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O MPDFT e a Reforma da Previdência.

A leitura certa das linhas tortas

O MPDFT e a Reforma da Previdência. A leitura certa das linhas tortas

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I - INTRODUÇÃO

A reforma do regime de previdência dos servidores públicos que está sendo proposta pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva prevê, tal como aprovada em segundo turno na Câmara dos Deputados, modificações em ao menos uma disposição constitucional que não veicula matéria exclusivamente previdenciária. O inciso XI do artigo 37 da Constituição da República passaria a vigorar com a seguinte redação:

XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e dos Desembargadores do Tribunal de Justiça no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos, ficando o destes últimos limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, e, nos Municípios, o do Prefeito, se inferior;

O subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal deixaria, assim, de funcionar como teto nacional para a remuneração e a aposentadoria de agentes públicos dos três Poderes e do Ministério Público. Passariam a ser distintos, conforme a esfera federativa, os paradigmas de fixação dos limites máximos de remuneração e aposentadoria: na União, o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal funcionaria como teto único para os três Poderes e o Ministério Público; em cada um dos Estados e no Distrito Federal, haveria três tetos, o do Executivo (subsídio do Governador), o do Legislativo (subsídio dos Deputados) e o do Judiciário (subsídio dos Desembargadores, limitado a 90,25% do subsídio dos Ministros do STF), este último extensivo ao Ministério Público, à Defensoria Pública e aos Procuradores, entendidos estes como os representantes judiciais do Estado; nos Municípios, o teto seria único (o subsídio do Prefeito), sob condição de ser inferior aos dois paradigmas cabíveis – do Executivo e do Legislativo – do Estado onde se situar o Município.

A parte da nova proposta de redação para o inciso XI do artigo 37 da Constituição que interessa ao MPDFT é a que prevê três tetos não apenas para os Estados, mas também para o Distrito Federal, na equivocada suposição de que o Distrito Federal conta com estruturas judiciárias e de funções essenciais à justiça equivalentes às dos Estados. O presente artigo limita-se à análise das conseqüências administrativas, funcionais e institucionais da nova redação, caso aprovada como acima transcrita, para o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios; suas conclusões também podem ser válidas, contudo, mutatis mutandis, para a Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, cuja posição constitucional muito se assemelha à do MPDFT.


II – DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS – ESPECIFICIDADES E PONTOS DE PROXIMIDADE INSTITUCIONAL

O Distrito Federal recebeu da Constituição de 88 a maior parcela de autonomia de que já desfrutou em sua história, a qual remonta ao antigo município neutro, sede da corte imperial. Mas, apesar de sua autonomia atual, seria miopia institucional concebê-lo como equiparado aos Estados da Federação. Um dos motivos está no próprio conceito de distrito, que corresponde à divisão administrativa de um Município, donde a vedação constitucional da subdivisão do Distrito Federal em municípios. Outro motivo está na atribuição ao Distrito Federal, pela Constituição, de competências legislativas e tributárias estaduais e municipais, como forma de não deixar em segundo plano sua vocação local. Mas talvez o principal motivo esteja na finalidade constitucional dessa unidade federada, que existe apenas para abrigar o governo federal. O surgimento dos Estados está ligado a circunstâncias históricas, condicionamentos econômicos ou conveniências políticas; a Distrito Federal surge para preencher uma função.

As imbricações institucionais entre o Distrito Federal e a União decorrem dessa função, ou, mais especificamente, da premissa de que seu adequado desempenho não pode prescindir de considerável parcela de colaboração da União. À presença material do governo federal deve corresponder, em nível local, percepção direta de sua autoridade; daí por que em tantos outros Estados Federais, como a Argentina, os EUA e o México, o governo central tenha competências próprias no que diz respeito à manutenção da lei e da ordem na capital federal.

Escaparia à compreensão do cidadão comum que o governo federal, símbolo maior do poder republicano, deixasse de assumir as responsabilidades dessa seara – ao menos dessa seara – no distrito de sua sede. Ofenderia a lógica da repartição de competências que o governo federal, embora suas instituições de cúpula requeiram condições especiais de segurança e mobilizem interesses em escala superior, deixasse de fazer uso direto de meios e recursos próprios para esses fins no distrito de sua sede. Em circunstâncias históricas de polarização político-partidária, a possibilidade de coabitação de forças políticas opostas na cúpula do governo local e na do governo federal poderia – na perspectiva de plena autonomia do primeiro nas matérias relativas à defesa da ordem jurídica e à manutenção da ordem pública – criar dificuldades de toda sorte ao segundo: podem-se imaginar desde discordâncias sobre segurança de prédios federais e definição de áreas de segurança até a nomeação de Procurador-Geral de Justiça com visão de política criminal oposta à do governo federal e disposto a valer-se dos instrumentos hermenêuticos cabíveis para fazer valer seus pontos-de-vista.

O Distrito Federal não é, em suma, unidade federada equiparada ou equivalente a qualquer outra. Conta com o que José Afonso da Silva chama de autonomia tutelada, pois o constituinte incumbiu à União a organização e a manutenção de todo o aparato distrital de segurança pública e defesa da ordem jurídica – Polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros Militar, Ministério Público, Justiça e Defensoria Pública. Incumbiu a União, ademais, privativamente, de legislar sobre a organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal; e previu que lei federal disporá sobre a utilização, pelo Governo do Distrito Federal, das polícias civil e militar e do corpo de bombeiros militar.

Os Territórios, por sua vez, constituem descentralizações administrativas da União com projeção territorial. Não são entes federativos. Servem à necessidade de presença material do governo central em determinadas porções do território, seja para garantir a presença do Estado em face de fatores externos (e.g. necessidade de ocupação e dinamização de área de fronteira) ou internos (e.g necessidade estratégica de desenvolvimento institucional em região empobrecida de Estado igualmente carente).

O fato de não existirem, hoje, Territórios Federais é mera contingência. A Constituição disciplina, no parágrafo 2º do artigo 18, sua criação e dispõe, no artigo 33 de modo central e em outros dispositivos de forma esparsa, sobre múltiplos aspectos de sua vida institucional. Circunstancia e reitera que, nos Territórios Federais com mais de cem mil habitantes, haverá Justiça de primeira e segunda instância, Ministério Público e Defensoria Pública, todos federais, em óbvia decorrência do caráter federal dos próprios territórios. Fica claro, portanto, que o constituinte nunca pensou em descartar a existência dos Territórios. Ressalte-se que há mais de vinte projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional com o objetivo de criar Territórios Federais. Se as atuais necessidades de ajuste fiscal subordinam os interesses estratégicos que poderiam a aprovação desses projetos, o quadro futuro pode não ser o mesmo.

O Distrito Federal e os Territórios foram concebidos como unidades funcionais à União, aquele com autonomia tutelada, estes integrados na União com natureza autárquica. A forma federativa do Estado brasileiro assenta, entre várias outras engrenagens, nos mecanismos constitucionais de convivência da União com o Distrito Federal, que garantem o pleno funcionamento dos Poderes da União em sua sede.


III – A POSIÇÃO CONSTITUCIONAL DO MPDFT

O Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios foi concebido pelo constituinte de 1988 como um dos quatro ramos do Ministério Público da União, ao lado do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Militar – é o que prevê o artigo 128, I, "d", da Carta Política. A pertinência federal do MPDFT também é afirmada pelo artigo 21, XIII, da Constituição, que prevê como competência da União organizar e manter o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios; pelo artigo 22, XVIII, que atribui à União competência privativa para legislar sobre a organização do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios; e pelo artigo 33, § 3º, que prevê a existência de membros federais do Ministério Público nos Teritórios Federais que abriguem mais de cem mil habitantes.

O constituinte originário não poderia ter sido mais claro: quis o MPDFT como instituição federal e assegurou seu desiderato tanto na repartição de competências entre os entes federativos quanto no desenho institucional do Ministério Público da União. A opção decorre das naturezas jurídicas específicas tanto do Distrito Federal quanto dos Territórios.

A obra do constituinte originário dialoga com as gerações futuras, porque se pretende permanente. Supõe não apenas o Brasil de hoje, premido pela necessidade de ajustes estruturais, mas também o Brasil de amanhã, em que a necessidade de presença material do governo central no Distrito Federal seja mais evidente do que hoje (basta pensar em situações de crise de segurança pública) ou surja a necessidade de presença federal maciça e organizada em parte do território (como poderia ocorrer na hipótese de agravamento e transbordamento de conflitos internos em países vizinhos). A pertinência do MPDFT à União, como de resto a da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, faz parte do concerto estrutural, estratégico e de longo prazo da Federação brasileira.

José Afonso da Silva escreve esclarecedoras linhas a respeito do assunto:

Nos Estados, a técnica das substituições eventuais, no caso de impedimento do Governador e do Vice ou na hipótese de vacância de ambos os casos, consiste em se estabelecer, na Constituição estadual, que serão chamados sucessivamente ao exercício do cargo o Presidente da Assembléia e o Presidente do Tribunal de Justiça. Essa solução não pode ser inteiramente acolhida no Distrito Federal..... .não cabe outorgar ao Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal essa prerrogativa pela simples razão, adiante referida, de que esse Tribunal não integra a estrutura do Poder governamental do Distrito Federal.(Curso de Direito Constitucional Positivo, 9a Edição, Malheiros, pp. 555 a 556)

Ao tratar do Poder Judiciário no âmbito do Distrito Federal, é ainda mais explícito o constitucionalista:

...o Poder Judiciário no Distrito Federal, em verdade, não é dele, pois, nos termos do art. 21. XIII, compete à União organizar e manter o Poder Judiciário do Distrito Federal: "do" no texto constitucional não indica uma relação de pertinência, mas de simples localização, significando aquele que atua no território da unidade federada. Se é à União que cabe organizar e manter é que o órgão é dela, embora destinado ao Distrito Federal. (op. cit. p. 556 – grifos originais)

Suas conclusões sobre as Funções Essenciais à Justiça no Distrito Federal vão no mesmo diapasão:

Constituem-se, como nos Estados, do Ministério Püblico do (no) Distrito Federal, da Defensoria Pública do (no) Distrito Federal e da Procuradoria-Geral do Distrito Federal. As duas primeiras instituições são também organizadas e mantidas pela União no Distrito Federal (art. 21, XIII). Não são dele, portanto. Por isso é que, como dissemos, cabe à União legislar sobre sua organização (art. 22, XVIII). Conseqüentemente, o art. 128 insere o Ministério Público do Distrito Federal no Ministério Público da União... (op. cit. p. 556)

A Lei Orgânica do Distrito Federal ratifica essas conclusões ao prever como Poderes Distritais apenas o Executivo e o Legislativo e excluir o Judiciário da linha sucessória do Executivo. A lógica que preside a inexistência de Judiciário e Ministério Público organicamente integrados no Distrito Federal está positivada na lei distrital maior.


IV – CONSEQÜÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E FUNCIONAIS DO CARÁTER FEDERAL DO MPDFT

As atribuições do MPDFT são estruturalmente nacionais e contingentemente locais. A atuação exclusivamente local que hoje caracteriza esse ramo do MPU pode criar, para quem não tem presentes as peculiaridades federativas do Distrito Federal, a ilusão de ótica de um órgão com vocação distrital. A relevância nacional e a repercussão federativa da defesa da ordem jurídica no Distrito Federal já foram, contudo, objeto de ponderação neste estudo e servem como explicação e justificativa da atual posição institucional do MPDFT.

A existência de órgãos federais com atribuições predominante ou exclusivamente locais ou regionais não tem no MPDFT seu único exemplo, nem é peculiaridade de nosso federalismo. A Tennesee Valley Authority (TVA), criada pelo governo de Franklin Roosevelt com o objetivo de fomentar a atividade econômica em uma das mais empobrecidas regiões do EUA à época, ilustrou a possibilidade jurídico-constitucional, mesmo na mais descentralizada federação do mundo, de criar-se ente federal com atribuições exclusivamente regionais. Mais do que isso: revelou a existência de situações nas quais não é possível dissociar o interesse nacional da dimensão local.

O modelo da TVA foi seguido no Brasil, com a criação das superintendências regionais de desenvolvimento, que hoje subsistem na Amazônia e no Nordeste na forma institucional de agências executivas, isto é, autarquias federais de regime especial. Não há dúvida de que, apesar de suas atribuições serem exclusivamente regionais, a atuação dessas entidades tem repercussão nacional de sua atuação, na medida em que o desenvolvimento regional beneficia a todo o país. Isso basta para justificar seu caráter federal.

Poder-se-ia cogitar, ainda, de contingências que viessem a reduzir a dimensões locais o escopo territorial de atuação de órgãos federais cuja atuação é, hoje, nacional. Se o interesse em prol do qual tais órgãos atuam seguisse sendo nacional, não haveria por que destituí-los de sua posição federal.

Há, por fim, exemplos de órgãos federais exclusivamente locais de atuação predominantemente local, mas cuja natureza nunca se pôs em discussão. Basta pensar nas Universidades Federais, nos Hospitais Federais, nos Museus Federais e na Biblioteca Nacional. Isso ocorre porque sempre é e sempre foi lícito à União atuar em qualquer escala ou dimensão – o critério deve ser a relevância federativa de sua atuação.

Como instituição federal e ramo do MPU, o MPDFT está sujeito, em sua organização e na conformação do estatuto de seus membros, à lei federal. Trata-se de elementar premissa jurídico-administrativa. Raciocínio diverso conduziria a curiosa situação, na qual, por exemplo, as delegacias regionais dos Ministérios estariam sujeitas à legislação dos estados em que tivessem sede, ou o quadro de pessoal da Biblioteca Nacional teria seu estatuto regido pela legislação do Estado – ou do Município – do Rio de Janeiro.


IV – O NOVO INCISO XI DO ARTIGO 37 DA CONSTITUIÇÃO – LAPSO LEGISLATIVO OU FRAUDE À CONSTITUIÇÃO ?


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MILLER, Marcello Paranhos de Oliveira. O MPDFT e a Reforma da Previdência. A leitura certa das linhas tortas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 104, 15 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4404. Acesso em: 25 abr. 2024.