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Comentários às disposições de responsabilidade civil da Lei nº 10.671/03

(Estatuto de Defesa do Torcedor)

Comentários às disposições de responsabilidade civil da Lei nº 10.671/03. (Estatuto de Defesa do Torcedor)

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SUMÁRIO: 1. JUSTIFICATIVA E PROBLEMATIZAÇÃO; 2. CONVIVÊNCIA DO ESTATUTO DO TORCEDOR COM O CDC; 3. RELAÇÃO ENTRE TORCEDOR E CLUBE/EROC CONFIGURADA COMO RELAÇÃO DE CONSUMO; 4. DA SEGURANÇA DO TORCEDOR PARTÍCIPE DO EVENTO; 4.1 O DIREITO DO TORCEDOR À SEGURANÇA; 4.2 DIFERENÇA ENTRE RESPONSÁVEL PELA PARTIDA E RESPONSÁVEL PELO ESTÁDIO; 4.3 O DEVER DO ESTADO DE PROPORCIONAR SEGURANÇA; 4.4 DEFINIÇÃO DE DIRIGENTE; 4.5 DEVERES DOS CLUBES E DA EROC; 4.5.1 DEVERES DOS CLUBES; 4.5.2 DEVERES DAS EROC; 4.5.3 DEVERES COMUNS; 4.6 FALHAS DE SEGURANÇA E FALHAS DE SOLICITAÇÃO; 4.7 FALHA NA ORGANIZAÇÃO DO JOGO V FATO DO PRODUTO/SERVIÇO: QUEM RESPONDE EM CADA HIPÓTESE 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.


1. Justificativa e problematização:

Nesse trabalho analisamos a Lei 10.671 de 15 de maio de 2003 (O estatuto de defesa do torcedor). A escolha se justifica pelos seguintes motivos:

1. Essa lei pode ser considerada como mais uma contundente pá de cal sobre o caixão da teoria da culpa, que por tantas décadas reinou soberana em nosso ordenamento. Servindo, portanto, como emblemática amostra de como, nos tempos atuais, lida-se com o dano: Não mais se cogita de procurar culpados; mas apenas de se procurar quem deve indenizar. O que importa à teoria objetiva (contemplada pelo novo Código Civil ao art. 927 parágrafo único, e também pela lei em comento, ao art. 19), é que haja a reparação efetiva do dano. Nesse sentido é a lição de MOURIN: "A questão da reparação dos danos sofridos por uma pessoa deve ser proposta dessa maneira: ‘quem deve reparar o dano?’ E não assim: ‘quem é responsável?’" [1];

2. Trata-se de lei que, a exemplo do código de defesa do consumidor, estende sua tutela protetora a uma grande parcela da sociedade. E mesmo a expressão "grande parcela da sociedade" não é capaz de traduzir a imensidão de casos que essa lei tocará. O reconhecimento da relevância social de eventos públicos de caráter esportivo, tem gerado o surgimento de leis regulamentadoras em vários países do mundo. No Brasil não poderia ser diferente [2]. E se não é possível acusar FILOMENO de exagerado pela sua afirmação de que todos somos consumidores [3]; também não seria de se considerar inverossímil a assertiva de que, no Brasil, todos somos torcedores. O costume de ir ao estádio torcer pelo time de sua simpatia está, já há muito, presente na vida do brasileiro: do mais rico ao mais humilde.

3. Por se tratar de Lei ainda muito nova, ela é, ainda, muito carente de comentários. O que, por si só, já justificaria essa empreitada.

Nesse trabalho responderemos às seguintes questões: A) O estatuto do torcedor, como lei mais específica, excluiria a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC)? B) A relação entre torcedor e clube/entidade organizadora da competição, seria relação de consumo? C) Quem tem o dever de garantir a segurança dos torcedores nos estádios? D) Sobrevindo ao torcedor dano em decorrência de falha de segurança, quem tem o dever de indenizar? E) O cumprimento do dever do clube de solicitar presença policial o exime de responsabilidade? F) O descumprimento desse mesmo dever exime o Estado de qualquer responsabilidade? e G) A falha de segurança a que se refere o art. 19 do estatuto seria o mesmo que fato do produto/serviço?


2. Convivência do estatuto do torcedor com o CDC:

A Lei 10.671/03 já ao art. 1º estabelece seu campo de incidência: Este Estatuto estabelece normas de proteção e defesa do torcedor. Define-se torcedor como toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva (art. 2º ). Sendo essa lei mais específica, poderia surgir dúvida a respeito da aplicação do CDC nas relações de que o estatuto trata. Mas o legislador deixou claro que os direitos presentes nessa lei não excluem os que emanam do CDC. Muito pelo contrário. Trata-se de direitos adicionais os que ali se encontram.

Em dois momentos foi manifestada essa intenção: Ao art. 3º, que equiparou, para todos os efeitos legais, a fornecedor a Entidade Responsável pela Organização da Competição (que chamaremos de EROC), bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando do jogo (que chamaremos de clube). E ao art. 14, que atribui a responsabilidade pela segurança do torcedor antes, durante e após a partida ao clube detentor do mando de jogo; mas sem excluir a incidência dos artigos 12 e 14 do CDC, que tratam de responsabilidade por fato do produto e serviço.


3. Relação entre torcedor e clube/EROC configurada como relação de consumo:

Com isso, temos que além das figuras previstas como fornecedores no art. 3º do CDC (o produtor, montador, criador, construtor, transformador, importador, exportador, distribuidor, comerciante e prestador de serviços) surgem o clube com mando de jogo e a EROC, gozando dos mesmo status. Tal equiparação é importante inovação, na medida em que espanca qualquer dúvida que ainda poderia existir quanto à aplicação do CDC nessas relações. Tal incidência, não era livre de controvérsias [4]. Isso ocorria muito embora a Lei 9.615/98 (Lei Pelé) já equiparasse, expressamente, o torcedor que adquire ingresso para assistir a evento esportivo a consumidor, para os efeitos de aplicação do CDC [5]. Isso prova como os jurtistas brasileiros são legalistas: Lei de 1998 já dispunha que o torcedor era consumidor (o que implica dizer que, por consequência, a entidade que organiza o evento é espécie de fornecedora de serviço).

Mas ainda assim havia dúvida e receio em se aplicar o CDC. Tanto que foi necessário que viesse Lei posterior para completar o ciclo (coisa que o intérprete não teve coragem de fazer) e dizer expressamente: O clube com mando de jogo e a EROC são fornecedores [6]. Esse receio fundava-se em dois pontos, que serão apenas citados, a suposta inconstitucionalidade do art,42 § 3º da Lei Pelé; e o suposto caráter não lucrativo das atividades dos clubes [7]. Tais dúvidas agora não podem assustar o aplicador do direito. O que imporrta é que temos a lei. Que se questione a sua legalidade ou constitucionalidade é compreensível..., mas isso não muda o fato de que habemos lex..


4. Da segurança do torcedor partícipe do evento:

Após o capítulo I, (disposições gerais) no qual estão os artigos que viemos de comentar, e no qual estaria o art. 4º, se não fosse o veto presidencial [8]; segue o capítulo Da Transparência na Organização, que dispõe sobre a publicidade do regulamento e agenda da competição, bem como cria a figura do Ouvidor da Competição(art. 6º), pessoa designada pela EROC, cuja função é de servir de contato entre torcedores e EROC, anotando sugestões dos torcedores e apresentando-as à entidade organizadora. O capítulo seguinte (Do regulamento da competição) estabelece que o regulamento deverá ser divulgado até sessenta dias antes da competição (art.9º). E com o objetivo de evitar as famosas "viradas de mesa" prega-se que é direito do torcedor que em campeonatos com mais de uma divisão, seja observado o princípio do acesso e do descenso (art. 10 § 3º). Finalmente, chegamos ao objeto desse trabalho: o Capítulo IV (Da segurança do torcedor partícipe do evento esportivo), que condensa a matéria dos deveres dos clubes e EROC, bem como da responsabilidade por danos sofridos pelo torcedor nos eventos esportivos. Deteremo-nos com pesar a esse capítulo.

4.1 O direito do torcedor à segurança:

O estatuto assegura ao torcedor direito à segurança não apenas durante o evento esportivo. É o que dispõe o art. 13: O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.

Por óbvio, a cada direito de determinada pessoa corresponde um dever de uma outra. E o dever de proporcionar segurança nos eventos esportivos foi atribuído ao clube com mando de jogo:

art. 14: Sem prejuízo do disposto nos arts. 12 a 14 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, que deverão...

Percebe-se, com a expressão "nos locais onde são realizados os eventos esportivos" (art. 13), assim como com o fato da versão original do estatuto contar com definição de estádio, que a intenção foi determinar a responsabilidade do clube com mando de jogo, não em função do momento em que ocorreu o dano ao torcedor, mas em função do local em que ele sobreveio. O objetivo, portanto, foi o de responsabilizar o clube pelos danos ocorridos dentro do estádio, mesmo que antes ou após a partida. Mais adiante, veremos casos em que excepcionalmente o clube responderá por danos ocorridos fora do estádio (item 4.5.1).

4.2 Diferença entre responsável pela partida e responsável pelo estádio:

Aqui cabe fazer a diferença entre "clube com mando de jogo" e clube/entidade responsável pelo estádio. O clube com mando de jogo é aquele que, pelas regras da competição, deve receber o time adversário e organizar a partida (vender ingressos, captar a renda etc). Nem sempre, no entanto, esse clube é o responsável pelo estádio. Por exemplo: É comum que nos jogos com mando de jogo do Clube de Regatas Flamengo, a partida ocorra no Estádio Jornalista Mário Filho (o Maracanã), que é de responsabilidade da autarquia estadual Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro – SUDERJ -. Nessa hipótese, o responsável pelo estádio é diferente do responsável pelo jogo (clube com mando de jogo).

Já quando o Clube de Regatas Vasco da Gama, por exemplo, tem o mando de jogo, e esse acontece no seu estádio particular (São Januário), então temos que o clube responsável pelo jogo, a que se refere o estatuto, coincidirá com o próprio responsável pelo estádio. A distinção entre esses conceitos é relevante quando se tratar de hipóteses como a primeira aventada. Nesses casos, como veremos a seguir, será necessário aferir no caso concreto se o dano ao torcedor decorreu de falha na organização do jogo ou de falha na manutenção do estádio.

4.3 O dever do Estado de proporcionar segurança:

O dever genérico de proporcionar segurança a todos cidadãos, torcedores ou não, é do Estado nos termos do art. 6º da Constituição Federal. Sendo notório que eventos públicos, da magnitude de partidas de futebol, são ambientes potencialmente violentos (pelas paixões que despertam e pelo acirrado espírito de competitividade que cerca o ambiente); cabe ao poder público providenciar, independentemente de qualquer requisição, as medidas que garantam a segurança no local. Nessa matéria, havendo dano ao torcedor, o Estado é sempre, na pior das hipóteses, forte candidato a litisconsorte passivo. A responsabilidade prevista no art. 14 dos clubes com mando de jogo não exclui, e o dizemos mesmo sabendo falamos o óbvio, a do Estado que emana do próprio texto constitucional.

4.4Definição de Dirigente:

Como visto, pelo art. 14 do estatuto, são responsáveis pela segurança do torcedor os clubes que organizam a partida e seus dirigentes. Nesse ponto a lei nova poderá ser verdadeiramente revolucionária, na medida em que poderá implicar na desconsideração automática da personalidade jurídica do clube. Como se sabe, a disregard doctrine tem sido já a alguma tempo aplicada no Brasil. No entanto, esse levantamento do véu tem se operado apenas em hipóteses em que se usa da personalidade jurídica como escudo a garantir a impunidade; ou, ainda, na hipótese de responsabilização direta de sócio gerente quando esse agir em excesso de mandato ou em desrespeito à lei. Desconsideração automática da personalidade jurídica foi algo, de que a princípio, não se cogitou. E que hoje é possível. (v. também art. 19 da mesma lei). A definição de dirigente é fornecida pelo Art. 37 § 1º do estatuto:

Os dirigentes de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo serão sempre:

I - o presidente da entidade, ou aquele que lhe faça as vezes; e

II - o dirigente que praticou a infração, ainda que por omissão.

Notamos que foi dado privilégio à realidade fática em detrimento da formalidade jurídica, ao se definir que é dirigente não apenas aquele que formalmente é presidente da entidade, mas também aquele faz as vezes de tal. É boa a regra, afinal de contas, a história recente registra casos em que o vice-presidente de clube acabava por exercer papel mais influente do que o próprio presidente.

4.5 Deveres dos Clubes e da EROC:

Uma vez que, nas palavras de LARENZ [9], a responsabilidade é a sombra da obrigação; não faria sentido a existência de qualquer dispositivo, no estatuto, sobre responsabilidade civil, sem que antes não houvesse a atribuição de deveres. Eis que a responsabilidade (dever sucessivo de indenizar decorrente da inobservância a um dever originário) só pode surgir onde houver obrigações. No estatuto do torcedor os deveres podem ser agrupados em três categorias: 1. Deveres do clube com mando de jogo; 2. Deveres da EROC e 3. Deveres comuns. Há ainda, dever do Estado previsto no estatuto (art. 14 I), mas, como visto, esse dever emana da própria Constituição Federal.

4.5.1 Deveres dos clubes:

São deveres do clube (e seus dirigentes):

A) solicitar ao Poder Público competente a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos torcedores dentro e fora dos estádios e demais locais de realização de eventos esportivos (art. 14, inc I). Nesse ponto surgem duas questões relevantes.

A primeira é a seguinte: Não cumprindo, o clube, o seu dever de solicitar a presença de agentes estatais (policiais); estaria o Estado desonerado de qualquer responsabilidade por dano daí decorrente? Entendemos que a resposta só pode ser negativa. E o fazemos pelos motivos já expostos supra (item 4.3). Ao que entendemos, o descumprimento desse dever, terá como efeito o fato de que o clube negligente, excepcionalmente, responderá por danos ao torcedor ocorridos mesmo fora do estádio (havendo litisconsórcio passivo do Estado, que, mesmo sem notificação, deveria ter agido para evitar tumulto).

Ora, se cabe ao clube solicitar presença policial para garantir a segurança dentro e fora do estádio; e se o clube hipoteticamente não o faz; e daí sobrevem grave tumulto fora do estádio, que só veio a adquirir grandes proporções em face da ausência de policiamento. E se desse tumulto decorre lesão ao torcedor X. Fácil é de se constatar o nexo de causalidade entre o ilícito praticado pelo clube (não notificação das autoridades) e o dano sofrido por X.

Outra questão que surge é de se saber se com a devida requisição da presença policial, o clube fica desobrigado de indenizar qualquer dano a torcedor derivado de falha na ação dos policiais. Ao que entendemos, com a promulgação do estatuto, a resposta só pode ser não; o clube não se desobriga com a solicitação.

Antes do estatuto já se decidiu de forma diversa:

O dever de prestar segurança é da entidade que organiza o campeonato e, se solicita da autoridade pública contingente necessário para tal fim; é do Estado a responsabilidade para o atendimento desse serviço, o que, em não ocorrendo, se danos são causados a alguém, responde o ente público pela falta do serviço ou dever específico de guarda. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apel. Cív. 17.236 de 1999)

Decisões como a citada, corretas em sua época, não mais podem subsistir a partir da vigência do estatuto do torcedor. Isso porque o art. 19 dessa lei é claro ao responsabilizar, solidária e objetivamente, o clube com mando de jogo e a EROC pelos danos ao torcedor ocorridos no estádio, desde que decorrentes de falha de segurança ou da inobservância dos deveres previstos no Capítulo IV da Lei. In verbis:

Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes [o artigo 15 se refere ao clube com mando de jogo], independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo.

Note-se que não se disse ali "danos que decorram de falhas de segurança por parte do clube organizador do jogo"; apenas usou-se da expressão "falhas de segurança". Razão pela qual entendemos que seja de quem for essa falha (do clube, da EROC, ou da polícia) resta por configurada a responsabilidade solidária e objetiva do clube e da EROC. Onde a lei não diferencia, na cabe ao intérprete fazê-lo. Além do mais, só assim se daria maior garantia de ressarcimento ao torcedor lesionado, que além de poder acionar o Estado (caso a falha tenha sido da polícia), poderá acionar clube e EROC. É possível que se questione o simbolismo dessa medida; uma vez que boa parte dos clubes nacionais não goza de higidez econômica tal que venha a dar ao torcedor maior garantia de ressarcimento do seu dano. Talvez, tendo de fazer a opção entre litigar com clube sem recursos; ou com o Estado, escolha-se esse último, a despeito do inconveniente que é o pagamento por precatórios. O que significa dizer, que, talvez, por uma questão de maior conveniência para o torcedor, decisões como a citada continuem ainda a serem prolatadas, principalmente nos pequenos centros, onde os clubes esportivos não geram grandes riquezas.

B) Outro dever do clube é o de informar imediatamente após a decisão acerca da realização da partida, dentre outros, aos órgãos públicos de segurança, transporte e higiene, os dados necessários à segurança da partida (art. 14, inc II); bem como o de colocar à disposição do torcedor orientadores e serviço de atendimento para que aquele encaminhe suas reclamações no momento da partida, devendo essas reclamação serem resolvidas de imediato sempre que possível (art. 14, inv III com § 1º)

Estabelece o § 2º que a inobservância dos deveres enumerados implicará, ao clube, a perda do mando de campo por, no mínimo, dois meses.

4.5.2 Deveres das EROC:

Os deveres da EROC estão previstos nos incisos do art. 16 e são os seguintes: 1. Confirmar, com até quarenta e oito horas de antecedência, o horário e o local da realização das partidas em que a definição das equipes dependa de resultado anterior; 2. Contratar seguro de acidentes pessoais, tendo como beneficiário o torcedor portador de ingresso, válido a partir do momento em que ingressar no estádio; 3. Disponibilizar um médico e dois enfermeiros-padrão para cada dez mil torcedores presentes à partida; 4.Disponibilizar uma ambulância para cada dez mil torcedores presentes à partida; e 5. Comunicar previamente à autoridade de saúde a realização do evento.

É evidente que a posse do ingresso não será a única forma do torcedor comprovar que esteve no estádio. Até porque, se assim fosse, bastaria ao clube recolher o ingresso do torcedor quando da sua entrada no estádio, para que ficasse livre de qualquer responsabilidade. A falta do ingresso pode ser suprida por prova testemunhal, por exemplo.

4.5.3 Deveres Comuns:

É dever concorrente dos clubes e das EROC, nos termos do art. 17, implementar planos de ação referentes a segurança, transporte e contingências que possam ocorrer durante a realização de eventos esportivos. Planos esses que deverão ser apresentados aos órgão responsáveis pela segurança pública local. Vale, aqui, o mesmo comentário feito ao item 4.5.1: Nem a apresentação de tal plano exime de responsabilidade o clube e o EROC; e nem a falta de apresentação exime de responsabilidade o Estado.

4.6 Falhas de segurança e falhas de solicitação:

Claramente, no art. 19 considera-se a existência de duas categorias de falhas: 1. As de segurança interna e 2. As demais. Ali se diz que clube e EROC devem indenizar os danos ocorridos por falha de segurança nos estádios, ou decorrentes da inobservância dos deveres presentes ao Capítulo IV (expressão que denota o caráter residual dessa Segunda categoria). O que significa dizer que os danos decorrentes de falhas dessa Segunda categoria, devem ser indenizados muito embora não ocorram nos estádios.

Resta-nos encontrar quais seriam os deveres que uma vez inobservados implicariam falha de segurança nos estádios. Talvez a mais evidente falha dessa natureza seja a superlotação, que ocorre quando se disponibilizam mais ingressos do que se aconselharia respeitando a capacidade máxima do estádio; ou quando muito embora se disponibilizem ingressos respeitando aquele limite, se permita a entrada clandestina de mais pessoas no ambiente. Tal prática, inclusive, enseja a aplicação da sanção da perda do mando de jogo por no mínimo seis meses (art. 23 § 2º).

É de se excluir dessa categoria (das falhas de segurança interna), as falhas que muito embora possam ser consideradas de segurança, não ocorrem nos estádios. Seriam as falhas de segurança externa e de transporte. Quanto a esses pontos, não dispõe o estatuto que os clubes e a EROC devem, pessoalmente, cuidar da sua implementação. Tudo o que há é um dever de solicitar perante as autoridades competentes as medidas devidas. É o caso dos artigos 14 I e II; 16 V e 17 II. Obrigações que chamaremos de deveres de solicitação/informação.

Então restam os deveres dos artigos 14 III, 16 II, III, IV. A inobservância do previsto nesses dispositivos, bem como a inobservância da capacidade máxima do estádio (essa é uma relação não exaustiva), é que configurariam uma falha de segurança interna suscetível de ser praticada pelo clube e/ou pela EROC. Saliente-se que também o Estado pode cometer tais falhas [10] e, naturalmente, por elas responde

Como já dito anteriormente, nem o cumprimento dos deveres de solicitação exonera o clube e a EROC, nem o seu descumprimento desobriga o Estado. O efeito do descumprimento desses deveres é que daí surgirá ao clube e à EROC dever de indenizar mesmo os danos ocorridos fora do estádio, sendo essa responsabilização objetiva, nos termos do art. 19. É o caso, por exemplo, do clube que não solicita presença policial, daí decorrendo lesão a torcedor, que fora surpreendido por tumulto que seria facilmente controlável caso a polícia ali estivesse.

4.7 Falha na organização do jogo V fato do produto/serviço: quem responde em cada hipótese

Podemos agrupar as falhas de segurança interna e as falhas de solicitação/informação cometidas pelo clube e/ou EROC em uma só categoria que chamaremos de falha na organização. Se de qualquer falha na organização do evento esportivo decorrer dano ao torcedor, deverá o clube e a EROC responder pela sua reparação independentemente de culpa.

No entanto, nem sempre o dano sofrido pelo consumidor decorrerá de falha na organização. Pode acontecer do dano ser consequência exclusiva de fato do produto ou serviço. Nessas hipótese, o clube e a EROC só responderão na medida em que também forem responsáveis pela manutenção do estádio (caso de fato do serviço) ou pela construção do mesmo (caso de fato do produto).

Chegamos a essa conclusão com base nos artigos 14 e 19 do estatuto. Aquele determina que o clube é responsável pela segurança do torcedor no estádio, sem prejuízo do disposto aos artigos 12 e 14 do CDC (que tratam de responsabilidade por fato do produto e fato do serviço). O que significa dizer que os clubes continuam responsáveis por fato do produto ou do serviço, caso também sejam fornecedores de serviço ou produto. Senão, não.

Considere-se o caso, que já ocorreu de fato [11], de placa publicitária de estádio se desprender e cair na cabeça de torcedor. Ora, sendo o responsável pelo estádio o obrigado a cuidar da sua manutenção, devendo, portanto, tomar as medidas necessárias para que nenhuma placa de publicidade se solte, colocando em risco o torcedor/consumidor; temos que o dever de reparar os danos daí originados é só seu (do responsável pelo estádio) e de mais ninguém. E não se argumente que a cláusula do art. 19 é ampla o suficiente para alcançar essa hipótese. Esse artigo fala que há plena e objetiva responsabilização dos clubes e da EROC pelos danos decorrentes de falhas na organização do jogo (seja falha de segurança, seja falha de solicitação). Não se cogita de responsabilizar clube e EROC por fato do serviço. Somente nesse sentido é que se pode entender a ressalva do art. 14.

Sendo assim, caso uma placa se desprenda e atinja torcedor em jogo com mando do Vasco e realizado no Maracanã; o dever de indenizar será da SUDERJ – autarquia responsável pelo complexo – que era quem tinha o dever de evitar o dano. Mas caso o mesmo aconteça em jogo realizado em São Januário, o dever de indenizar será do Vasco, mas não por possuir o mando de jogo, mas por ser responsável pelo estádio.

Mas é claro que essa solução somente se aplica na hipótese do dano derivar única e exclusivamente fato de serviço. É possível, no entanto, que essa mesma espécie de dano decorra ao mesmo tempo de fato de serviço e falha de segurança. Cogite-se, verbi gratia, da hipótese de placa publicitária atingir torcedores que ocupavam parte do estádio que, por medida de segurança, deveria ficar livre. E que só fora ocupada, pelo fato do clube responsável pela partida ter posto a venda mais ingressos do que o recomendado. Nesse caso, mesmo tendo a partida ocorrido no Maracanã, o clube e a EROC devem indenizar integralmente o lesionado. Integralmente porque o art. 19 do estatuto não fala que o clube responde objetivamente pelos danos causados na medida em que concorrer para o mesmo. Simplesmente, o clube responde.

Para que não haja enriquecimento sem causa da entidade responsável pelo estádio; caberá ao clube e EROC entrar com ação regressiva contra aquela para obter dela o quantum que, considerando o grau de sua importância na ocorrência do dano, ela deveria ter pago ao torcedor.

No caso do responsável pelo estádio ser pessoa diferente do responsável pelo jogo, o torcedor não ficará em situação mais desfavorável, em acontecendo dano por falha na manutenção. Isso porque se o responsável é outro ente privado, aplica-se o CDC e a responsabilização é objetiva. E se o responsável pelo estádio for pessoa jurídica de direito público, aplica-se o art. 37 § 6º da Constituição Federal e a responsabilização também independe de culpa.

Para melhor organização das idéias aqui expostas, disporemo-nas na seguinte tabela:

 

DANOS AO TORCEDOR

DENTRO DO ESTÁDIO

FORA DO ESTÁDIO

FALHA DE SEGURANÇA

FATO DO PRODUTO

FATO DO SERVIÇO

FALHA DE SEGURAN-ÇA DO SERVIÇO PÚBLICO

FALHA DE SOLICITA-ÇÃO

FALHA DO SERVIÇO PÚBLICO

RESPONDE OBJETIVAMENTE O RESPONSÁVEL PELO ESTÁDIO

   

X

   

RESPONDE OBJETIVA-MENTE O CONSTRU-TOR DO ESTÁDIO

X

RESPONDE OBJETIVA-MENTE O CLUBE

X

   

X

X

 

RESPONDE OBJETIVA-MENTE A EROC

X

   

X

X

 

RESPONDE OBJETIVA-MENTE O ESTADO

X

   

X

X

X

Para que se entenda o que se quis dizer com essa tabela, deve-se considerar que: 1. Com ela não se quer dizer que não possam existir danos decorrentes de mais de um dos fatores alencados à linha 3. Isso é plenamente possível (vide exemplo supra); 2. As Falhas de segurança a que fizemos referência são as seguintes: superlotação, e violação dos deveres dos seguintes dispositivos do estatuto: artigos 14 III, 16 II, III, IV; 3. Falhas de solicitação são violações aos deveres dos seguintes dispositivos da lei: artigos 14 I e II; 16 V e 17 II e 4. O dever de indenizar só surgirar se houver o necessário nexo de causalidade entre a falha em questão e o dano sofrido pelo torcedor.


5. Considerações finais:

A sociedade do século XXI não mais convive pacificamente com o dano irreparado. A cada dia, novas Leis, que aplicam a teoria objetiva, surgem para reforçar essa certeza. É nesse contexto que se insere a Lei 10.671/03: uma lei que na matéria de responsabilidade civil reforçou antigas convicções e criou novos paradigmas que em tudo engrandecerão o Direito Pátrio.

Ao final desse estudo, e com base na doutrina, jurisprudência e lei, reputamo-nos aptos a concluir:

1. O estatuto do torcedor não exclui a incidência do CDC;

2. Com o disposto no art. 3º do estatuto, não mais resta duvida de que a relação entre torcedor e clube/EROC constitui, verdadeiramente, relação de consumo;

3. Nos termos do art. 14 do estatuto, o dever de garantir a segurança do torcedor nos estádios, é do clube com mando de jogo;

4. Se da inobservância desse dever, sobrevem dano ao torcedor, a responsabilidade será solidária e objetiva do clube e da EROC;

5. O cumprimento, por parte do clube, do dever de solicitação de força pública, não elide sua própria responsabilidade por danos decorrentes de falhas de segurança nas dependências do estádio;

6. Da mesma forma, o descumprimento desse dever não elide a responsabilidade do Estado e

7. O conceito de falha de segurança presente no artigo 19 do estatuto não se confunde com o de fato do produto/serviço: Por aquela, respondem sempre o clube e a EROC solidariamente e independentemente de culpa. Ao passo que pelo fato do produto/serviço, responderá, nos termos do CDC o prestador do serviço ou do produto, que eventualmente, mas não necessariamente, será o clube ou EROC.


Referências:

BONAVIDES, Davi de Oliveira Paiva. Uma Análise sobre o estatuto do torcedor. In In verbis n. 15, jan/jun de 2003. P. 116-125

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Vol. I 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973

FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2001

MOURA, Rodrigo Almeida Gomes. O estatuto de defesa do torcedor e a responsabilidade objetiva: disponível em http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/outros/estatuto_do_torcedor_rodrigo_almeida_gomes_moura.pdf capturado em 10:06 21/11/03

SITES:

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: http://www.tj.rs.gov.br/

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: http://www.tj.rj.gov.br/


Notas

01. Apud José de Aguiar Dias. Da responsabilidade civil. Vol. I 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973. P. 56

02. No Direito estrangeiro, são citados os seguintes precedentes legislativos: O decreto real de 1993 na Espanha, e o Football Act de 2000 na Inglaterra. Cf a respeito: Davi de Oliveira Paiva Bonavides. Uma Análise sobre o estatuto do torcedor. In In verbis n. 15, jan/jun de 2003. P. 116-125.

03. "... afinal de contas, todos somos, em maior ou menor grau, consumidores de produtos e serviços, a cada instante de nossas vidas". (Manual de Direitos do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2001. Nota do autor).

04. Rodrigo Almeida Gomes Moura (O estatuto de defesa do torcedor e a responsabilidade objetiva: disponível em http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/outros/estatuto_do_torcedor_rodrigo_almeida_gomes_moura.pdf capturado em 10:06 21/11/03) registra o dissenso doutrinário. E na jurisprudência, encontramos julgado de 2002, no qual se responsabiliza o clube, responsável pelo jogo, por agressões cometidas por seus prepostos, com base na culpa in eligendo (art. 1.523 do antigo código); não aplicando-se, portanto, o artigo 14 do CDC (que trata da responsabilidade por fato do serviço) que, como se sabe, autoriza a responsabilização objetiva (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: Apel. Cív. 14.908/2002). E o fato do lesionado não ter sido propriamente torcedor, mas ambulante, não justifica a inaplicação do CDC. Caso se admitisse, já naquela época, o clube responsável pelo mando de campo como fornecedor, nos termos da lei 8.078/90, inevitavelmente o ambulante seria consumidor por equiparação. Eis que prevê o art. 17 do CDC: Para os efeitos dessa seção (fato do produto e do serviço), equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

05 Eis o dispositivo da mencionada Lei: Art. 42. (...) § 3º. O espectador pagante, por qualquer meio, de espetáculo ou evento desportivo equipara-se, para todos os efeitos legais, ao consumidor, nos termos do artigo 2º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.

06. Mas justiça seja feita: havia Tribunais que já a partir da Lei Pelé aplicavam o CDC nas relações de que tratamos. Citamos, por todos, os seguintes julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: Apel. Cív. Nº 70002711240, nona câmara cível, tribunal de justiça do rs, relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, julgado em 03/08/2001; e Apel. Cív. nº 70001973718, décima câmara cível, tribunal de justiça do rs, relator: Luiz Ary Vessini de Lima, julgado em 23/08/2001). No segundo acórdão, rebate-se aquele que julgamos ser o principal argumento contra a incidência do CDC nas relações de que tratamos: A suposta inconstitucionalidade do art. 42 § 3º da Lei Pelé. Argumenta-se que o CDC, por possuir expressa previsão constitucional, teria, senão formalmente, mas ao menos materialmente, status de Lei Complementar. Só podendo, portanto, ser alterado por outra Lei da mesma categoria. Esse tema merece ponderação, uma vez que reconhecida a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei Pelé, o efeito deveria ser o mesmo quanto ao art. 3º do estatuto do torcedor. Mas, como nesse trabalho não há espaço para tanto, recomendamos a leitura do mencionado julgado na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Vol 214, página 297. Muito embora nem ali se esgote o tema.

07. E o art. 3º § 2º do CDC estabelece que só é fornecedor quem exerce atividade remunerada.

08. Nesse artigo havia definição de estádio. Nas razões de veto ponderou-se do conhecido risco que há de se engessar a aplicação da lei com definições despiciendas.

09. Apud. Sergio Cavalieri Filho. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 26

10. Designando número de policiais aquém do necessário, ou despreparados para desempenhar seu papel, por exemplo.

11. Apel. Cív. 5.536 de 1998 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Tendo o fato ocorrido no Maracanã, responsabilizou-se a SUDERJ, mas cogitou-se, até mesmo, de responsabilizar a própria empresa da qual se fazia publicidade na placa


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE, Haroldo Augusto da Silva Teixeira. Comentários às disposições de responsabilidade civil da Lei nº 10.671/03. (Estatuto de Defesa do Torcedor). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 206, 28 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4726. Acesso em: 23 abr. 2024.