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Plantas transgênicas.

Marketing e realidades

Plantas transgênicas. Marketing e realidades

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I - INTRODUÇÃO

A eloqüência do discurso e a retórica das maravilhas das plantas transgênicas para o agronegócio, propaladas aos quatro ventos pelos arautos do livre mercado global, procuram pintar um quadro de "avant-garde" da biotecnologia como um poderoso elixir para os problemas da alimentação e saúde humana. Redução de custos, aumento de produtividade, melhoria do meio ambiente pela diminuição de pesticidas, alimentos saudáveis e nutritivos, plantas multifuncionais de largo espectro de produção em qualquer clima e solo, genética de precisão e outros atributos altamente improváveis em condições naturais entusiasmam os próceres da engenharia genética. Por outro lado, opiniões não tão eufóricas, fundamentadas na precaução, prudência, bom senso, princípios, escala de valores, pragmatismo cartesiano e convicções político-ideológicas contracenam argumentos de que a opção transgênica encontra-se nos albores bruxeleantes de uma nova era com um longo e árduo caminho a percorrer. Trata-se de uma obra que promete grandiosidade e suntuosidade mas, ainda, incipiente, inacabada e carente de grandes investimentos para almejar o status de obra-prima "hors concours". Apesar dos enormes esforços alocados na matéria nos últimos vinte e cinco anos no mundo todo e conquistas fantásticas - plantas resistentes a herbicidas, tomate longa vida, algodão e milho com fator letal a insetos, hortaliças resistentes a enfermidades, por exemplo - o fato concreto é que a tecnologia de plantas transgênicas acha-se mais fortemente carregado de tintas de marketing que suaves pinceladas de realidades objetivas do desenvolvimento do sistema agroindustrial moderno.

É preciso, portanto, escoimar das promessas e esperanças oníricas da engenharia genética a dimensão humana do agronegócio que tem origem no processo agronômico de fazer prosperar a terra, enquanto natureza viva, de forma diuturna e incansável em meio ao sol, poeira, chuva, ventos, pragas, doenças, ervas daninhas, atravessadores, juros, bancos, burocracias governamentais, mão-de-obra, impostos, políticas econômicas desastradas, concorrentes estrangeiros, subsídios e sobretaxas de países industrializados, e outras vicissitudes da arte de sobrevivência nacional. Ressalte-se que nesse cenário da "vida cotidiana como ela é" encontram-se em jogo o emprego, a renda, o bem-estar social, a qualidade de vida, a ética, a eqüidade de oportunidades, o senso de justiça e as perspectivas de desenvolvimento, entre outras realidades da complexa dinâmica do mundo competitivo, obsecado por crescentes performances econômico-financeiras, onde tudo passa a ser acessório, secundário.


II - REDUÇÃO DE CUSTOS

Uma das grandes virtudes das plantas transgênicas resistentes a herbicidas, conforme relatos correntes, diz respeito à redução de custos para os produtores rurais. Apontam vantagens da ordem de 10% a 20% na diminuição de custos no combate a invasoras com herbicidas de pré-emergência e de pós-emergências seletivos. Citam, ainda, que, em 75% dos casos, os agricultores americanos fazem uma única aplicação do herbicida Roundup Ready nas culturas de soja. Isto permite reduzir drasticamente o custo de aquisição e manuseio de diversos herbicidas da sistemática tradicional, por envolver um único produto de fácil manipulação e horas-máquina concentradas, igualmente, em uma única operação. Essas vantagens, colocadas de forma genérica e sem maiores detalhes, seduzem técnicos e agricultores interessados na nova tecnologia, além de ser útil e oportuno para a propaganda dos méritos agronômicos da planta transgênica. Mas, trata-se de uma meia-verdade que não condiz com a realidade do agricultor nem da agricultura, especialmente no conceito de desenvolvimento agroindustrial sustentado.

A redução de custo no controle de ervas daninhas com a planta transgênica em relação à planta convencional não se resume a herbicidas e gastos com suas aplicações. Para ser efetiva e metodologicamente consistente com os gastos, a análise comparativa deve levar em conta o custo combinado "semente de soja + herbicidas" nas alternativas de cultivo tradicional e cultivo de soja RR. O emprego simultâneo dos dois insumos (semente e herbicida) constitui exigência técnica, pois a soja RR foi especialmente aprimorada ou travestida para cumprir a missão de resistência ao herbicida RR. Trata-se de caso de bens conjuntos ou complementares que são interdependentes e relacionados na sua gênese de agronegócios.

A planta geneticamente modificada vai afetar em graus significativos as vendas de herbicidas e, por conseqüência, os resultados financeiros das empresas envolvidas. Essa "perda" relativa vai ser compensada, pelo menos na fase de acomodação e consolidação de mercado, pelo incremento no valor comercial das sementes engenheiradas. Uma empresa de engenharia genética, por exemplo, dificilmente venderá um "herbicida-cúmplice" (que é distinto do usualmente existente) por um preço inferior ao atualmente praticado, nem venderá a semente com fator de resistência pelo mesmo preço da semente convencional. Os bilhões de dólares investidos na biotecnologia e na aquisição de companhias de sementes precisam apresentar retornos econômico-financeiros a uma taxa compatível com as expectativas dos acionistas. E a receita operacional deve originar-se da venda casada "semente-cúmplice" mais" herbicida-alvo", com a semente desempenhando o papel de carro-madrinha do "gran prix" transgênico.

Um raciocínio tecnicamente correto, politicamente transparente e comercialmente franco deve computar o custo da semente e o custo de controle das ervas daninhas. Tome-se, por exemplo, a semente de soja tradicional variando, conforme cultivares e ciclos, entre R$ 25,00 a R$ 35,00 para 60 kg, em média, necessária para um hectare, e um custo de controle de ervas daninhas na cultura de soja em plantio direto, nos cerrados, em torno de US$ 40/ha com herbicidas de pré-emergência e pós-emergência seletivos. E compare-se, com base em informações de assistência técnica e de empresas de insumos, com a semente de soja RR estimada entre RS$ 50,00 a RS$ 70,00 por hectare, conforme variedades e ciclos, e o custo do controle de ervas com o herbicida RR balizado, preliminarmente, em torno de US$ 20/ha, com margens de US$ 5/ha para mais ou para menos, para duas aplicações em sistema de plantio direto com produtores eficientes. O custo combinado sementes + herbicidas resulta, a grosso modo e conforme estimativas preliminares, a título de exemplo, em uma média de custos na faixa de US$ 55 a US$ 70/ha, para as duas alternativas consideradas - soja convencional e soja RR. É bom atentar para o fato de que em algumas configurações agronômicas a tecnologia transgênica pode sair significativamente mais cara que a tecnologia convencional, se considerada a semente RR superior a RS$ 60,00 a saca de 50 kg, obviamente muito acima do preço de referência estimado em torno de RS$ 45,00/saca.

Na prática, em condições de campo, a utilização do herbicida Roundup envolve uma série de condições de uso que podem influir na avaliação de custos, tais como:

a) cultivo precedente ou precursor, com ênfase para o problema da soca ou restos (perdas) de colheita, plantio direto irrigado e alternâncias culturas de verão e culturas de inverno ou safrinhas;

b) população, grau de infestação e biologia das plantas daninhas;

c) qualidade da água (pH, pureza, fontes), que pode exigir de um litro a cinco litros de Roundup por hectare em função da característica dessecante do glifosate;

d) sistema de plantio convencional ou plantio direto e renovação de pastagens degradadas (sério problema do Centro-Oeste);

e) custo total do serviço de controle de ervas (suprimento de água, trator, pulverizador, mão-de-obra etc.);

f) necessidade de considerar o ano-agrícola e não simplesmente uma única safra de soja, tendo em vista o uso de, no mínimo, dois tipos distintos de herbicidas, em conseqüência da rotação de culturas (safras de verão e safras de inverno ou sequências com irrigação) e problemas de socas da soja RR, que vão exigir, obrigatoriamente, um outro herbicida.

O argumento de que a soja RR diminuirá sensivelmente as despesas com herbicidas precisa ser ponderado no sistema de produção de uma determinada exploração (plantio convencional, plantio direto, irrigação, escala de cultura, planejamento de rotações etc.) e, principalmente, no contexto de resultados operacionais de um ano-agrícola, envolvendo toda a planilha de despesas, inclusive custos financeiros e reposição de investimentos, como em qualquer outra atividade econômica. A influência da despesa "semente + herbicida" no cômputo geral de gastos na propriedade confere uma avaliação privada das vantagens da tecnologia transgênica. Mas, para uma análise econômica dos seus efeitos na sociedade, isto não é suficiente, em face das suas implicações em termos de custo-benefício. A tecnologia de resistência endógena ou geneticamente modificada vai, lastreada em correlações e inferências de experiências históricas de inovações tecnológicas, acarretar uma mudança em todo o sistema de produção, propiciada pela praticidade do método (aplicação em qualquer estágio da planta, com grande faixa de condição climática, ganho de tempo, economia de máquinas e mão-de-obra) que, por sua vez, termina por afetar a escala operacional da exploração agrícola com novos sistemas de mecanização e práticas de fitotecnia de melhor desempenho. Em agricultura, quando se muda significativamente uma determinada tecnologia - como a dos transgênicos - muda-se, invariavelmente, todo o sistema de produção, com a readequação de processos, máquinas e equipamentos, técnicas de plantio, programação de culturas, escala de operações, modelos de gestão, necessidades de investimentos complementares e novas necessidades de mão-de-obra. E essas mudanças culminam repercutindo no nível de preços, emprego e renda, tanto da agricultura como da própria economia do país. É o que ocorreu com o soja e com as tecnologias, biológica e mecânica, que acenderam os holofotes da agricultura de exportação; com a cana-de-açúcar com o proálcool, que alterou todo o sistema de produção agrícola e agroindustrial, tornando a atividade sucro-alcoleira nacional a mais competitiva do mundo; com a introdução do pivô central e outros sistemas de irrigação, que permitem a produção agrícola ao longo do ano sem sobressaltos de abastecimento, principalmente do problemático feijão; com a tecnologia do café irrigado superadensado, que altera a organização da produção da cultura na propriedade; com a plasticultura; com a hidroponia; com a tecnologia de aplicação de defensivos agrícolas por empresas especializadas. Assim, fica evidente que uma análise parcial (ou cross-section) da redução de custos defendida pelos transgênicos não tem sustentabilidade técnica diante de uma metodologia de avaliação econômica, privada ou social, que leve em devida conta a lógica do processo de desenvolvimento nacional no contexto mundial.


III - AUMENTO DE PRODUTIVIDADE

Durante os debates e reuniões que ocorrem ultimamente com razoável freqüência em várias instituições nacionais disseminou-se a idéia de que a soja RR contribui significativamente para o aumento da produtividade das lavouras. Como as informações não são, na maioria das vezes, suficientemente esclarecedoras quanto a minúcias técnicas de eficiência e eficácia de combate a ervas daninhas e capacidade de resposta agronômica de variedades, fica a impressão geral de que a produtividade seja um atributo natural da soja RR. Isto deriva do pressuposto de que a soja RR, ao facilitar o controle das invasoras, apresenta níveis de produtividade superiores às variedades convencionais. Sabe-se, no entanto, que existem no mercado diversas maneiras de manter uma cultura livre da concorrência de pragas e que elas atendem às distintas necessidades e condições financeiras dos produtores, tais como: capina mecânica, capinas manuais, gradagem, herbicidas de pré-emergência, herbicidas de pós-emergência, filmes plásticos etc. Todos os métodos envolvem em proporções variadas, materiais, mão-de-obra, produtos acessórios, como veículos ou coadjuvantes técnicos, tempo, equipamentos e máquinas apropriadas, conhecimentos e outros itens que levam a resultados concretos em termos de custos e obtenção de culturas com alto padrão de desenvolvimento agronômico. Além disso, lavouras limpas facilitam e permitem maximizar a operacionalização das colheitadeiras, pela ausência de embuchamento, velocidade uniforme de colheita, ausência de paradas freqüentes para limpeza de componentes, eficiência na eliminação de impurezas de grãos etc.

Um determinado sistema de controle de ervas daninhas incorre em um certo montante de despesas para se lograr um dado nível de eficiência de resultados (grau de reinfestação, espécies recalcitrantes, rebrotas, falhas operacionais). Em outras palavras, o que difere um método de controle para outro é o custo envolvido e a sua praticidade em termos de escala do empreendimento agrícola. Um método (capina manual, mulching, lâmina plástica) pode ser perfeitamente adequado para pequenas áreas, mas totalmente improcedente para dimensões maiores. Mas, em termos de eficiência relativa (controle total de invasoras e resposta produtiva), uma lavoura livre de pragas com capina mecânica vai apresentar a mesma produtividade que outra conduzida com herbicidas em igualdade de condições (solo, época de plantio, adubação, densidade, controle de pragas e moléstias etc). O método de controle de invasoras não consegue, por si só, aumentar o potencial produtivo de uma planta. A quantidade de colheita obtida de uma mesma variedade em igualdade de condições não pode apresentar diferenças estatísticas significativas conforme métodos distintos de controle de ervas daninhas tecnicamente conduzidos, uma vez que o potencial genético é o mesmo.

A produtividade ou rendimento por hectare de uma planta decorre de uma conjugação de diversos fatores intrínsecos ou genéticos da própria planta em meio apropriado ao seu franco desenvolvimento. A produtividade, agronomicamente, resulta de um efeito poligênico, da interação de vários genes que, estrategicamente aprimorados e combinados em um dado germoplasma, permitem elevados índices de desempenho. De uma forma geral, uma planta altamente produtiva apresenta as seguintes características, nos cerrados:

a) resistência a estresse hídrico, tolerando níveis aceitáveis de insuficiência (ou excesso) hídrica, como veranicos de certa intensidade;

b) resposta a fotoperíodos, maximizando a capacidade fotossintética do seu ciclo vegetativo em período de intensa luminosidade, como no verão;

c) tolerância à toxidade de certos elementos minerais, como alumínio, ou a acidez crítica de certas áreas;

d) capacidade de resposta eficiente a fertilizantes ou a micronutrientes;

e) adequada arquitetura, com vistas à eficiência na captação de luz e potencial produtivo em termos de perfilhamento, ramificação, inserção de vagens etc;

f) grau de adaptabilidade às variações de amplitudes térmicas, tanto de máximas como de mínimas, e a outras características sazonais;

g) resistência a pragas e moléstias, como, por exemplo, nematóides de cisto, cancro da haste, percevejos, lagartas etc;

h) resistência a acamamentos ou tombamentos e quebras de ramos ou perfilhos;

i) outras qualidades agronômicas superiores: ciclo da planta, rapidez de desenvolvimento, capacidade regenerativa a extresse físico, uniformidade de maturação, resistência mecânica na colheita, características dos grãos etc.

Por outro lado, a planta transgênica resistente ao herbicida, no caso a soja RR, foi especialmente manipulada para dispor de resistência ao herbicida RR. Sua grande virtude ou trunfo mercadológico, nas condições e propostas técnicas apresentadas, prende-se ao gene de tolerância ao herbicida RR, que não interfere em nenhuma outra característica da planta. Não há, conforme relatos a respeito, efeitos pleiotrópicos, isto é, o gene de tolerância ao herbicida não exerce influência em outros genes responsáveis pelas características diferentes das variedades convencionais. Por isso, as características de cor, textura, teor de proteína, composição de aminoácidos e outros não são alteradas na soja RR. Em conseqüência, não é de bom alvitre divulgar que a soja RR aumenta a produtividade das culturas por controlar as ervas daninhas, porque a soja geneticamente modificada não foi aprimorada para aumentar a produtividade (que é resultado de um efeito poligênico), mas tão-somente para conferir resistência ao herbicida RR. Ressalte-se, ainda, que o gene do fator de resistência ao herbicida é introduzido em qualquer variedade ou cultivar de soja de reconhecido sucesso comercial em uma dada região, apenas agregando às características pré-existentes um atributo complementar de herbicida RR. Portanto, qualquer informação de aumento de produtividade da soja RR assemelha-se mais a uma força de expressão ou de marketing tendencioso, uma vez que a realidade dos fatos mostra que produtividade não é qualidade ou característica intrínseca da soja engenheirada.


IV - ENGENHARIA GENÉTICA COMO ÚNICA FORMA DE RESOLVER O PROBLEMA DA FOME

Um dos argumentos utilizados na defesa da importância dos transgênicos concerne à idéia de que essa tecnologia constitui a única forma de resolver o problema da fome no mundo. Estima-se que a população mundial passe dos cerca de 6 bilhões de habitantes atuais para aproximadamente 9 bilhões em 2.020, 75% dos quais vivendo em países em desenvolvimento. O solo agricultável vai progressivamente diminuindo à medida em que cresce a população e as exigências urbano-industriais - represas, estradas, núcleos urbanos, ferrovias, pólos industriais etc. - além de significativas baixas de fertilidade natural causadas pela erosão, salinização, usos inadequados, imperícias ambientais e, principalmente, disponibilidades hídricas de qualidade. O aumento da população, variável dinâmica, pressiona uma natureza finita que se encolhe diuturna e implacavelmente, tornando latente a fatalidade inexorável da teoria malthusiana. Diante do desafio da produção alimentar, o trunfo biotecnológico, notadamente através da engenharia genética, revela-se arma de inestimável valor. Muitos acreditam que só a tecnologia, como sempre tem ocorrido na história da humanidade, possa equacionar, com razoáveis níveis de confiabilidade, o dilema de suprimentos agroalimentares de um mundo faminto e, ao mesmo tempo, gerador de montanhas de resíduos de toda ordem em escala crescente. As tecnologias convencionais de melhoramento genético, controle de pragas e moléstias, de aumento da produção e produtividade, de equacionamento de problemas agronômicos de adaptabilidade a condições bióticas e abióticas, de disponibilidade de produtos ricos em elementos essenciais à vida, entre outras, não serão capazes de oferecer respostas eficazes à altura das necessidades concretas da humanidade.

No entanto, uma breve análise da história da alimentação e da agricultura mundial mostra-nos que a solução da fome do mundo não depende apenas do equacionamento da oferta satisfatória de alimentos. Em todos os países o suprimento alimentar é equacionado pelas forças de mercado, sob uma relativa supervisão do poder público - vigilância sanitária, defesa do consumidor, licenças ambientais, fiscalizações, políticas econômicas etc. - onde interagem produtores, consumidores, distribuidores, processadores, vendedores e instâncias reguladoras que a teoria econômica convencionou chamar de sistemas agroindustriais.

O fator técnico, a exemplo da tecnologia dos transgênicos, responde por apenas uma parte do complexo dilema da organização de uma produção que é função, como ensinado nos manuais de microeconomia, de terra, capital, mão-de-obra e tecnologia. E a oferta de um bem ou serviço no mercado é uma função de quantidades disponíveis em um certo período de tempo de um dado produto entre produtos similares substitutos ou a ele relacionados, de preços dos insumos e de preços dos produtos pertinentes praticados no comércio. Essa oferta precisa ser confrontada com a demanda, uma equação que contempla consumidores, renda disponível e preços, de tal forma que se encontre uma quantidade e um preço que satisfaçam compradores e vendedores interessados em um dado bem de um mercado específico em um momento preciso. Interessa, por exemplo, o mercado físico da soja tipo superior no Centro-Oeste, no dia 15 de maio de 1999, a R$ 15,00 a saca, pagamento à vista e entrega imediata. Produto, tempo, localidade, consumidor, vendedor, preço, condições de pagamento e entrega, constituem variáveis-chave de qualquer produto alimentar e resultam de fenômenos como consumo, investimento, elasticidade-renda ou elasticidade-preço, população-alvo, concorrência e políticas macroeconômicas.

O problema da fome não se resume, portanto, à produção de alimentos enquanto fluxo de um processo sócio-econômico. A fome resulta de inadequação no funcionamento geral de políticas econômicas que não conseguem equacionar, no tempo e no espaço, as questões de renda, emprego e estabilidade monetária. O mercado de produtos agroalimentares, em qualquer país do mundo, funciona segundo as regras de uma economia de livre iniciativa, onde a rentabilidade relativa das atividades orienta o processo alocativo de recursos produtivos. Por essas razões, não se produz de forma sustentável ou economicamente viável um bem ou serviço que não atenda às exigências de rentabilidade privada no contexto de outras opções factíveis nas mesmas condições pelos distintos agentes econômicos presentes em uma economia. Diante desse fato, um dos grandes problemas da agricultura mundial consiste em convencer os agricultores de que a alternativa "produtor agrícola" ainda é interessante e que pode atender às suas expectativas de renda, apesar de outras oportunidades no comércio, na indústria ou simplesmente como especulador financeiro. Não se produzem alimentos pensando em saciar a fome das pessoas, mas como atividade econômica sustentável que permita uma remuneração capaz de satisfazer às necessidades das pessoas diretamente concernentes. Na ausência de retornos compatíveis com os investimentos e recursos alocados na produção agrícola, os produtores, como agentes econômicos racionais e pragmáticos, deslocam-se para outros afazeres mais promissores no país ou no mundo. A produção de alimentos é, portanto, um problema de vontades individuais, de políticas públicas, de concertações internacionais, de existência de alternativas técnicas e econômicas viáveis, de poder aquisitivo e da dinâmica empresarial possível no País. É por isso que a fome ou a subnutrição em camadas carentes ainda não foi devidamente solucionada no mundo.

Nessas condições, a planta transgênica não vai resolver o problema da fome, nem atenuar o desnível tecnológico entre estratos de produtores. Pelo contrário, o transgênico pode agravar ainda mais a competitividade de muitos produtores, que ficarão totalmente dependentes de suprimentos de insumos técnicos (sementes e defensivos) de reduzidíssimo grupo de fornecedores em um mercado totalmente monopolizado ou cartelizado, se providências de controle ou regulamentação social não forem eficazes. Ressalte-se, ainda, que o nível de preços finais de um produto agrícola não resulta somente de um melhoramento em ganhos de produtividade da agricultura. O preço final resulta de um somatório de eventos em toda a cadeia de agronegócios, isto é, de todos os aperfeiçoamentos possíveis à montante e à juzante da agricultura. A melhoria e uma maior disponibilidade de infra-estrutura econômica, como pesquisa, assistência técnica, energia elétrica, estradas, hidrovias, ferrovias, portos, telefonia e outros, repercutem diretamente na redução de preços, com aumentos significativos na competitividade dos produtos. Uma política tributária e cambial em um contexto de estabilidade econômica pode influir significativamente nos níveis da competitividade dos produtos agrícolas de forma mais representativa que uma expressiva melhoria tecnológica tomada isoladamente. A melhoria relativa da agricultura não decorre, portanto, somente de resultados na tecnologia agronômica como dos transgênicos, mas, de toda a cadeia do agronegócio no tempo e no espaço.


V - BONDE DOS TRANSGÊNICOS - É AGORA OU NUNCA

O movimento de açodamento e de inquietações que marcam a chegada das plantas transgênicas no país não constitui comportamento atípico no mundo dos negócios, onde o limite de atitudes das pessoas acha-se delimitado pelas leis, pela concorrência e pela vontade dos consumidores. Diversas estratégias - aquisições, alianças, parcerias com instituições públicas ou privadas, lobby, marketing - procuraram imprimir uma dinâmica sui generis com vistas à imediata liberação das plantas transgênicas para plantio comercial no Brasil. A ansiedade e a vontade de testar imediatamente o mercado brasileiro, ampliando a faixa de domínio geoeconômico da nova tecnologia, justificam todos os meios e métodos para alcançar objetivos comerciais estabelecidos há muito tempo na matriz. O mercado-alvo da vez é o Brasil, como segundo maior produtor de soja do mundo. Obsecadas e determinadas a conquistar, consolidar e expandir um mercado global de transgênicos, estimado em US$ 8 bilhões em 2.005 e em US$ 25 bilhões em 2.010, as empresas líderes no setor travam luta sem tréguas para fincar suas bandeiras comerciais no promissor espaço de agronegócios nacional.

A área cultivada de transgênicos, segundo dados disponíveis para 1998, envolve cerca de 30 milhões de hectares no mundo, dos quais 20,5 milhões de hectares (74% do total) nos Estados Unidos, 5,5 milhões de hectares na Argentina e cerca de 4 milhões de hectares no Canadá. Uma área de lavouras transgênicas dessa magnitude, com grandes produtores de grãos, constitui o principal argumento de que o Brasil, também, deve ingressar decididamente nesse mercado o mais rápido possível, com vistas à competitividade internacional. A Argentina já cultiva transgênicos em cerca de 75% da área de soja em 1998 e os Estados Unidos, em torno de 35%, devendo atingir aproximadamente 70% em 1999. Segundo adeptos dos transgênicos, notadamente de algumas lideranças rurais mais afoitas, qualquer atraso ou demora suplementar nas definições só tendem a agravar as condições competitivas do país, já, que a nova tecnologia possibilita aceso a uma série de vantagens agronômicas, segundo informações correntes. Por isso, não se pode perder o bonde tecnológico; urge tomar as decisões adequadas ao caso brasileiro, sob pena de perder partes substanciais de mercados de commodities. O momento é agora ou nunca, uma vez que mais tarde os mercados estarão plenamente atendidos pelos produtores de commodities transgênicos. Mas será que é isso mesmo?

Quando as questões que envolvem diferentes alternativas são colocadas de forma dual e excludente- do tipo "agora ou nunca, a saúva ou o Brasil, a ferrugem ou o café"- as proposições soam fatalísticas e messiânicas, próprias de carência de pensamento criativo ou coragem de buscar novos horizontes. Um alinhamento automático às causas transgênicas com base em pesquisas, dados, informações e referenciais técnicos do exterior marginaliza considerações das realidades intrínsecas do Brasil, como fatores sócio-econômicos, culturais, ambientais e agronômicos, que não guardam muita correlação com os correspondentes alienígenas. Uma determinada variedade de soja ou milho não é agronomicamente cosmopolita porque, como todo organismo vivo, ela é o resultado da interação entre informações biológicas hereditárias e condições do meio ambiente. Uma soja BR16, por exemplo, não é capaz de vegetar e, principalmente, de expressar todo o seu potencial produtivo e qualitativo em qualquer região do país. Uma variedade de soja de ótimo desempenho no Rio Grande do Sul não vai apresentar o mesmo padrão de desenvolvimento no Mato Grosso ou em Goiás, em razão de diferenças significativas de solo, clima, temperatura, fotoperíodo, altitude e complexas interações abióticas e bióticas.

Experiências, testes e pesquisas diversas encetadas em condições edafoclimáticas e biológicas tão díspares das do Brasil não constituem argumentos suficientemente convincentes de que o transgênico com fator de resistência ao herbicida (e muito pior no caso a insetos) não oferece nenhum risco à saúde humana ou animal e ao meio ambiente. Mesmo nos Estados Unidos, onde os plantios comerciais de soja começaram, com intensidade efetiva, em 1996, quando foram plantados cerca de 400 mil hectares e tenham atingido cerca de 9 milhões de hectares em 1998, os ajustamentos continuam sendo realizados e aprimorados. Integram esses procedimentos: a dosagem correta de herbicidas apropriados a uma dada configuração de fitotecnia e condições agronômicas; a aplicação combinada de diferentes herbicidas com vistas à eficiência de controle de ervas daninhas, uma vez que uma ou duas espécies em cada grupo de 1.000 espécies de ervas são naturalmente resistentes ao glifosate; a prática de rotação de cultura; a não repetição do mesmo herbicida para a mesma cultura durante longos períodos e a realização de práticas integradas de controle biológico de pragas e moléstias como vetores prováveis de transferência horizontal de genes de resistência ao herbicida.

Dessa forma, como nada disso foi adequadamente pesquisado nas diversas condições territoriais do Brasil, é válido, com muita pertinência, questionar se o bonde dos transgênicos não estaria um pouco adiantado na estação do agronegócio brasileiro. Transplantar modelos exógenos de elevada especificidade biodinâmica entrópica (interação abiótica e biótica, envolvendo solos, biodiversidade, biotas, microorganismos, condições hidrogeológicas etc) não constitui ato de bom senso, racionalmente correto e politicamente satisfatório. Ensaios e pesquisas com material transgênico levados a efeito à revelia de considerações técnicas e científicas ou mesmo legais, que culminaram na destruição policial de campos experimentais de arroz e de soja no Rio Grande do Sul, constituem sinais evidentes de pressa, de displicência e de deliberada omissão ou negligência com assuntos de elevada magnitude para o agronegócio brasileiro, que deve apresentar sustentabilidade econômico-financeira em perfeita harmonia com o meio ambiente. E, ainda, como justificar para a sociedade que um experimento com soja tenha 435 hectares, uma área superior à média da agricultura em muitos Estados, mesmo nos cerrados? Como uma empresa divulga uma meta de comercialização de sementes transgênicas antes do registro oficial no órgão competente e sem a liberação e autorização hábil no Ministério da Agricultura ? Como se justifica um aumento de índice residual de glifosato para soja de 0,2 ppm (parte por milhão), então vigente, para 20 ppm (um aumento de 100 vezes) e posteriormente para 2 ppm, ainda assim cerca de 10 vezes superior ao índice original ?

Não se toma um bonde sem saber o destino, sem programar a finalidade da viagem, sem examinar outros meios alternativos de locomoção e sem analisar custos e benefícios das diferentes opções existentes. É preciso, ainda, ressaltar que existe o livre arbítrio do passageiro em decidir, pela sua própria vontade ou decisão, se deseja embarcar nessa viagem ou em outro horário.

A questão de perder a chance do momento, de perder o bonde da tecnologia transgênica, não se revela apropriada nos termos colocados por muitas pessoas. Mesmo a questão de produção de commodity tradicional (ou naturalmente obsoleto) não constitui fator de demérito, uma vez que o mercado de grãos, enquanto matéria-prima para a alimentação humana ou arraçoamento animal, encontra-se sob domínio de seleto grupo de empresas de ação global (Cargill/Continental Grain, ADM e Dreyfus), que preocupam os próprios países importadores. Além disso, tem-se a questão delicada do valor agregado das exportações de grãos em mercados largamente dominados pelos países industrializados, que impõem sérias restrições à livre entrada de produtos mais refinados com grau de processamento e que envolvem marketing, embalagem, marca, distribuição e outros procedimentos comerciais que permitem aumentar de 3 a 5 vezes o valor da matéria-prima original. Esses dois aspectos - produtor e exportador de matérias-primas em mercado oligopolizado/cartelizado e globalizado, e capacidade de exportar valor agregado - é que constituem o fulcro do verdadeiro problema do agronegócio brasileiro. A questão transgênica, como a proposta atualmente pelas empresas dominantes, revela-se meramente operacional de como fazer essa tecnologia, quando o essencial reside na definição ou resolução do que fazer com o agronegócio. A preocupação é prioritariamente de ordem estratégica. Por isso, o bonde da história pode não ser a locomoção mais indicada para o agronegócio nacional neste momento.


VI - ENGENHARIA GENÉTICA É UMA TECNOLOGIA DE PRECISÃO

Muito se tem discutido sobre o caráter determinístico da engenharia genética durante os depoimentos das audiências públicas na Câmara dos Deputados em novembro de 1998 e em princípios de maio de 1999. De uma maneira geral, as alterações do material genético podem ser causadas por mutações e fenômenos deliberados, como a recombinação gênica, fluxo gênico e oscilação gênica. Com a chamada engenharia genética, tem-se a possibilidade prática de fazer uma sorte de "cirurgia molecular" nos constituintes biológicos da hereditariedade das espécies através da manipulação do DNA, alterando, controlando e transferindo informações genéticas dos sistemas vivos. Através de enzimas específicos, técnicas apropriadas e instrumentos de alta precisão, é possível cortar, quebrar, ligar, religar, inserir e reinserir segmentos ou fragmentos de moléculas de DNA, provocando, conscientemente, alterações bioquímicas no curso natural da genética. A pesquisa genômica, com auxílio de poderosos instrumentos modernos como microscópios eletrônicos, de transmissão e de varredura, que fornecem uma visão de alta resolução de átomos ligados em moléculas, e a mais avançada tecnologia de computação, reunindo tanto cientistas como técnicas de informática cada vez mais sofisticadas, procura seqüenciar e mapear todos os genomas de interesse da humanidade. Animais, plantas, microorganismos, insetos, protozoários e demais seres vivos constituem alvos da análise genômica, sendo o do genoma humano o de maior complexidade pelo número de genes e bases envolvidos (cerca de 100.000 genes e mais de 3 bilhões de nucleotídeos). Surgem, assim, termos estranhos à população, como marcadores moleculares baseados em microssatélites (ou análise de seqüências simples repetitivas), técnicas de mapeamento genético para programas de melhoramento tipo AFLP (polimorfismo no tamanho de fragmentos ampliados) ou RFLP (polimorfismo no tamanho de fragmentos restritos), avaliação de diversas moléculas obtidas e testadas em suas potenciais aplicações pelo screening, impressões digitais de material genético (fingerprint de DNA), desdobramento ou divisão de moléculas (gene splitting), avaliação de determinados genes de interesse nos cromossomos (cariotipagem) através de genes marcadores identificados de soja ou milho, para efeito de acompanhamento de suas características, entre outras, do dinâmico campo de pesquisas biotecnológicas. O envolvimento de diversos especialistas das áreas de bioquímica, biofísica, genética, microbiologia, ecologia, biologia molecular, matemática e ciência da computação, mostra que a engenharia genética constitui uma tecnologia complexa, onde a genética convencional passa a ser comparada a um teco-teco diante de uma nave interplanetária. Para muitos, a engenharia genética moderna é determinística, muito diferente da genética clássica que é probabilística, rudimentar e muito demorada. No entanto, apesar de todos os avanços e os recursos disponíveis da bioinformática, a engenharia genética ainda resta expressivamente estocástica, probabilística, sem lograr uma alta margem de precisão. Pode-se afirmar, no máximo, que se trata de primórdio de uma nova era de profundas metamorfoses, de incrível impacto na humanidade. A realidade é que a engenharia genética não atende, ainda, aos requisitos básicos de uma ciência exata fundamentada em cálculos pontuais e precisos a um dado nível de segurança estatisticamente confiável. Dos cerca de 50.000 genes do genoma da soja, muito resta a fazer em termos de seqüenciamento (ordem das bases químicas que constituem o código genético da soja) e mapeamento (descobrir todos os genes do DNA, sua localização, seus componentes, funções e demais atributos) dos seus constituintes genéticos. Pouco se sabe do efeito posicional de um dado gene na famosa dupla hélice da soja ou milho nem as interrelações específicas que se estabelecem entre os genes, afetando funções ou caracteres vitais de desempenho agronômico, nem mesmo com o recurso de marcadores genéticos. Sabe-se que, dos 20 cromossomos de cada metade do material genético da soja, foi possível identificar apenas certos genes de expressão agronômica relevante para produtividade e resposta eficiente às condições ambientais ou a fatores bióticos (pragas e moléstias). Esses genes foram identificados, isolados e monitorados nos diversos experimentos realizados em melhoramento de soja ao longo dos últimos anos. A análise genômica funcional, que se assemelha a avaliação do ecossistema dos genes, faculta ao homem o conhecimento das funções dos diferentes genes, interdependências, efeitos conjuntos ou combinados, seqüência, localização e demais características do material hereditário de um ser vivo. O estágio atual de recursos tecnológicos, embora notável, não permite intervenções cirúrgicas de DNA absolutamente confiáveis do ponto de vista de resultados esperados e efetivamente alcançados.

O processo de inserção de caracteres de interesse em uma planta (resistência a herbicida ou fator letal a insetos), se efetiva através da biobalística. Trata-se de um método de bombardeamento de genes para dentro da célula desejada, junto com partículas de ouro ou tungstênio, que se integram ao genoma da planta. A eficiência desse método atinge 20% para a soja. No caso do algodão, obtém-se uma variedade para cada cem tentativas de transformação genética, conforme relatos do Cenargen (Genebio março/99). Apesar dessa margem de eventos desejáveis, não é possível, hoje, saber a exata localização dos fragmentos ou segmentos de DNA no genoma da planta-alvo. Isto evidencia o caráter estocástico da engenharia genética e o longo caminho que se deve percorrer para realmente melhorar a "pontaria" da artilharia biotecnológica.

Um trabalho de seqüenciamento de genes de relevante impacto técnico e científico é o que está sendo ultimado em São Paulo com a bactéria Xylella fastidiosa, causadora do amarelinho (clorose variegada de citros), moléstia que contamina cerca de um terço dos laranjais paulistas, causando significativos prejuízos à economia cítrícola. Congregando cientistas de institutos de pesquisa, fundações e universidades, com diversos laboratórios interligados via Internet a uma central de processamento, procura-se, desde o final de 1997, descobrir a seqüência dos cerca de 2.000 genes do genoma da bactéria. Depois dessa complexa operação multiinstitucional e multidisciplinar, espera-se realizar um outro trabalho, igualmente complexo, de mapeamento de todos os genes, identificando aqueles que escrevem a receita das proteínas prejudiciais à lavoura citrícola. Do conhecimento da estrutura do genoma da Xylella e das funções dos seus genes torna-se possível estabelecer um programa de ações de expressiva capacidade resolutiva graças à possibilidade de intervenções precisas em fatores, elementos e mecanismos bioquímicos da moléstia do amarelinho. Outros trabalhos semelhantes, destinados ao combate do tradicional nefasto cancro cítrico e ao melhoramento das características agronômicas da cana-de-açúcar estão em curso de desenvolvimento no Estado. O interessante a observar nessa estratégia de trabalhos reside no desenvolvimento pari e passu da ciência e tecnologia, aprimorando conceitos, teorias, questionamentos, linhas de pesquisas, metodologias, aparelhagens e instrumentos, técnicas laboratoriais, modelos e técnicas computacionais, gerenciamento de equipes, interligação de laboratórios virtuais e gerenciamento de recursos humanos, materiais e financeiros, entre outras iniciativas. Trata-se de um programa exemplar de pesquisa e desenvolvimento com efeitos multiplicadores não só para ciência e tecnologia, mas para toda a sociedade em termos de impacto na cadeia de agronegócios do País. É um grande início de um destino que a criatividade e a determinação das pessoas envolvidas saberão definir.


VII - REFLEXÃO CRÍTICA DE UMA REALIDADE DOS TRANSGÊNICOS

Em um primeiro momento, as plantas transgênicas resplandecem o "glamour high tech" da sagacidade humana como organismos geneticamente modificados sedutoramente superiores às da natureza. Mediante técnicas apropriadas convertem-se possibilidades em realidades e projetos de pesquisas em invejáveis oportunidades de negócios. Gigantes do mundo das ciências da vida e do agronegócio, com faturamentos superiores ao PIB de muitos países, como o Monsanto, Novartis, Agrevo, Rhône-Poulenc, Cargill, DuPont, Zeneca e outros, orquestram o ritmo de desenvolvimento da engenharia genética encetando operações de megafusões e incorporações bilionárias, independentemente de posições nacionalistas, sentimentais ou ideológicas. As iniciativas perseguem focos empresariais precisos em áreas mercadológicas de alta densidade de capital e de retornos a taxas crescentes, decorrentes do domínio de tecnologias de ponta asseguradas por patentes e alianças estratégicas. Tais ações se desenrolam em um cenário de livre mercado global com políticas de investimentos multilaterais e ampla liberdade de movimentos, tanto no comércio como nas alocações financeiras, onde a expressão da vontade dos governos nacionais tem reduzida efetividade prática em conseqüência da supremacia das orientações emanadas em foruns internacionais: OMC - Organização Mundial do Comércio; FMI - Fundo Monetário Internacional; FAO/OMS - órgãos das Nações Unidas para alimentação e agricultura e Organização Mundial da Saúde; BIRD - Banco Mundial; UPOV - União para Proteção das Obtenções Vegetais; Acordos; Convenções e Tratados Internacionais de que o Brasil é signatário. Esse conjunto de marcos institucionais no concerto das relações entre países influencia, por sua vez, o arcabouço jurídico-institucional interno, a exemplo da lei de patentes, lei de cultivares e biossegurança. Em um mundo cibernético desregulamentado onde tudo se processa instantaneamente graças à teleinformática, o País é, ainda, um mero coadjuvante da grande peça econômica que se representa no palco capitalista internacional, dominado por condições concorrenciais ditadas pelas grandes potências-líderes.

A engenharia genética e a tecnologia da informação constituem armas extremamente versáteis de alto impacto no mundo dos negócios. Elas revolucionam conceitos, princípios éticos e filosóficos, referência de valores, competitividade, senso de justiça, liberdade de ação e, principalmente, chances de progresso em uma aldeia econômica homogeneizada que se mostra terrivelmente cruel com os inabilitados para a nova dinâmica internacional do século XXI. O jugo do mercado sem fronteiras conta, como no caso das plantas transgênicas, com expressivos recursos da mídia eletrônica e com a força avassaladora do marketing para granjear mais consumidores e obter crescentes resultados em seus balanços anuais. Mas muitos não compartilham dessa visão mercantilista e consumista dos valores humanos e da própria natureza por opção ao direito inalienável à vida, à livre determinação dos povos, consciência ambiental e preservação da biodiversidade para as futuras gerações.

A odisséia no campo da biotecnologia do século XXI comporta riscos e incertezas inerentes a toda atividade científica e relembra uma peripécia de rafting (canoagem) em rio encachoeirado, cheio de pedras, árvores e montanhas de uma inóspita região. As sensações de liberdade, de perigo consciente e de prazer de dominar as forças das águas revoltas retemperam o espírito irrequieto de homens arrojados permanentemente ligados a desafios. A percepção de liberdade, êxtase em participar de um esporte radical e a ânsia de explorar os limites das maravilhas do mundo são comuns em canoagem, em mergulho submarino em Fernando de Noronha, em um safári na África e, principalmente, nos inebriantes êxitos das descobertas científicas e tecnológicas. Descobrir, inventar, criar, recriar, fazer, conhecer e explicar como as coisas existem ou funcionam, perscrutando o infinitamente pequeno como a molécula de um DNA ou o infinito das galáxias, constituem traços indefectíveis da própria condição humana, mormente dos cientistas. Com a manipulação do DNA, combinando ou recombinando material genético de espécies afins e/ou de espécies diferentes, o homem é capaz de decretar, literalmente, o fim das espécies e criar organismos vivos segundo a sua necessidade e conveniência de uso particular. Uma nova revolução agrícola, de imprevisível impacto sócio-econômico e cultural nos sistemas agroalimentares globalizados, muito mais importante que a revolução verde dos anos 60, tem início efetivo com o advento de plantas transgênicas.

Do lançamento comercial de variedades e cultivares geneticamente modificadas, fruto do domínio da engenharia genética, surge, agora, um momento de reflexão, de ponderação e de avaliação crítica do emprego generalizado desse trunfo tecnológico. Questionamentos de ordem ética, religiosa, econômica, social, política, legal, sanitária e ecológica evidenciam o caráter polêmico das manipulações genéticas alterando o curso normal da natureza, mesmo considerando as melhores intenções das descobertas científicas. Artefatos nucleares de destruição de massa, armas biológicas fatais, armas químicas, bombas e mísseis a laser, GPS para guidagem de mísseis intercontinentais de longo alcance, e outros, são exemplos dos perniciosos desvios das conquistas tecnológicas. Assim, temas como o neodarwinismo, reducionismo, o que é a vida, biotecnologia para quê, a lógica da vida, brincando de Deus, franksteinização da natureza, produzir alimentos para quem, público-alvo dos produtores de plantas transgênicas, impacto no emprego rural das novas tecnologias, riscos à saúde humana e ao meio ambiente, poluição e erosão genética, redução da biodiversidade, níveis mínimos da biossegurança, cartéis e monopólios, bancos de germoplamas privados, globalização genética, o gene como moeda de valor do agronegócio, privatização e patenteamento de genes, e tantos outros, procuram contrapor argumentos em defesa de pontos de vista ou pareceres conclusivos de uma dada posição. Conhecer o universo das colocações multifacetadas sobre as plantas transgênicas, separando marketing e realidades, constitui necessidade e importância estratégica para o desenvolvimento de uma consciência crítica embasada em conhecimentos técnicos. Saber decidir e saber conviver em um mundo complexo significa também dispor de consciência crítica das idéias dominantes, contradições, esperanças, fantasias, dúvidas e realidades intrínsecas das plantas transgênicas.

A planta transgênica não constitui panacéia para a agricultura, nem se resume a uma variável tecnológica de produção que se esgota por si só. Ela se integra sistematicamente a um conjunto de tecnologias e políticas econômicas que, se devidamente coordenadas e sistematizadas pela ação diligente do homem, têm o poder de alcançar objetivos de desenvolvimento em escala, rapidez, eficiência e abrangência democrática de uma forma nunca antes registrada na história da própria humanidade. Uma compreensão crítica e pragmática da engenharia genética do DNA recombinante vis-à-vis da realidade brasileira revela-se oportuna e necessária para um adequado posicionamento institucional na formulação de políticas públicas consentâneas com os desafios do País na economia mundial do limiar de um novo século.


VIII - CONCLUSÃO

A moda atual no agronegócio e na alimentação humana é a planta transgênica. Muito se tem propalado e abominado as virtudes e contingências, positivas ou negativas, de suas implicações na sociedade. As maravilhas fantásticas da biotecnologia, fortemente impulsionadas pelo marketing, devem ser racionalmente cotejadas com a dura realidade da economia de um país de contrastes, de assimetrias sociais gritantes, detentor da maior biodiversidade e do maior potencial agrícola do mundo. O Brasil é um grande ator na cena do agribusiness mundial e desempenha seu papel no turbilhão da globalização e da virtualização avassaladora das redes digitais. Estimular um pouco a consciência crítica das pessoas, perscrutar um olhar reflexivo sobre a dinâmica do desenvolvimento e levantar questões práticas de políticas públicas, foram os objetivos deste documento. Tem caráter, forçosamente, preliminar em função da precariedade das informações de campo disponíveis até o momento.

Muito do que se tem noticiado sobre os transgênicos deve ser relativizado à exata dimensão dos fatos como a questão da redução dos custos, aumento da produtividade, tecnologia de precisão, única forma de reduzir o problema da fome e do bonde da história. O mundo, globalmente, nunca produziu tanto alimento como atualmente, com muitos produtos registrando as menores cotações dos últimos 23 anos. Um mercado pletórico e práticas protecionistas dos países desenvolvidos levam à formulação de questões como: produzir alimentos para quê, para quem, com que níveis de remuneração e a que custos? A produção de alimentos não é um ato de caridade ou causa humanitária. A produção agrícola é essencialmente mercantilista, baseada em resultados práticos vis-à-vis de alternativas alocativas de renda e emprego. O poder aquisitivo da população estribado em uma justa distribuição da riqueza nacional respalda a afluência de um mercado que, por sua vez, determina o ritmo de progresso da agricultura. São as condições vigentes nos mercados consumidores que moldam a dinâmica da sustentabilidade econômico-financeira da produção agropecuária, sabidamente sazonal, intensiva em capital e tecnologia, subordinada aos caprichos da natureza e dependente dos humores das políticas econômicas de governos locais e das conveniências internacionais. É esse, de forma muito sintética, o contexto de ações das plantas transgênicas.

Se há um aumento significativo de produtividade e redução de custos igualmente importante, por que uma agricultura tão brilhante como a americana precisa de subsídios e mecanismos de proteção à produção agrícola e de incentivo à exportação, estimados em torno de US$ 69 bilhões (editorial Estado de São Paulo, 18 de abril de 1999)? O certo é que, mesmo com tecnologias de alto impacto como as transgênicas, a agricultura americana não consegue manter uma razoável sustentabilidade econômica sem o apoio expressivo de recursos governamentais. Para a safra 1999, somente a política de preços mínimos (loan prices) vai exigir um subsídio superior a US$ 5 bilhões, em função das baixas cotações dos produtos agrícolas. Nota-se, assim, que o livre mercado que exalta a eqüidade de oportunidades econômicas e as regras eqüânimes de práticas comerciais não passa de uma retórica, de um discurso político de países hegemônicos que insistem em pautar suas ações segundo interesses conjunturais próprios.

Mas, afinal, qual o trunfo real das plantas transgênicas de resistência aos herbicidas, considerando-se a redução de custos ao longo do ano agrícola e não somente em uma única safra? A resposta a essa questão e também ao aumento de produtividade, que é falsa, prende-se ao argumento de conveniência prática, independentemente de despesas diretas, de elevação de desembolsos financeiros imediatos. O raciocínio é o mesmo das lojas de conveniência, lojas 24 horas, delivery e outros sistemas de satisfação das necessidades dos clientes. O que importa é a praticidade, aliando comodidade e funcionalidade de um estilo de vida moderno, onde se procura a maximização de tempo e a otimização de alternativas de satisfação pessoal. Mesmo pagando mais caro, o consumidor vai exigir produtos e serviços de alta praticidade e economia de tempo. Os argumentos que corroboram essa idéia são inúmeros: comida pronta congelada, pratos dietéticos balanceados que só precisam de aquecimento, hortaliças fresch cut prontas para salada temperada, carne maturada ou temperada para churrascos, frangos e peixes com cortes especiais prontos para assar ou servir, sopas e massas de rápida preparação, e assim por diante. Até nas máquinas e equipamentos agrícolas esse fenômeno guarda o mesmo sentido e abrangência: praticidade, funcionalidade, facilidade de manutenção e manuseio, desempenho operacional, rapidez de trabalho etc. Apesar de serem expressivamente mais caros que os modelos anteriores, os agricultores vão procurar atualizar o parque de máquinas e equipamentos, como ocorreu no Agrishow 99 de Ribeirão Preto, ocasião em que colheitadeiras simples foram vendidas por cerca de R$ 190.000,00 (cerca de 13.500 sacas de soja), quando a correspondente em dezembro de 1998 era encontrada por cerca de R$ 130.000,00 (ou cerca de 10.500 sacas de soja). A significativa diferença nas relações de trocas (sacas necessárias para o equipamento) em reais deve-se à queda nas cotações internacionais e à desvalorização cambial, uma vez que o valor em dólar sofreu um reajuste de, aproximadamente, 15%. As máquinas de maior valor, que custavam em 1998 em torno de R$ 200.000,00, pularam para cerca de R$ 350.000,00. Mas, mesmo assim, esses equipamentos continuarão a ser comercializados simplesmente porque, sobretudo os modelos recentes, são mais práticos e funcionais, apresentam maior capacidade de operação, reduzem perdas na colheita etc. A praticidade e a comodidade representam tempo, dinheiro e, principalmente, custos de oportunidades nas decisões empresariais e pessoais. O investimento não é resultado, apenas, de um cálculo de viabilidade econômico-financeira restrita, de custos e benefícios da máquina em si. A decisão é fruto também de custos de oportunidades para o agricultor e para a propriedade ao longo de um determinado período. Portanto, horizonte de tempo, necessidade, oportunidade e estratégia operacional é que definem o investimento.

É por essas razões que a tecnologia da engenharia genética tende a afetar todo o sistema de produção e a escala de valores da cultura agroindustrial à semelhança do advento de herbicidas há cerca de 25-30 anos, quando essa inovação permitiu uma acentuada mecanização nas lavouras, ampliando a área de cultivo com um menor contingente de mão-de-obra. É só imaginar o trabalho, mecânico e manual, de controle de ervas nas lavouras de milho, soja, feijão ou algodão, por exemplo, quando o tamanho de uma plantação era determinado, em grande parte, pela capacidade de mantê-la livre da concorrência de pragas. A tecnologia transgênica pode favorecer o aumento da escala de produção em decorrência da criação de condições operacionais mais propícias a novas máquinas (trator/colheitadeiras) de maior desempenho, do emprego de novas variedades com arquitetura maximizadora de fotossíntese, da possibilidade de aumentar a área média de cultivo das lavouras, e da necessidade de reprogramar investimentos e instalações, entre outras mudanças adaptativas. As plantas transgênicas podem, a exemplo de outras inovações históricas, causar um sério impacto nos sistemas de produção atuais, uma vez que, invariavelmente, toda inovação tecnológica de impacto tende a alterar todo um sistema agrícola vigente. É o que ocorre quando se introduz a irrigação por pivô central, se usa a técnica do café superadensado, se usa a plasticultura ou se faz plantio direto. A mudança de padrão tecnológico significa, igualmente, mudança nos padrões gerenciais e na cultura empresarial do produtor rural. O acesso a uma nova tecnologia pode significar, também e infelizmente, o acesso a um nível de incompetência gerencial e técnica, fatal em muitos empreendimentos no agronegócio moderno.

Quando as questões relativas à biossegurança, especialmente no tocante a riscos à saúde humana e animal e ao meio ambiente, forem devidamente equacionadas e cientificamente calibradas às necessidades dos produtores e consumidores, as plantas transgênicas tenderão, portanto, a revolucionar a agricultura de forma mais contundente que a própria revolução verde dos anos 60. Mas, no longo prazo, prevalece a lei do retorno à média, isto é, um nível de equilíbrio e de ajustamento de variações biológicas e sócio-econômicas. É por isso que os monopólios não são eternos, nem mesmo a virulência altamente letal do HIV que tende a sofrer metamorfoses adaptativas em função dos mecanismos evolutivos do próprio vírus e dos avanços da ciência e medicina. Particularmente à agricultura, o retorno à média da sustentabilidade econômico-financeira da atividade produtiva dar-se-á no contexto dos padrões de desenvolvimento do País. Nele, somente os mais dinâmicos, integrados de alguma forma com a geração de valor agregado têm alguma chance de sobrevivência empresarial. O retorno à média pode ser acelerado com os mecanismos de autocontrole ou autoregulação presentes em qualquer atividade econômica em uma dada sociedade, através de políticas distributivas de renda, combate ou restrição ao abuso de poder econômico, grau de conscientização e exercício de cidadania, existência de leis e instituições públicas eficazes, nível educacional e cultural do povo, vontade e determinação política, abrangência efetiva de justiça e igualdade de oportunidades econômicas. Em suma, liberdade competitiva e responsabilidade social em um ambiente jurídico-institucional consentâneo com a democracia e a livre determinação dos povos.

Por último, a engenharia genética que permite a obtenção de plantas transgênicas não constitui a panacéia da agricultura e da alimentação mundial. Sozinha, sua capacidade resolutiva de desafios é limitada. Mas o processo de congregar cientistas de várias áreas profissionais relacionadas com a ciência da vida e com a informática e com o imprescindível desenvolvimento de aparelhos e instrumentos de alta precisão tem muito a contribuir para o progresso e bem-estar do mundo. Modelos computacionais complexos e computadores ultra sofisticados precisam ser continuamente aprimorados para viabilizar o seqüenciamento de bilhões de nucleotídeos presentes em um DNA de um genoma determinado e para fazer o mapeamento genômico para conhecer o ecossistema dos genes, identificando interrelações, funções e demais atributos genéticos. Uma auto-estrada de conhecimento e de possibilidades práticas descortina-se à frente das pessoas e da sociedade. Mas é só o princípio de um mega investimento. Desenvolvê-lo significa determinação, ousadia, objetividade, bom senso, ética e um misto de aventura meticulosamente calculada, onde riscos e incertezas possam ser minimizados. O progresso da nave da engenharia genética será tripulado, então, pela criatividade, sagacidade e capacidade de gerenciar conhecimentos complexos de ciências da vida, tendo como auxiliares diretos instrumentos, técnicas, modelos e processos interrelacionados de pesquisa e desenvolvimento. Com um detalhe: a nave-mãe que dá retaguarda e suporte logístico à nave da engenharia genética chama-se Terra.


IX - OBSERVAÇÕES E SUGESTÕES PRELIMINARES

Ao longo do desenvolvimento das idéias sobre o tema proposto foram surgindo, aleatoriamente, várias observações passíveis de um tratamento ulterior como subsídios para o desenvolvimento da engenharia genética nacional. Algumas são pertinentes e outras, apenas, preocupações preliminares. Assim, sem a pretensão de constituir proposta de qualquer finalidade, têm-se as seguintes observações que podem, eventualmente, evoluir para sugestões de ações em engenharia genética:

a) importância de um Plano Básico de Engenharia Genética, enfocando princípios, diretrizes, objetivos, papel do Governo, fontes de financiamento, programas e projetos prioritários, e outros temas de relevante interesse na matéria. Poderia, inclusive, ser parte do próprio PPA - Plano Plurianual de Investimentos;

b) revisão e atualização ou adequação da legislação sobre áreas de interesse da engenharia genética: lei de patentes, lei de proteção de cultivares, lei de sementes, lei de biossegrança, lei de biopirataria, biodiversidade, funcionamento de áreas de preservação ambiental etc;

c) reforço dos bancos de germoplasma: reestruturar e redimencionar as áreas de intercâmbio, quarentena e conservação de germoplasmas com vistas aos desafios da engenharia genética - infra-estrutura laboratorial, instalações apropriadas, equipamentos, veículos, instrumentos, pessoal técnico e de apoio, e outras providências administrativas. Interligação de sistemas oficiais, privados ou fundacionais e internacionais etc.;

d) constituição de um Fundo Especial de Pesquisas em Engenharia Genética, para desenvolvimento de pesquisa básica e desenvolvimento técnico e científico. Esse fundo será constituído de recursos orçamentários, doações, taxas e contribuições dos usuários de plantas transgênicas, receitas especiais e outras;

e) readequação e reestruturação do sistema de Vigilância Sanitária do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, ajustando a estrutura institucional às novas finalidades com uma ampla modernização administrativa em termos de organização, infra-estrutura de apoio, legislação, atualização tecnológica, logística e demais providências em busca de eficiência e eficácia;

f) constituição de comitês, comissões ou câmaras específicas de engenharia genética com vistas à formulação, acompanhamento, avaliação de políticas de desenvolvimento em ações estratégicas;

g) constituição de equipes profissionais setoriais ou específicas de gestão da engenharia genética, com objetivos de acompanhamento, monitoramento, fiscalização e controle dos projetos de engenharia genética envolvendo todos os órgãos e instituições oficiais pertinentes;

h) integração de instituições públicas em engenharia genética através de uma rede virtual de pesquisas e bancos de dados sobre o assunto;

i) definição e estabelecimento de programa (ou programas) prioritário em engenharia genética distinto de programas de recursos genéticos e de biotecnologia;

j) criação de mecanismos de estímulo e incentivos fiscais ao desenvolvimento da engenharia genética, examinando temas como instalações, infra-estrutura laboratorial, deduções fiscais, joint-ventures, programas de aperfeiçoamento, acordos de cooperação entre empresas e instituições oficiais etc. Revisar e adequar providências nas áreas legislativa (leis, portarias, decretos) e administrativa;

k) cadastro nacional de genes de interesse técnico, econômico ou científico que estão sendo pesquisados, introduzidos, testados e liberados para comercialização;

l) desenvolvimento de especialistas, tipo MBA, de gerenciamento de propriedade intelectual em biotecnologia para avaliação de tecnologias de interesse mercadológico, proteção jurídica às invenções das universidades e instituições públicas de pesquisas, investimentos em desenvolvimento tecnológico e científico, marketing de tecnologias, negociação de acordos e licenciamentos, violação de direitos de propriedade intelectual, acordos internacionais etc;

m) formulação e desenvolvimento de projetos de engenharia genética para solução de problemas de relevante impacto na agricultura, como a bactéria do amarelinho de citros e o cancro cítrico, por exemplos. Projetos de seqüenciamento e mapeamento de genes de espécies específicas constituem casos concretos de pesquisa e desenvolvimento;

n) desenvolvimento de programas de cooperação técnico-científico internacional com instituições públicas e privadas;

o) desenvolvimento de programas integrados de cooperação econômico-financeira com organismos internacionais, governos, corporações privadas e organizações não governamentais, com vistas a estudos de biodiversidade, recursos genéticos, ecologia e outras áreas conexas;

p) projetos estratégicos de prospecção de genes de interesse científico, agronômico ou de saúde pública no País e no mundo;

q) programa de formação, treinamento, reciclagem e aperfeiçoamento em áreas estratégicas para o desenvolvimento da engenharia genética;

r) programa de alianças estratégicas e parcerias com empresas e outras instituições privadas ou públicas nacionais ou estrangeiras;

s) criação de centros de excelência de pesquisa e desenvolvimento em engenharia genética;

t) programa de ensaios, testes e avaliação de projetos ou ações de engenharia genética;

u) programa de desenvolvimento de negócios tecnológicos com engenharia genética;

v) estratégia de comunicação institucional em assuntos de engenharia genética: governo, órgãos públicos, Congresso Nacional, organismos internacionais, ONG''s, comunidades e associações diversas; e

w) estabelecimento de um código de ética e de responsabilidades entre os diversos agentes envolvidos com a engenharia genética.

Essa listagem apresentada, ressalte-se, tem finalidade meramente ilustrativa das imensas possibilidades e desafios de ordem estratégica, política e organizacional da engenharia genética no Brasil. São assuntos que demandam tempo, reflexão, muita discussão, negociações complexas e seguramente muito trabalho. A tarefa é imensa, mas necessária, oportuna e fundamental para a própria engenharia genética. Fazer engenharia genética apenas pragmaticamente, embalado pelas pressões da moda dominante pode levar a resultados pouco animadores. A questão vital da engenharia genética no momento prende-se à definição do que se quer dessa tecnologia, da razão de ser dela mesma. Engenharia genética para quê, para quem e com que objetivos? A questão operacional de como fazer a engenharia genética é a que menos importa na discussão de uma revolução tecnológica de impacto crucial para a sociedade. A inversão dessa lógica de entendimento pode conduzir a resultados erráticos, de efeitos miméticos como meros seguidores totalmente entregues à vontade de empreendedores líderes e hegemônicos na matéria.

Cabe a nós determinar, imbuídos de espírito ético e princípios de justiça e bem-estar social, o que queremos da engenharia genética, definindo objetivos e meios de realizá-los.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOMMA, Alberto Nobuoki. Plantas transgênicas. Marketing e realidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 165, 18 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4681. Acesso em: 25 abr. 2024.