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Notas sobre a reserva legal: uma nova abordagem

Notas sobre a reserva legal: uma nova abordagem

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A tarefa de compatibilizar a produção econômica com a perfeita integração ao meio ambiente é das mais complexas. A reserva florestal legal é uma limitação administrativa de uso, com fundamento no princípio da função sócio-ambiental da propriedade.

Introdução:

O que instiga o autor, de regra, é saber que determinado tema continua a desafiar melhor análise pela doutrina, convidando-nos ao debate franco, sem rodeios, certos de que errar, nessa etapa, mais se deve a um ato de coragem do que a uma covardia intencional. Com esse propósito, debrucei-me sobre o tema da reserva legal, seara ainda não suficientemente explorada a ponto de permitir seguras conclusões.

Por certo, o quadro de degradação ambiental existente ensejou a edição de normas legais em favor do meio ambiente, normas essas cada dia mais restritivas e, em certo aspecto, impeditivas mesmo do exercício de atividade produtiva. Nunca se falou tanto no princípio de sustentabilidade, que emerge no contexto da globalização como a marca de um limite e o sinal que reorienta o processo civilizatório da humanidade (Enrique Leff), produzindo seus efeitos para o futuro a partir de um olhar pelo passado. O que se quer é reconstruir a ordem econômica, adicionando o componente da sustentabilidade no âmbito de sua atuação, questionando as próprias bases de produção. Com isso, pretende-se criar um ambiente favorável à sobrevivência humana sob os auspícios do desenvolvimento duradouro, equilibrado.

Por aí se vê que a tarefa de compatibilizar a produção econômica com a perfeita integração ao meio ambiente é das mais complexas. Se por um lado, a pobreza e a falta de oportunidades, sobretudo nos chamados países do Terceiro Mundo, reafirmam a necessidade de se promover uma verdadeira corrida contra a estagnação 1, por outro lado, essa corrida não poder servir de pretexto para se fazer tábua rasa de todo o arcabouço legal construído na perspectiva de legitimar a variável ambiental, pressuposto de uma vida saudável, tanto para as presentes quanto para as futuras gerações.

Nessa ordem de idéias, podemos inserir a função social da propriedade, consectário lógico do sustainable development, introduzida a partir da constatação de que o caráter individualista da propriedade e o poder absoluto que os romanos lhe conferiam ajudou a criar, aqui e acolá, um quadro de instabilidade social e o aumento da tensão entre pequenos grupos de latinfundiários insolentes e um grande contingente humano marginalizado.

Quem apontou muito bem as transformações operadas no regime da propriedade privada foi João Lopes Guimarães Jr. 2, segundo o qual "o aumento expressivo da população, a industrialização, o êxodo rural e a urbanização resultaram no surgimento de problemas inéditos e graves, que impuseram a emergência de novos paradigmas no Direito."

A ocupação desordenada nas grandes metrópoles, a poluição, o tráfego de veículos, a deficiente coleta de lixo, o acesso a infra-estrutura, a proliferação de doenças, desabamento de construções irregulares e incêndios são alguns dos males que se abatem sobre cidades que cresceram sem qualquer tipo de planejamento. Não menos gravosa é a situação na zona rural, com seus assentamentos precários, prática de culturas inadequadas, acentuado nível de devastação de áreas verdes pela supressão de florestas inteiras, intensos conflitos agrários e assim por diante.

O panorama hostil e deliberadamente antieconômico forjou a instituição de um ônus ao proprietário privado perante a sociedade, por meio do qual se lhe assegurou o pleno exercício do direito de propriedade mas sem perder de vista a função social que agora pesa sobre essa relação jurídica garantida. Em outros termos, significa dizer que a atuação do proprietário deve não somente proporcionar-lhe uma satisfação individual, mas trazer resultado vantajoso para a sociedade.

Oportuna é a lição de Derani, para quem "a proteção da propriedade pelo direito está diretamente ligada ao trabalho que nela é desempenhado e o modo como esse trabalho é realizado. Função social da propriedade é um preceito que atinge o conteúdo da propriedade, pela conformação do trabalho que é exercido ou deve ser. Concluindo, é pela identificação e valoração do processo de utilização da coisa que se avaliará o preenchimento do preceito legal da função social da propriedade." 3

Disto resulta que a liberdade de uso e fruição foi transformada em dever de uso. O capricho e o egoísmo cederam lugar a finalidades sociais que passaram a informar a relação jurídica do proprietário sobre o bem. Desaparecendo a utilização econômica como que se apaga, por efeito imediato, a propriedade. Sinal de nosso tempo, marca do Estado social, que produz e quer o bem estar da coletividade. Creio que o rompimento com o individualismo do Código Napoleão pode ser perfeitamente ilustrado com a introdução do princípio em causa, elevado à condição de preceito constitucional com o advento, entre nós, da Carta Magna de 1988. A esse respeito, convém citar alguns dispositivos que cuidaram da matéria. O art. 182, parágrafo 2º., estabelece:

"A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor."

De outra parte, o art. 186, que mais nos interessa neste ensaio, dispõe que a propriedade rural cumpre sua função social quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores." (grifei)

Note-se que a propriedade rural, como meio de produção, deve servir ao homem na medida de sua necessidade. Todavia, a função social impõe observar o modo como dela se extraem os produtos e benefícios. É que a propriedade sobre os bens ambientais que integram o domínio privado não pode representar um sacrifício social. A apropriação da água, de florestas privadas e demais parcelas do meio ambiente sujeita o usuário a dar-lhes destinação ambientalmente adequada. Fruição individual; proveito coletivo.

A ligação entre direito de propriedade e meio ambiente é de tal sorte inexorável que nos é lícito falar, modernamente, de uma função sócio-ambiental da propriedade.

Bom lembrar que no plano infraconstitucional, o Estatuto da Terra assegura a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, cumprida quando a propriedade, entre outras coisas, mantém níveis satisfatórios de produtividade (art. 2º, parágrafo 1º, b).

Tudo a indicar que os objetivos do Estado moderno continuam a ser aqueles voltados ao desenvolvimento do seu potencial econômico, conforme sábias palavras de Celso Bastos. 4

Parece-me que todos estão de acordo em que a melhor forma de se erradicar a pobreza passa por uma abundante e equilibrada produção de bens. Desarrazoada será a tese que, ainda hoje, propugna pela política assistencialista do Estado. Daí porque, segundo Bastos, o fundamental é que as terras agrícolas produzam aquilo que o estado atual da tecnologia e as condições de investimento do país estão a permitir (op. cit. p. 220). Nada mais lógico do que buscar na forma de produção sustentada a resposta para fixação do homem no campo. Aliás, a idéia de produção econômica sempre mereceu especial atenção do legislador. Não sem razão as propriedades produtivas foram excluídas daquelas suscetíveis de expropriação para fins de Reforma Agrária, nos exatos termos do artigo 185, II, da CF/88.

Com isso, podemos nos adiantar em dizer que a ordem econômica é informada pelo meio ambiente, sofre enorme influência deste. Nunca o contrário. Simplificando, todo o ordenamento jurídico em vigor, a começar pela Constituição atual, elegeu, inegavelmente, o modo capitalista de produção. Semelhante raciocínio externou Jorge Alex Athias 5, salientando apenas as disparidades encontradas no corpo da Lei Maior. Seja como for, esta prevê a liberdade de iniciativa econômica e incentiva a busca do pleno emprego, assumindo a responsabilidade pelo bem estar social.

Definitivamente, não podemos admitir que alguém, em sã consciência, defenda a proteção ambiental destacada da visão antropocêntrica do Direito. Para nós, subjaz o entendimento de que o mundo natural só tem sentido se atende aos interesses da espécie humana. No particular, leciona Milaré: "A concepção antropocentrista que fundamenta a lei deve-se, em última análise, ao fato de apenas os seres humanos serem sujeitos de direitos e deveres. Na caracterização de um fato jurídico, os demais seres naturais, bióticos e abióticos, estão referidos ao homem. Assim, o mundo natural, como patrimônio da coletividade, é objeto da tutela da lei e do Poder Público, bem como da solicitude da sociedade.

O Direito não atribui e nem poderia atribuir autonomia aos seres irracionais, porém, ocupa-se deles, protege-os e dispõe sobre o seu correto uso e desta forma, direta ou indiretamente, ocupa-se da preservação do planeta Terra." 6

Portanto, no que tange a definição de meio ambiente, a Lei n. 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) procurou, tão somente, ser mais ampla e explícita possível, ao considerá-lo "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas." Isto não significa que a referida norma tenha considerado o ambiente como algo extrínseco e dissociado da sociedade humana.

Ao contrário, o meio ambiente existe, antes de tudo, para favorecer o próprio homem e, senão por via reflexa e quase simbiótica, proteger as demais espécies, na aguda observação de Fiorillo (Curso, Saraiva, 2ª. ed., 2001, p. 18).

Destaque-se que quando a Constituição Federal, em seu art. 225, alude ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e indispensável à sadia qualidade de vida, está se referindo, verdadeiramente, à qualidade da vida humana.

Feitas essas considerações de ordem propedêutica, estamos autorizados a avançar no estudo da reserva legal, procedendo a sua conceituação legal.


1.Conceito de Reserva Legal:

Inicialmente, cumpre notar que reserva florestal legal ou simplesmente reserva legal (RL) são expressões sinônimas.

O legislador ordinário optou por definir a reserva legal, a qual encontra-se vazada nos termos seguintes:

"Área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas" (art. 1º, parágrafo 2º, III, do Código Florestal já com a nova redação dada pela MP n. 1.956-50, de 26.5.2000) 7

Cuida-se de uma obrigação geral, não onerosa, que incide sobre a propriedade e posse rurais, providas ou não de florestas.

A nosso sentir, configura-se como uma limitação administrativa de uso, com fundamento no princípio da função sócio-ambiental da propriedade, já amplamente estudado linhas atrás. E aqui estamos bem acompanhados do magistério de Hely Lopes Meirelles. De acordo com o saudoso Professor, "as limitações administrativas representam modalidades de expressão da supremacia geral que o Estado exerce sobre pessoas e coisas existentes no seu território, decorrendo do condicionamento da propriedade privada e das atividades individuais ao bem-estar da comunidade." Mais adiante, encarece:

"Limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita, unilateral e de ordem pública condicionadora do exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social." 8 Podem revestir-se de três modalidades impositivas, a saber: i) positiva (fazer); ii) negativa (não fazer) e, iii) permissiva (deixar fazer). De qualquer forma, fica vedada a intervenção completa na propriedade a ponto de esvazia-la economicamente, quer pela supressão de algum dos poderes inerentes ao domínio, quer pelo aniquilamento das atividades reguladas. Fossem essas as hipóteses de sua aplicação estaríamos diante de uma desapropriação indireta, passível de indenização ao particular.

A outro tanto, as limitações administrativas são marcadas pelo seu caráter genérico, dirigidas a propriedades indeterminadas, porém, determináveis no momento de sua exigência.

Do conceito de reserva legal também podemos extrair outras considerações importantes.

Pelo texto atual, o proprietário está impossibilitado de computar, para efeito de cálculo do percentual da reserva legal, as áreas de preservação permanente porventura existentes em sua gleba. A proibição é nova. Sobreveio com a edição da MP n. 1.956-50/2000, que alterou a redação do art. 1º, da Lei 4.771/65.

Acresça a isso a natureza da obrigação de constituição da reserva legal. Há quem sustente tratar-se de uma obrigação propter rem. De fato, é uma obrigação que incide sobre cada propriedade e posse rurais; adere ao imóvel, embora repercuta na esfera jurídica do titular da coisa. A essa altura, algumas palavras devem ser ditas a despeito dessa obrigação.

A doutrina é unânime no sentido de situá-la entre o direito real e o pessoal. Sua natureza é híbrida. Advém da relação jurídica do proprietário ou possuidor em relação à coisa, que é conexa com o débito. Nisto consiste a transmissibilidade da obrigação aos sucessores, seja a que título for. Com a palavra, a ilustre Professora da PUC-SP, Maria Helena Diniz:

"Infere-se daí que essa obrigação provém sempre de um direito real, impondo-se ao seu titular de tal forma que, se o direito que lhe deu origem for transmitido, por meio de cessão de crédito, de sub-rogação, de sucessão por morte etc., a obrigação o seguirá, acompanhando-o em suas mutações subjetivas; logo o adquirente do direito real terá de assumi-la obrigatoriamente, devendo satisfazer uma prestação em favor de outrem." 9

Depois de analisar profundamente a obrigação sob exame, Paulo de Bessa Antunes 10 não teve dúvida em qualificar a reserva legal como um ônus real que recai sobre o imóvel e que obriga o proprietário e todos aqueles que venham a adquirir tal condição, quaisquer que sejam as circunstâncias, chegando mesmo a conclusão de que a reserva legal assemelha-se, em tudo e por tudo, a uma obrigação propter rem ou in rem. Nesse sentido, escorreita a decisão do STJ que imputou ao adquirente de imóvel rural desprovido de reserva legal a obrigação de fazê-lo. No entanto, pecou a colenda 2ª. Turma ao fundamentá-la na responsabilidade civil, pois inexistente o nexo de causalidade entre o desmatamento e o proprietário atual, que adquiriu o imóvel já desprovido de cobertura arbórea. Confira o acórdão:

ADMINISTRATIVO - DANO AO MEIO-AMBIENTE - INDENIZAÇÃO – LEGITIMAÇÃO PASSIVA DO NOVO ADQUIRENTE.

1. A responsabilidade pela preservação e recomposição do meio-ambiente é objetiva, mas se exige nexo de causalidade entre a atividade do proprietário e o dano causado (Lei 6.938/81).

2. Em se tratando de reserva florestal, com limitação imposta por lei, o novo proprietário, ao adquirir a área, assume o ônus de manter a preservação, tornando-se responsável pela reposição, mesmo que não tenha contribuído para devastá-la.

3. Responsabilidade que independe de culpa ou nexo causal, porque imposta por lei.

4. Recursos especiais providos em parte. (REsp 327254/PR, Rel. Mina. Eliana Calmon, j. 3.12.2002, DJ 19.12.2002, p. 355)

Noutro julgado, a mesma 2ª. Turma acolheu o argumento de transmissibilidade da obrigação de constituição e manutenção da reserva legal, incorrendo igualmente no erro de decidir com fulcro no dano ambiental, como se pode verificar do aresto da lavra do eminente Ministro Franciulli Netto:

RECURSO ESPECIAL. FAIXA CILIAR. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESERVA LEGAL. TERRENO ADQUIRIDO PELO RECORRENTE JÁ DESMATADO. IMPOSSIBILIDADE DE EXPLORAÇÃO ECONÔMICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADA.

As questões relativas à aplicação dos artigos 1º e 6º da LICC, e, bem assim, à possibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva em ação civil pública, não foram enxergadas, sequer vislumbradas, pelo acórdão recorrido.

Tanto a faixa ciliar quanto a reserva legal, em qualquer propriedade, incluída a da recorrente, não podem ser objeto de exploração econômica, de maneira que, ainda que se não dê o reflorestamento imediato, referidas zonas não podem servir como pastagens.

Não há cogitar, pois, de ausência de nexo causal, visto que aquele que perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando o ilícito.

A obrigação de conservação é automaticamente transferida do alienante ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental.

Recurso especial não conhecido (STJ, REsp 343741/PR, Rel. Min. Franciulli Netto, j. 4.06.2002, DJ 7.10.2002, p. 225).

Idêntico posicionamento tem adotado a 1ª. Turma, conforme demonstraremos a seguir, em decisum cuja ementa ficou assim redigida:

ADMINISTRATIVO. RESERVA FLORESTAL. NOVO PROPRIETÁRIO. LEGITIMIDADE PASSIVA.

1. O novo adquirente do imóvel é parte legítima passiva para responder por ação de dano ambiental, pois assume a propriedade do bem rural com a imposição das limitações ditadas pela Lei Federal.

2. Recurso provido. (STJ, REsp 264173/PR, Rel. Min. José Delgado, j. 15.02.2001, DJ 02.04/2001, p. 259)

Consagrada a responsabilidade do adquirente de imóvel rural pela recomposição da área de floresta então eliminada pelo proprietário anterior, real causador do dano ambiental, tenho que tal responsabilidade não pode exsurgir da prática do ilícito, eis que ilícito algum cometeu aquele que adquiriu a propriedade já desmatada, tampouco contribuiu para a consumação do dano. A idéia de responsabilização por dano, em nosso sistema, sempre esteve jungida ao preenchimento de três pressupostos, como salientei em outra oportunidade 11, a saber: a ocorrência de um ato (fato voluntário); a existência de um dano e o nexo de causalidade entre a ação e o dano. A nosso juízo, carecem de fundamentação bastante as decisões do STJ que colocam sobre os ombros do adquirente de área de floresta desprovida da reserva legal a obrigação de restituí-la com arrimo na responsabilidade civil, mesmo cuidando-se de responsabilidade objetiva. Significa, em última análise, que basta o real causador do dano ambiental transferir o imóvel que obterá a carta de alforria, desonerando-se da obrigação de reflorestar.

Como bem adverte Bessa Antunes, "a manutenção da reserva legal é uma obrigação legal que deriva da própria coisa. É certo que, em circunstâncias especiais poderá haver simultaneamente a prática do dano ambiental. Esta, no entanto, somente se caracterizará em relação àquele que por ação ou omissão direta deu causa à destruição da RL." 12 Penso que melhor teria andado o novel Tribunal se sustentasse as suas decisões com base na transmissibilidade imanente às obrigações propter rem, tout court. Alguns podem até achar que é mero capricho de minha parte, uma vez que o resultado foi alcançado, isto é, apanhou-se o adquirente, sob um argumento ou outro. Dir-se-á que a ordem dos fatores não altera o produto. Preocupo-me, contudo, com as inovações despropositadas, com o entendimento elástico formado em matéria de responsabilidade civil por dano ambiental. No mais, estou convencido de que tomar um caminho menos espinhoso, talvez um atalho, como no caso versado, seria mais prudente do que aventurar-se em manobras arriscadas, como preferiu o STJ, em decisões centradas na equivocada idéia de dano.

Em resumo, a obrigação de constituição e manutenção da reserva legal avizinha-se da obrigação propter rem e deve ser tida como espécie do gênero. A reserva legal onera a propriedade florestal, transmitindo-se automaticamente aos sucessores. No entanto, a responsabilidade pelo seu inadimplemento não se confunde com a responsabilidade decorrente do dano ambiental, porquanto ausentes os pressupostos autorizadores de sua aplicação. Não há falar, por conseguinte, em quaisquer penalidades ao adquirente de imóvel rural desprovido de cobertura arbórea, quer administrativas, quer penais. Ele terá de recompor a reserva não porque tenha cometido algum dano ou perpetuado a lesão, mas porque adquiriu o imóvel com esse gravame.


2.Percentuais da Reserva Legal:

Difere o percentual da reserva legal dependendo da região do país em que o imóvel encontra-se situado, bem como pelo tipo de cobertura florestal indicado. O art. 16, da Lei 4.771/65, estatui:

"As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo:

I-oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal;

II-trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos do parágrafo 7º., deste artigo;

III-vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País; e

IV-vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País.

Algumas vozes levantaram-se contra o percentual da reserva legal na Amazônia, sustentando ser exagerada a restrição de 80% imposta a cada imóvel rural, o que vem engessando a região pelas dificuldades e elevados custos de investimentos. A utilização de apenas 20% de cada propriedade rural obriga muitas vezes o empreendedor a compensar o percentual exigido com a aquisição de outras áreas. Esta é uma faculdade legal, porém, a área a ser adquirida e complementada a título de reserva legal deve ser equivalente em importância ecológica e extensão, bem como pertencer ao mesmo ecossistema e situar-se na mesma microbacia, conforme critérios estabelecidos em regulamento (art. 44, III, da Lei 4.771/65 com a nova redação dada pela MP 2.166/01-67).

Há pouco, tramitou pelo Congresso Nacional o projeto de lei n. 228/03, por iniciativa do Deputado Moisés Lipnik - PDT/RR – que tinha por objetivo reduzir o percentual da reserva florestal legal na Amazônia para 25%. Da forma como estava redigido, o projeto não seria aprovado, como acabou ocorrendo. Ganhou parecer contrário de várias comissões. Foi arquivado recentemente. De lege ferenda, ousaria propor o percentual a 20% se o zoneamento ecológico-econômico – ZEE -, a ser realizado para cada Estado, comprovasse que a região tem maior vocação para a agropecuária, por exemplo, do que para a preservação ambiental. Isto não afastaria a obrigação de o empreendedor adquirir novas áreas no mesmo Estado para fins de atingimento da cota de reserva relativa ao percentual abatido. A recíproca seria verdadeira. Vale dizer, se o estudo demonstrasse que a região tem maior vocação para a preservação ambiental a cota deveria ser de 80% e não 20%. De resto, seria o caso de prever a obrigação de cada Estado ultimar o zoneamento ecológico-econômico em seu território dentro de determinado prazo.

A mim me parece que, tomadas tais providências, aquele PL natimorto granjearia maior respeito e simpatia. E explico: todo o ordenamento jurídico em vigor não proíbe a utilização racional das florestas situadas na bacia amazônica. Ao contrário, incentiva-se o desenvolvimento de atividades econômicas de forma planejada, obedecendo ao primado de sustentabilidade. Senão, vejamos:

Preceitua o art. 225, da Constituição Federal, sem prejuízo do disposto no art. 186, o qual já comentamos:

"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Parágrafo 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...)

III – definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a sua supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

(...)

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade;

Parágrafo 4º. A floresta amazônica brasileira, a mata atlântica, a serra do mar, o pantanal mato-grossense e a zona costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

No plano da legislação infraconstitucional, o Código Florestal, logo no art. 1º., dispõe:

"Art. 1o. As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.

Por outro lado, o art. 15, do mesmo Código, prevê:

"Art. 15. Fica proibida a exploração sob forma empírica das florestas primitivas da bacia amazônica que só poderão ser utilizadas em observância a planos técnicos de condução e manejo a serem estabelecidos por ato do poder público, a ser baixado dentro de um ano."

Luís Carlos Silva de Moraes, comentando a referida norma legal, expressou-se: "O dispositivo não está proibindo o aproveitamento econômico das florestas. Apenas exige que seja realizado de forma técnica, com manejo florestal, para que haja a compatibilidade de explorar a madeira sem extirpar a vegetação de floresta" (in Código Florestal Comentado, 3ª. ed., Atlas, 2002, p. 94).

Nem se alegue que a reserva legal trouxe restrição maior que inviabilizasse o uso da propriedade. Se assim o fosse, haveria obrigação de o Poder Público indenizar o particular, porquanto configurada a desapropriação indireta, conforme demonstrado à saciedade. Mas não. O próprio Código Florestal cuidou de afastar o erro. O parágrafo 2º., do art. 16, permite textualmente a utilização da área de reserva legal sob regime de manejo florestal, de acordo com critérios técnicos e científicos estabelecidos no regulamento, inadmitindo, contudo, a supressão da vegetação.


3.Vedação de Corte Raso:

Na área de reserva legal é proibido o corte raso da cobertura arbórea. Paulo Affonso Leme Machado, com apoio na Portaria P/1986 –IBDF), define corte raso como um "tipo de corte em que é feita a derrubada de todas as árvores, de parte ou de todo um povoamento florestal, deixando o terreno momentaneamente livre de cobertura arbórea. 13

A proibição de suprimir a vegetação da reserva legal, além de restar disciplinada pelo art. 16, parágrafo 2º., do Código Florestal, encontra-se prevista no Decreto 3.179/99, que define as infrações administrativas. No que concerne a matéria sob exame, os art. 38 e 39 do citado Decreto dizem mais de perto, sobretudo o art. 39, prova mais que suficiente da proibição de supressão vegetal:

"Art. 38. Explorar área de Reserva Legal, florestas e formação sucessoras de origem nativa, tanto de domínio público quanto de domínio privado, sem aprovação prévia do órgão ambiental, bem como a adoção de técnicas de condução, exploração, manejo e reposição florestal: multa de R$ 100,00 a R$ 300,00, por hectare ou fração, ou por unidade, estéreo, quilo ou metro cúbico."

"Art. 39. Desmatar, a corte raso, área de Reserva Legal: multa de R$ 1.000,00, por hectare ou fração."


4. Redução do Percentual de Reserva Legal na Amazônia através do ZEE:

Embora o corte raso na área de reserva legal esteja terminantemente proibido, o Decreto n. 1.282, de 20.10.1994, que regulamenta os arts. 15, 19, 20 e 21, da Lei 4.771/65, prevê que, verbis:

"Art. 7º. Somente será permitida a exploração a corte raso da floresta e de demais formas de vegetação arbórea da bacia amazônica em áreas selecionadas pelo Zoneamento Ecológico Econômico para uso alternativo do solo.

Parágrafo único: Entende-se por áreas selecionadas para uso alternativo do solo, aquelas destinadas à implantação de projetos de colonização, de assentamento de população, agropecuários, industriais, florestais, de geração e transmissão de energia, de mineração e de transporte."

A exploração a corte raso obriga o proprietário a manter uma área de reserva legal de, no mínimo, cinqüenta por cento da área de sua propriedade, conforme art. 8º. do Decreto aludido. Este artigo guarda consonância com o parágrafo 5º. inciso I, art. 16, do Código Florestal, embora aqui o legislador tenha optado por ouvir o CONAMA, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura antes de autorizar a redução do percentual de reserva legal na Amazônia.

Dito isto, sou da opinião de que o projeto de lei n. 228/03, com as ressalvas que apontei, antes de ser o tiro de misericórdia responsável por acelerar o processo de desmatamento na Amazônia, como vinha sendo encarado, poderia constituir-se em importante instrumento de compatibilização entre desenvolvimentistas e ambientalistas, eis que tentaria ajustar os interesses aparentemente conflitantes, conhecendo a real vocação de cada área ou região. Não inovaria. Ao revés, procuraria aproximar-se do espírito da lei, que foi exatamente o de evitar a exploração predatória, sem controle, de nossas florestas.

Sobre o zoneamento ecológico-econômico, cumpre notar que ele tenciona fornecer subsídios para o bom planejamento e justo ordenamento de uso e ocupação do território, bem como a correta e adequada utilização dos recursos naturais. A preservação ambiental, a nosso aviso, deve ser vista sob a ótica do interesse e da relevância. É o que veremos a seguir.


5. Delimitação da Área de Reserva Legal:

Em matéria de reserva legal, tem-se admitido a delimitação da área pelo proprietário do imóvel, secundado pela Administração Pública, cujo ato de reconhecimento é de natureza meramente declaratória, como pareceu a Paulo de Bessa Antunes. Argumenta-se que a mora do Poder Público não pode beneficiar o particular, obrigado a averbar a área junto ao cartório de registro de imóveis. Cabe à Administração, tão somente, verificar a existência dos atributos ecológicos na área escolhida, limitando-se a supervisionar o preenchimento das condições legais. No magistério de Bessa Antunes, trata-se de ato vinculado (op. cit., p. 403).

Ora, cabendo ao particular fixar os limites da reserva legal, ser-lhe-á lícito, por efeito, escolher a porção do território que melhor lhe aprouver, comprometendo o critério do interesse e relevância sob a ótica ambiental. Se o ato é vinculado, não compete à Administração outra coisa senão anuir aos termos da averbação, o que nos parece indesejável. A prevalecer essa tese, seria preferível que, no lugar do proprietário, o zoneamento ecológico-econômico assim o fizesse, estabelecendo, através de critérios técnicos e científicos, a melhor localização da área de reserva florestal, para o bem de todos nós.

Quero crer que a razão não esteja com Bessa Antunes. E vou além. O Código Florestal, desenganadamente, previu que a localização da reserva legal deve ser aprovada pelo órgão ambiental estadual competente ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal ou outra instituição devidamente habilitada (art. 16, parágrafo 4º.). Se o ato é prévio e formal, conduzido pelo Poder Público, não se pode atribuí-lo ao particular, pena de vituperação ao dispositivo em apreço. Enquanto não delimitada e aprovada a área de reserva legal pela autoridade florestal, penso que o proprietário estará desonerado da respectiva obrigação. A esse respeito, impõe-se reproduzir o entendimento do Pretório Excelso:

"A reserva legal, prevista no art. 16, parágrafo 2º., do Código Florestal, não é quota ideal que possa ser subtraída da área total do imóvel rural, para o fim do cálculo de sua produtividade (cf. Lei 8.629/93, art. 10, IV), sem que esteja identificada na sua averbação (v.g., MS 22.688)" (STF, Pleno, MS 23.370-GO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, v.m., DJU de 28.4.2000)

Na esteira do julgado acima, o STJ, em decisão firmada no REsp n. 229.302-PR, Relator o eminente Ministro Garcia Vieira, chegou a semelhante conclusão, desobrigando o proprietário de florestar ou reflorestar suas terras antes de o Poder Público delimitar a área a ser florestada ou reflorestada. Na mesma diretiva, cite-se o REsp n. 214.714-PR.

Mais uma vez, convém transcrever a lição de Luís Carlos Silva de Moraes, segundo o qual o proprietário "não é obrigado a iniciar sponte propria o procedimento de delimitação, medição e averbação, pois pode estar contrário aos critérios estabelecidos pelo Poder Público. Cabe à autoridade competente iniciar tal procedimento, quando e onde entender necessário. Antes, não pode exigir a averbação do proprietário, o que nos leva ao conceito já sedimentado do termo não-vencido" (op. cit., p. 107). De igual modo manifestou-se Rodrigo Musetti, trazendo o exemplo do Estado de São Paulo. É dele a observação seguinte: "A Lei (alínea a do art. 16 do Código Florestal) determina que o local a ser escolhido para averbação como reserva legal ficará a critério do DEPRN (órgão estadual) e, no mínimo, deverá conter cobertura arbórea localizada." De outro lado, obtempera: "Se o DEPRN especificar para averbação 20% de uma área de vegetação rasteira, sem ocorrência de árvores e arbustos e, na mesma propriedade, existir áreas de campo cerrado, estará incorrendo em exercício de poder arbitrário..." (Do Critério da Autoridade Competente na Averbação da Reserva Legal, RDA, v. 17, jan./março, 2000, p. 156).

Ante as dificuldades expostas, força é concluir pelo zoneamento ecológico-econômico de cada Estado, método mais racional para se pôr cobro a todos os questionamentos que a matéria vem se sujeitando. Enquanto isto não for feito, estaremos fadados ao debate estéril e impregnado de emoção.

Assim é que o art. 16, parágrafo 4º, exige que no processo de aprovação da reserva florestal legal se leve em conta a função social da propriedade, sem prejuízo dos critérios que elenca, a saber: o plano de bacia hidrográfica, o plano diretor municipal, o zoneamento ecológico-econômico, outras categorias de zoneamento ambiental, e a proximidade com outra reserva legal, área de preservação permanente, unidade de conservação ou outra área legalmente protegida.


6. Averbação da Reserva Legal:

O ato de averbação da reserva legal à margem do registro do imóvel encerra o seu procedimento de constituição. Para muitos, porém, cuida-se de ato meramente declaratório, não constitutivo. Advoga-se que a reserva florestal legal nasce ope legis, isto é, sua criação decorre diretamente da lei instituidora. Parece-me irrefutável a afirmativa. Realmente, a reserva florestal legal nasce da lei, e nem poderia ser diferente. O princípio segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF/88, art. 5º., inc. II) não permitira outra conclusão. Em outras palavras, a reserva legal não poderia ser criada por norma infralegal, impondo restrições aos direitos individuais. Creio, portanto, que ela origina-se da lei, irradiando-se como uma obrigação de caráter geral, apanhando tantos quantos proprietários ou possuidores rurais, mas não se torna exigível enquanto o Poder Público não delimitar, medir e aprovar a área em cada propriedade. Somente depois de cumprida a prévia aprovação pela autoridade competente é que se pode cogitar de impingi-la ao particular, a quem toca averbar a área de floresta na conformidade do parágrafo 2º., art. 16, da Lei 4.771/65.

É, a meu ver, obrigação sujeita a termo inicial. Entende-se por obrigação sujeita a termo inicial aquela em que os efeitos do ato ficam subordinados a acontecimento futuro e certo. No caso versado, tornar-se-á exigível a obrigação com o advento do termo, isto é, com a aprovação da reserva florestal legal pelo Poder Público. Desnecessário dizer que se a área não estiver devidamente demarcada e especificada, não poderão as autoridades florestais exercer o seu direito de fiscalização do cumprimento da lei, frustrando-se os elevados objetivos da norma.

Demais disso, sem o ato de averbação, que dá vida, que reconhece formalmente a reserva legal, como que inexiste esta para todos os jurídicos e legais efeitos. Assinale-se que a reserva legal não é uma abstração matemática. Há de ser entendida como uma parte determinada do imóvel, no entendimento esposado pelo augusto STF (in MS n. 22.688-9-PB, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 28.4.2000).

Por fim, transcrevo ementa de acórdão do mesmo Supremo Tribunal Federal que, valendo-se de raciocínio análogo, determinou que se levasse em conta porção de terra excluída da vistoria para fins de desapropriação ao argumento de existência de reserva legal. No decisum, a Corte deixou assentado que a reserva legal não é quota ideal que possa ser subtraída do cálculo de produtividade do imóvel sem que esteja devidamente identificada na sua averbação. Confira:

"Reforma agrária: apuração da produtividade do imóvel e reserva legal. A "reserva legal", prevista no art. 16, § 2º, do Código Florestal, não é quota ideal que possa ser subtraída da área total do imóvel rural, para o fim do cálculo de sua produtividade (cf. L. 8.629/93, art. 10, IV), sem que esteja identificada na sua averbação (v.g., MS 22.688). II. Reforma agrária: desapropriação: vistoria e notificação. Ainda que, na linha do entendimento majoritário do Tribunal, se empreste à notificação prévia da vistoria do imóvel expropriando, prevista no art. 2º, § 2º, da L. 8.629/93, as galas de requisito de validade da expropriação subseqüente, não se trata de direito indisponível: não pode, pois, invocar a sua falta, o proprietário que, expressamente, consentiu que, sem ela, se iniciasse a vistoria. (MS 23.370/GO, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.12.1999, Pleno, DJU 28.4.2000)


7. Conclusões:

Diante de todas as considerações expostas sobre tema tão complexo, podemos concluir o que segue:

a)Em primeiro plano, a reserva legal caracteriza-se como verdadeira limitação administrativa de uso que incide sobre o direito de propriedade, com fulcro no princípio da função sócio-ambiental da propriedade;

b)Tal limitação administrativa não pode, de forma alguma, suprimir qualquer dos poderes inerentes ao domínio, hipótese em que consubstanciaria uma desapropriação indireta, passível de indenização ao particular. Isto porque não está afastada a utilização de nossas florestas de forma racional, obedecendo a um planejamento adequado e sustentável;

c)A obrigação de instituir a reserva legal possui natureza propter rem, seguindo a coisa e transmitindo-se automaticamente aos seus sucessores, seja a que título for. Por outro lado, a responsabilidade do adquirente de imóvel desprovido de cobertura florestal não se confunde com a responsabilidade por dano ambiental, como equivocadamente vem sustentando o Superior Tribunal de Justiça;

d)O percentual de 80% a título de reserva legal na Amazônia vem engessando a região, criando obstáculos para diversos empreendimentos sem qualquer critério técnico que justifique a preservação ambiental, à falta de um zoneamento ecológico-econômico que defina as áreas de maior interesse e relevância ambientais;

e)O projeto de lei n. 228/03, de autoria do Deputado Moisés Lipnik, poderia ter sido mais criterioso. Justificar a redução do percentual de reserva florestal na Amazônia ao singelo argumento de que a então majoração da cota (que era de 50%) se deu por um período de intensas pressões internacionais sobre o Brasil, visando manter aquela região como uma reserva ecológica mundial é dizer o óbvio, mas não aprofunda o debate. Omitiu-se o ilustre Deputado quando deixou de citar o zoneamento ecológico-econômico, instrumento indispensável para subsidiar a sua proposta. Em consequência, o PL nasceu defeituoso e, como tal, mereceu o fim prematuro;

f)Averbe-se, finalmente, que a obrigação de constituição e manutenção da reserva legal não pode ser exigida do particular enquanto a Administração Pública não delimitar, medir e aprovar a respectiva área, porquanto obrigação sujeita a termo inicial, de acordo com iterativa jurisprudência do STF.

É o que me parece, s.m.j.


Notas

1.Rodrigo Bernardes Braga, Desenvolvimento e meio ambiente, in O Estado do Maranhão, 6 de outubro de 2003.

2. Função Social da Propriedade, in Revista de Direito Ambiental, coord.. Herman Benjamin e Edis Milaré, RT, v. 29 – jan./março 2003, p. 116.

3. Cristiane Derani. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da "função social", Revista de Direito Ambiental, v. 27, julho-set. 2002, p. 59.

4. Curso de Direito Constitucional, 22ª ed., Saraiva, p. 219.

5. In A Ordem Econômica e a Constituição de 1988, Cejup, Belém, p. 86.

6. Edis Milaré, Direito do Ambiente, 2ª. ed., RT, 2001, p. 67.

7. Essa MP foi sucessivamente reeditada até a MP 2.166/01-67, cujo prazo de vigência foi estendido pelo art. 2º., da EC n. 32/2001.

8. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 20. ed., Malheiros, 1995, p. 539.

9. Curso de Direito Civil, 9ª ed., 1995, v. 2, p. 10.

10. Direito Ambiental, 6ª. ed., Lumen Juris, 2002, p. 398.

11. Rodrigo Bernardes Braga, in Responsabilidade Civil das Instituições Financeiras, Lumen Juris, 2001, p. 7.

12. Paulo de Bessa Antunes, Poder Judiciário e reserva legal: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça, RDA, ano 6, n. 21, jan./março de 2001, p. 127.

13. In Direito Ambiental Brasileiro, 18ªed., Malheiros, 2002, p. 707.


Autor

  • Rodrigo Bernardes Braga

    Rodrigo Bernardes Braga

    Advogado. Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil pela UNESA. Articulista. Autor de livros jurídicos,entre os quais: A Lei de Usura e os Excessos Praticados pelo Mercado Financeiro, Palmar, 1999; Responsabilidade Civil das Instituições Financeiras, 2a. ed., Lumen Juris, 2003; Parcelamento do Solo Urbano, no prelo

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Rodrigo Bernardes. Notas sobre a reserva legal: uma nova abordagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 217, 8 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4797. Acesso em: 25 abr. 2024.