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Intercessões entre Direito e literatura:uma análise do conceito de culpabilidade através da personagem Capitu, de Machado de Assis

Intercessões entre Direito e literatura:uma análise do conceito de culpabilidade através da personagem Capitu, de Machado de Assis

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O estudo do Direito associado a matérias como: sociologia, antropologia, filosofia, história, psicanalise e literatura assumem características libertadoras. Assim, a interdisciplinariedade entre o Direito e Literatura faz-se de suma importância.

Resumo:A concepção moderna do estudo jurídico visa uma perspectiva social humanista, em que a aplicação do Direito está pautada em uma visão plural e democrática, mitigando o dogmatismo e o normativismo exacerbado. O estudo do Direito associado a matérias como: sociologia, antropologia, filosofia, história, psicanalise e literatura assumem características libertadoras. O presente trabalho tem por objetivo analisar a importância da relação existente entre a interdisplinariedade do Direito com a Literatura. Tal associação possibilita a reflexão sobre temas que interessam a sociedade e ao Direito sob diferentes perspectivas.  Essas interseções serão  feitas partindo da análise da concepção de culpa da personagem Capitu, de “Dom Casmurro”, obra de Machado de Assis. O presente trabalho tem como objetivo , através do método dialético , analisar o conceito de culpabilidade , que sempre foi alvo de controvérsias, no direito e na psicanalise. Assim, apreciaremos a sua concepção para o âmbito jurídico e a sua acepção na psicanalise; tendo como base as observações feitas pelo personagem Bentinho.

Palavras chave: Direito, Literatura, Psicanalise, Culpabilidade.

ABSTRACT:Modern Design Study A Legal seen social humanist perspective in one que Law Enforcement IS guided by a plural vision and Democratic , mitigating dogmatism and exacerbated normativism. The study of law associated with subjects such as sociology, anthropology, philosophy, history, psychoanalysis and literature assume liberating features. This study aims to analyze the importance of the relationship between the interdisplinariedade between law and literature. This association allows reflection on topics of interest to society and law from different perspectives. These intersections will be made based on the analysis of the design character of guilt Capitii of "Don Casmurro ," Machado de Assis work . This work aims , through the dialectical method , analyze the concept of guilt , that has always been the subject of controversy in the law and psychoanalysis . So appreciate its design to the legal framework and its meaning in psychoanalysis ; based on the observations made by Bento character

Key words : Law , Literature, Psychoanalysis , Guilt


1.Introdução

O estudo do Direito na modernidade possui como premissa uma perspectiva social humanista, em que a aplicação da jurisdição deve ser pautada em uma visão plural e democrática, mitigando o dogmatismo e o normativismo exacerbado.

A analise jurídica associada a matérias como: sociologia, antropologia, filosofia, história, psicanalise e literatura assume posição libertadora, visto que, desempenha papel fundamental ao permitir uma percepção distinta do Direito. Nesse diapasão o presente trabalho tem por objetivo mostrar a importância da relação existente entre a interdisplinariedade do Direito com matérias distintas; como a Literatura e a Psicanalise.

A perspectiva de interdisciplinariedade possibilita a reflexão sobre temas que interessam a sociedade e, consequentemente, ao Direito sob enfoques distintos  .  Tal intercessão será realizada, através do método dialético, fazendo analise dos aspectos históricos que ensejaram na discussão do Direito associado à Literatura, observando essa transdisplinariedade , essencialmente na obra Dom Casmurro de Machado de Assis.

Tal analise literária terá como enfoque a concepção de culpablidade da personagem Capitu. O conceito de culpabilidade sempre foi alvo de controvérsias, assim apreciaremos a sua concepção para o âmbito jurídico e a sua acepção na psicanalise; tendo como base as observações feitas pelo personagem Bentinho.


2.Direito e Literatura.

A atual concepção de estudo jurídico está embasada em uma perspectiva humanista que visa a aplicação do Direito segundo uma concepção plural e democrática, mitigando o dogmatismo e o normativismo exacerbado. Diante desse novo paradigma jurídico, tornou-se evidente a importância da transdiciplinariedade, que busca a utilização de diversos ramos do conhecimento para a construção de um modo de pensar organizado, que atravessa as disciplinas visando uma unidade intelectual.

 Dessa maneira, para real efetivação do conhecimento jurídico, faz-se necessário intercessões entre o Direito e os diversos ramos do saber, como: a filosofia, a sociologia, a antropologia, a arte, o cinema, a música, a psicanalise e a literatura. Nesse sentido,  elucida Venosa (2006, p.7):

O desconhecimento de ciências, com estreitas relações com o direito, muito contribuiu para a perda do papel social que desempenhou o jurista até os anos 60, para a qual concorreu também a crise do ensino jurídico, divorciado das demais ciências sociais, destinada exclusivamente a formar profissionais eficientes, “doutores em leis”, então juristas.           

Perante tal perspectiva, a relação existente entre o Direito e os diversos ramos do conhecimento possui um caráter emancipador, sendo de suma importância o papel da Literatura nesse contexto. Dworkin (2000) vislumbrou semelhanças entre o Direito e a Literatura, sustentando que a prática jurídica é o perene exercício de interpretação, a exemplo da descoberta de significado dos textos, postula as atitudes jurídicas.

A interpretação surge com intuito de interferir, completar e colmatar, ela cria o texto, do mesmo modo que dá gênese e vida ao Direito. Leituras possibilitam procedimentos hermenêuticos que revelam reservas de sentido, descortinando a vida real de enredos, através da análise da linguagem e da Literatura. Gadamer (1997, P. 261-262) apreende essa dimensão da linguagem, da escrita e da narração da Literatura e explicita que:

“o modo de ser da literatura tem algo de peculiar e incomparável, e impõe uma tarefa muito específica ao ser transformada em compreensão... Não há nada que represente uma marca tão pura do espírito como a escrita, e nada está tão absolutamente vinculado ao espírito compreendedor como ela... Quem sabe ler o que foi transmitido por escrito atesta e realiza a pura atualidade do passado.’’

A Literatura possui a finalidade de promover a compreensão dos fatos sociais, o indivíduo que sabe interpretar o que foi escrito tem a possibilidade de entender o que foi realizado no passado e transmitir para atualidade.  Dessa maneira, ela representa um grande auxilio ao Direito, visto que pode ser utilizada como meio de auxiliar aos juristas na transformação do Direito material ao Direito fático.  Através dos textos literários também é possível inferir as questões socialmente relevantes, nesse sentido aduz Godoy (2003, p. 134):

A tradição literária ocidental permite abordagem do Direito a partir da arte, em que pese a utilização de prisma não-normativo. Ao exprimir visão do mundo, a Literatura traduz o que a sociedade pensa sobre o Direito. A literatura de ficção fornece subsídios para compreensão da Justiça e de seus operadores.

Nesse mesmo sentido Siqueira (2011, p. 35) elenca que:

A valoração intrínseca a qualquer construção linguística, imbuídas de significações e carga descritiva, leva à inevitável constatação de que o direito é, essencialmente, interpretação. A análise do direito a partir dessa perspectiva resgata-o de seu isolamento frente a outros campos de conhecimento e o coloca numa perspectiva de contínua narratividade, determinada pela transição jurídica e social de suas significações.

Assim, a análise do Direito partindo da sua intercessão com a Literatura permite uma perspectiva distinta de sua aplicação, uma vez que possibilita a ele interagir com outros campos do conhecimento, ensejando em uma transição dos anseios sociais para o universo jurídico.


3.Aspectos históricos das intercessões entre Direito e Literatura.

A interação entre o estudo do Direito e da Literatura ganhou relevância a partir da década de 60, nos Estados Unidos, com o surgimento de um movimento conhecido como Law and Literature. Ele visava à utilização dessa comunicação de matérias como ferramenta do Direito, por meio de análises em variados gêneros literários, visto que as histórias são permeadas de elementos culturais, aspectos relativos à história civil, conflitos inerentes aos seres humanos, podendo, assim,  ser utilizada como material para pesquisa jurídica. Segundo Siqueira (2011, p. 36):

“Essa proposta surgiu como uma das várias tendências antipositivistas do mais amplo movimento “direito e sociedade”, atuando na formação do profissional do direito de forma a resgatar aspectos humanísticos de que as carreiras jurídicas se afastaram. A centralização do direito no positivismo kelseniano levou à redução gramatical de seus enunciados e à análise estritamente sintática e semântica de suas normas, tornando-o incapaz de atender as demandas sociais postas ao direito. ”

Após esse período, as intercessões entre Direito e Literatura perdem o aspecto civil do Direito e a pesquisa é direcionada para a Sociologia do Direito, desse modo os textos literários podem ser utilizados como fonte sociológica, visto que estavam expressos no Direito, esse, que nasce de acordo com as relações sociais vigentes. A análise dos textos literários nesse período possuía um sentimento jurídico segundo o contexto social.

Pode-se destacar ainda a produção de vários artigos e eventos em que reuniam-se trechos de obras literárias. Nesse diapasão, Trindade (2008) elenca que as sentenças e leis possuem como objetivo demonstrar que Direito é um sistema cultural do qual participam a imaginação e a criatividade literária, como componentes da racionalidade jurídica.

Ost (2005) defende a Literatura como fonte de libertação para os caminhos disponíveis ao indivíduo frente à realidade codificada do Direito. Apesar das ciências jurídicas e da Literatura descreverem as relações humanas, a Literatura o faz livre das amarras impostas pelo tecnicismo e dogmatismo do Direito. A liberdade formal e material de que goza a arte literária pode ser utilizada como força renovadora ao Direito.  Tal renovação pode ser expressa através do choque existente entre a narrativa jurídica e a literária, possibilitando uma discussão relevante sobre questões essenciais ao Direito como: as leis, a ordem social, o poder ou a análise de conceitos que geram divergências como o de culpa.

Como elenca Siqueira (2011), inúmeras foram os estudos acerca da interseção entre Direito e Literatura: a literatura como instrumento de mudança do direito, hermenêutica, o direito como literatura, direito da literatura, direito e narrativa, apenas para citar alguns.

Dentre todas as maneiras idealizadas de analisar as intercessões entre o Direito e a Literatura, é de suma importância observar o direito na Literatura, em um viés que  examina a importância de personagens marcantes ; como Capitu da obra “ Dom Casmurro” de Machado de Assis e a análise de conceitos complexos para o Direito como o de culpabilidade . 

Assim, faz- se mister examinar tais intercessões, refletindo sobre a concepção de culpabilidade através da personagem Capitu, a dona dos olhos de cigana obliqua e dissimulada, sob um viés jurídico e psicanalítico; visto que por muito tempo subsiste no imaginário dos leitores de Machado de Assis a dúvida cruel da possível traição a Bentinho.


4.Capitu, culpada ou inocente?

As obras de Machado de Assis são divididas em duas fases: A primeira fase (fase romântica) e a segunda fase (realista), que é considerada a melhor de sua carreira, pois, destaca questões psicológicas dos personagens deixando transparecer as características do realismo literário.

Na fase Realista, Machado faz uma análise profunda do ser humano, destacando suas vontades, necessidades, defeitos e qualidades, observando o espirito humano e refletindo sobre seus valores. Nessa fase as suas principais obras são: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892) e Dom Casmurro (1900).

Dom Casmurro é considerada uma obra prima da literatura brasileira, não apenas pela genialidade, aspecto inerente aos textos machadianos, mas por apresentar com minucia características da alma humana e dispor de assuntos relevantes para a sociedade, como a concepção de culpabilidade.  Nesse sentido elenca Silva (2009, p. 50):

“Dom Casmurro não se trata de uma mera reprodução dos costumes de uma época. Além de trazer as contradições do mundo social do século XIX, o texto extrapola essas questões, abordando temas como a passagem do tempo, a consciência da finitude das coisas, o amor, a amizade, a dúvida da traição e também o trágico, tudo isso sem abrir mão da ironia e da comicidade Machadiana.”

A narrativa é contada em primeira pessoa, por um dos personagens principais Bento Santiago, carinhosamente chamado de Bentinho e,  também apelidado de Dom Casmurro. O narrador relata a sua história de amor por Capitolina (Capitu), desde a grande descoberta na adolescência até o seu trágico e realista fim. Capitu, a dona dos “olhos de cigana obliqua e dissimulada”, é a personagem principal ficando Bentinho, o narrador, como personagem secundário ao lado dos vários outros personagens como Escobar o antagonista.

Toda a história gira em torno da possível traição de Capitu a Bentinho com o seu melhor amigo Escobar. Sucessivos acontecimentos levam o Dom Casmurro crer que a  esposa havia o traído, são eles: a semelhança existente entre o filho de Bentinho e Capitu com o então amigo Escobar, que é expresso no trecho :

“ Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa. (ASSIS, 1947, p. 411)”

Outro acontecimento que leva Bentinho a crer na possibilidade de ter sido alvo da infidelidade de Capitu foram as duas vezes em que Escobar vai à residência do casal, na ausência de Bentinho. Tais visitas, ao mesmo tempo, não provam nada ou no imaginário do ciumento Casmurro induzem a tudo, principalmente quando Capitu se vê obrigada a contar para o marido sobre a primeira visita do amigo e comenta: "Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse". Desconfiasse do quê? Certamente Capitu já conhecia o ciúme do marido e não queria provocá-lo.

Na segunda ocorrência, Bentinho, ao retornar de uma ópera, encontra Escobar no corredor de sua casa, de saída. Como desculpa o amigo lhe apresenta um motivo jurídico importante, no entanto, para Bento não havia nenhuma dificuldade no caso. Fazendo-o questionar os motivos que ensejaram a Capitu não querer acompanhá-lo ao espetáculo, que sob alegação de estar acometida de um mal insiste para que ele fosse sozinho. No entanto, quando retorna para casa encontra com Escobar e constata que a esposa havia melhorado. 

Outro aspecto da narrativa  que é utilizado por Bentinho a crer na possibilidade da traição foi à maneira como Capitu reagiu à morte de Escobar:

“ Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (ASSIS, 1947, p. 374)”

O cerne da obra é o ciúme e a insegurança por parte de Bentinho apesar de o leitor ficar sem saber se Capitu é de fato, inocente ou culpada. Machado de Assis nos convida  a participar da obra e interpreta-la segundo nosso próprio julgamento: “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas” (ASSIS, 1947, p. 75 ).

Nesse sentido, o leitor passa a ser figura ativa dentro do livro, começa a pertencer  a narrativa, torna-se juiz de Capitu e decreta em seu imaginário se ela seria culpada ou inocente pelo adultério. Assim, a concepção da culpabilidade de Capitu deve ser analisada.  Para  Endres (2000, p. 15 )

As conclusões tiradas por Bentinho quanto à culpabilidade de Capitu são baseadas nas especulações mas poderiam igualmente ser fundadas na natureza humana de questionar e tirar conclusões apesar da relatividade destas. Pode ser observada as seguintes conclusões: Primeiro, que Ezequiel é filho de Escobar e não o seu; segundo, que Escobar teve relação amorosa com Capitu; terceiro, que Capitu “confessou” involuntariamente; quarto, que Capitu ama Escobar; quinto, que Capitu não ama Bentinho, e finalmente que Capitu e Escobar são infiéis e espertíssimos.

A concepção de culpabilidade advém de uma noção pessoal de censura. O termo “culpado” trás uma carga axiológica negativa, visto que, refere-se a um juízo de reprovação que se faz ao autor do fato. Analisaremos, assim, tal perspectiva.


5.A concepção de culpabilidade: uma análise jurídica e psicanalítica.

Muito da provável culpa de Capitu se atribui à narração de Bento Santiago, o marido possivelmente traído que conta sua versão dos fatos. Está claro que o intuito do Dom Casmurro é defender-se, provar, ao longo da história, que Capitu é realmente culpada e que seria capaz de traí-lo.

 Desta maneira, o fato de ser Bento o narrador contribui para o mistério de duas maneiras: tanto ele se utiliza de todos os argumentos a que tem alcance para incriminar Capitu, o que pode levar o leitor a julgá-la culpada, como também o leitor pode interpretar seu ponto de vista como exagerado e afetado pelo ciúme, pela paranoia, podendo,  assim,  concluir que as provas apresentadas ao longo da narrativa podem não ser tão irrefutáveis e que talvez Capitu não seja culpada do adultério do qual é acusada.

Diante desse impasse e visto a importância para as intercessões entre o Direito, Literatura ; faz-se a necessidade de analisar a concepção de culpa da personagem Capitu ; adotando uma perspectiva distinta que observa a acepção da culpabilidade para a o Direito, bem como para a psicanalise .

A culpa está presente em todas as culturas; antropólogos, historiadores, cientistas sociais, psicanalistas e juristas, procuram uma concepção adequada para caracterizar tal sentimento ou fenômeno.  A culpa pode ser um sentimento pessoal ou fruto da concepção humana de julgamento do outro , cada indivíduo sente de maneira e proporção especifica, sendo a culpa um conceito abstrato e subjetivo. Segundo Moacyr Scliar (2007, p. 37):

Mas o que é a culpa? Podemos conceituar a culpa como uma acusação ou auto-acusação, por um crime ou uma falta ou ato inadequado, reais ou imaginários. Este conceito tem vários “ou” o que é uma evidência de imprecisão. Mas imprecisão é uma constante neste tema tão antigo quanto conflituoso.

Citando as diferentes abordagens que podem estar relacionadas com o tema, o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2012, p. 128) define a palavra culpa apresentando as seguintes concepções:

 1 responsabilidade por dano, mal, desastre causado a outrem 2 falta, delito, crime Ex.: grande é a c. de quem furta 3 atitude ou ausência de atitude de que resulta, por ignorância ou descuido, dano, problema ou desastre para outrem 3.1 Rubrica: termo jurídico. no direito civil, falta contra o dever jurídico, cometida por ação ou omissão e proveniente de inadvertência ou descaso 3.2 Rubrica: termo jurídico. no direito penal, ato voluntário, proveniente de imperícia, imprudência ou negligência, de efeito lesivo ao direito de outrem 4 fato, acontecimento de que resulta um outro fato ruim, nefasto; consequência, efeito Ex.: a inflação é c. da dolarização da economia 5 consciência mais ou menos penosa de ter descumprido uma norma social e/ou um compromisso (afetivo, moral, institucional) assumido livremente 6 Rubrica: psicologia. emoção penosa (de autorrejeição e desajuste social) resultante de um conflito (p.ex., entre impulso, desejo ou fantasia e as normas sociais e individuais) 7 Rubrica: religião. transgressão de caráter religioso e/ou moral; pecado Como podemos perceber, dentre as várias concepções apresentadas acima, encontramos a culpa como falta, omissão, responsabilidade, emoção e transgressão.

Na psicanalise, Freud analisa as “tendências julgadoras e punitivas” (FREUD, 2010, p.263) em personagens da literatura, ao passo que atribuía aos escritores um profundo conhecimento da sociedade e da alma humana. Pensava mesmo que os autores literários estavam muito adiante das pessoas comuns – entre elas cientistas e psicanalistas – porque bebiam em fontes para nós inacessíveis (FREUD, 1973, p.1286).

A culpa para Freud estaria ligada a relação do sujeito com a lei e a sociedade, em que toda uma herança simbólica representaria a culpa para o individuo e para o outro. O sentimento de culpa é sempre entendido, na perspectiva freudiana, como dispõe Gaspar ( 2007) decorrente da renúncia à satisfação passional. Essa renúncia teria origem no medo da perda do amor do Outro de quem o sujeito é dependente. Nesse sentido, a possível culpa que Bentinho incrimina Capitu seria decorrente do seu amor e apego exacerbado.  Nesse sentido,  Lacan ( 1990.p, 418) elenca:

“A inserção do homem no desejo está fadada a uma problemática especial, cujo traço primordial é que ela deve encontrar lugar em alguma coisa que a precede, que é a dialética da demanda, na medida em que a demanda sempre pede alguma coisa que é mais do que a satisfação a que ela apela, e que vai mais, além disso. Daí o caráter problemático e ambíguo do lugar onde se situa o desejo. Esse lugar está sempre para além da demanda, considerando que a demanda almeja a satisfação da necessidade, e no aquém da demanda, na medida em que esta, por ser articulada em termos simbólicos, vai além de todas as satisfações para as quais apela, é demanda de amor que visa ao ser do Outro, que almeja obter do Outro uma presentificação essencial - que o Outro dê o que está além de qualquer satisfação possível, seu próprio ser, que é justamente o que é visado no amor.”

Segundo Freud e Lacan existem uma intrínseca relação entre o afeto dispendido entre o individuo e o outro, com a concepção de culpa por ele aduzida. Assim, possivelmente, a paixão que Bentinho nutria por Capitu seria fator essencial para a atribuição infundada da traição. No amor doentio, além da sua própria satisfação o individuo deseja o Outro ser com exclusividade, mitigando suas relações interpessoais, visando apenas à satisfação pessoal e quase sempre; são acometidos por ciúmes doentios e exacerbados.

No que tange a teoria psicológica e psicanalítica da culpa, critica o alemão Jescheck ( 1981. P, 571) :

A concepção psicológica e psicanalítica da culpabilidade logo se mostrou, sem dúvida, como insuficiente porque não dava respostas às questões de quais relações psíquicas deviam considerar-se relevantes jurídico-penalmente e porque sua presença fundamenta a culpabilidade e sua ausência a exclui. Assim, não poder-se-ia explicar porque ainda quando o autor atuasse dolosamente e, portanto, tenha produzido uma relação psíquica com o resultado, deve negar-se sua culpabilidade se ele é um doente mental ou se agiu em estado de necessidade (§ 35). Tampouco poder-se-ia fundar o conteúdo da culpabilidade da culpa inconsciente com fundamento na concepção psicológica da culpabilidade, já que nela falta precisamente toda relação psíquica com o resultado

Assim fazer uma analise jurídica da concepção, faz-se imperioso. Na sua perspectiva jurídica, o Código Penal Brasileiro não traz definição para a culpabilidade, elevando-a um dos conceitos mais debatidos na teoria do delito. Nesse sentido conceituam Zaffaroni e Pierangeli,( 2006, p. 517 ) “esse conceito é um conceito de caráter normativo, que se funda em que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez, e que, nas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse” .

Adotado na atualidade, o conceito normativo da culpabilidade traduz um juízo de reprovação pessoal pela prática de um fato lesivo a um interesse penalmente protegido (GOMES, 2007). Visto que, o adultério não é mais punido criminalmente, mas reprovável na perspectiva social, perante sua acepção jurídica a personagem Capitu seria considerada inocente. No entanto, no que tange à concepção psicanalítica de culpa e sua acepção moral fica a critério do leitor colmatar essa dúvida. 


6.Conclusão

A concepção do Direito evoluiu no tempo de acordo com os fenômenos sociais. Na contemporaneidade, busca-se um estudo jurídico mais humanizado, que leve em consideração os inúmeros fatores formadores de uma realidade social. Com esse intuito, faz-se necessário uma analise holística, em que as diversas faces do conhecimento, como: antropologia, sociologia, história, literatura e psicanálise; são associadas para a aplicação e interpretação do direito material, pois, este representa uma expressão dos anseios humanos.                                                                                       

A ideia central do trabalho foi fomentar o estudo do Direito associado à Literatura, na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Mostrado a importância da interdisplinariedade como resposta a anseios sociais.  Dissecando o grande enigma da possível traição de Capitu e analisando as concepções distintas do conceito de culpabilidade; em um viés jurídico e psicanalítico. Teria ela cometido o adultério? Ou seria fruto da imaginação de Bentinho a possível traição?

Embora cada uma dessas conclusões possa ser neutralizada por outras propostas ou no livro existentes ou fora do livro, fica a critério do leitor responder tais questionamentos, visto que ele possui a função de grande interprete e julgador na obra. O papel do leitor torna-se indispensável na elucidação do enigma machadiano como o próprio Bentinho observa: “ Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta ou outra casta, não me aflijo nunca”.

Dessa maneira, cabe ao leitor retirar suas próprias conclusões se seria Capitu culpada ou inocente. Nesse aspecto consiste a extrema genialidade de Machado, deixando em aberto se a “dona dos olhos de cigana obliqua e dissimulada” haveria ou não cometido o adultério, permitindo que o leitor adentre ao universo lúdico da literatura.

Assim também ocorre no Direito o leitor da norma é o grande interprete é o seu maior interprete e os juristas devem prezar para que a hermenêutica seja exercida de maneira que leve a justiça e ao bem estar social.  

Diante o exposto, buscou-se realizar uma nova perspectiva de pensar o Direito e temas divergentes existentes nele; como o da culpabilidade. Em que a literatura surge com o papel fundamental de realizar uma reflexão critica, segundo analise de concepções psicanalíticas e literárias , com intuito primordial de repensar a dogmática exacerbada existente no Direito contemporâneo e associar novas formas de racionalizar as ciências jurídicas.


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