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Agricultura transgênica e o grilo

Agricultura transgênica e o grilo

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Trata-se de um artigo de reflexão e ponderação sobre o uso de transgênicos na agricultura como opção tecnológica, segundo certas correntes, de posicionamento competitivo e maximização de lucros no setor. Depois de registrar uma onda avassaladora de adoções pelos agricultores, notadamente norte-americanos e argentinos, o surgimento de reações dos consumidores, pendengas judiciais na tramitação de processos administrativos e aguerridos movimentos de ambientalistas, além de constatações práticas pouco animadoras da propalada vantagem dos transgênicos, o mundo começa a ter mais consciência e posição crítica na polêmica tecnologia. Prudência, precaução, ética, transparência, relevância política e social, efeitos da vaca louca, rastreabilidade alimentar, e casos de alergia e poluição genética causadas pelo milho starlink, entre outros fatos, foram responsáveis pelo despertar de uma visão de equilíbrio e de bom senso.

Toda revolução, seja de tecnologia ou de comoção social, tem uma razão, uma ideologia, uma causa de ação subjacente à idéia de implantação de novos paradigmas e valores. Não se vai a uma guerra sem uma crença explícita e convincente. E no caso dos transgênicos, qual a razão dessa tecnologia para o homem? Para o homem que, segundo o seqüenciamento do seu genoma, é fruto da interação do seus genes com o meio ambiente, um espaço finito que abriga uma complexa diversidade de seres no ar, na terra, nas águas e nos subsolos. É para servir ao homem rural como produtor (variedade resistente a pragas, ervas daninhas, moléstias e a estresses climáticos), ao consumidor urbano-industrial (qualidade, teores e índices de aproveitamento) ou à natureza (facilitar a reciclagem, diminuir o uso de insumos, reverter sazonalidades, tornar uma planta completa)? Ou, trata-se apenas de uma técnica para auferir vantagens pecuniárias para as indústrias e agricultores? Todas essas questões são muito pertinentes diante dos desafios de sustentabilidade, qualidade de vida, redução de pobreza, globalização econômica e de problemas sanitários, mudanças climáticas e eqüidade de justiça em um mundo pequeno demais para tantos sonhos e ambições egocêntricas tão fugazes e efêmeras quanto a própria existência. Pensar, refletir e questionar a artificialização da natureza com uma visão crítica e sensata é desempenhar o papel do grilo falante da estória do Pinóquio. E ser crítico significa assumir a essência de homem racional sob pena de se viver, a exemplo da fábula do Frei Boff, ciscando o terreiro como galinhas, pela crença que se trata verdadeiramente de aves de hábitos de solo de tão condicionadas pelo bombardeio de informações e modos de comportamento impingidos pelos mais astutos, apesar de serem congenitamente águias de grande poder de vôos. Assim, desenvolve-se uma série de tópicos que abarcam indagações a respeito da tecnologia de transgênicos na agricultura.


Supressão do conceito de espécies:

A transposição de genes de uma espécie para outra, explorando características genéticas de interesse, como o gene de resistência ao herbicida glifosato de uma bactéria e o gene inseticida do Bt em algodoeiro e no milho, tende a provocar a criação de uma planta totalmente distinta das existentes na natureza. Quando se retira o material genético de bactérias ou de plantas de pântanos salinos e se os transfere a outras para desenvolvimento franco em ambientes hostis altera-se toda a história evolutiva das espécies. Cada espécie, no longo e complexo processo de adaptações e especializações a condições ambientais, foi aperfeiçoada biologicamente para ser o que ela realmente é hoje. É por isso que existem plantas que vegetam em ambientes xerofíticos, hidromórficos, à sombra e a pleno sol. Umas são subaquáticas de águas estagnadas (lagos), outras de corredeiras de alta oxigenação. A teia de vidas é sistêmica, diversificada e especializada para cada ambiente. Isto forma a biodiversidade e ecossistemas, conforme a região de sua existência. As plantas comerciais foram aprimoradas por intensos processos adaptativos à custa de muita pesquisa e tecnologia em todos os lugares que existe agricultura. Apesar da disseminação planetária, assumindo até um caráter cosmopolita (arroz, soja, milho, trigo), todas as culturas têm um centro genético, uma origem geográfica de vegetação original.

A transgenia altera profundamente o sentido e o conceito de espécies tal como é conhecida ordinariamente. Isto faz sentido? Mesmo que se diga que as espécies comerciais só sobrevive em ambientes de cultivo, altamente artificiais (calagem, adubação, irrigação, rotação de culturas, controle de pragas e doenças, etc) isto não é totalmente verdadeiro em ambientes abertos, em grandes superfícies de exploração expostas ao sol, vento, chuvas, insetos, pássaros, decomposição e reciclagem de colheitas, percolação, erosão, enxurradas, ações de microfauna e microflora, além de processos de intemperização de forma lenta e secular. A poluição genética causada pelo milho inseticida starlink é uma realidade nos Estados Unidos e uma razão de sérias preocupações em biossegurança. O fato concreto e indiscutível é que a natureza levou milhões de anos para chegar ao modelo de espécies atuais em uma marcha ininterrupta, envolvendo fenômenos bióticos e abióticos. A ambição comercial procura algo como o elixir da vida, uma planta eclética (vegeta em qualquer clima e solo), versátil (útil para vários fins), vigorosa e produtiva. Procura-se, enfim, um grande pato, um animal de funções múltiplas que voa (lento e fácil de ser abatido no ar, diferente de uma águia, um predadora de exímias virtudes aéreas), que anda (desengonçado e se arrastando no seu peso, diferente de um leopardo, ágil e furtivo) e que nada e mergulha (canhestramente, muito diferente de um peixe ou de uma foca, especialistas nessas funções). Apesar do flagrante exagero, não há nada melhor que observar e analisar a natureza em sua profusão de diversidades, exuberância funcional, interdependência e riqueza de manifestações em todos os lugares da Terra. Na ordem natural da vida, o transgênico tem lógica? Seus postulados fundamentais têm sentido, coerência e consistência metodológica como processo dinâmico e parte da complexidade biótica e abiótica do Planeta? Transgenia não se resume a técnicas de manipulação de DNAs e genes, mas a questões de princípios, filosofias, idéias de vida e consciência como condições prévias a qualquer ação na natureza, ainda mais que o homem é parte íntima e indissociável dessa realidade.

b) Transgênico e biotecnologia:

Na defesa dos transgênicos, muitos argumentam que a transgenia é uma técnica de engenharia genética como qualquer outra usada em biotecnologia. Como não existe nenhuma planta comercial (cultivar, variedade) que não tenha sofrido interferência de manipulações genéticas do homem (cruzamentos, retrocruzamentos, hibridação, mutagênicos diversos, cultura de tecidos, embriogênese etc), a transgenia também é uma técnica de melhoramento genético. Mas uma técnica eficiente, rápida, precisa e radicalmente abrangente, impossível de ser obtida com métodos convencionais. Nessa linha de argumentação quem estiver contra os transgênicos estará contra o melhoramento genético, contra a modernização e avanços da própria biotecnologia. Generaliza-se, equivocadamente, uma dada técnica de um sistema de desenvolvimento agronômico como sendo uma regra geral e universal sem fazer nenhuma referência a métodos, condições instrumentais, efeitos sistêmicos e avaliação rigorosa de biossegurança. O melhoramento genético convencional de plantas pode muito bem lançar mão de técnicas de engenharia genética sem envolver transgenia. Seqüenciamento e análise funcional dos genes do genoma de uma cultura (milho, arroz, cana, citrus, banana etc) são importantes e estratégicos para a compreensão de funções, posições e detalhamento de expressões gênicas de interesse na agricultura. Este conhecimento detalhado do DNA pode ser muito útil para a identificação e seleção de determinadas expressões genéticas através de técnicas de marcadores moleculares na recombinação gênica. Assim, fica claro que a engenharia genética não leva necessariamente, ou sirva exclusivamente, à transgenia. Igualmente, a biotecnologia não é uma ferramenta de uso privativo dos transgênicos. A adoção de uma postura crítica em relação aos transgênicos não significa ser contrário à engenharia genética ou à biotecnologia. A própria engenharia genética pode ser vista como parte da biotecnologia que, por sua vez, integra o que se chama ciências da vida, com aplicações na agropecuária, saúde, e bem-estar geral das populações. O que não se pode é jogar tudo no mesmo "balaio conceitual", simplificar e mistificar com generalizações incongruentes para confundir as pessoas. Um pouco de precisão na linguagem e focalização dos assuntos, certamente, contribuiria para o franco e sensato entendimento do fantástico mundo da engenharia genética.

c) Transgênico e transgênico:

Há uma tendência de exagerada generalização em matéria de transgênicos, julgando que a simples transferência de um gene de uma espécie para outra tenha o mesmo significado e abrangência biológica em todos os casos. No caso de plantas, fala-se em transgênicos de primeira geração para situar os exemplos da soja resistente ao glifosato, e do milho e algodão com qualidade de inseticida. Nesse grupo, as vantagens construídas ou manipuladas beneficiam prioritariamente as indústrias e acessoriamente aos agricultores, não acarretando nenhum benefício aos consumidores. Enquadram-se na segunda geração, as plantas engenheiradas que buscam seduzir os consumidores através de adições inexistentes ou de aumento nos teores de componentes dos alimentos (vitaminas, ácidos graxos insaturados, aminoácidos essenciais). Por isso são chamados de alimentos funcionais ou nutracêutricos, isto é, alimentos com elementos suplementares de alto valor nutricional que vão além de calorias e proteínas (arroz enriquecido de vitamina A, batatas com vitaminas, frutas com vitaminas e vacinas, etc.). Mas, na prática, de todos os transgênicos cultivados no mundo a grande maioria (superior a 95%) diz respeito a características de resistência a herbicidas e de inseticidas, isoladamente ou conjuntamente. Isto mostra claramente que a tecnologia transgênica na agricultura beneficia quase que exclusivamente as pouquíssimas empresas de biotecnologia do setor. Mas, o campo dos transgênicos é vasto e sem limites: produção de enzimas, vacinas, antibióticos, insumos industriais, hormônios, remédios diversos, e tantos outros para aplicação em alimentação, indústrias diversas, tratamento de doenças, prevenção de enfermidades, combate a vetores de doenças endêmicas ou epidêmicas, diagnósticos e outras finalidades médico-farmacêuticas. Produtos de interesse farmacêutico e industrial, como as proteína antimicrobianas, vêm sendo produzidos de forma ainda incipientes no leite de animais especialmente modificados pela engenharia genética para serem usados como biorreatores, verdadeiras fábricas celulares de produção de proteínas e vacinas. Um exemplo clássico de produto transgênico é a insulina obtida por uma bactéria que recebeu o gene humano responsável pela produção da substância e que é essencial para a saúde dos diabéticos

Verifica-se, assim, que existem transgênicos e transgênicos. Não é possível colocá-los em um mesmo cesto de supermercado e dizer que tudo é transgênico. Ou afirmar que todo organismo geneticamente modificado é nocivo e perigoso. Ou, inversamente, que todo transgênico é maravilhoso e bom para a humanidade, como amplamente divulgado pelos defensores de plantas engenheiradas. Cada caso é um caso e deve ser tratado com prudência, ética, consciência, discernimento e adequadas providências preventivas de biossegurança, avaliações de riscos, condições efetivas de rastreabilidade, testes de qualidade e de eficácia e postura comercial politicamente correta. E por quê ou para quê todo esse cuidado? O seqüenciamento do genoma humano mostrou que o conhecimento dos genes - sua seqüência, contingente, posição e atividade, entre outros - constitui, apenas, uma etapa inicial de mais uma longa e exaustiva fase de pesquisas ainda mais complexas que é a proteômica, isto é, o estudo de todas as proteínas de uma célula, tecido ou organismo. O gene é apenas uma informação e a chave da biologia encontra-se provavelmente na proteína, nos seus aminoácidos constituintes que têm a habilidade de comandar processos em um organismo vivo.


Alimento funcional e nutracêutico:

Muitos pesquisadores imaginam conseguir aprimorar uma planta dotada de múltiplas qualidades alimentares capaz de se tornar, em um grupo reduzidíssimo de exemplares, um alimento completo, uma espécie de ração balanceada ideal para o homem. Além de calorias e proteínas convencionais, essas plantas deveriam ser fontes de sais minerais, vitaminas, enzimas, hormônios e fatores de adequação e otimização do organismo humano, com vistas à preservação e manutenção da saúde e do bem-estar corporal e psíquico. Procura-se uma planta-maravilha que reduza as carências nutricionais das pessoas e contribua significativamente para mitigar o problema da fome no mundo. O caso do arroz dourado, planta geneticamente modificada para produzir maior quantidade de beta caroteno, um precursor da vitamina A, vai nessa direção. Ousadamente criativos, imaginam, inclusive, uma planta que seja capaz de produzir alimentos e vacinas simultaneamente. Frutas, verduras e sementes vão ser programadas para sair do pomar e dos campos munidas de antígenos habilitados ao combate e prevenção de várias doenças. A soja poderá produzir insulina e hormônios de crescimento humano. O tomate, além de enriquecido de vitaminas, poderá produzir antígenos contra vírus. Centenas de plantas em todo o mundo estão sendo estudadas, dissecadas, preparadas e testadas para servir a múltiplas finalidades, desejos e gostos. Mas, do ponto de vista racional, mercadológico e da própria natureza humana, tudo isso é lógico, coerente e consistente? Isto me faz lembrar de algumas coisas curiosas, como o caso da carne texturizada de soja no final da década de 1970 e princípios da de 1980, em pleno período de crise de matérias-primas e escassez alimentar. A carne de soja, por ser barata, nutritiva, completa, vegetal e outros predicados, deveria atingir tanto consumidores de menor poder aquisitivo como naturalistas e vegetarianos. Na época, durante as discussões, chegou-se a afirmar enfaticamente que os ricos e os de renda disponível iriam preferir a carne habitual porque, além dessa despesa específica não influir no orçamento doméstico (elasticidade-renda) o consumo fazia parte dos hábitos alimentares arraigados. Não era o preço que iria demovê-los de consumir a carne tradicional, e muito menos a qualidade da carne vegetal de soja com todos os seus atributos nutricionais e fisiológicos envolvidos na alimentação. Poderiam até comer a soja, que não fazia parte do cardápio rotineiro, mas de outra forma, como leite, tofu e moyashi. Os pobres e os de menor renda não iriam querer saber de carne de soja, por mais barata que fosse. Não fazia parte dos seus hábitos alimentares, a soja era coisa de oriental e, principalmente, a carne natural era a meta, o sonho de consumo a ser atingido para saboreá-la com gosto, com satisfação de coisa cara e sinal de ascensão social. Havia uma psicologia de consumo e simbologia social no ato de consumir a carne natural e não simplesmente um motivo estritamente racional. De uma forma clara e objetiva, comida em qualquer situação é para quem tem condições de aquisição, de recursos para consumi-la, seja barata ou cara. Na dureza dos fatos, pobre não tem dinheiro para consumir "supérfluos", como a carne, seja natural ou texturizada. E quem tem condições aquisitivas vai, sempre, preferir o produto natural, da melhor qualidade, no melhor corte e nas melhores condições de satisfação pessoal. Hoje, passados mais de vinte anos, apesar da fome que castiga cerca de 30 milhões de pessoas no Brasil, segundo estimativas, não se houve falar nada sobre carne texturizada de soja, uma alternativa alimentar de alto valor nutricional. Guardadas as devidas correlações, o mesmo pode ser dito da mistura de produtos do milho à farinha de trigo na dieta do consumidor brasileiro, um exemplo histórico de frustradas tentativas de equacionamento da panicultura nacional com produtos da própria agricultura. Mas, o que tudo isso tem a ver com os transgênicos? Apenas, que as pessoas esclarecidas, atualizadas, com um certo nível cultural e social, sabem que alimentação significa saúde e bem-estar, e que ela está intimamente associada com o natural e o estilo de vida. Nada a ver, portanto, com artificialismos que suscitam dúvidas sobre a crença inabalável de uma boa comida natural. Mesmo o arroz dourado transgênico não atende, sozinho, à totalidade das necessidades de vitamina A, mas, a, apenas, 10% a 20% das exigências diárias. Nessas condições, a maior parte das necessidades totais diárias de vitamina A vai ter que ser suprida por outras fontes alimentares. O mesmo raciocínio será válido para todos os demais alimentos transgênicos que não terão condições práticas de ser, em uma única planta ou em um grupo de alguns exemplares, uma espécie de ração balanceada integral para todas as finalidades em todas as fases de uma pessoa (criança, adolescente, adulto, homem, mulher, idoso, gestante, convalescente). Como as necessidades individuais nos membros de uma mesma família variam muito, imaginar uma solução miraculosa de alimento funcional padronizado para todas as pessoas é, no mínimo, abusar do bom- senso e da inteligência dos consumidores. Lembram o caso do leite aditivado com o ômega três, que serviria para reduzir a presença de elementos indesejáveis ao coração? Além do preço expressivamente superior aos demais leites, não era toda pessoa que precisava desse tipo de alimento em uma família comum, e a adição mínima (e cara) do fator não oferecia atrativos de consumo, que poderiam muito bem ser atendidos por outras fontes, mais diversificadas, saborosas e a preços convenientes. Quanto maior o poder aquisitivo, maior a chance de haver efeito -substituição e recurso a diferentes alternativas alimentares. E em uma economia aberta, globalizada isto é ainda mais realista com a existência de muitos competidores no mercado. É também mistificação achar que o alimento funcional transgênico (fruta, verdura) vá, em sua grande maioria, para os pobres porque, simplesmente, eles não conseguem nem comprar o básico feijão-com-arroz. Comida é uma questão de distribuição de renda, de políticas públicas, de políticas econômicas. Comida é um bem econômico que envolve capital, tecnologia, infra-estrutura, mão-de-obra e diversas atividades e interesses que precisam apresentar desempenhos econômico-financeiros satisfatórios.

A idéia de querer agrupar em uma única ou poucas plantas o caráter funcional ou nutracêutico me faz lembrar de uma outra questão. Por que a natureza disponibilizou ao homem várias fontes alimentares espalhadas em várias plantas e não as agrupou em reduzidíssimo conjunto de vegetais? O homem é, antes de mais nada, um ser onívoro, capaz de digerir diversos tipos de alimentos, ao contrário de um herbívoro ou carnívoro. Ele é fruto da interação com o meio em que vive. Se ele habita zonas costeiras ou litorâneas sua alimentação preferencial será originária desse hábitat, em princípio. Igualmente, se ele vive em uma floresta tropical úmida sua dieta básica tende a ser de peixes e de produtos típicos desse ecossistema. E agora observe um herbívoro selvagem. Em uma região rica em diversidade de fontes alimentares (gramíneas, leguminosas, arbustos, frutas, flores, etc.) o animal sente-se plenamente atendido em todas as suas exigências nutricionais e se desenvolve em sua plenitude biológica, exibindo exuberância, saúde, porte e vigor. E é essa idéia de profusão de alimentos que fundamenta o cultivo de pastagens consorciadas com gramíneas de múltiplas variedades e espécies e leguminosas entremeadas com árvores para melhorar a nutrição e o bem-estar dos animais. A imagem de uma pastagem de uma única gramínea, como um belo gramado ou tapete verde, é coisa para ser esquecida por não ser compatível com os princípios de sustentabilidade e qualidade de vida das pessoas e dos animais. Especificamente para o homem, quanto mais rica e diversificada (frutas, hortaliças, legumes, grãos, peixes, carnes, sementes, amêndoas, etc.) for a sua dieta mais saudável e produtivo tende a ser o seu organismo. Apesar de rica e diversificada essa alimentação não pode ser consumida de qualquer forma, misturada aleatoriamente ou em quantidades ou proporções exageradas. Toda alimentação obedece a um ritual, a uma ordem de hierarquias digestivas, a uma seqüência de ingestões, a tempos de preparo e cozimento, à compatibilidade entre componentes distintos e outros caprichos culinários. Tudo isso para evitar sonolência, flatulência, má digestão, indisposições, gases, perturbações gastrointestinais, entre outras. Alimentação, enfim, é ciência, arte, cultura e sabedoria. E não um PF - prato-feito - de plantas funcionais temperado com um pecado original de não-natural sob rótulo de ração balanceada.

O fato de tornar uma planta produtora ou portadora de ingredientes como antibióticos, vitaminas, hormônios, enzimas, vacinas, antimicrobianas, sais minerais e outros elementos, acaba tornando uma comida em refeição-remédio. Isto me parece extremamente intrigante. Normalmente, um remédio se administra antes ou depois das refeições, ou em jejum de manhã ou à noite, ou em horários pré-determinados. Tomar remédio junto com a refeição e como refeição é novidade. Primeiro, há a questão de compatibilidade de alimentos, de modo a não haver reações indesejáveis entre remédios e fontes de alimentação (acidez, digestibilidade) que podem inativar, potencializar ou reduzir a eficácia do elemento-alvo. Em segundo, a delicada questão da receita e modo de preparo para observar os ingredientes, quantidades, ordem, tempo de cozimento e temperos admissíveis que não anulem o efeito desejado. A questão da refeição-remédio parece simples e jocosa, mas na prática torna-se levemente indigesta porque ela deve alterar a mecânica e o funcionamento do metabolismo interno de absorção do alimento no trato digestivo. A máquina humana foi diligentemente preparada para a corrida da vida tal como ela é hoje. Esôfago, intestino, pulmões, coração, fígado e rins, apresentam estruturas morfológicas e fisiológicas de um organismo aprimorado e complexo para funcionar em determinadas condições naturais. Imagine um carro moderno. Mesmo que tenha um motor híbrido para funcionar com vários combustíveis (gasolina, diesel, etanol, gás) ele foi desenvolvido com todas as minúcias técnicas para operar em regime de múltiplas fontes de alimentação. Ele não é um carro comum, igual aos convencionais, como o carro a álcool não é igual ao carro a diesel. Provavelmente, ele sofreu inúmeros e inéditos melhoramentos: motor, suspensão, tanques de combustível, sistema elétrico, sistema de frenagem, injeção eletrônica, direção e câmbio entre outros itens da engenharia veicular. E o corpo humano, sem nenhum aprimoramento prévio em termos biológicos na sua morfologia interna vai exercer adequadamente as suas funções orgânicas com alimentos significativamente diferentes dos projetados pela própria natureza? A microflora e a microfauna do sistema digestivo, principalmente estômago e intestino, não vão desenvolver processos complexos de ajustamentos evolutivos a um novo ecossistema, buscando um novo patamar de equilíbrio gastrintestinal? Mesmo sendo onívoros, transformações profundas nas fontes alimentares podem levar a novas e inusitadas formas de refeições ensejando ajustamentos nutricionais, fisiológicos, quantitativos e qualitativos dos diversos ingredientes que suprem as necessidades do corpo humano. No fundo, cria-se a necessidade de uma nova ciência da nutrição e da saúde alimentar. A metamorfose simples e imprudente de transformar um herbívoro típico em carnívoro, como na administração de restos de animais na ração em bovinos e ovinos, desencadeou a doença da vaca louca (encefalopatia espongiforme bovina) na Europa, contaminou de forma letal rebanhos e seres humanos. Alterar a ordem natural das coisas à revelia de exaustivas pesquisas, avaliações rigorosas de riscos e medidas preventivas de biossegurança pode resultar em inéditos e complexos problemas de difícil equacionamento e solução.


Poluição genética e zona de exclusão

Uma preocupação angustiante, digna de um filme de terror, concerne a uma eventual poluição genética causada pelas plantas transgênicas. Reiteradas alegações de que os organismos geneticamente modificados não oferecem riscos para à saúde e ao meio ambiente carecem de maiores dados convincentes de comprovação científica cabal. Igualmente, não se tem nenhum conhecimento de estudos de planejamento de medidas preventivas ou saneadoras para o caso de eventuais acidentes ecológicos. O que existe de concreto são apenas recomendações de áreas de refúgio ou áreas de escape biológico com plantas convencionais em determinada porcentagem (no caso do milho, 20% da área total de cultivo e de 50% da área total, quando em região algodoeira que use o Bt) como método de gerenciamento de resistência de insetos ao milho Bt. No caso da soja transgênica recomenda-se basicamente a rotação de culturas e a não repetição da mesma cultura por certo número de safras para evitar o surgimento de plantas resistentes ao herbicida. Quanto ao efeito do herbicida a preocupação maior não se refere ao eventual surgimento de superervas daninhas, mas a distúrbios na atividade microbiana do solo, do subsolo e do lençol freático, em conseqüência das maciças aplicações localizadas e pela gradativa contaminação da natureza pela dispersão no ar atmosférico das moléculas dos pesticidas. Como o caráter secativo do agrotóxico exige pulverização em volume significativo, uma parcela ínfima do produto evapora e suas moléculas acabam sendo difundidas no ar atmosférico. Uma região de agricultura intensiva que faça uso freqüente de pesticidas diversos (herbicidas, fungicidas, inseticidas) acaba provocando uma lenta e contínua disseminação insinuante de ínfimos átomos desses princípios ativos no ar, afetando toda a cobertura vegetal, lagos, rios e nascentes, que por sua vez contaminam todo o lençol freático. É bom lembrar que as pulverizações concentram-se em certo período do ano com sucessivas aplicações por um grande número de produtores em uma dada região agrícola. Essa sistemática de procedimentos, reunindo dosagem do produto, intensidade de aplicação e tempo de exposição (período), somada a pesadas adubações químicas constitui séria preocupação ambiental, principalmente, quando se observa um alto nível de ignorância e negligência nas pesquisas de micro e meso-fauna e flora aquática-de uma região agrícola. Sabe-se pouca coisa de algas, líquens, protozoários, moluscos, crustáceos, peixes, fungos e bactérias que vivem em meio aquático nos rios, nascentes, lagos e lençol freático. A aqücultura no Brasil é insignificante e praticamente desconhecida. O efeito secativo do glifosato pode não se manifestar claramente em algas, líquens e micro plantas aquáticas, mas, seguramente, serão afetados de alguma forma. Sucessivas aplicações em longos períodos, com resíduos depositando nos solos, subsolos, lençol freático e nas nascentes vão culminar em interferir no metabolismo desses seres, afetando a cadeia de vida em condições hidrogeológicas adversas. A preocupação não é com a parte visível ou conhecida das pesquisas agronômicas dos efeitos dos herbicidas, mas com relação com a parte desconhecida e não avaliada. Não se quer saber apenas da ponta do iceberg mas conhecê-lo integralmente, em toda a sua extensão e profundidade.

Os restos de cultura do transgênico Bacillus thurisgiensis, por incorporarem no seu germoplasma a propriedade inseticida, devem acarretar influencias perturbadoras no ecossistema do solo, principalmente, da microflora e microfauna. Na natureza, plantas e microorganismos convivem em círculos estreitos de correlações, simbioses e antagonismos em uma rica cadeia de energias vitais, onde cada espécie vegetal dispõe de um grupo específico de relações microbianas e capacidade de desempenhar funções únicas na natureza. É por isso que a agricultura orgânica tenta imitar a natureza, plantando diversas espécies em uma mesma área, de tal forma que haja um equilíbrio dinâmico no ecossistema particular, gerando relações de sinergismos, simbioses e antagonismos (plantas fixadoras de nitrogênio, bacteriostáticas, fungistáticas, insetífugas, etc.). Assim, qualquer movimento incremental de herbicidas e de outros defensivos agrícolas torna-se altamente inquietante não só para a sustentabilidade da agricultura, mas para a qualidade da água, fonte de vida saudável do país. A afirmação de que a soja transgênica diminui o uso de herbicidas é falaciosa, porque o seu cultivo só se viabiliza com doses significativamente superior ao empregado em culturas convencionais; o Brasil tem, invariavelmente, o problema da soca nas culturas pós-verão e nos plantios sucessivos em área irrigadas que exigem outros herbicidas além do Roundup; os agricultores praticam a rotação de culturas e plantios diretos que exigem o tratamento de culturas anteriores com aplicação de herbicidas diferentes, uma necessariamente diferente do Roundup. Não é a alegada diminuição de aplicações de herbicidas em uma única safra de soja que interessa, mas a efetiva quantidade em um ano agrícola com ciclo completo de rotações programadas. Assim, sem levar em conta a média de um período de safras, nada garante que a quantidade e o número de aplicações de herbicidas será reduzidos

O grande e assustador perigo dos transgênicos reside na possibilidade de poluição genética, com a dispersão indiscriminada de genes engenheirados na natureza. Plantas nativas sexualmente compatíveis com as transgênicas (milho, arroz, algodão, etc.) constituem uma ameaça real no Brasil, um país muito rico em diversidade vegetal, que sustenta e mobiliza uma miríade de agentes polinizadores (abelhas, vespas, besouros, borboletas, pássaros, mangavas, etc.) com atuação em extensas áreas. Qualquer cruzamento indesejável no Brasil é certeza absoluta de gigantescos problemas por mais que as empresas de biotecnologia digam que não há perigos ao meio ambiente. A natureza é cheia de surpresas, de detalhes e adaptações imprevisíveis, talvez, por que os ingredientes básicos que fazem humanos, chimpanzés e plantas superiores são praticamente os mesmos. O homem compartilha mais de 98% de seus genes com os chimpanzés, possui o mesmo número de genes que o milho, e tem, inclusive, cerca de 230 genes do seu genoma originários de bactérias, segundo o seqüenciamento do genoma realizado recentemente. Isto mostra que o homem é parte íntima da teia de vida da Terra e que todos os seres vivos compartilham uma linguagem biológica comum. Apenas alguns poucos genes diferenciam uma espécie de outra e a maneira como eles se combinam é que dão o toque da diferença de seres. No homem, dos cerca dos 30 mil e 40 mil genes, apenas 1%, é exclusivamente humano. E é da interação desses genes com o ambiente que resulta a inteligência e a complexidade do ser humano. Se existe toda essa similitude entre espécies diferentes de seres vivos imagine a diferença entre os da mesma espécie. No homem, a diferença de DNA de humano para humano é de apenas 0,1%. Dito de outra forma, 99,9% dos genes do genoma humano são iguais, fato que detona o conceito de superioridade racial. Essa característica deve repetir em proporções semelhantes com as plantas de uma mesma espécie ou em grupos de uma mesma família. Dessa forma, uma base genômica compartilhada com todos os seres vivos, rica diversidade de plantas da mesma família e de espécies, rica diversidade de agentes polinizadores, um ecossistema tropical com clima próprio à permanente reprodução de insetos, e agricultura no ano todo graças à irrigação, nível de luminosidade e temperatura, exigem cuidados redobrados de biossegurança na questão da poluição genética de transgênicos. O perigo é real, existe e já deu demonstração de gravidade, como o caso do milho starlink nos Estados Unidos, autorizado somente para ração animal. Sementes plantadas em menos de 1% dos campos de milhos acabaram contaminando milhares de hectares e misturando-se nas colheitas de várias regiões do país. A limpeza e descontaminação genética exigiu cerca de um bilhão de dólares nos seis últimos meses, segundo fontes da imprensa mundial, e vai, seguramente, custar expressivos montantes financeiros além de demandar anos, provavelmente décadas, de exaustivos trabalhos. Por esses acidentes de percurso, propositais ou probabilísticos, pensa-se em delimitar zonas de exclusão de transgênicos para assegurar com uma margem confiável de segurança, uma área livre de plantas geneticamente modificadas, com vistas à proteção de ecossistemas estratégicos para futuras gerações, garantindo a integridade genética original de espécies selecionadas. Os argumentos para a definição dessas zonas de exclusão são vários: preservação de direito de terceiros, a exemplo de cursos de água, da poluição atmosférica, da poluição sonora, da contaminação de solos e de rios; direito à crença e à fé na natureza e na vida natural; dever de participar da luta de sustentabilidade e viabilidade ecológica do Planeta; direito à vida e convivência de todos os seres vivos do Planeta, mesmo pragas e ervas daninhas, não cabendo a ninguém o poder de decretar as suas extinções; direito à liberdade de ser e poder continuar produtor natural; e, direito de não querer ser "produtor passivo" de transgênicos causado pela poluição genética de terceiros. As zonas de exclusão de transgênicos deverão ter um cinturão ou arco de interdição formal e efetivo de plantio de todo e qualquer organismo geneticamente modificado. Esse cinturão de proibição de organismo geneticamente modificado será estabelecido em função dos riscos de contaminação e proximidade de lavouras, agentes polinizadores e outros fenômenos bióticos e abióticos de dispersão de pólens e plantas na natureza.

f) Resistências de pragas e moléstias e vida útil das espécies cultivadas:

A resistência de pragas e moléstias a tratamentos químicos na natureza é uma eterna luta de ataque e defesa, uma briga infindável do bem contra o mal. Essa luta ou precisamente guerra biológica sem tréguas é travada diuturnamente, sutilmente, em todos os lugares onde há vida, envolvendo plantas, animais e humanos, em confronto com infinitos inimigos, muitos invisíveis e altamente letais. A cada arma aprimorada na forma de remédios, vacinas, antibióticos, bactericidas, agroquímicos e defensivos de múltiplos espectros, surge uma resposta, no início lenta e exangue, mas poderosa e avassaladora com o passar do tempo. A história da medicina e da agropecuária mostra fartos exemplos de evolução adaptativa dos inimigos biológicos do homem, das plantas e dos animais. No caso de pragas e moléstias em plantas, recomendam-se sempre tratamentos preventivos, de modo a não criar condições ideais de proliferações nefastas dos diferentes patógenos, sejam vírus, bactérias, fungos, insetos ou nematóides. Na agricultura moderna, o enfoque de produção não é voltado à doença ou à praga que eventualmente possam assolar as culturas. A estratégia de planejamento de uma lavoura ou criação visa a saúde e a qualidade do produto no âmbito de uma ação deliberada de sustentabilidade ambiental no longo prazo. Rotação de culturas, plantio direto, cobertura morta, drenagem do terreno, exposição a ventos e luminosidade, uso racional de equipamentos e insumos, controle integrado de pragas e moléstias, tratamentos de restos de cultura, planejamentos de talhões e vias de acesso, programação de culturas e épocas de plantio, são rotinas de todo agricultor politicamente e ecologicamente correto. O objetivo do agricultor moderno consciente não se resume unicamente ao produto comercial e ao lucro, mas à capacidade de ser produtivo como produtor rural ao longo do tempo, de modo a assegurar produtividade, qualidade e bem-estar com a sua atividade. Passa a ser um gerente perspicaz de um patrimônio vivo, dinâmico e delicado que é a sua terra, o seu ganha-pão, o seu lugar sagrado de trabalho e redenção social. O agricultor, hoje, é um homem consciente e atuante no desenvolvimento de multifuncionalidade da agricultura.

E o que o transgênico tem a ver com essa tal de multifuncionalidade da agricultura? Ao fato de se introduzir um gene estranho de ação letal contra pragas de lavoura está se imaginando que a planta estará, doravante, definitivamente protegida de ataques causadores de prejuízos para a agricultura. A planta passa a ser auto-imune a seus inimigos e desenvolve-se sem a necessidade de protetores ou aplicações de defensivos químicos convencionais. Muitos dirão maravilhas e imaginarão a gratidão eterna da natureza pela não aplicação de defensivos. Mas, a própria planta é um defensivo agrícola (só que incorporado ao gemoplasma de uma planta) que pode influenciar, na sua recomposição e reciclagem, o frágil equilíbrio de atividades metabólicas de microorganismos do solo e subsolo. Na realidade, a estratégia de planta-inseticida na agricultura é uma concepção congenitamente kamikase, por encerrar uma fragilidade intrínseca de origem. Uma fragilidade que se encontra no fato de ser uma planta-inseticida variedade ou cultivar comercial aperfeiçoada ou melhorada para alcançar determinados objetivos e que vai permanecer como tal, sem sofrer alterações significativas ao longo do tempo de cultivo. Lembre-se que para ser variedade ou cultivar com registro no Ministério da Agricultura ela tem que atender, simultaneamente, a critérios de distinção, homogeneidade e estabilidade (o famoso DHE - distinta, homogênea e estável das sementes). Isto significa que a planta com Bt, sendo DHE, vai permanecer sem grandes alterações agronômicas enquanto os seus inimigos vão continuar se combinando e recombinando geneticamente e freneticamente com vistas a superar o fator letal. A superação dessa barreira é uma mera questão de tempo, como sempre foi e sempre será (sem ser fatalista ou determinista), porque esse é o processo de adaptação e evolução das espécies desde que o mundo é mundo. Achar que a planta Bt vai permanecer sendo planta-inseticida é muita presunção e falta de coerência e consistência com a lógica evolutiva dos microorganismos na natureza. Ainda, é preciso esclarecer que nenhuma variedade de grão comercial é eterna, de longa duração. Ela tem vida útil comercial que depende não só de sua resposta agronômica no campo (vigorosa, produtiva, resistente a pragas e a doenças, resistente a estresses hídricos, etc.), mas de estratégias de empresas sementeiras capazes de lançar novidades como se faz em qualquer ramo de negócios. No caso da soja, as variedades mais antigas, na fase de penetração e consolidação dos cerrados da década de 1980 como a Doko e a Cristalina, embora ainda empregadas em algumas regiões, são insignificantes em relação ao que existe de mais recente, ajustadas às novas situações de mercado e às condições de resistências a doenças e pragas igualmente recentes. Com a lei de cultivar acirrando a concorrência no setor é de se estimar uma vida útil de variedades comerciais de sementes em torno de 5 a 8 anos, em média. Nessas condições, se as próprias variedades têm uma vida útil determinada pelo mercado é lógico alterar, do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, toda uma estrutura biológica da planta (caráter inseticida no germoplasma) para algo que é essencialmente temporário e descartável, apesar de todo o potencial de distúrbios à microflora e à microfauna de solos, subsolos e recursos hídricos?


Mecanismos de autocontrole:

O avanço da ciência e da tecnologia no campo da biologia molecular desvendando mistérios da estrutura genética dos seres vivos através de seqüenciamentos genômicos é uma realidade e uma grande revolução de idéias e conceitos sobre a vida. A possibilidade de manipulações genéticas de toda ordem (clonagem, organismos geneticamente modificados para múltiplas finalidades, fertilização e reprodução artificial, cultura de células embrionárias, etc.) traz profundas alterações nos direitos e liberdades das pessoas, empresas, instituições e governos. É uma nova era, que exige legislações específicas e oportunas, normas claras de biossegurança, limites de bioética, código explícito de bioprospecção, e agências de fiscalização e controle, entre outras instituições e organizações à altura dos desafios dos novos tempos. Particularmente ao setor de agronegócios, o poder econômico das empresas diretamente concernentes com a manipulação genética de plantas constitui fator de incontáveis preocupações. São em reduzidíssimo número (Monsanto, Aventis, Syngenta, principalmente) e atuam tanto na área de genética vegetal, convertendo as plantas-alvos em transgênicos, como na área industrial na produção de defensivos agrícolas específicos. À primeira vista trata-se de um oligopólio dos mais temíveis e com forte poder de subordinação sobre os agricultores e consumidores. Mas será que esse temor existe de fato? A análise histórica de movimentos semelhantes havidos no passado em vários segmentos produtivos é um bom ponto de partida para um correto e ponderado entendimento da questão. De imediato, um aparato jurídico-institucional com leis apropriadas e oportunas e uma instância organizacional ágil e competente de fiscalização e controle constituem providências fundamentais para o estabelecimento de regras mínimas de convivência de interesses. Assim, a reação e o comportamento dos consumidores, dos agricultores e suas organizações, das indústrias processadoras e exportadoras, das instituições de pesquisa e ensino, das associações de classes profissionais e setoriais, das instituições de defesa do consumidor e da concorrência, entre outros, podem, em uma sociedade pluralista e democrática, definir e estabelecer normas claras de conduta para todos os agentes econômicos interessados na questão dos transgênicos. Dessa forma, só haverá concorrência deletéria ou nefasta de setores dominantes na exisrência de omissões, conivências, indiferenças e incompetências da sociedade e do governo. Em uma situação de livre concorrência, de funcionamento adequado das instituições e dos agentes econômicos, de existência de políticas públicas explícitas, e sistemas de cobrança de responsabilidades a tendência é de equilíbrio e plena racionalidade das forças de mercado. Lembra da época do pró-álcool em que se temia que todo o Brasil, principalmente o Estado de São Paulo, se tornasse um imenso canavial em detrimento de culturas tradicionais? E o caso da soja, com a equivocada controvérsia de agricultura de exportação versus agricultura de subsistência, que foi tema de acirrados debates nos quatro cantos do país com o temor que a leguminosa fosse dominar toda a lavoura nacional? E o caso do carro a álcool, que dominava o parque produtivo nacional e dificultava a comercialização de modelos a gasolina? Esses exemplos mostram que em uma economia de livre iniciativa e com abertura razoável de comércio exterior prevalecem mecanismos de autocontrole que tendem a trazer todo o sistema a um equilíbrio. São forças de mercado e da sociedade que se interagem e se ajustam entre si de forma dinâmica, complexa, sistêmica e interdependente. Reações de consumidores e outros produtores concorrentes, fortalecimento de produtores de insumos e matérias-primas, entrada de novos competidores, desenvolvimento de novas tecnologias, alterações fiscais e tributárias, alterações na política de juros e condições de financiamento, mudanças na política cambial e monetária, atuação de sindicatos e movimento de consumidores ou associações de classes, fortalecimento de segmentos profissionais com a maturação de negócios em novas tecnologias, mudanças de comando nas decisões políticas e administrativas, mudanças e exigências de políticas ambientais constituem exemplos de fatores que culminam por influir nos mecanismos de autocontrole ou autoregulação, trazendo todo o sistema econômico envolvido a uma situação de equilíbrio de forças competitivas no mercado. Todos acabam encontrando o seu lugar, o seu nicho no mercado. É por isso que se diz, simplificadamente, que a longo prazo não existem monopólios. O equilíbrio dinâmico, ou menos iníqüo, das forças competitivas em um mercado de livre iniciativa depende do grau de conscientização de todos os agentes econômicos presentes em uma sociedade, como produtores, consumidores, governo e cidadão conscientes.


Conclusão

Com o tema de Agricultura Transgênica e o Grilo, com uma clara alusão à história infantil do Pinóquio, procurou-se mostrar uma faceta de uma mesma realidade dos organismos geneticamente modificados. Todo mundo se preocupa prioritariamente com o poder econômico e o sentido da dominação de algo realmente poderoso no seio dos negócios da biotecnologia, onde estão em jogo bilhões de dólares e muitos interesses. Mas, existe uma característica singular dentro dessa realidade que é povo como consumidor, produtor rural, empresário do agronegócio, político, legislador, jurista ou simples cidadão comum. E é esse povo que se procurou alcançar com o artigo, explorando sentimentos, angústias, emoções, perspectivas, questionamentos e colocações práticas de interesse cotidiano das pessoas. É lógico que não se esgotou o assunto, tão polêmico e abrangente para a própria sustentabilidade do Planeta. Mas foi uma tentativa de reflexão, ponderação e crítica sobre um assunto palpitante, atual e que concerne a todos. Foi também, uma forma de mostrar que a vida é uma eterna encruzilhada, uma escolha entre múltiplas alternativas. Na biologia, depois do seqüenciamento genômico vem a análise proteômica, a análise das proteínas de um ser vivo, abrindo novas linhas de pesquisas, novas e inebriantes perspectivas de entender a complexidade da vida. O caminho dessa nova realidade, além de muita ciência e tecnologia, será trilhado com arte, sabedoria, prudência, ética, solidariedade e muito trabalho.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOMMA, Alberto Nobuoki. Agricultura transgênica e o grilo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 165, 18 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4682. Acesso em: 24 abr. 2024.