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Responsabilidade civil do Estado

conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino

Responsabilidade civil do Estado: conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino

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1 - CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO

Na doutrina, três correntes divergem sobre a conceituação de serviço público: a) a primeira, chamada "escola do serviço público", segundo a qual toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Estado seria serviço público; b) para a segunda, o serviço público abrangeria todas as atividades estatais, exceto a legislativa e a judicial; c) a terceira corrente doutrinária acrescenta que, além da elaboração da lei e dicção do Direito, também deveriam ser excluídas da noção de serviço público as atividades que não são colocadas à disposição do cidadão (como aquelas relacionadas ao poder de polícia).

HELY LOPES MEIRELLES define serviço público como "todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controle estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado" (cf. "Direito Administrativo Brasileiro", 19ª ed., pág. 294). No entanto, como ensinava RUY DE SOUZA há mais de 40 anos, "será o tempo e o meio, o direito positivo e a política vigente, que terão de nos dar os elementos precisos para a indagação" do conceito de serviço público (RDA 28/10).

Na atual ordem jurídica, além de elencar expressamente alguns serviços públicos (por exemplo, o de transporte de passageiros ou o serviço de telecomunicações), a Constituição Federal dispõe a respeito do seu regime jurídico (art. 175), que pode assim ser resumido: (a) O Poder Público detém a titularidade da prestação dos serviços públicos, mas (b) pode transferir sua execução a terceiros delegatários, que se submeterão a (c) regime especial definido em lei; a delegação da execução do serviço (prestação indireta) pode se formalizar (d) somente mediante concessão ou permissão, instrumentos administrativos de (e) natureza contratual e (f) conteúdo mínimo imperativo; (g) a licitação pública prévia é condição de validade e legitimidade da delegação da prestação do serviço a particulares.

A Lei 8.666/93, que regulamentou o art. 37, XXI, da Constituição, instituindo normas gerais sobre licitações e contratos da Administração Pública, definiu "serviço público" como sendo "toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, (...)" (art. 6o., inc. II).

A lei 8.987/95 disciplinou o regime jurídico da concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Carta Magna, dispondo sobre os direitos e obrigações dos usuários, instituindo regras de política tarifária, definindo a obrigação do serviço adequado, impondo regras especiais de licitação e regulamentando o caráter especial do contrato celebrado com as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos.


2 - O CARÁTER IMPOSITIVO DA LEI 8.987/95

A Lei 8.987/95, obedecendo ao comando do artigo 175 da CF., dispôs sobre o "regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos" previsto na norma constitucional, determinando, inequívoca e expressamente, que "a União, os Estados, o Distrito Federal, e os Municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta lei" (cf. par. ún. do artigo 1º da Lei 8.987/95).

A lição doutrinária é no sentido de que a Lei 8.987/95 "tem âmbito nacional e às suas prescrições deverão adaptar-se não somente o sistema federal como os Estados, Municípios e Distrito Federal." (CAIO TÁCITO, "A Nova Lei de Concessões de Serviço Público", in RDA 201/29; no mesmo sentido: JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA, "Concessão e Permissão de Serviços Públicos", 1997, pags. 103/104; HELY LOPES MEIRELLES, "Licitações e Contratos Administrativos", 11ª ed., 1996, pág. 62; JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR, "Comentários à Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública", pág. 670 e 687; SÔNIA YURIKO TANAKA, "Dispensa e Inexigibilidade da Licitação", in "Estudos Sobre a Lei de Licitações e Contratos", ed. Forense Universitária,1995, pág. 17/19; CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, "Elementos de Direito Administrativo", 3a. ed., 1991, pág. 176; EDMIR NETTO DE ARAÚJO, em painel apresentado em 1996 no XVII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, in "Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política", n. 18, 1997, pág. 99).

Por conseguinte, forçoso concluir que a nova lei é o Estatuto Nacional dos Serviços Públicos, obrigando a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, e as respectivas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações e quaisquer outras entidades sob seu controle direto ou indireto.


3 - O DESTINATÁRIO DO SERVIÇO PÚBLICO

A Constituição Federal, além de determinar que "as reclamações relativas à prestação de serviços públicos serão disciplinadas em lei" (art. 37, par. 3º), reza que a Lei Nacional sobre Serviços Públicos deveria fixar "os direitos dos usuários" e a obrigação de manutenção de "serviço adequado" (cf. incisos II e IV do par. ún. do art. 175), obrigação da qual já se desincumbiu o Poder Público ao editar a Lei 8.987/95, que disciplinou o "serviço adequado" (cf. art. 6º), estendeu ao passageiro os direitos contidos no Código de Defesa do Consumidor e conferiu aos usuários direitos especiais (cf. art. 7º). Outrossim, o caput do art. 175 da Lei Maior reza que a prestação do serviço público "incumbe ao Poder Público", considerado o "gestor permanente e inexcludente do serviço público" (cf. CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, "Estudo sobre Concessões e Permissões de Serviço Público no Direito Brasileiro", Saraiva, 1996, pág. 30).

Confrontando-se os preceitos normativos referidos pode-se concluir que : (a) a titularidade do serviço público foi inequivocamente atribuída ao Poder Público (que pode delegar apenas a sua execução); e (b) o destinatário do serviço público é o povo, o usuário, o cidadão. Eis, portanto, o binômio que caracteriza os serviços públicos: "um dever do estado e um direito do cidadão".

Bem por se cuidar de dever do estado e direito do cidadão, a Lei Maior não permite que a Administração escolha discricionariamente a quem delegar a prestação de serviço público, mas reza que a escolha do prestador delegatário se fará "sempre através de licitação" pública, "que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes", observados os princípios "de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade".


4 - O TRANSPORTE COLETIVO: UM "SERVIÇO PÚBLICO"

Não há dúvida de que o transporte de passageiros configura serviço público ou serviço de utilidade pública, pois "es sabido que los servicios públicos son los pilares sobre los que se asientam las sociedades modernas. Los transportes, las telecomunicaiones, (...) son prestaiones indispensables para el desenvolvimiento de los individuos en la comunidad" (cf. FRANCISCO JOSÉ VILLAR ROJAS, "Privatizaciòn de Servicios Públicos", Madrid, 1993, pág. 23).

No Brasil, dizem os intérpretes do Direito ser "incontestável que o serviço de transporte coletivo de passageiros é serviço público", "ante a unanimidade da doutrina e as manifestações da jurisprudência" (RDA 34/412).

Eliminando qualquer possibilidade de discussão, diversos dispositivos da LEX MATER brasileira classificam o transporte como serviço público (por exemplo, os arts. 21, 22 e 30, V). Cuida-se, pois, daquilo que a doutrina denomina "serviço público por inerência" ou "serviço público essencial por definição constitucional", eis que definido como tal pela própria Constituição Federal. Seguindo as diretrizes da Lei Fundamental, o legislador infraconstitucional também se referiu expressamente ao transporte como serviço público (cf. art. 6º, II, da Lei 8.666/93).


5 - A OUTORGA DO SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO

A obrigatoriedade da licitação prévia consta da própria Lei Maior (art. 37, inc. XXI e art. 175, caput, da Constituição Federal), razão pela qual constitui condição de validade e legitimidade" da concessão (ou permissão) ulterior, não podendo o Administrador, em hipótese alguma, outorgar a prestação de atividade considerada serviço público por outro modo que não seja o processo seletivo (licitação).

É que, no Estado de Direito Democrático, todos têm o direito de se interessar em colaborar com a Administração Pública, devendo ser assegurada a absoluta equivalência aos participantes da disputa e ser escolhido, sem discriminações ou favoritismos, não o preferido de alguns, mas aquele que apresentar a proposta mais vantajosa para a administração, demonstrando idoneidade e revelando ter melhores condições de desempenhar o serviço licitado, de modo adequado e seguro, para satisfazer as necessidades da população.

Convém ressaltar que, além da expressa exigência constitucional, a obrigatoriedade da observância do processo licitatório para todas as contratações públicas e, especialmente, para a prestação de serviços públicos, mediante concessão ou permissão, é expressamente reiterada pela legislação infraconstitucional.

Com efeito, assim dispõe a Lei 8.666/93: " As obras, serviços, inclusive publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta lei." (art. 2º)

Da mesma forma, reza a Lei 8.987/95 que: "Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório." (art. 14)

Também a Constituição do Estado de São Paulo contempla a obrigatoriedade de licitação, dispondo que: " Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, a qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações." (art. 117)

Mansa e pacífica é a lição doutrinária sobre o dever de licitar, considerando-se obrigatória a realização prévia de licitação, como condição de validade da delegação da prestação de serviço público a particulares (MARIA SILVIA ZANELLA DI PIETRO, "Direito Administrativo", ed. Atlas, 1990, págs. 219/220; HELLI ALVES DE OLIVEIRA, in "Concessão de Serviço Público", org. ODETTE MEDAUAR, pág. 46; CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., pág. 113; LUIS ALBERTO BLANCHET, "Concessões e Permissões de Serviços Públicos", pág. 164; CARLOS BARROS JÚNIOR, in RDA 111/15; JUAREZ DE FREITAS, "Estudos de Direito Administrativo", 1995, pág. 45; JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", 5ª ed., 1989, pág. 672; etc...)

Dessa inteligência não diverge a orientação jurisprudencial, como se vê nos acórdãos abaixo, ambos tratando especificamente do serviço público de transporte coletivo:

"Licitação. Edital. Transporte coletivo. Concessão de linhas de transporte coletivo de passageiros somente se dará mediante licitação." (cf. acórdão do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, in RTCE/RJ, n. 29, jul/set/95, pág. 91)

"Transporte coletivo. Concessão. Licitação. Na atual ordem jurídico-constitucional não se pode admitir que possa o Poder Público conceder a execução de um serviço de utilidade pública sem prévia licitação" (cf. acórdão do Superior Tribunal de Justiça, prolatado nos autos do mandado de segurança n. 1.592, in RDA jul/set/93, vol. 193, pág. 258)

No mesmo sentido, decisão do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo que anulou contrato, pela ausência de concorrência pública (in RDA 54/118) e acórdão do Supremo Tribunal Federal, relatado pelo em. Min. OCTÁVIO GALOTTI, no Recurso Extraordinário n. 140.989, julgado em 16.3.93.


6 - O TRANSPORTE COLETIVO E A INICIATIVA PRIVADA

EROS ROBERTO GRAU adverte que, embora a Constituição Federal tenha consagrado o princípio da subsidiariedade da intervenção estatal no domínio econômico, não se pode contrapor, de modo absoluto, os conceitos de serviço público e atividade econômica, pois o serviço público é espécie do gênero atividade econômica (cf. RDP 93/263).

Outrossim, reza a Constituição Federal que:

          "art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos."

          "Parágrafo único - A lei disporá sobre:

          I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias dos serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

          II - os direitos dos usuários;

III- política tarifária;

IV - a obrigação de manter o serviço adequado."

Não é difícil constatar que, nos termos do art. 175 da Carta Magna, se aplica o regime de Direito Público (distinto do que regula as relações privadas no desempenho de atividade econômica), a todo e qualquer serviço público, sendo o Estado responsável por sua prestação adequada. Assim, embora seja atividade passível de avaliação econômica, o serviço público se diferencia da atividade econômica em geral por se inserir no campo do Direito Público e identificar-se pelo escopo de realização do interesse coletivo e do bem comum.

Bem por isso, "não se incluem no conceito de atividade econômica em sentido estrito certas atividades que a Constituição qualificou como serviço público, mesmo que tais atividades tenham cunho econômico ou sejam potencialmente lucrativas" (cf. MARÇAL JUSTEN FILHO, "Concessões de Serviços Públicos", ed. Dialética, 1997, pág. 57; no mesmo sentido, ARNOLD WALD, LUIZA RANGEL DE MORAES e ALEXANDRE DE M. WALD, "O Direito de Parceria e a Nova Lei de Concessões", RT, 1996, pág. 71).

A análise do texto constitucional permite afirmar, portanto, que o legislador optou pela exclusividade da competência pública pelo e para o serviço público. Nesse sentido, leciona CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA que o art. 175 da CF "deixa o Poder Público como gestor permanente e inexcludente do serviço público, pois o que ele permite é apenas a delegação da prestação, não da sua titularidade" (cf. "Estudo sobre Concessões e Permissões de Serviço Público no Direito Brasileiro", Saraiva, 1996, pág. 30).

Quanto ao serviço público municipal de transporte coletivo, IVES GANDRA DA SILVA MARTINS adverte que "o transporte urbano é típica atividade" "que, explorada diretamente pelo estado ou por delegação pela iniciativa privada, está disciplinada pelas normas de direito público e em especial do direito administrativo" (cf. "A Licitação sobre Transportes na Constituição", in "Doutrina", ed. Instituto de Direito, 1996, pág. 178).

Por conseguinte, se o regime aplicável à prestação do serviço público de transporte de passageiros será sempre o de Direito Público (art.175) e nunca o da atividade econômica particular (art. 170) ou o da atividade econômica em sentido estrito (art. 173). pode e deve o Poder Público operar, delegar, gerir e fiscalizar o trânsito, o tráfego e o transporte coletivo, autuando, punindo e coibindo o sistema clandestino de transporte de passageiros.

Outrossim, é cediço que, em nenhum diploma legal brasileiro que cuide de serviços públicos, encontra-se a admissibilidade para o contrato ou subcontrato de natureza exclusivamente privada. "Isto porque tais serviços, ainda que operados por particulares, não se desvestem do caráter público, razão pela qual não podem ser executados em termos únicos de contrato privado" (cf. HELY LOPES MEIRELES, ob. cit., pág. 495).

Interpretando a ordem jurídica pátria, MARÇAL JUSTEN FILHO ensina que "não se incluem no conceito de atividade econômica em sentido estrito certas atividades que a Constituição qualificou como serviço público, mesmo que tais atividades tenham cunho econômico ou sejam potencialmente lucrativas" (cf. "Concessões de Serviços Públicos", ed. Dialética, 1997, pág. 57).

A conclusão inequívoca, portanto, é no sentido da inviabilidade da coexistência de um sistema público e outro privado para o transporte coletivo, porquanto o art. 175 da Carta Magna dispõe ser aplicável a todo e qualquer serviço público o regime de Direito Público, sendo o Estado responsável por sua prestação eficiente e adequada.


7 - A PESSOA FÍSICA E A CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO DE PASSAGEIROS

Ao traçar as diretrizes que devem nortear as concessões e permissões de serviço público no Brasil, o art. 175 (inc. I do par. único) da Constituição diz que a lei instituirá "o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão".

Por outro lado, o inc. II do art. 2º da Lei 8.987/95 só permite outorgar concessão ou permissão de serviço público "a pessoa jurídica ou consórcio de empresas", excluindo-se a pessoa física, em virtude do caráter empresarial do instituto. Isso "significa dizer que, no sistema jurídico vigente, não pode a concessão ser contratada com pessoa física" (CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, "Estudo sobre Concessões e Permissões de Serviço Público no Direito Brasileiro", Saraiva, 1996, pág. 52).

A regra da impossibilidade da outorga de concessão (ou permissão) de serviço público ainda mais se sobressai quando se cuida do transporte coletivo, pois , como leciona IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, "a prestação de serviços públicos de transporte é de natureza relevante e implica custos elevados. A transferência de responsabilidade para terceiros pressupõe densidade econômica destes para, assumindo tal prestação, realizarem-na no interesse público e da administração e com rentabilidade suficiente para investimentos, manutenção de frotas e instalações adequadas, além de lucratividade razoável. Tal complexo de garantias pressupõe a segurança jurídica para quem presta serviços e para quem os recebe." ("A Licitação sobre Transportes na Constituição", in "Doutrina", ed. Instituto de Direito, 1996, pág. 182)


8 - OUTORGA DO SERVIÇO PÚBLICO MEDIANTE AUTORIZAÇÃO

O serviço público de transporte coletivo somente pode ser delegado à iniciativa privada por licitação, mediante "concessão ou permissão". É o que determina o do art. 175 da Constituição Federal, que não se refere à autorização como instrumento de formalização da outorga de serviço público (ao contrário de outros dispositivos, como, por exemplo, o do art. 21, inc. XII, que admite a delegação do serviço por mera autorização).

A lei 8.987/95 também não trata da autorização, somente fazendo referência à concessão e à permissão como instrumentos de outorga (no mesmo sentido é o Decreto n. 952, de 7.10.93, que dispõe sobre transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros).

A lição doutrinária também é no sentido da impossibilidade de delegação do serviço de transporte por mera autorização (cf. LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros, 2ª ed., 1995, pág. 71; CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., pág. 176; MARÇAL JUSTEN FILHO, ob. cit., pág. 64; EROS ROBERTO GRAU, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros, pág. 102).

Os que admitem a delegação por autorização advertem que somente pode ser utilizada para serviços eventuais, emergenciais, inconstantes, relativos a uma situação incomum, de caráter não-permanente.

É o caso, por exemplo, de uma greve no serviço público ou da realização de uma feira agroindustrial, nas quais hipóteses "a prefeitura autoriza uma ou várias empresas a realizarem o serviço enquanto durar o certame, fixando, desde logo, no alvará, o itinerário, os horários, a tarifa e demais condições convenientes" (HELY LOPES MEIRELES, "Direito Municipal Brasileiro", 5ª ed., pág.316).


9 - DELEGAÇÃO PARCIAL DO SERVIÇO DURANTE A VIGÊNCIA DE CONCESSÃO OU PERMISSÃO

A orientação jurisprudencial é no sentido de que, durante o prazo da concessão ou permissão, não pode o poder público concedente outorgar a terceiro a exploração parcial do serviço (cf. ac. do e. Tribunal de Justiça de São Paulo, in RDA 80/165).

Se a Administração desrespeitar essa proibição, delegando parcialmente a terceiros o serviço já concedido anteriormente, será compelida a compensar o concessionário mediante elevação da tarifa, pagamento de indenização ou sob a forma de contribuição financeira direta (subsídio), a fim de restaurar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato (cf. art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal; art. 55 do Decreto-lei 2.300/86; art. 65, I e II, "d", e parágrafo sexto, da Lei 8.666/93; art. 18, inc. VIII, art. 23, IV e parágrafos 2, 3 e 4 do artigo 9 da Lei 8.987/95).

Analisando caso concreto, parecer do Prof. JOSÉ CRETELLA JÚNIOR sustenta que "a outorga da permissão para a exploração de linhas a certa empresa, havendo outra que já explora, a contento, no mesmo percurso, o mesmo serviço de transporte, configura, de modo inequívoco, a chamada concorrência ruinosa" (in "Direito Administrativo Perante os Tribunais", vol. 2, 1996, págs. 93 a 108; no mesmo sentido, HELY LOPES MEIRELLES, "Estudos e Pareceres de Direito Público", vol. II, págs. 387 a 401).


10 - "EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO" DO CONTRATO

A "equação econômico-financeira é a relação que as partes estabeleceram inicialmente no contrato administrativo entre os encargos do particular e a retribuição devida pela entidade ou órgão contratante, para a justa remuneração do seu objeto" (HELY LOPES MEIRELLES, "Licitação e Contrato Administrativo", 4a. ed., RT, pág. 206). Essa correlação encargo/remuneração deve ser mantida durante todo o prazo de execução do contrato, mesmo que sejam alteradas as chamadas "cláusulas de serviço" (parte regulamentar da concessão).

MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO leciona que, embora tenha o legislador contemplado a obrigatoriedade de se manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo (cf. art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal; art. 55 do antigo Estatuto das Licitações; art. 65, I e II, "d", e parágrafo sexto, do novo Estatuto da Licitações e Contratos Públicos; art. 18, inc. VIII, art. 23, IV e parágrafos 2, 3 e 4 do artigo 9 da Lei 8.987/95), "ainda que não houvesse lei assegurando os direitos do contratado à manutenção desse equilíbrio, esses direitos seriam a ele reconhecidos, tanto pela doutrina como pela jurisprudência" (in "Direito Administrativo na Década de 90", ed. RT, 1997, pág. 111).

Eis a lição sempre atual de FRANCISCO CAMPOS a respeito do assunto: "Se, portanto, vem incidir sobre a relação entre os termos da equação financeira um fator que a faça variar em detrimento do concessionário, nasce para o concedente a obrigação de restaurar a relação primitiva ou o equilíbrio na economia da concessão" ("Direito Constitucional", 1956, vol. I, pág. 113).

Pacífico também é o entendimento jurisprudencial sobre o direito ao equilíbrio econômico-financeiro, como se vê no voto vencedor do em. Desembargador WEISS DE ANDRADE, lavrado em 11.9.91, nos autos da ação direta de inconstitucionalidade nº 12.584-0/7-SP: "A Municipalidade, ao permitir que estudantes universitários gozem de desconto sobre a tarifa do transporte coletivo, obriga-se, implícita e explicitamente, a complementar o pagamento dos passes a fim de que permaneça o equilíbrio já referido ou seja, o equilíbrio entre o preço dos transportes e a justa remuneração aos concessionários" (cf. LAIR DA SILVA LOUREIRO, "Ação Direta de Inconstitucionalidade", Saraiva, 1996, pág. 290)


11 - COMPETÊNCIA LEGIFERANTE E INCONSTITUCIONALIDADE

A Constituição da República é a norma suprema do Estado brasileiro, a base da estrutura normativa, o fundamento de validade de todas as normas existentes em nosso ordenamento jurídico ("fundamental law"). Assim, a norma hierarquicamente inferior não pode contrariar a superior, sob pena de não ter validade perante a ordem normativa. Consequentemente, toda e qualquer norma infraconstitucional deve guardar irrestrita compatibilidade com a Constituição da República e com a norma imediatamente superior, "sob pena de tornar-se irremediavelmente viciada, isto é, afrontando a norma hierarquicamente superior rompe com seu fundamento de validade" ("O Controle Judicial da Constitucionalidade das Leis Municipais", in RDP 37-38/45).

Outrossimao repartir as competências, a Constituição federal atribuiu à União o poder-dever de editar normas gerais, reservando aos Estados e Municípios a legislação complementar, supletiva, "a legislação dos pormenores que preenchem as lacunas ou desenvolvem os princípios gerais da legislação federal" (JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", RT, 6ª ed., 1990, p.412).

Como é cediço, competência "latu sensu" é a faculdade ampla de legislar, de administrar e de julgar. Considerada strictu sensu, competência é a capacidade genérica ou possibilidade de desempenhar serviços e de editar atos administrativos e atos políticos. Já a competência privativa ou exclusiva é aquela enumerada como própria de cada pessoa política (CRETELLA JR. , 1990, vol. III, pág. 1440; CELSO BASTOS, 1989, pág. 262). É o caso, por exemplo, da competência atribuída à União para legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, inc. XI), sobre diretrizes da política nacional de transportes (art. 22, inc. IX) ou sobre "normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta" (art. 22, inc. XXVII).

O art. 24 da Constituição Federal atribuiu competência concorrente aos estados, Distrito Federal e União, mas excluiu os Municípios; atribuiu-lhes, contudo, competência legislativa suplementar (art. 30, II). A análise sistemática do disposto no art. 30, inc. II, permite concluir que essa suplementação é apenas complementar, no sentido de adaptar a legislação federal e estadual às peculiaridades ou realidades comunitárias. Em outras palavras, a competência suplementar permite dispor sobre "hipóteses irreguladas, preenchendo o vazio, o branco que restar, sobretudo quanto às condições locais" (cf. Acórdão do TRIBUNAL PLENO do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, rel. Min. Oscar Dias Corrêa, que declarou a inconstitucionalidade de ato normativo estadual, por invasão da competência geral reservada à Lei federal, in RTJ 115/1008).

Outrossim, o inciso XXVII do art. 22 da Constituição atribui privativamente à União competência legiferante para editar "normas gerais" de licitação e contratações da Administração Pública. Norma geral é aquela assim denominada pela própria Constituição e que disponha apenas sobre matéria também fixada em preceito Constitucional (cf. CRETELLA JR. "Das Licitações Públicas", 2ª ed., Forense, 1993, p.10/11).

Assim, não cabe às normas estaduais e municipais contrariar as do Estado Federal (8.666/93, 8.987/95 e 9.503/97) nos pontos fundamentais da matéria (cf. ROQUE CITADINI, ob. cit., pág. 21/22). Em conseqüência, na hipótese de conflito entre leis municipais e federais disciplinando a mesma matéria, a legislação federal e estadual prevalecerá sobre a legislação municipal (cf. REGINA MARIA M. NERY FERRARI, "Elementos de Direito Municipal, RT 1993, pág. 83 e pág. 38).

Ora, como os meios de circulação e transporte interessam a todo o país, as normas de trânsito e de tráfego são editadas pela União, a quem a Lei Maior atribuiu a competência legislativa privativa para disciplinar a matéria. É conveniente esclarecer que "trânsito" é o normal deslocamento de pessoas ou coisas pelas vias de circulação e "tráfego" é o deslocamento de pessoas ou coisas pelas vias de circulação, em missão de transporte. Embora distintas quanto ao seu objeto, as regras de trânsito (condições de circulação) e de tráfego (condições de transporte) costumam ser editadas em conjunto.

Todavia, embora o município não possa dispor sobre o conteúdo de matéria de competência legislativa privativa da União (ou dos estados), "pode e deve reger ‘aspectos externos’ a elas, para disciplinar seu desempenho de forma compatível com a vida local" (REGINA MARIA M. NERY FERRARI, "Elementos de Direito Municipal, ed. RT, 1993, p.80). Desta forma, respeitadas as normas gerais da legislação federal, resta ao município disciplinar as questões locais relativas ao trânsito no perímetro urbano, implantação de sinalização, locais de estacionamento, pontos de ônibus, estação rodoviária, circulação nas vias sob sua jurisdição, fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limitação do número de automóveis de aluguel (taxi), etc.

Por conseguinte, será inconstitucional e destituída de qualquer eficácia, eventual regulamentação municipal do serviço executado pelos chamados "perueiros", atividade incompatível com os princípios e normas gerais previstas na Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 (o mesmo raciocínio é válido quanto às regras nacionais e gerais previstas nas Leis Federais 8.666/93 e 9.503/97).

Convém ressaltar que o advento da Lei 8.987/95 suspendeu a eficácia de todas as normas editadas anteriormente sobre a mesma matéria (serviços públicos), nos precisos termos do § 4º do art. 24 da Constituição Federal, razão pela qual são inaplicáveis todos os dispositivos de leis estaduais ou municipais já editadas, sobre concessões de serviços públicos, que definam regime jurídico diverso do que a Lei 8987/95 estabeleceu para as concessionárias, ou que contemplem hipóteses conflitantes com as contidas na Lei Federal (8.987).


12 - A AUTONOMIA MUNICIPAL E A CLASSIFICAÇÃO DOS VEÍCULOS PREVISTA EM NORMA FEDERAL

CELSO BASTOS adverte que as competências inseridas no art. 30 da Constituição Federal "não devem estimular uma visão exageradamente grandiosa da autonomia municipal", eis que "diversas matérias aí explicitadas sofrem a restrição de uma normatividade superior" ("Curso de Direito Constitucional", Saraiva, 89, 11ª ed., p.278).

Como se viu, a correta interpretação do disposto no art. 30, inc. I, da Constituição Federal "é a de que ele autoriza o município a regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais" (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira", Saraiva, 1990, vol.I, pág. 219). É o caso, expressamente previsto na Constituição, da ordenação do território (inc VIII), hipótese na qual deverá o legislador municipal respeitar os planos nacional e regionais sobre a matéria. Também "é o caso do inc V que comete ao Município a organização do transporte coletivo, sendo certo, porém, que à União cabe editar diretrizes para os transportes urbanos" (FERNANDA DIAS MENEZES DE ALMEIDA, "Competências na Constituição de 1988", Atlas, 1991, pág. 127).

Tais diretrizes (art. 21, XX), fixadas no Código Brasileiro de Trânsito (Lei 9.503/97) e nas Resoluções do CONTRAN (cf. arts. 6º, 12 e 314 da Lei 9.503/97), não podem ser desrespeitadas pelas leis municipais editadas em razão da Competência atribuída aos Municípios.

Assim, para obter o registro, licenciamento e emplacamento necessários para circular nas vias públicas, somente ônibus e microônibus que atendam as exigências estabelecidas no art. 117 da Lei 9.503/97 e na Resolução n. 811/77 podem ser destinados ao transporte coletivo de passageiros (cf. art. 1º, caput, da Resolução/CONTRAN nº 811/77). Excepcionalmente, podem os condutores de taxi operar alternativamente o transporte coletivo em seus veículos (desde que se habilitem para o serviço de lotação). Convém ressaltar que, nos termos da Resolução 811, expedida em 27.2.96 pelo CONTRAN, "considera-se como microônibus o veículo de transporte coletivo de passageiros projetado e construído com a finalidade exclusiva de transporte de pessoas, com lotação de no máximo 20 (vinte) passageiros e dotado de corredor interno para circulação dos mesmos".

Acresce, ainda, que todos os condutores de veículos de transporte coletivo devem ter habilitação especial e preencher os requisitos legais constantes dos artigos 138, 139, 143, inciso IV e 145 da Lei 9.503/97 e dos artigos 92, 135, 184 e 329 do Regulamento.

O desrespeito às normas e exigências legais, relativas aos condutores e veículos de transporte coletivo, caracteriza infração de trânsito (cf. artigos 161, 162, inc. III, 231, inc. VIII, 298, incs. IV e V, da Lei 9.503/97), impondo a aplicação das penalidades previstas no art. 256 e/ou das medidas administrativas referidas no art. 269 da Lei 9.503/97, sem prejuízo de eventual punição tipificada no Capítulo XIX do Código Brasileiro de Trânsito (crimes de trânsito) ou na Lei Penal (Decreto-lei 7.903/45, que define o crime de concorrência desleal).


13 - TRANSPORTE COLETIVO E "SERVIÇO DE LOTAÇÃO"

Ensinam os doutos que o transporte pode ser de coisas ou de pessoas. O transporte de pessoas é contrato de resultado, obrigando o transportador a levar o usuário são e salvo ao seu destino. O transporte de pessoas é tradicionalmente classificado em duas categorias, a saber: "transporte singular de passageiros" e "transporte coletivo de passageiros" (cf. JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Direito Administrativo Perante os Tribunais", vol. 2, 1ª ed., 1996, pág. 198).

Embora se diga usualmente que os perueiros fazem "lotação", tecnicamente é impossível ao condutor de perua efetuar serviço de lotação. Com efeito, nos termos do art. 43 do antigo Código Nacional de Trânsito e do art. 87 do Regulamento, somente os "veículos de aluguel (taxi)" podem realizar o serviço de lotação, que se classifica como modalidade de transporte coletivo (cf. Resolução 514/77 do CONTRAN; art. 314 da Lei 9.503/97).

O novo Código Brasileiro de Trânsito também distingue o transporte coletivo de passageiros do transporte individual de pessoas, utilizando, para o último, a mesma expressão "veículos de aluguel" (empregada pelo antigo CNT), e mantendo inalterada a classificação dos veículos (cf., por exemplo, arts. 85 e 107 da Lei 9.503/97)

Assim, os "veículos de aluguel" licenciados para o transporte individual de passageiros (taxi) poderão, desde que satisfeitas as exigências do Poder Concedente, efetuar o transporte coletivo de passageiros (lotação), observando horários e itinerários previamente fixados pela autoridade concedente (cf. arts. 1, 2 e 4, par. único, da Resolução 514/77).

Para autorizar o acesso dos proprietários de taxi ao serviço de lotação, a autoridade competente deverá manter um número de veículos que assegure "o transporte individual de passageiros - taxi - em qualquer horário" (art. 4, caput, da Resolução nº 514/77).

Também incumbe ao Poder Concedente fixar "a tarifa por passageiros de forma a evitar concorrência danosa com os serviços de transporte individual de passageiros (taxi) e transporte coletivo (ônibus)" (cf. Resolução 514/77, art. 5). Concorrência danosa ou ruinosa, vale lembrar, é a competição na qual um dos sujeitos causa prejuízos econômicos ao outro, que passa a ter seu ganho reduzido. HELY LOPES MEIRELLES, cuidando de transporte intermunicipal, conceitua "concorrência ruinosa" como "a competição desenfreada, na exploração das linhas de transportes coletivos, com o enriquecimento de alguns permissionários e o empobrecimento de outros, ou a ruína de todos eles, o que, de modo algum interessa ao Estado" (cf. "Estudos e pareceres de Direito Público", RT, volume IX, página 267).

Do exposto se conclui que a atividade desenvolvida pelos "perueiros" não configura "serviço de lotação", nem tampouco transporte individual de passageiros (que também só pode ser efetuado por taxis). Marcada pelo conflito e pela inconstitucionalidade, caracterizada pela ilegalidade e ilicitude, a atividade desenvolvida pelos "perueiros" só pode ter uma denominação: "serviço clandestino de transporte coletivo de passageiros".


14 - CONSEQÜÊNCIAS DA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO EM FISCALIZAR E COIBIR O TRANSPORTE COLETIVO CLANDESTINO

Como se viu, o transporte coletivo de passageiros é direito fundamental do cidadão e dever do Estado, sendo o Poder Público Municipal responsável, na área de sua jurisdição, pelo seu gerenciamento, operação, fiscalização e punição, nos temos da lei. Outrossim, além de estabelecer que a prestação de quaisquer serviços públicos, por concessão ou permissão, deve ser obrigatoriamente precedida de regular licitação (art. 175), a Constituição Federal disciplinou a responsabilidade civil do Estado dispondo que:

"as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" (§ 6º do art. 37 da Constituição).

Mas não é apenas a ação do administrador (e de quaisquer outros agentes públicos) que pode produzir danos e gerar direito `a indenização, mas também a omissão (do latim OMISSIO, de OMITERE) que significa negligência, esquecimento, inatividade, desídia, inércia, ou "o que não se fez, o que se deixou de fazer, o que foi desprezado" (cf. PLÁCIDO E SILVA, "Vocabulário Jurídico", vol. III, p. 1.093).

A omissão do agente público configura culpa in omitendo ou culpa in vigilando, podendo causar prejuízos aos administrados, à própria Administração e ao agente público responsável, pois "se se cruza os braços ou não se vigia, quando deveria agir, o agente ,público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem como bonus administrator." (CRETELLA JÚNIOR, "Tratado de Direito Administrativo", vol. VIII, Forense, p.210, n.161).

Convém ressaltar que o Tribunal de Justiça de São Paulo vem decidindo reiteradamente pela responsabilização e conseqüente reparação, tanto nos casos de típica omissão, como nos casos de falta de presteza do agente; ainda que não se saiba quem é o responsável pelo prejuízo causado ao particular (culpa anônima), o Tribunal condena a Administração pela reparação dos prejuízos (cf. RJTJESP 97/342). E até mesmo quando haja fiscalização, mas sendo ela deficiente, caracteriza-se a omissão geradora da responsabilidade civil do estado (cf. RT 445/844 e 389/161).


CONCLUSÃO

1. Do exposto se conclui que a atividade desenvolvida pelos chamados "perueiros" configura serviço público clandestino de transporte coletivo. Da exegese da ordem jurídica surge a convicção de que será irremediavelmente ilegal, inconstitucional e ineficaz qualquer lei ou ato normativo, estadual ou municipal, que pretenda disciplinar a atividade clandestina de transporte de passageiros e que: a) imponha regime jurídico de Direito Privado à atividade desenvolvida pelos clandestinos; b) atribua a delegação do serviço ao particular, sem prévia aferição da excelência do agente e de sua habilitação jurídica, fiscal, técnica e econômico-financeira, com processo licitatório regido pelas leis 8.666/93 e 8.987/95; c) atribua a delegação do serviço por mera autorização ou outros instrumentos que não sejam os da concessão ou permissão; d) deixe de atribuir ao contratado os deveres de prestar serviço adequado, de prestar contas ao poder concedente e aos usuários, de conceder livre acesso aos agentes da fiscalização; e) não disponha sobre as cláusulas especiais do contrato e de sua prorrogação, sobre a aplicação de penalidades legais e contratuais, ou sobre as hipóteses de extinção da concessão (ou permissão), respeitadas as normas da legislação federal; f) não preveja a possibilidade de intervenção na concessão, com fim de assegurar a adequação na prestação do serviço; g) não disponha sobre os direitos dos usuários; h) não preveja no edital a obrigatoriedade de apresentação de projeto básico; i) autorize a prestação do serviço, sem licitação, a pessoa física, associação ou cooperativa; j) contrarie as normas gerais fixadas no Código Brasileiro de Transito (Lei Nacional sobre trânsito e tráfego referida no inc. XI do art. 22 da Constituição Federal); l) estabeleça características e classificação dos veículos em desacordo com aquelas fixadas no próprio Código de trânsito ou nas normas editadas pelo CONTRAN; m) autorize a circulação de veículo que não satisfaça as exigências legais para os "veículos de aluguel" "destinados ao transporte individual ou coletivo de passageiros"; n) autorize a circulação de veículo de transporte coletivo conduzido por pessoa que não preencha os requisitos dos art. 138, 139, 143 inc. IV e 145 do Código brasileiro de Trânsito e art. 89, 92 e 184 do Regulamento; o) autorize o transporte remunerado de passageiros em veículo que não seja taxi, ônibus, ou microônibus; p) que autorize o transporte remunerado de passageiros em veículo não licenciado para esse fim específico ; q) não preveja ou imponha restrições ao poder-dever da Administração de fiscalizar o serviço; r) autorize o transporte remunerado de passageiros, sem fixação prévia de tarifa ou sem definição de horários, itinerários e pontos de embarque/desembarque; s) autorize o transporte remunerado de passageiros sem resguardar as empresas de ônibus e os taxistas das conseqüências nocivas da concorrência ruinosa.

2. A inércia da autoridade administrativa, deixando de fiscalizar e de coibir a ação dos clandestinos, causa lesão ao patrimônio jurídico individual da concessionária e ao patrimônio público, obrigando o Poder Concedente a restaurar o equilíbrio econômico-financeiro da concessão. É que tal atitude (ou falta de) constitui "forma omissiva de abuso de poder, quer o ato seja doloso ou culposo" (cf. CAIO TÁCITO, "O Abuso de Poder Administrativo no Brasil", pág. 11), dando lugar à reparação de todos os prejuízos causados ao particular pela omissão, demora ou retardamento na prática do ato que lhe incumbia, conforme lição do clássico MIGUEL SEABRA FAGUNDES ("Responsabilidade do Estado - Indenização por Retardada Decisão Administrativa", parecer inserido na RDP, ns. 57/58, página 13).



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVALONE FILHO, Jofir. Responsabilidade civil do Estado: conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/496. Acesso em: 24 abr. 2024.