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O negócio jurídico de shopping center como contrato misto

O negócio jurídico de shopping center como contrato misto

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Parece discussão estéril e muitos assim a consideraram. Basta pensar, contudo, nos problemas advindos da adoção de uma ou outra posição para afastar esta sorte de opinião. Considerar como um contrato atípico era retirar das mãos do locatário a proteção da antiga lei de locações, mantendo somente as regras pertinentes ao negócio jurídico e aos contratos em geral.

1.O Interesse Jurídico no Tema

Como inovação tecnológica que é, cedo passou a gerar discussões doutrinárias e divergências na jurisprudência, que culminaram no famoso encontro realizado na EMASP, onde foi reunida, no dizer do ilustre professor da Faculdade de Coimbra, Antunes Varela, escrevendo entre os seus, a corte de nobres do direito brasileiro: Orlando Gomes, Caio Mário, Roberto Requião e outros ali estavam para tratar de questões várias acerca dos aspectos jurídicos do shopping center, mas especialmente da tormentosa natureza jurídica do contrato firmado entre o empreendedor responsável pela construção do complexo comercial e o lojista que ali instala sua atividade.

Parece discussão estéril e muitos assim a consideraram. Basta pensar, contudo, nos problemas advindos da adoção de uma ou outra posição para afastar esta sorte de opinião. Considerar como um contrato atípico era retirar das mãos do locatário a proteção da antiga lei de locações, mantendo somente as regras pertinentes ao negócio jurídico e aos contratos em geral. É igualmente pertinente lembrar que o seminário se deu nos anos 80, antes portanto da edição da lei de locações urbanas (lei 8.245/ 90), que, ao regular este contrato em seu artigo 54, para alguns, foi suficiente para resolver o problema da natureza jurídica, embora, na realidade, tenha tão somente dado uma maior segurança ao lojista que se instala no Shopping Center.

As hipóteses aventadas no referido seminário acerca da natureza jurídica deste contrato foram, resumidamente, as seguintes :

- Contrato misto, posição defendida pelo saudoso professor Orlando Gomes

- Contrato de locação com clausulas atípicas, porém insuficientes para descaracterizar a locação, tese defendida pelo ilustre professor Caio Mário.

- Contrato de sociedade

- Sociedade em conta de participação

Como já ensinava o professor Almeida Costa em seu tratado sobre obrigações, os contratos se dividem em típicos ou nominados, atípicos ou inominados e mistos, embora uma classificação tomando apenas as duas primeiras categorias possa parecer completa e bastante [1]. Porém não se pode ignorar que no direito português o contrato misto é expressamente previsto no artigo 405, n°2 do código civil [2]. Este equívoco levou muitos a apontar Orlando Gomes como responsável pela hipótese de que o negócio em questão seria um contrato atípico, esquecendo-se que o professor baiano considera os contratos mistos como uma categoria daqueles e não como um terceiro gênero. Pode-se considerar a posição de Orlando Gomes como sendo uma ou outra, embora o mais preciso seja classificar sua posição como a do contrato atípico misto.

As teses que consideram que a natureza do negócio jurídico em questão é de sociedade não valem sequer serem consideradas. Falta ao empreendedor e ao conjunto de lojistas a affectio societatis e, além disso, o empreendedor não participa de eventuais prejuízos. Sua prestação é percebida tendo como base o faturamento bruto da loja, preservando-se um teto mínimo, apelidado de aluguel mínimo.

As duas principais teses são as dos professores Orlando Gomes e Caio Mário, são estas que iremos analisar para tentar responder a tormentosa questão da natureza jurídica do shopping center. Todavia é importante antes tecer considerações acerca da contextura econômica e social de seu surgimento.


2.O Surgimento do Shopping Center

O que é mais característico da civilização ocidental? O capitalismo, um sistema ideológico econômico cujo crescimento se deve ao sacerdócio persistente daquela classe de homens que lutou contra todas as dificuldades, fazendo da cobiça humana, aliada. Foi capaz de revolucionar vários aspectos da sociedade, modificando os modos de pensar e agir, quebrando moles deuses de barro para erguer um mais forte em seu lugar: o mercado.

O modelo de produção de Henry Ford, ao aumentar o número de carros postos em circulação nas estradas e ruas dos EUA, facilitando o transporte e incentivando a descentralização das áreas urbanas, foi o principal responsável pela início de uma verdadeira revolução comercial. Ao longo das estradas, que uniam a periferia aos centros onde estavam localizadas as fábricas, começavam a brotar pequenos centros comerciais, que mais tarde se tornaram bairros inteiros voltados à atração dos potenciais consumidores, habituais passantes daquelas veredas.

Pelos idos de 1950 foi erguido o primeiro shopping center da história pelo arquiteto John Graham no Seatle´s Northgate. O projeto visava atrair pessoas através da proximidade física de lojas concorrentes, incrementando a possibilidade de lucro de todos os lojistas presentes. Lygia Maria R. de Chávez, em inspirada monografia, propõe que teriam sido erguidos seguindo a concepção da chamada "Cidade Bela", modelo de planejamento urbano de Daniel Burnham, surgido da necessidade de dirimir o conflito criado pelo avanço do liberalismo industrial, que evidenciou o contraste entre a opulência e a miséria [3].

A concepção de shopping como obra arquitetônica tem muito da idéia original dos primeiros pensadores do planejamento urbano, conforme demonstra nossa autora. Estética e grandiosidade foram as marcas características dos primeiros projetos. Um bairro limpo, asseado, organizado e funcional totalmente voltado ao incremento das relações de consumo e administrado pela iniciativa privada.

A arquitetura mesmo participa deste intento de destravar os anseios consumeristas. O pé direito da construção, de grandes proporções, colabora na idéia de imensidade ao criar imensos vazios, trabalho completada pela imensa variedade de luzes, formas, perfumes e atrações diferentes que visam justamente desorientar o transeunte deste "bairro" da cidade, totalmente voltado para dentro de si mesmo.

No Brasil, nossos primeiros shopping centers foram erguidos na década de 70. O Iguatemi em São Paulo foi o pioneiro, sendo seguido pelos shoppings Continental, Ibirapuera, Morumbi e Eldorado. Entre os cariocas, os primeiros foram o Rio-Sul e o Barrashopping.


3.Definição e estrutura

Shopping Center, segundo a ABRASCE (Associação Brasileira de Shopping Centers), é "um centro comercial planejado sob uma administração única, composto de lojas destinadas à exploração comercial e à prestação de serviços, sujeitas a normas contratuais padronizadas, para manter o equilíbrio da oferta e da funcionalidade, assegurando a convivência integrada e pagando um valor de conformidade com o faturamento".

Lemke nos diz que normalmente ele se caracteriza pela beleza arquitetônica e pelo fato de estar situada, preferencialmente nas cercanias das grandes cidades, contando com amplo estacionamento, áreas de lazer, centros de alimentação, lojas varejistas das mais variadas, diversas prestadoras de serviços, amplas ruas, praças, jardins, fontes, ambiente refrigerados e serviço de segurança. [4]

Ocorre que não são essas características físicas o diferencial dos shoppings centers, embora sejam estratégicas para o intento de atrair e reter os consumidores em potencial pelo maior tempo possível. Também não é a reunião de várias lojas, muitas até concorrentes, em um mesmo espaço. Bairros totalmente voltados para o comércio não são em si nenhuma novidade. Durante a idade média, cidades inteiras, como as duas situadas na região de Flandres, Antuérpia e Bruges, estavam voltadas para esta prática, realizando anualmente feiras responsáveis pela atração de pessoas dos mais variados lugares da Europa.

O diferencial do shopping, aquilo que o põe efetivamente como revolução da tecnologia de vendas no varejo, é justamente o planejamento estratégico anterior e posterior à construção. São feitos estudos para determinar a viabilidade técnico-economica, donde se destacam a pesquisa do mercado consumidor potencial e da localização ideal para o empreendimento. Também, ainda na fase da construção, é feito o tenant mix, o plano de distribuição dos tipos de lojas pelo edifício de modo a gerar uma convivência lucrativa tanto para os lojistas quanto para o dono do shopping. Este, após terminada a obra, mantém-se como proprietário do imóvel como um todo e percebe mensalmente de cada um dos lojistas ali instalados um valor que varia de acordo com o faturamento bruto destes últimos, apelidado de aluguel mínimo.

As lojas são dividas em três espécies: As lojas magnéticas ou "âncoras" (grandes magazines ou supermercados, já consagrados), mini-âncoras (igualmente consagradas, mas de porte menor) e "satélites", que se aproveitam dos clientes potenciais atraídos pelos outros dois tipos de lojas.

O empreendedor ao participa dos lucros das diversas sociedades empresárias situadas no shopping, estabelece com elas uma permanente integração de interesses que gera ganhos de produtividade, os quais, em última análise, são transferidos ao consumidor. Mesmo após o início das operações continua o planejamento com base na visão do todo. O mercado (ambiente externo) é prospectado a fim de identificar prontamente ameaças e oportunidades. Com base nestes estudos são cunhados planos de marketing e reformulações das estratégias no tenant mix, tudo visando a maximização dos lucros.


4.A relação contratual entre o Lojista e o empreendedor proprietário do Shopping Center

"Estão presentes, em princípio, os seguintes tipos de avença: Contrato contendo as normas disciplinadoras das participações no empreendimento, contrato de associação dos lojistas, contrato entre o dono do shopping e uma empresa incumbida de administrar o empreendimento, contrato entre o empreendedor e cada lojista tendo por objeto a ocupação remunerada do espaço-loja" [5]

São contratos coligados internamente, como aqueles, por exemplo, que compõe a relação contratual para a instalação de um posto de gasolina. Com efeito, se neste falta o contrato de compra e venda de combustível, os contratos de locação das bombas de gasolina, de uso da bandeira do fornecedor, de locação ou compra do espaço onde estará situado o estabelecimento e os outros que possam existir nessa relação, perdem a razão de ser. O mesmo ocorre naquele outro, faltando o contrato de ocupação remunerada do espaço – loja, todos os outros passam a ser inúteis. O que marca um contrato coligado é justamente essa pluralidade jurídica ao lado da unidade econômica.

As normas gerais complementares do contrato de locação, segundo Karpat, disciplinam todas as ocupações do empreendimento quanto ao uso da loja e as áreas de circulação, a utilização dos bens e o aproveitamento dos serviços para os que freqüentam o edifício [6]. É neste instrumento onde normalmente consta a proibição de venda de mercadorias de segunda mão, de realização de leilões, de promoções sem que isso seja parte da estratégia de marketing daquele momento, a obrigatoriedade de permanecer aberto nos horários de funcionamento do shopping e de manter materiais de qualidade em seu estoque, bem como de respeito às áreas comuns do empreendimento.

É um contrato de adesão no qual, na prática, o lojista é obrigado a entrar como sujeito, assim como é obrigado a aderir à associação de lojista, espécie de condomínio, responsável, dentre outras coisas , por amparar os interesses dos seus sócios no trato com autoridades públicas ou entidades privadas no que tange o normal funcionamento do shopping e estatuir normas disciplinando a atuação dos associados nas atividades comerciais. Pode parecer uma agressão ao direito fundamental inscrito no artigo 5 °, XX de nossa constituição, o de livre integração em associações, mas foi de livre vontade o desejo de passar a fazer parte da comunidade e, quem o faz, deve se submeter às suas regras, assim como é natural a submissão a uma convenção de condomínio já instituída quando porventura se adquire nova residência.

O contrato entre o dono do shopping e uma sociedade responsável pela administração do empreendimento, à qual normalmente são dados poderes de representação, compõe a relação na medida em que repercute no âmbito da capacidade de atração de consumidores, vez que fica ela obrigada pelo funcionamento e pelos estudos de adequação do tenant mix e de antecipação de oportunidades e riscos.

O pomo da discórdia é justamente este negócio jurídico de ocupação da espaço-loja mediante remuneração. É contrato bilateral objetivo (logo, marcado pelo sinalagma) e oneroso. A atribuição patrimonial de um e de outro lado e as prestações devida por cada uma das partes à outra encontram na correspectiva a sua razão de existir. São interdependentes.

O lojista tem como dever principal pagar uma prestação pecuniária, normalmente calculada da seguinte forma, uma quantia fixa e uma quantia variável relacionada ao faturamento bruto do lojista, sendo esta quantia paga em dobro no mês de Dezembro. Há ainda uma sujeição ao direito potestativo do empreendedor de examinar os livros contábeis a fim de se certificar da inexistência de fraudes.

O empreendedor, dono do shopping center, não têm como prestação principal única a cessão do uso do espaço – loja. Há também, e agora vamos pegar uma noção típica das ciências administrativas, o planejamento estratégico, o responsável pelo ganho de produtividade, como obrigação principal. O empreendedor de fato entrega pronta uma análise detalhada dos riscos e oportunidades do shopping e um tenant mix acabado, ou seja, uma distribuição racional das lojas pelo empreendimento de modo a maximizar o lucro. Como deveres acessórios de conduta encontramos os de prospeção intermitente do ambiente interno (de modo a adequar o tenant mix as mudanças) e externo. A prestação de uma consultoria constante, por meio da sociedade contratada para a administração, também poderia ser considerada como um dos deveres principais do administrar, visto que isto é da essência desse negócio jurídico.

Antunes Varela coloca que "a instalação do empresário na loja do centro tem como escopo principal a integração sua no conjunto organizado de relações comerciais que constituem o tenant mix" [7]. Esta seria a causa funcional deste negócio jurídico.

Duas são as teses quanto a natureza jurídica do contrato de shopping center. Uma, cujo principal defensor é Caio Mário da Silva Pereira, defende que é um contrato de locação com clausulas atípicas. Orlando Gomes foi quem primeiro argumentou ser este um contrato misto, embora apoiasse o seu argumento não na existência de uma prestação principal que exorbita a do contrato de locação por parte do empreendedor, mas no fato deste pretende estabelecer uma relação direta entre a sua rentabilidade e a rentabilidade das atividades exercidas em seu prédio. Considerava, todavia, que ao lado de obrigações de dar coisa certa por parte do dono do shopping haveria também uma prestação de serviços, embora a causa jurídica fosse única [8], fato caracterizador do contrato misto.

Não deixa de ser curioso notar que esta discussão medrou sobretudo no Brasil e em Portugal. Lemke, acusa Antunes Varela, grande amigo de Orlando Gomes, de disseminar em sua terra a tese do ilustre professor baiano, acusando este último de se deixar influenciar por um parecer dado a um grande empresário interessado em fazer um shopping, mas que não admitia a ação renovatória. Cita Jorge Pinto Furtado, também professor de Coimbra, que em seu livro sobre o assunto, editado em 1996, fala ser inexistente em outros países posições conhecidas diferentes daquelas pela locação, remetendo-nos para Raol D`Heucqueville, Jean Derruppé, Saint –Allary e Michel Pédamon na França ao tempo em que afirma ocorrer o mesmo nos Estados Unidos.

João Carlos Pestana de Aguiar crítica a posição de Orlando Gomes e pedimos maxima vênia para cita-lo integralmente:

"A ser adotado esse seu entendimento, de que é um contrato absolutamente atípico, vamos ou não cair nas regras gerais do direito das obrigações? Teremos, terminando o prazo contratual, uma ação contra o locatário, que não seria locatário, seria ocupante e passaria a ser, de imediato, esbulhador? Seria ação de reintegração de posse? A situação do mesmo ficaria aflitiva, porque, para se instalar num shopping, ele certamente despendeu capital apreciável, porque a montagem de suas instalações guarda, via de regra, certo requinte. Logo o locatário ficaria em situação aflitiva, porque não teria segurança alguma. (...) Outro aspecto seria o seguinte: a partir daqui para o futuro não haverá mais novos empreendimentos de shopping center, porque nenhum comerciante se instalará em seus módulos, pois não vai assumir uma despesa considerável para a montagem de seu negócio para correr o risco de, terminando o prazo contratual, ser posto na rua. Ele não terá segurança alguma" [9].

O ataque não procede. Considerando este contrato como misto, realmente cairíamos nas regras gerais do negócio jurídico, dos contratos em geral e das obrigações. Mas as normas categoriais da locação não ficariam, necessariamente, de todo afastado.

Como se resolvem conflitos advindos de contratos mistos? A boa técnica exige, primeiro, uma busca no texto do contrato em busca de uma solução. Faltando, teríamos primeiramente de classificar o contrato misto em uma das três categorias possíveis, quais sejam duplo tipo (onde à prestação única de uma das partes corresponde uma contraprestação característica de contrato de tipo diferente como no caso em que alguém é contratado para trabalhar como porteiro em troca de moradia, ou seja, a prestação de serviços encontra como paga a locação de um imóvel), misto stricto sensu (utiliza-se certo tipo de contrato como meio ou instrumento para a consecução de fim diferente daquela que lhe é própria, como no clássico exemplo da doação mista, onde alcanço o intento da doação através da venda de certo bem a um preço reduzido, com o intuito de beneficiar gratuitamente alguém com a diferença) ou combinado (quando uma das partes fica adstrita a uma ou mais prestações principais, respeitantes a vários contratos, enquanto a outra tem apenas de cumprir uma única; para aproveitar o exemplo acima, basta imaginar que além da moradia em troca de prestação de serviços de porteiro, este receberia também uma renda, teríamos, assim, entremeadas a prestação típica do contrato de prestação de serviços mais a do contrato de locação a cargo do contratante, enquanto o contratado somente pagaria a prestação típica do primeiro contrato).

Já vimos que são duas as prestações principais do locatário, a de ceder a posse do espaço – loja e a de prestar serviços de consultoria de oportunidades e riscos para o lojista em troca de uma prestação pecuniária variável [10], configurando, assim, um contrato misto combinado. Três são as teorias doutrinárias passíveis de serem aplicadas, a da absorção (onde aplica-se a regra do contrato predominante), a da combinação (aplicação as regras dos tipos contratuais contemplados no contrato misto conforme esteja se tratando de uma ou de outra prestação) e a da aplicação analógica (que manda encarar o problema dentro dos critérios gerais de integração do negócio jurídico).

No presente caso, como temos prestações de dois contratos típicos, a solução que se afigura como melhor é o da aplicação da teoria da combinação. Deste modo, as regras da locação urbana não-residencial não estariam afastadas, tampouco as regras referentes à prestação de serviço, conforme estivéssemos tratando de uma ou outra prestação.

Sérgio Wainstock em parecer sobre o assunto, nos mostra as argumentações apresentadas pelos shoppings centers contra aqueles que solicitam a ação renovatória. Seriam ou pelo fato de o lojista não ter sido capaz de manter seu volume de vendas, não aproveitando, deste modo, a totalidade do potencial oferecido pelo shopping, ou por causa de o ramo explorado ter se tornado desinteressante, sendo melhor substitui-lo por outro que melhor se integre a um complexo mercadológico, ou porque se tornou mais conveniente ocupar o espaço onde a loja se situa com estacionamento, área de lazer ou outra atividade análoga cujo fim seria a maior atração de público, ou ainda para a instalação de um outro estabelecimento do mesmo ramo mas com uma outra administração [11].

Não se deve buscar apoiar a parte mais fraca somente pelo fato de esta possuir menor capacidade de negociação. Estamos falando, a mais das vezes, de sociedades empresárias que conhecem ou deveriam conhecer o risco de suas atividades. Não se deve ser inocente a ponto de pensar que conferir a ação renovatória ao lojista não prejudica o conjunto de lojistas do shopping, caso aquela esteja sendo administrada de tal modo a ponto de não atrair público, especialmente se for esta uma loja ancora ou uma mini-ancora

Ainda que isso não fosse possível e as regras da locação não fossem aplicáveis caso viéssemos a classificar o dito contrato como misto, não se afigura como alguém possa ter interesse em manter a todo custo um negócio que não alcança o retorno esperado, ainda mais com as taxas altíssimas por metro quadrado cobradas no mercado brasileiro a título de "aluguel mínimo".

Em verdade a posição de Aguiar Silva, Lemke e Karpat parece mais repetir um antigo vício de uma parte dos doutrinadores brasileiros, o de aceitar as prescrições da lei sem discutir sua validade. Ora, o direito existe, mas a vida é, e a norma não pode se sobrepor à natureza das coisas sob pena de cair em desuso. O artigo 54 da lei 8.245 de 1991 já estava presente em nosso ordenamento jurídico à época em que estes escreveram seus respectivos livros, chegando Karpat mesmo a afirmar o fim da discussão em virtude da regulamentação do referido contrato na lei de locações urbanas. Ocorre que o referido dispositivo fez somente consagrar a liberdade de conteúdo neste negócio jurídico, deixando claro que se trata de espécie diferente de locação, ainda que esteja ali sendo tratada e lhe sejam aplicáveis as sua regras procedimentais.

Tanto é desta forma que recentes acórdãos têm deixado claro prevalecer, conforme o próprio texto da lei aconselha, as convenções livremente pactuadas. Se fosse somente uma locação, a decisão da décima quinta câmara civil do TJRJ no processo 1998.001.07846, a título de exemplo, não poderia ter considerado a validade de uma clausula convencionando a inexistência de débito por indenização decorrente de benfeitoria útil ou necessária em loja. Prevalece a interpretação do contrato quando esta contraria disposições de uma das categorias ali existentes.

Os que defendem a locação como sendo a natureza jurídica deste contrato o fazem alegando este possuir todas os elementos pertinentes a esta categoria de negócio jurídico e nisto estão certos. Ocorre que além destes, temos também as obrigações advindas do contrato de prestação de serviços, o que transforma nosso negócio em questão em um negócio misto do tipo combinado.


5.Conclusão

O shopping center, como toda inovação tecnológica, é fonte de problemas jurídicos. Muitos tendem a usar inadvertidamente velhos conceitos adaptados sem atentar para as características próprias da tecnologia recente e para o contexto sócio -econômico de seu surgimento.

Não é boa a corrente que o tem como contrato de locação, embora esta não cometa erros ao dizer ter o referido negócio jurídico os elementos dessa categoria de contratos. São insuficientes, contudo, para explicar plenamente certas características essenciais, quais sejam a existência de uma prestação constante de consultoria de riscos e oportunidades, anterior mesmo a existência do pretenso contrato de locação e os recentes acórdãos judiciais que mandam privilegiar a interpretação das clausulas do negócio firmado entre o lojista e o empreendedor dono do shopping.

Este é contrato misto combinado e esta é a razão para certas regras naturais à locação convencional serem afastadas quando confrontadas com as disposições livremente convencionadas.


Notas

01. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Das Obrigações em Geral. 7° edição, Coimbra: ALMEIDINA, 1999

02. Artigo 405, 2 do código civil português "As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei."

03. CHAVEZ, Lygia Maria Rodrigues de. O Shopping Center e o Direito da Cidade. Rio de Janeiro, 1996, TESE (Mestrado em Direito da Cidade), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 118 p.

04. LEMKE, Nardim Darcy. Shopping Center, Questões Jurídicas. 1° edição, Blumenau: ACADEMIA , 1999

05. LIRA, Ricardo César Pereira. Breves Considerações sobre o Negócio Jurídico "Shopping Center" in Revista Forense, volume 337, ano 1997, páginas 397-400.

06. KARPAT, Ladislau. Shopping Center – Manual Jurídico. 1° edição, Brasil: HEMUS, 1993.

07. VARELA, João de Matos Antunes. Centros Comerciais (Shoppings Centers), Natureza Jurídica dos Contratos de Instalação dos Lojistas. 1° edição, Coimbra: COIMBRA, 1995

08. GOMES, Orlando. Traços do Perfil Jurídico de um Shopping Center, In ARRUDA, José Soares: LÔBO, Carlos Augusto da Silveira (org.). "Shopping Center" Aspectos Jurídicos. 1° edição, São Paulo: REVISTA DOS TRIBUNAIS, 1984.

09. SILVA, João Carlos Pestana de Aguiar. Anotações sobre o Mundo Jurídico dos Shopping Centers in Shopping Center, Questões Jurídicas. 1° edição, São Paulo: SARAIVA. 1991.

10. Esta não pode ser considerada como sendo uma clausula atípica. O preço, lembremos, bem como o aluguel, não têm de ser necessariamente determinado. Essencial é que seja determinável.

11. Wainstock, Sérgio. PARECER: Locação de Espaços em Shopping Center.


Bibliografia

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WAINSTOCK, Sérgio. PARECER: Locação de Espaços em Shopping Center.


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As hipóteses aventadas acerca da natureza jurídica deste contrato foram: contrato misto, contrato de locação com cláusulas atípicas, contrato de sociedade, sociedade em conta de participação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DRAGO, Guilherme Araujo. O negócio jurídico de shopping center como contrato misto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 209, 31 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4780. Acesso em: 20 abr. 2024.