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Exame clínico de embriaguez versus alcoolemia

Exame clínico de embriaguez versus alcoolemia

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Testamos a hipótese de que um exame clínico padronizado pode suprir a ausência do exame laboratorial na avaliação do estado de embriaguez. Concluiu-se que é possível uma correlação útil embora não precisa entre o exame clínico e a alcoolemia.

Palavras-Chave: Alcool, teste, embriaguez, volante.

Keywords: Alcohol, test, drunkenness, driving, DUI, BAC.

Introdução

O etanol é a droga de maior uso na sociedade humana, nas mais variadas circunstâncias e locais (1). Seus efeitos agudos, dose-dependentes, sobre o sistema nervoso central são essencialmente depressores, variando os efeitos em função das áreas do encéfalo em que age (2). Por outro lado, cada um tem uma sensibilidade diferente aos efeitos do etanol (3) e, além disso, reage de acordo com seu próprio perfil psicológico (4). Portanto, uma mesma dose pode provocar reações diferentes em diferentes pessoas. Por sua vez, a legislação brasileira prevê uma ausência de álcool no sangue para permitir a direção de veículo (5). Como a ausência de álcool no sangue só pode ser confirmada com a retirada de sangue para análise laboratorial, essa determinação legal torna-se impraticável quando o condutor se recusa a ter o sangue retirado para exame. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) contemplou tal recusa pela lei nº 12.760 de 2012 quando modificou o § 2º do artigo 277 a possibilidade do infrator ser considerado com alteração da capacidade psicomotora por influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente mediante imagem, vídeo ou constatação de sinais que indiquem isso. O parecer de março de 2012 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) apenas confirmou o § 3º do mesmo artigo em que não há crime se não puder ser verificada laboratorialmente a alcoolemia. O exame clínico, no entanto, poderá resultar em medidas administrativas como a retenção da Carteira Nacional de Habilitaçao (CNH). Desde 2006 há um protocolo sucinto do Conselho Nacional de Trânsito que guia o exame da aparência física, odor, comportamento, fala, orientação, memória e equilíbrio (6). Mesmo assim, não há no Brasil um método confiável pelo qual se possa avaliar a embriaguez menos exuberante unicamente através de critérios clínicos. Este artigo propõe-se a suprir essa falha.

Material e Método

No Departamento Médico Legal (DML) de Porto Alegre foram examinados em ordem consecutiva 73 periciados com requisições de exame clínico e laboratorial de intoxicação alcoólica. Foram excluídos os que se recusaram a colher sangue ou a colaborar com o exame clínico. O exame clínico consistiu de três etapas: Olhar, Caminhada e Equilíbrio. Esse teste foi desenvolvido primeiramente nos Estados Unidos da América (EUA) pelo Departamento de Transporte com o nome de Teste Padronizado de Sobriedade a Campo (SFST) (7) porque os guardas de trânsito nos EUA fazem o teste à beira da rodovia no motorista suspeito de estar dirigindo sem condições legais de sobriedade. As As Instruções para a realização do exame estão abaixo. O nistagmo resultante dos efeitos do álcool já tinha sido descrito no século XIX (8). O nistagmo no olhar horizontal pode ser provocado em pessoas alcoolizadas, comprovando a ingestão de álcool (9). Outros dois exames, escolhidos dentre os muitos destinados a aquilatar o funcionamento do sistema nervoso central (SNC), foram o da caminhada e o do equilíbrio (10). Tanto a caminhada como o equilíbrio inclui prestar atenção às instruções (11). Dados recolhidos independentemente durante um ano por dois médicos-legistas oficiais concursados no DML de Porto Alegre foram compilados em tabelas e feita a sua correlação com as taxas de alcoolemia dos respectivos periciados. Essencialmente o Olhar consiste em ficar olhando para um objeto que o examinador passa à frente dos olhos do periciado de um lado do campo de visão para o outro e de volta, duas vezes, no plano horizontal, a 15 cm dos olhos. Para-se nas extremidades laterais para observar se um eventual nistagmo horizontal permanece além de 4 segundos – o que caracteriza anormalidade. A Caminhada é feita com os pés em uma linha reta no chão, um pé encostando na frente do outro, 9 passos em cada sentido, com uma meia­-volta suave. O Equilíbrio é feito com um dos membros inferiores estendido e o calcanhar a 15 cm do chão por 30 segundos. Os pontos vão se somando à medida que as falhas vão acontecendo. Sendo assim, quanto mais pontos, pior fica (Figura 1).

A) Olhar: 6 pontos

Pontos

Sem movimento suave ao seguir caneta

Olho esquerdo

Olho direito

Nistagmo contínuo e óbvio na abdução

Olho esquerdo

Olho direito

Nistagmo contínuo antes dos 45º da abdução

Olho esquerdo

B) Tandem: 8 pontos

Pontos

1) Instruções

Pés saem da linha por perda de equilíbrio

Começa a marcha antes

2) Marcha

Pára para equilibrar-se

Não encosta um pé no outro

Pé sai fora da linha

Levanta braço(s) para equilibrar-se

Perde o equilíbrio fazendo a volta

Número errado de passos

TOTAL

C) Equilíbrio: 4 pontos

Pontos

Para equilibrar-se, balança o corpo

Para equilibrar-se, levanta os braços

Para equilibrar-se, larga o pé no chão

Para equilibrar-se, saltita

TOTAL

TOTAL DE PONTOS:

Figura 1 -EXAME DE EMBRIAGUEZ (com olhos abertos).

Instruções para exame de embriaguez (com olhos abertos).

 A) Nistagmo: 6 pontos

Verificar se há visão em ambos os olhos, isocoria e sincinesia ocular – não aplicar o

exame em estrábicos nem em cegos de um olho. Remover óculos. Usar caneta como alvo de visão a 30-35 cm e pouco acima dos olhos do periciado Instruir o periciado para segurar firme o queixo com a mão.  Passar horizontal e suavemente a caneta durante 2 segundos até o fim do campo de visão para a direita e 2 segundos para a esquerda, pelo menos 2 vezes para cada olho, segurando em cada extremo lateral. Observar se os olhos se movem como bolas de gude sobre vidro ou sobre lixa. Um ponto para cada olho que não tiver movimento suave.

Verificar se há nistagmo contínuo e óbvio na abdução máxima (sem esclera visível). Um ponto para cada olho se o nistagmo continuar além de 4 segundos. Verificar se há nistagmo contínuo (parar a caneta aí) antes dos 45º de abdução. Um ponto para cada olho se houver. Somar pontos. 4 pontos sobre os 6 é embriaguez em 77% dos casos (7).

B) Tandem: 8 pontos

Marcha em tandem: um pé encostado na frente do outro andando sobre a linha. Não aplicar o exame em idosos (acima de 65 anos), em muito obesos, em cegos de um olho nem em coxos. Remover sapatos de saltos altos.  Observar o periciado a 1 m, sem se mover.

1) Instruções: 2 pontos

Mostrar como se fica com o pé direito encostado na frente do esquerdo e sobre a linha O periciado faz isso, deixa os braços caírem normalmente e fica assim até ser instruído a começar a marcha. Receber a resposta “entendi” antes de prosseguir. Instruir o periciado a andar 9 passos em tandem sobre a linha e retornar. Receber a resposta “entendi”.

Durante as instruções, pode acontecer de haver perda de equilíbrio e os pés saírem da linha: 1 ponto. Também pode acontecer do periciado começar a marcha antes de ser mandado: 1 ponto.

2) Marcha: 6 pontos

Mostrar (uns 3 passos) a marcha em tandem e a meia-volta com passinhos.

Instruir de novo que são 9 passos pra lá e 9 pra cá, sempre na linha, sempre com os braços abaixados normalmente, olhando os pés e contando os passos em voz alta. Não interromper a marcha até o fim. Receber a resposta “entendi”.

Pontos: pára (por alguns segundos) a marcha para equilibrar-se: 1 ponto; deixa 1 cm ou mais entre os pés: 1 ponto; tira o pé da linha: 1 ponto; levanta um ou os dois braços mais que 15 cm para equilibrar-se: 1 ponto; perde o equilíbrio (tira o pé da linha, não dá os passinhos ou dá uma meia-volta súbita) na meia-volta: 1 ponto; número errado de passos: 1 ponto (não olhar para os pés ou não contar os passos em voz alta, não vale ponto).

2 pontos sobre 8 é embriaguez em 68% dos casos (7).

C) Equilíbrio: 4 pontos

Não aplicar o exame em idosos (acima de 65 anos), nem em muito obesos, nem em cegos de um olho nem em claudicantes. Remover sapatos de saltos altos.  Observar o periciado a 1 m, sem mover-se.

1) Instruções: não há pontos

Mostrar como se fica de pé com os braços caídos normalmente. Instruir a não começar antes de ser mandado. Mostrar como se levanta um pé a 15 cm do chão com a ponta levemente virada para fora. Instruir a contar 30 segundos em voz alta (os erros de contagem serão corrigidos pelo perito).

Receber a resposta ‘entendi’ antes do exame

2) Equilíbrio: 4 pontos

O periciado deve equilibrar-se por exatamente 30 segundos

Pontos: balança o corpo para equilibrar-se: 1 ponto; levanta os braços mais de 15 cm para equilibrar-se: 1 ponto; larga o pé no chão: 1 ponto; saltita para equilibrar-se: 1 ponto.

Se o periciado não conseguir fazer este exame ou se deixar o pé cair mais de 3 vezes, recebe 4 pontos (embriaguez em 65% dos casos) (7).

Resultados

Os periciados obtiveram de 0 a 18 pontos (soma total) e alcoolemia de 0 a 31 dg/l, com curva de 1,079 ± 0,1590, intervalo de confiança de 0,7619 to 1,397.  Esses dados foram correlacionados em um gráfico com linha de adaptação não-linear que resultou em duas porções: superior e inferior (Figura 2). A porção superior representa uma alcoolemia em média maior que 20 dg/l e um exame de embriaguez correspondente com mais que 8 pontos em média. A porção inferior representa uma alcoolemia em média entre 0 e 10 dl/l e um exame de embriaguez com menos de 7 pontos em média. Observa-se que há uma tendência à correlação entre a alcoolemia e o exame de embriaguez podendo-se dizer que a partir dos 8 Pontos a detecção da embriaguez por este exame se torna bastante confiável. Oito dos examinados com zero dg/l de alcoolemia obtiveram de 1 a 3 pontos no exame de embriaguez (falso positivo). Não houve falso negativo.

Discussão

Embora possa ser sustentado que existe uma íntima correlação entre o ângulo de início do nistagmo e a taxa de alcoolemia (12), não há consenso (13). Além disso, o nistagmo horizontal pode surgir sem que tenha havido ingestão de álcool (14) e à noite o nistagmo pela fadiga surge com mais frequência (15). Notou-se também que o nistagmo horizontal permanece em mais da metade das pessoas após mais de uma hora depois da taxa de alcoolemia ter voltado a zero (15). Outras substâncias como a nicotina (16) e a cafeína (17) também induzem nistagmo, corrompendo a especificidade do teste. A caminhada pode ser contestada se a pessoa tiver mais que 65 anos ou não for lhe dada a oportunidade de tirar os sapatos, no caso de usar salto alto (18). A recusa em retirar o sangue ou soprar no etilômietro é perfeitamente legal. Na verdade, a taxa zero (ou perto de zero) pretendida pela lei modifica muito pouco o quadro clínico de modo que há uma dificuldade inerente do cumprimento da lei sem a retirada de sangue. Além disso, o próprio exame pode ser legalmente recusado dando oportunidade de flagrar somente os que sob qualquer óptica encontram-se embriagados. Por outro lado, mesmo considerando que haverá alguns casos de não colaboração para o exame clínico, esses serão bem menos numerosos. No nosso estudo houve 11% de falsos positivos e nenhum falso negativo indicando uma sensibilidade exagerada a ser calibrada no futuro. No entanto, mesmo esses foram com baixos números de pontos (até 3 pontos).

Conclusão

Existe uma correlação significativa entre os déficits neurológicas encontradas no exame clínico e aquilatados em Pontos e a taxa de alcoolemia. O exame clínico proposto (Olhar, Caminhada e Equilíbrio) pode ser usado para avaliar o estado de alcoolemia do periciado, particularmente a partir dos 8 Pontos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2)    OSCAR-BERMAN, M.; MARINKOVIC, K. Alcohol: effects on neurobehavioral functions and the brain. Neuropsychology Review, v.17, n.3, p.239-257, Sep. 2007.

3)    CUNHA, P. J.; NOVAES, M. A. Avaliação neurocognitiva no abuso e dependência do álcool: implicações para o tratamento. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.26 supl. 1, p.S23-27, maio 2004.

4)    WEISSENBORN, R.; DUKA, T. Acute alcohol effects on cognitive function in social drinkers: their relationship to drinking habits. Psychopharmacology, Berlim, v.165, n.3, p.306-312, Jan. 2003.

5)    Artigos 165, 276 e 277 do CTB (Código de Trânsito Brasileiro- Lei Nº 9.503/1997, Lei nº 11.275/2006, Lei Nº 11.705/2008). Parecer de 28/3/12 da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

6)    CONSELHO NACIONAL DE TRÂNSITO, Anexo da Resolução Nº 206 de 2006.

7)    THARP, V.; BURNS, M.; MOSKOWITZ, H. Development and Field Test of Psychophysical Tests for DWI Arrests. Final Report, DOT-HS-805-864, NHTSA,

U.S. Department of Transportation, 1981.

8)    JOFFROY A.; SERVEAUX R., Mensuration de la toxicité vraie de l'alcool éthylique: symptômes de l'intoxication aigu et de l'intoxication chronique par l'alcool éthylique. Archives de Médecine experimentale, v.9, p.681-707, 1897.

9)    LEHTI, H. The Effects of Blood Alcohol on the Onset of Gaze Nystagmus.  Blutalkohol, v.13, p.411-414, 1976.

10) STUSTER, J. Validation of the standardized field sobriety test battery at 0.08% blood alcohol concentration. Human factors, v.48, n.3, p.608-614, Fall 2006.

11)  LIGUORI, A., et al. Alcohol effects on mood, equilibrium, and simulated driving. Alcoholism: Clinical and Experimental Research, v.23, n.5, p.815-821, May 1999.

12) GODING, G. S.; DOBIE, R. A. Gaze nystagmus and blood alcohol. Laryngoscope, v.96, n.7, p.713-717, Jul. 1986.

13)  UMEDA, Y.; SAKATA, E. Alcohol and the oculomotor system. The Annals of otology, rhinology, and laryngology, v.87, n.3 Pt 1, p.392-398, May-Jun. 1978.

14) TOGLIA J.U. Electronystagmography. Technical Aspects and Atlas. Charles C. Thomas, Springfield, 1976.

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16) PEREIRA, C. B., et al. Nicotine-induced nystagmus: three-dimensional analysis and dependence on head position. Neurology, v.55, n.10, p.1563-1566, Nov 28. 2000.

17) ZIKMUND, V.; JAGLA, F. Changes in the optokinetic nystagmus cessation limit under the influence of ethanol and caffeine. Activitas Nervosa Superior, Praga, v.31, n.3, p.223-224, Oct. 1989.

18) BURIAN, S. E., et al. Effects of alcohol on risk-taking during simulated driving. Human psychopharmacology, v.17, n.3, p.141-150, Apr. 2002.


Autor

  • Sergio da Silva Costa

    Trabalhei como Perito Médico Legista desde 1989. Publiquei novas figuras anatômicas para auxiliar a descrição das lesões em cadáveres e na clínica (2011). Como neurologista publiquei vários trabalhos de pesquisa em laboratório para tratamento da doença de Parkinson (1999 a 2005) bem como pesquisas relacionadas com educação (2011).

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