1. INTRODUÇÃO
O Édito de Rotário ou Edictum Rothari é um código de leis elaborado pelo rei Rotário (reinado, 643-652) dos lombardos, grupo germânico que ocupava uma região considerável da atual Itália. Este código determinou a linhagem régia, enumerou as leis, descreveu os crimes e expõe as sanções.
O povo de Rotário, por ter raízes germânicas, tinha uma cultura e consciência altamente beligerante. Assim, Rotário apresentou soluções para pacificar as lutas clânicas, as vinganças generalizadas e querelas pessoais. Rotário desejava impedir os assassínios mútuos, em certa medida a atitude digna de um verdadeiro lombardo. Desse modo, o código legal era objetivo e definia claramente as penas para lesões ocorridas em lutas, em detrimento do direito de vingança.
O rei Rotário definiu o objetivo da construção legiferante:
“Desejamos que essas leis sejam reunidas em um único volume, de modo que cada um possa viver com segurança de acordo com a lei e a justiça, e na confiança de boa vontade trabalhar contra seus inimigos e defender por si suas terras.”[1]
Portanto, Rotário entendia que seu reino precisava de um ordenamento jurídico para que a convivência pacífica entre seus conterrâneos fosse possível, principalmente para manter a figura régia segura – um tanto instável se comparada a outras culturas –, dentre outros aspectos que enfatizavam a “vida segura de acordo com a lei e a justiça”.
Contudo, antes de prosseguir, vale frisar que o Direito apresenta características de acordo com o tempo em que vige. À época romana entrou em vigência as noções de público e privado. Para Bobbio, tal divisão pode ser tratada como a grande dicotomia do Direito[2].
Na Modernidade, a noção de direito público regula as relações jurídicas relativas às atividades do Setor Público (no sentido moderno), bem como sua organização, suas atividades, e as relações do Setor Público para com os cidadãos, moderando o poder deste perante a fragilidade do último. E o direito privado cuidaria das relações jurídicas entre particulares, e entre particulares e o Setor Público (ou seus agregados), quando não estiverem em suas funções finais. Em suma, no direito público, o sentimento legal seria em torno de um interesse geral ou bem maior. Por outro lado, o direito privado abrange a vontade de um particular sobre outro particular.
2. DELINEAMENTOS SOBRE O POVO LOMBARDO
A Península itálica sofreu subsequentes ataques durante a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média. Dentre estas incursões, destacarei a lombarda, que ocorreu em c. [circa do] séc. VI. A história dos lombardos, antigos vinilos, teve início a partir de diversas migrações étnicas para o Sul da atual Europa, motivadas por rupturas internas, fuga de povos mais poderosos, ou pela busca de condições melhores de subsistência e saques. Esses movimentos tiveram início no séc. I.
Tratados por autores clássicos como tribo nômade, os lombardos foram descrito como germânicos ferozes e pouco numerosos. A origem do nome “lombardo” é mitológica: Paulo Diácono afirmou que os vândalos procuraram os deuses para pedir a vitória sobre os vinilos. Uma mulher pertencente aos vinilos agiu de mesma maneira. O impasse foi resolvido a favor dos últimos: as mulheres dos vinilos, sob orientação divina, soltaram seus cabelos de forma a parecerem barbas e se colocassem ao lado de seus maridos na hora do combate. Assim, ao nascer do Sol, atrapalhando a visão dos vândalos, ludibriaram seus adversários, que bateram em retirada se perguntando “Quem são esses longarbarbas? E a partir de então os vinilos se tornaram os lombardos” [3].
A rota percorrida pelos lombardos, em consonância com outros povos em migração, passou por várias plagas até seu destino final. Esse período é muito complexo e carece de dados confiáveis pela dispersão multidirecional e por não obedecer a um trajeto sistemático.[4]
3. ÉDITO DE ROTÁRIO E DIREITO ROMANO-GERMANO ENTRE OS LOMBARDOS
A construção do Edictum em questão não ocorreu sem uma história pregressa. Ele não se constituiu somente com as ideias de Rotário, mas de toda uma construção oriunda do convênio cultural ocorrido entre os germânicos e os romanos. O conteúdo é essencialmente germânico, enquanto a marca romana é notável pela escrita e pelo modelo codificado, em detrimento de emendas ou ratificações.[5]
Graças ao contato amistoso e belicoso entre os romanos e outros grupos, ocorreu uma desconstrução dos conceitos romanos sobre público e privado. Em contrapartida, nasceu uma relação jurídica essencialmente privada e subjetiva. Eles deixaram a entender o quanto
“[...] valorizam os bens pessoais, o alimento, o corpo, as mulheres, os grupos familiares, as vinganças e os medos, a agressividade e as esperanças, as concepções do sagrado, enfim, o acesso aos segredos do indivíduo.”[6]
Os “invasores”, inclusive os lombardos, desejavam preservar certas tradições e costumes, elementos que poderiam entrar em choque com a tradição jurídica romana, sobretudo quanto à privatização das relações jurídicas.
De maneira geral, os grupos de origem germânica demonstravam sérias dificuldades para distinguir propriedades públicas e privadas. Por sua história tribal e nômade, eles não dispunham do aparato jurídico romano num primeiro momento. Assim, as posses individuais alcançavam grande valor, principalmente aquelas que pudessem levar consigo em suas migrações.
O direito romano não foi passivamente absorvido pelos lombardos. Entre outros mecanismos de legitimação, o rei era mantido no poder graças à fortuna[7]. Em certa medida, as relações sociais longobardas eram muito militarizadas, não sendo possível manter um governante ou linhagem de maneira segura. O monarca poderia ser eleito na guerra ou quando o rei vigente estivesse em vias de falecer. Muitos príncipes lombardos foram alçados ao seu posto em batalhas, demonstrando com clareza o valor que era dado às questões belicosas e seus valores personalizados.
Para os lombardos, certos crimes como o homicídio eram menos graves que o roubo. Muitas vezes o primeiro era tratado apenas com uma multa de acordo com o segmento social do infrator (escravo, guerreiro, trabalhador livre, etc.). Por outro lado, o roubo era punido até mesmo com a morte. Para ilustrar uma situação análoga,
“[...] Teodulfo, bispo de Orléans, homem de civilização romana, durante uma viagem de missus dominicus [enviado real] que efetuou a Narbonnaise por volta de 798 queixou-se amargamente de ver o roubo punido com a pena de morte e o homicídio com o pagamento de uma soma em dinheiro. Era uma consequência inevitável da preferência de uma sociedade guerreira pelos bens pessoais. Para gente nos limites da sobrevivência, ter importa mais que ser. Santo Ambrósio chamava essa atitude de avareza; Gregório de Tours, de rapacidade. Todavia, para essas águias de alto voo que eram os germanos errantes e triunfantes, a morte constituía a melhor maneira de marcar as fronteiras intransponíveis de seus bens privados.”[8]
Para os lombardos não era diferente, pois
“A seus olhos, a suprema felicidade é perder a vida no campo de batalha; morrer de velhice ou de acidente é um opróbrio e uma cobardia que eles cobrem de horríveis injúrias; matar um homem é um heroísmo para o qual não tem elogios que cheguem. O troféu mais glorioso [além do botim] é a cabeleira de um inimigo escalpado”[9]
Em suma, a vida valia menos do um bem que pudesse ser carregado em batalha ou migração. Por não se fixarem em terra alguma, os lombardos desenvolveram técnicas de ourivesaria e metalurgia excelentemente para as condições da época, o que demonstra não só a importância dada aos bens, mas também formas de torná-los portáteis. Assim, eles ressaltavam em essência várias ideias que circulavam sobre a guerra, o status, os butins, os bens e as leis.
Apesar do forte costume consuetudinário, Rotário incorporou algumas inovações romanas. Uma de suas principais preocupações foi não desligar a antiga legislação germânica ou a memória da estirpe régia. A partir de Rotário, era vital confirmar a tradição tribal lombarda em benefício de sua gens.[10]
Sinteticamente, as leis de Rotário combatiam a desobediência, a violência corporal, a quebra da paz social, danos materiais, acidentes de trabalho, sucessões, etc. Contudo, essas resoluções de conflitos levavam em conta a esfera do privado.
O Édito não definiu o formato organizacional do reino, os limites territoriais ou normas públicas complexas, o que deixa transparecer a fragilidade das relações sociais. As leis germânicas mais se assemelham a leis de sobrevivência, vindo seus regulamentos a somente mediar os conflitos, situação em que os bens (fundamentais para sobrevivência) estavam em jogo.
4. O PAPEL DO REI PARA OS LOMBARDOS
Os povos germânicos apresentavam uma visão própria sobre a constituição de seus reis. Segundo Tácito, havia uma diferença entre o rei, que exercia o cargo pela linhagem divina, e o chefe (duce), líder nato do grupo, clã ou tribo eleito coletivamente, o que poderia fomentar uma nova estirpe divina.[11]
Embora os lombardos fossem pouco numerosos, eles ofertavam evidências de força, destreza e habilidade belígera. Graças ao pequeno número de guerreiros, eles negligenciavam batalhas em campo aberto e preferiam combates singulares para alcançar as vitórias. Em certos casos, um rei ou futuro rei estava envolvido nesse tipo de querela.[12]
Conforme a Historia Langobardorum de Paulo Diácono, os longobardos venceram várias batalhas graças a esta curiosa opção de guerra. Ao destruir os principais guerreiros inimigos, eles desestabilizavam sua capacidade de defesa e elevavam a força de ataque de suas tropas.
Um excelente exemplo dessa prática foi a morte do rei gépido Cunimundo pelas mãos do rei Alboíno. Cunimundo, ao desejar vingar-se dos ataques lombardos, atacou Alboíno. Entretanto, os avaros, inimigos dos lombardos, haviam feito um acordo de paz imprevisto e invadiram as terras gépidas. Esta brusca mudança política forçou Cunimundo a focar seu ataque primeiramente com os longobardos. Assim, de acordo com Paulo Diácono, “[...] no combate, Alboíno matou Cunimundo decapitando-lhe e fez um copo de beber do seu crânio.”[13]
“Os reis são eleitos conforme a sua nobreza, mas os capitães, escolhidos segundo a sua capacidade. O poder dos reis, entretanto, não é ilimitado ou absoluto e os chefes comandam mais pelo exemplo dos seus atos e pelo atrevimento das suas ações do que pela força da sua autoridade. Se se mostram ousados e destemidos e conseguem arrebatar a vitória, governam sob admiração dos povos. Entretanto a ninguém, a não ser aos sacerdotes, se consente o direito de açoitar, prender ou matar: a pena não é considerada como castigo ou execução das ordens de um comandante, mas imposta pelos deuses que, como crêem, presidem aos combates.”[14]
Desse modo, os reis eram eleitos por seus feitos, suas façanhas, sua ferocidade e seus atos belicosos em batalhas. A permanência na função e a sucessão dependiam de seu sucesso como comandante campal e de sua capacidade de liderar seu povo em seus deslocamentos.
Tal relação não pode ser estabelecida com precisão quando se trata sobre os períodos mais antigos, pois sua história é incerta. Contudo, alguns indícios apontam que “[...] os lombardos foram comandados por chefes militares, os príncipes ou duces, em tempos primitivos, durante a migração do povo.”[15]
Como afirmado outrora, os reis lombardos manifestava uma origem divina, mas justificava sua condição no campo militar. Os movimentos migratórios auxiliaram na perpetuação dessas características. Ao migrar novamente, um novo líder era eleito.
Uma pergunta desponta: o que ocorria quando não havia um candidato com tais virtudes? Nesses períodos ocorria o interregno, quando um sucessor não possuía legitimidade para apresentar-se como líder. Eram etapas marcadas pela violência descontrolada e conflitos clânicos, que culminavam em eleições régias.
Assim, nota-se a necessidade social do rei para manter o controle sobre a natureza por meio sobrenatural, o futuro e o bem-estar do grupo. Era preciso estabelecer tabus e crenças para preservar os lombardos. O Édito de Rotário, desse modo, dispunha de mecanismos para preservação da segurança régia, como a primeira lei claramente demonstra: “1. O homem que conspirar e oferecer conselhos contra a vida do rei será morto e seus bens”[16]”.[17]
A realeza lombarda tem grande relevância na formação do povo lombardo. Sem ela e sem sua legislação, não seria possível preservar sua cultura e manter o reino vivo durante seus movimentos migratórios. “Não havia uma sequência coerente de posse do reino, o que demonstra uma forte influência das características tribais e míticas na formação da realeza e identidade lombarda.”[18]
O Édito de Rotário, como outras legislações dos povos germânicos, respondeu a uma cultura tipicamente privada, em detrimento de outra que levava em consideração as relações públicas. O aparente simplismo nas relações legais dos códigos germânicos, que tratam as infrações com penas pecuniárias e violentas, oculta uma complexa circunstância que envolve estratificações sociais, manutenção do poder, tradições, costumes e hibridismo cultural relativo.
In fine, o Edictum é um exemplo medieval do direito formado por aqueles que estão no poder de turno, isto é, daqueles que detém a força de se imporem e legiferarem no processo de produção das relações jurídicas e de seu ordenamento[19].
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAK, János M. Coronations: Medieval and Early Modern monarchic ritual. Berkeley: University of California Press, 1990.
BIRRO, R. M. (2013). REX PERPETUUS NOVEGIAE: A SACRALIDADE RÉGIA NA MONARQUIA NURUEGUESA E A SANTIFICAÇÃO DE ÓLÁFR HARALDSSON (C. 995-1030) À LUZ DA LITERATURA NÓRDICA LATINA E VERNACULAR (SÉCS. XI-XII). Niterói: UFF - PPGH.
BLVHME, F. (1869). EDICTVS CETERAEQVE LANGOBARDORVM LEGES. HANOVERAE: IMPENSIS BIBLIOPOLII HAHANIANI.
CASTELLANOS, A. R. (2013). Transcrição de aulas do Prof. Dr. Angel Rafael Mariño Castellanos. Vitória, ES, Brasil.
DREW, K. F. (1996). The lombard laws. Cinnaminson, New Jersey, USA: Weidner Associates Inc.
FARIAS, C. C., & ROSENVALD, N. (2013). Curso de Direito Civil 1 - Parte Geral e LINDB (11ª Edição ed.). Salvador, Bahia: JusPODIVM.
FIORIO, J. M. (2011). Mito e Guerra na História Longbardorum. Vitória/ES: DLL/UFES.
LE GOFF, J. (1995). A CIVILIZAÇÃO DO OCIDENTE MEDIEVAL, Volume 1, 2ª Edição. Lisboa: Estampa.
ORTON, Previté. C.W (1995). Historia del mundo en la Edad Media. Tomo I. Barcelona: Editorial Ramon Sopena.
ROUCHE, M. (2009). História da vida privada: do Império Romano ao ano mil (Vol. 1). (P. Veyne, Ed., & H. Feist, Trad.) São Paulo, SP: Companhia das Letras.
[1] “In unum preudimus uolumine conplectendum, quatinus liceat unicuique salua lege et institia quiete uiuere, et propter opinionem contra inimicos laborare, seque suosque defendere fines.” (BLVHME, 1869).
[2] (FARIAS & ROSENVALD, 2013)
[3] (Paulo Diácono apud FIORIO, 2011)
[4] (FIORIO, 2011)
[5] (ORTON, 1995:315)
[6] (ROUCHE, 2009)
[7] Fortuna seria, segundo (BIRRO, 2013) “[...] uma sorte ‘familiar’ pela manutenção do heil tribal, conferida pela origem mítica dos reis germano-escandinavos.”
[8] (ROUCHE, 2009)
[9] (LE GOFF, 1995)
[10] (FIORIO, 2011)
[11] (TACITO apud FIORIO, 2011)
[12] (FIORIO, 2011)
[13] (FIORIO, 2011)
[14] (FIORIO, 2011)
[15] (FIORIO, 2011)
[16] “Si quis hominum contra animam regis cotitauerit aut consiliauerit, animae suae incurrat periculum, et res eius infiscentur.” (BLVHME, 1869)
[17] (FIORIO, 2011)
[18] (FIORIO, 2011)
[19] (CASTELLANOS, 2013)