na ilusão de que uma decisão, por si só, apenas por se fundamentar no argumento da "autoridade qualificada" [17], se impusesse, em uma inútil tentativa de se exorcizar o risco da divergência, não reconhecendo que a democracia requer esse potencial dissenso em um consenso.

Como diria o próprio Peter Häberle:

"Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição." (HÄBERLE, 1997: 15)

Além do refutado argumento de autoridade exposto acima, aqueles que advogam a favor da adoção da ADC no ordenamento jurídico brasileiro e dos parâmetros processuais estabelecidos para tal instrumento constitucional pela Lei n.º 9.868/99, também assinam as teses de que a Constituição de 1988, ao ampliar, como já citado, o rol dos legitimados para proposição de ADIns, teria feito uma opção pelo sistema concentrado, em detrimento do tradicional controle incidental ou difuso, e de que as ADCs seriam tão-somente uma ADIn de sinal invertido.

O argumento de que a ampliação dos legitimados teria denotado uma redução da importância do sistema difuso é por demais frágil, já que o mesmo raciocínio pode ser entendido em sentido inverso, isto é, o fim do monopólio de propositura da ADIn por parte do Procurador-Geral da República pode significar uma escolha do constituinte de reforçar a "difusão" do próprio controle concentrado. Quando ao segundo argumento, cabe dizer que se a ADC se reduz a uma ADIn em sentido inverso, ou como preferem muitos que as duas são "ações gêmeas", idênticas, porque o tratamento diverso quanto aos legitimados para propositura dessas ações constitucionais? Porque a restrição quanto aos demais legitimados do art. 103 da Carta de 1988 no que toca à proposição de ADCs?

À primeira vista, parece-nos que a identidade constitucional é absorvida pelo governo federal, como se a questão constitucional fosse um problema apenas da alçada desta esfera governamental, ou ainda, como se o debate público fosse prejudicial à configuração do sujeito constitucional, impondo-se a supremacia da Lei Maior por uma autoridade que se entende não questionável. Ao contrário da consideração da divergência salutar a um Estado Democrático de Direito, prefere-se assumir posição que objetiva eliminar ou exorcizar a complexidade da modernidade e os riscos a ela inerentes, em uma clara privatização do público.

Ainda nessa linha de uma identificação do público com a dimensão estatal, devemos tratar da principal crítica produzida em relação à adoção do mecanismo jurídico em tela, ou seja, do provável desrespeito e afronta aos direitos e garantias constitucionais processuais fundamentais, os quais dão o norte a uma jurisdição inserida em um paradigma democrático de direito.

No que tange a essa hipótese de que o procedimento adotado nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade atinge direitos essenciais da cidadania, como os supra lembrados, seus apologistas rebatem com o argumento de que além das ADCs proporcionarem maior economia processual, celeridade e segurança jurídica às decisões do Poder Judiciário, a referida espécie de ação constitucional configuraria o que se denomina de um processo objetivo, isto é, sem partes nem contraditório, no qual há um requerente mas não a figura do requerido, haja vista que a mesma, assim como as ADIns, encontram-se no âmbito do controle concentrado, não objetivando, desta forma, a proteção de direitos subjetivos, mas sim a defesa direta da ordem constitucional, teses essas que se têm mostrado vencedoras no Pretório Excelso.

"O controle normativo abstrato, ou por via de ação, faz instaurar – consoante proclamado pela doutrina e pela própria jurisprudência deste Tribunal – um processo objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações jurídicas concretas ou individuais." (Reclamação n°. 354 – RS, Relator Ministro Celso de Mello, RTJ, 136: 469)

Nesse mesmo diapasão, doutrina o Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

"A ação declaratória de constitucionalidade configura típico processo objetivo, destinado a elidir a insegurança jurídica ou o estado de incerteza sobre a legitimidade de lei ou ato normativo federal. Os eventuais requerentes atuam no interesse de preservação da segurança jurídica e não na defesa de um interesse próprio." (MENDES, 1994: 53)

Tais argumentos não subsistem diante de uma concepção constitucionalmente adequada do que seja o princípio do contraditório, ou seja, a simétrica e potencial participação de todos os afetados pelas decisões judiciais, no plano processual, na conformação das mesmas, refletindo efetivamente a garantia do acesso à justiça e a cláusula do devido processo legal, em uma perspectiva democrática do processo, significando, em última instância, "la possibilità, cioè, per ciascuno dei destinatari del provvedimento giurisdizionale di partecipare al relativo procedimento formativo su un piano di reciproca e simmetrica parità..."(ANDOLINA e VIGNERA, 1990: 103)

Nesta mesma linha, Fazzalari, ao caracterizar a estrutura do contraditório, afirma que esta ocorre

"quando in una o più fasi dell’ iter di formazione di un atto è contemplata la partecipazione non solo – ed ovviamente – del suo autore, ma anche dei destinatari dei suoi effetti, in contraddittorio, in modo che costoro possano svolgere attività di cui l’autore dell’ato deve tener conto; i cui risultati, cioè, egli può disattendere, ma non ignorare." (FAZZALARI, 1994: 83)

Ora, como visualizar o princípio do contraditório na redação do parágrafo segundo do artigo 102 do texto constitucional após a EC 3/93, ou nas disposições do artigo 26 da Lei n° 9868/99, já que os mesmos não permitem que qualquer cidadão, caso seja destinatário, ainda que não diretamente, das decisões proferidas pela nossa Suprema Corte em sede de ADC, possa vir a aduzir e defender razões que qualifiquem de essenciais na tutela de seus direitos, isto é, todos os argumentos levantados na situações concretas de aplicação são desconsiderados em prol de uma pretensa segurança jurídica, sendo a mesma edificada em um "germânico" processo objetivo.

O princípio do contraditório, como ressaltado, em um paradigma democrático participativo como o da Carta de 1988, impõe a consideração e a prevalência dos argumentos levantados em casos concretos únicos, que não se repetem, onde todos os jurisdicionados envolvidos, em uma igualdade processual que não se confunde com o direito material pretendido, podem receber uma "sentença que é ato do Estado, mas que não é produzida isoladamente pelo Estado e sim resulta de toda uma atividade realizada com a participação, em garantia de simétrica paridade, dos interessados, ou seja, dos que irão suportar os seus efeitos." (GONÇALVES, 1992: 188)

Reforçando essa compreensão, podemos dizer com Habermas que:

(...) "numa aplicação de normas, sensível ao contexto, a imparcialidade do juízo não está garantida pelo simples fato de perguntarmos acerca daquilo que todos poderiam querer, e sim pelo fato de levarmos adequadamente em conta todos os aspectos relevantes de uma situação dada. Por isso, a fim de decidir quais normas podem ser aplicadas a determinado caso, é preciso esclarecer se a descrição da situação é completa e adequada, englobando todos os interesses afetados." (HABERMAS, 1997: II, 246)

Tais entendimentos conseguem demonstrar, não obstante uma grande sofisticação teórica, a fragilidade do argumento de que a ADC configuraria um processo objetivo, o qual não atingiria direitos subjetivos, já que inserido no controle de constitucionalidade abstrato, pois como acima demonstrado, o contraditório não se confunde com o direito material, realizando-se na esfera processual, não sendo mister a existência de interesses divergentes, mas que todos os interessados possam influir no livre convencimento dos magistrados, densificando o antigo adágio audi alteram partem, circunstâncias essas, que não podem ser encontradas no instrumento jurídico-constitucional em exame.

Além disso, o raciocínio de que existiria uma analogia entre o procedimento adotado nas ADIns e o das ADCs também não procede, haja vista que o "contraditório ressalta do artigo 103 e parágrafos, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, sendo que o § 3º. expressamente determina a prévia citação do Advogado-Geral da União..."(GONÇALVES, 1992: 118)

Alia-se ao até aqui exposto, demonstrando ainda mais o desrespeito ao princípio do contraditório, o fato de que se não bastasse a eficácia erga omnes e o efeito vinculante, no que se refere aos órgãos do Judiciário e do Executivo, das decisões definitivas de mérito em sede de ADCs, conforme se depreende da redação dada pela polêmica EC 3/93, ao já citado parágrafo segundo, artigo 102, da atual Carta da República, temos ainda as disposições contidas no artigo 21 da Lei n° 9868/99, que ao tratar da medida cautelar no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade dispõe que:

"O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo."

Ora, como se pode verificar, o já duvidoso § 2º., do art.102, diz muito claramente que o efeito vinculante [18] e a eficácia contra todos só se produzirá após a decisão definitiva de mérito, todavia, com o texto do art. 21, acima reproduzido, o Supremo Tribunal poderá conceder, em relação ao Judiciário, a força vinculante em atos cautelares, em uma flagrante e inconstitucional absorção de competência dos demais órgãos judiciais, além de impossibilitar que os cidadãos afetados por essas medidas possam se fazer presentes, já que os seus processos serão suspensos até o julgamento final da ADC.

Afere-se que a tese de que a Ação Declaratória de Constitucionalidade, por se encontrar na esfera do processo objetivo, não atingiria o princípio do devido processo legal em toda a sua extensão, revela-se insustentável, pois com a suspensão dos processos já iniciados nas primeiras instâncias fica caracterizado que as conseqüências advindas de qualquer ADC atacam diretamente o exercício do direito de ampla defesa e participação consagrado constitucionalmente, colocando "em xeque os supostos básicos do controle difuso de constitucionalidade, que constituem nossa herança de mais de cem anos." (CARVALHO NETTO, 2003: 163)

Como bem vislumbrou o Ministro Marco Aurélio, em voto vencido, quando da ADC-1:

"Ou seja, o que decidirmos aqui em uma ação direta de constitucionalidade repercutirá, necessária e obrigatoriamente, nas demandas que estejam em andamento; repercutirá, sem que se ouçam os interessados nessas demandas; repercutirá afastando, até mesmo, a livre discrição dos órgãos investidos do ofício judicante." [19]

Ora, a análise até este momento feita, ainda que singela, de tais disposições normativas, revela, de maneira insofismável, a tentativa governamental de reduzir a amplitude do controle difuso no ordenamento jurídico brasileiro, diminuindo sensivelmente a possibilidade de novas configurações da identidade do sujeito constitucional, parecendo querer mesmo imobilizar todas as discussões acerca do que seja a Constituição, além da utilização de expressões por demais subjetivas, as quais dão ao Supremo Tribunal Federal uma proeminência discricionária impressionante em nossa história constitucional moderna, facultando ao mesmo determinar quando e, até mesmo, de que modo os conteúdos e efeitos de suas decisões passarão a valer, fatos esses que, em nosso entendimento, são de flagrante inconstitucionalidade.

Esse possível congelamento e vinculação de decisões e interpretações oriundas da nossa Suprema Corte, que pode ser aferido dos supra citados mecanismos normativos é, em nosso entendimento, uma circunstância que em nada contribui para o fortalecimento de um sentimento de democracia, de hábitos democráticos, haja vista que as mesmas podem vir a permitir que pretensos direitos configurem, na realidade, abusos, ou que interpretações não-sistemáticas, não-principiológicas, de caráter ideológico, diríamos, até mesmo, deturpadas do texto constitucional vigente, transformem-se em elementos imutáveis, não passíveis de questionamento, possibilitando que arbitrariedades sejam cometidas com base no próprio ordenamento jurídico, ao tentar impor um discurso único, não levando em conta a diversidade existente em nosso Estado Democrático de Direito, dificultando, assim, a imprescindível porosidade da nossa identidade constitucional, podendo edificar, a longo prazo, uma jurisdição e um processo que ousamos comparar com aquele vislumbrado por Kafka.

Eis-nos, por conseguinte, diante de um instrumental jurídico que parece ter como finalidade precípua estabelecer quem é o intérprete e como devem ser as interpretações constitucionais realizadas, independentemente das situações fáticas ou daqueles nelas envolvidos, negando a circunstância que "a tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação.(GADAMER, 1999:489)

Como bem lembra Marcelo Cattoni de Oliveira:

"A reconstrução do caso concreto, argumentativamente realizada através e nos limites do processo jurisdicional, deve ser tomada como parte integrante do próprio processo de reconstrução ou determinação da norma a aplicar." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001:59)

O cidadão, portanto, é nada mais do que o intérprete fundamental e permanente da Constituição, uma Constituição que, por ser democrática, é reconhecida como aberta a todos, podendo, assim, trabalhar com as enormes diversidades presentes na sociedade, sem subordinar-se a um único modo de ser e de viver, onde as garantias processuais revelam-se, sem necessidade de apelo a um idealismo simplificador ou a um formalismo ontologizador, fundamentais na configuração de uma estrutura sócio-institucional mais equilibrada.

Daí, que a possibilidade de uma participação/interpretação o mais difusa possível é considerada requisito essencial para se ter um sujeito constitucional democrático, e os instrumentos processuais, abrindo espaço de discussão e argumentação a todos, são mecanismos centrais para o direito moderno, permitindo que sejam aplicadas, através de um efetivo procedimento contraditório, as normas aos casos concretos, assegurando a plenitude ao devido processo legal, reconhecendo que só nas situações de aplicação devem-se fundamentar as decisões judiciais, em uma noção processual de justiça, isto é, "tomado sob esse ângulo, o processo é um segmento de uma atividade comunicativa de uma sociedade, o confronto de argumentos diante de um tribunal constituindo um caso admirável do uso dialógico da linguagem." (RICOUER, 1995: I,107) [20]

Salienta-se que todas essas afirmações possuem como pano de fundo o paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual deve-se buscar o reforço constante da tolerância com a diferença, com o outro, aferindo que a democracia é um projeto em contínua construção, onde a sociedade civil organizada é compreendida, em si mesma, como esfera pública, possuindo, desta maneira, a tarefa de estar em vigília contra essa reiterada possibilidade de privatização.

Em outras palavras, em um Estado Democrático de Direito plural, no qual convivem projetos de vida os mais diversos possíveis, uma saída possível para lidarmos com a complexidade que a modernidade impõe é ampliarmos e reforçarmos o nosso modelo de controle de constitucionalidade difuso, tornando plausível que quaisquer temas ou interesses sejam nele levantados e discutidos, visualizando a democracia como um processo interminável, sem exigir uma segurança definitiva, onde os membros desse mesmo Estado Democrático de Direito consigam reconhecerem-se como autores do ordenamento jurídico ao qual se submetem, em uma efetiva autolegislação.

Por isso, a questão que se impõe, nas palavras de Menelick de Carvalho Netto, é o fato de que:

"A autoridade encarregada de aplicar a Constituição não pode fazer o que bem quiser do texto constitucional, há limites, esses limites são intersubjetivamente compartilhados, e a maior garantia de qualquer constituição chama-se cidadania, uma cidadania viva e atuante, zelosa de seus direitos." (CARVALHO NETTO, 2003: 163)

Para ficarmos na brevidade de uma fórmula, podemos dizer que as atuais transformações produzidas em nosso sistema de controle de constitucionalidade são inconstitucionais, sendo a Ação Declaratória de Constitucionalidade sua face mais absurda, afrontado princípios jurídico-processuais tão caros ao Estado Democrático de Direito, negando nossa centenária tradição de controle incidental, não reconhecendo a riqueza de um modelo de controle que moldou-se, em certo momento histórico, a partir dos dois padrões existentes, mas indo além dos mesmos, em uma caminhada lenta e com grandes obstáculos, porém contínua, rumo ao estabelecimento de um processo e jurisdição constitucional mais abertos, participativos e democráticos, revelando, nas palavras do Ministro Marco Aurélio, que a ADC pode vir a "abolir o direito e a garantia individuais do cidadão de somente ter a liberdade ou bem que lhe pertença alcançados mediante o devido processo legal, ensejando, assim, julgamento sob o pálio do livre convencimento." [21]


Notas

01. Conferir, quanto ao aspecto relevante da Jurisdição Constitucional, o impressionante trabalho: (SAMPAIO, 2002: 21 – 101)

02. "Para garantir o acesso ao juiz e facilitar o acesso à jurisdição, devem ser instalados serviços de informação nos tribunais, com ampliação do direito dos sindicatos e associações, para interpor recursos, evitando que o custo da justiça tenha efeito dissuasório na procura da mesma." (BARACHO, 1995: 39)

03. "Il diritto alla tutela giurisdizionale va ascritto tra i principi supremi del nostro ordinamento costituzionale, in cui è intimamente connesso con lo stesso principio di democrazia l’assicurare a tutti e sempre, per qualsiasi controversia, un giudice e un giudizio...in senso proprio." (ANDOLINA, VIGNERA, 1990: 61)

04. "O devido processo requer que a parte, provocada por atuações judiciais, tenha oportunidade de ser ouvida, antes que haja uma decisão final. Estas circunstâncias incluem o direito de apresentar argumentos, testemunhas ou provas que possam ser pertinentes ao caso. A audiência deve ser celebrada ante um tribunal justo e imparcial." (BARACHO, 1980,81,82: 90)

05. "Assim, num processo ‘cooperativo’ de ouvir as partes envolvidas no caso, dando vez ao princípio do devido processo legal e seus corolários lógicos – ampla defesa e contraditório, todos os argumentos importantes à solução do caso surgirão à apreciação do magistrado." (SOUZA CRUZ, 2000: 34)

06. "Art.1º. – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

..................................................................................................................

III – a dignidade da pessoa humana."

07. "Art.13, §10, in verbis: Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição."

08. No atual texto constitucional, na sede do controle concentrado, encontramos a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (art.102,I,a), além da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (art. 103, § 2°) e da modalidade interventiva disposta no art. 36,III.

09. Conferir o voto vencido proferido pelo Ministro Marco Aurélio quando da questão de ordem suscitada na ADC 1-1 – DF.

10. Como destaca Marcelo Cattoni, "desde a República Velha, vozes já se levantavam contra o sistema difuso e, num nível pragmático, buscavam alertar para o que seria o risco de decisões contraditórias..." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 168)

11. Conferir o voto proferido pelo Ministro Leitão de Abreu no RE 79.343-BA, RTJ, 82:795.

12. Conferir: "EMENTA – PROCESSO CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. STF – SÚMULA 343. Se o Pretório Excelso declarou constitucional lei que, antes, o Tribunal Regional Federal havia reputada inválida, o julgado deste deve ser rescindido ainda que, à época, o tema fosse controvertido (STF – Súmula 343). Recurso Especial não conhecido." (Resp. 102.048/DF, relator o Exmo. Sr. Ministro Ari Pargendler, DJ 08.03.1999)

13. Nesta linha encontramos, entre outros: (MENDES, 1994) e (SLAIBI FILHO, 2000)

14. Rp.1349, Relator Min. Aldir Passarinho – In: Site do Supremo Tribunal Federal (Internet) http://www.stf.gov.br (Visitado em 05.jan.2003)

15. ADC n.1-1 – DF, Relator Min. Moreira Alves – In: Site do Supremo Tribunal Federal (Internet) http://www.stf.gov.br (Visitado em 05.jan.2003)

16. ADC n.1-1 – DF, Relator Min. Moreira Alves – In: Site do Supremo Tribunal Federal (Internet) http://www.stf.gov.br (Visitado em 05.jan.2003)

17. "Por mais qualificados que sejam, os Ministros do Supremo, não possuem os atributos do semideus Hércules. É preciso lembrar que aquilo que hoje representa acréscimo de poder, amanhã certamente decretará o completo desprestígio do Judiciário, incluindo também o próprio Supremo Tribunal Federal."(SOUZA CRUZ, 2000:35)

18. "Algumas conseqüências, da maior amplitude, decorrerão desse efeito. Haverá limitação do controle difuso da constitucionalidade das leis, que se faz pela via incidental, logo, haverá restrição na matéria passível de ser apreciada pelo Poder Judiciário e haverá limitação do direito de defesa. Por outro lado, em decorrência da vinculação, haverá uma imobilização do sentido da norma, objeto da declaração, e dos preceitos constitucionais, com os quais foi ela confrontada, incompatível com a necessidade permanente da renovação do espírito da lei, pela atividade hermenêutica." (GONÇALVES, 1993:130)

19. ADC n.1-1 – DF, Relator Min. Moreira Alves – In: Site do Supremo Tribunal Federal (Internet) http://www.stf.gov.br (Visitado em 05.jan.2003)

20. "Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto."(CARVALHO NETTO, 2000: 482)

21 ADC n.1-1 – DF, Relator Min. Moreira Alves – In: Site do Supremo Tribunal Federal (Internet) http://www.stf.gov.br (Visitado em 05.jan.2003).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRATES, Francisco de Castilho. Por uma perspectiva constitucionalmente adequada da Jurisdição e do Processo Constitucional em um paradigma democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 128, 11 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4320. Acesso em: 26 abr. 2024.