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A função social da propriedade urbana: usucapião em bens formalmente públicos

A função social da propriedade urbana: usucapião em bens formalmente públicos

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Visa dispor sobre o instituto da função social da propriedade e a usucapião sobre bens públicos.

INTRODUÇÃO

                O tópico que da início a este trabalho vem abordar uma breve conceituação acerca de determinados conceitos que serão utilizados ao longo deste trabalho, como os conceitos de propriedade bem como do direito a propriedade e outro elemento do direito civil que é a função social.

   Já o segundo item vem abordar de forma especifica todos os tipos de usucapião previstos pela legislação brasileira, passando por aqueles previstos no Código Civil, na Constituição Federal e em outras leis que compõe a previsão legislativa brasileira, mostrando de forma clara as modalidades sejam elas com relações a bens móveis ou mesmo bens imóveis.

  Por fim, o último tópico abordado realiza uma ligação entre os temas abordados anteriormente e trabalha com a idéia de propriedade e usucapião relacionada ao conceito de  usucapião de bens públicos, com o intuito de mostrar a previsão normativa bem como se há a possibilidade de contornar algum dispositivo para fazer valer o direito

1 O DIREITO DE PROPRIEDADE E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

            Desde o princípio da humanidade, algumas coisas sempre foram necessidades inerentes ao homem, que sem as quais este logo teria perecido diante das adversidades que o mundo, como um sistema que é, apresenta, se este não tivesse descoberto formas de lidar com elas e supri-las. Essas formas variam de acordo com a necessidade, seja desenvolvendo a caça e a plantação como meios para suprir a fome, ou mesmo a utilização do fogo para nos aquecer, seja com a necessidade de se abrigar e o estabelecimento de um local para isto, que embora a primeira vista tenha soado como um conceito simples em resposta a necessidade de proteção do clima e animais, por exemplo, posteriormente se mostraria algo muito mais complexo que viria a ser a propriedade.

            Seja mencionando a importância da propriedade no direito romano ou ainda nos tempos atuais, cabe mencionar que esse é um conceito importantíssimo para os direitos reais, sendo conceituado nas palavras de Fábio Ulhoa como “o mais importante dos direitos reais.” (COELHO, 2012, p. 62). Isso se dá pelo fato que é a propriedade sobre o bem ou coisa é que enseja que as demais conceituações e parâmetros, juridicamente falando, possam ser traçados e estabelecidos em relação aos indivíduos que deles tem a propriedade. E assim estipular quais são não só os direitos daqueles indivíduos, mas também os deveres destes e também dos demais que não tem a propriedade em relação aos que a tem.

Dito isto, para compreender a importância deste item se faz necessário antes conceituar o que é propriedade assim como o que é o direito de propriedade. Em relação à propriedade, assim como apontam diversos doutrinadores, seu conceito não pode ser extraído de forma explicita do Código Civil brasileiro, embora este dê características ao proprietário que ajudam a definir em parte o que seria a propriedade. Já que o Código Civil se faz omisso na matéria, existem conceitos, dentre eles o que diz que “a propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem corpóreo, bem como de reivindicar de quem injustamente o detenha” (DINIZ, 2009, p. 847). Essa conceituação de Maria Helena Diniz é um das que muito aproveita o disposto no Código Civil em seu Artigo 1.288 que diz em seu caput que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”

Quanto ao conceito de direito de propriedade, em seu livro, Carlos Alberto Gonçalves ao citar Cunha Gonçalves, define o direito de propriedade como “aquele que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar”. (GONÇALVES apud GONÇALVES, 2009, p. 208)

Pode-se notar que estes conceitos acabam se complementarem e particularmente em um aspecto que é a relação não só do proprietário em relação ao objeto da propriedade, mas também dos demais indivíduos com relação a esta, sempre apresentando que os demais não devam, via de regra, interferir na propriedade alheia devendo assim respeito para com aquele que tem a propriedade de algo, no que tange as características não só da propriedade, como também da posse destes bens.

De um ponto de vista constitucional e histórico sobre a propriedade é importante mencionar uma breve análise que faz Fábio Ulhoa que diz:

Na ordem positiva brasileira, a propriedade tem sido constitucionalmente protegida como direito fundamental desde a Constituição do Império. Até a Carta de 1937, a única limitação constitucional disse respeito à desapropriação (transferência compulsória da propriedade para o Estado, para atendimento do interesse público). Na Constituição de 1946, estabeleceu-se que o uso da propriedade estava condicionado ao bem-estar social; nas de 1967 e 1969, bem como na atual, de 1988, o constituinte empregou o conceito de função social para limitar o exercício do direito (CF, arts. 5º, XXII e XXIII, e 170, II e III).

Afirma-se que a propriedade privada é protegida no plano constitucional porque representa, ao lado da garantia do emprego e do salário justo (CF, arts. 7º e 170, VIII) e dos serviços públicos, um dos meios de os sujeitos proverem seu sustento (entendido num sentido bastante amplo, que compreende o acesso à moradia, alimentação, saúde, lazer etc.) e o de sua família (Comparato, 1986). (COELHO, 2012,  p. 61)

            Atualmente, como mencionado, a Constituição Federal Brasileira de 1988 trata no Capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos e, portanto, cláusulas pétreas, em seu Artigo 5º, incisos XXII e XXIII que o direito a propriedade está garantido, como está também precisa atender a sua função social. Então é preciso compreender o que seria está função social apresentada no texto constitucional e sua relação com o direito de propriedade. A função social funciona como um limitador ao direito de propriedade de modo que é preciso considerar outros fatores que não apenas os interesses individuais, mas também os da coletividade, de modo que o uso sobre o bem não fica ilimitado, se dele a coletividade também depender.  Uma forma bem clara de estabelecer a relação da função social e de um imóvel por exemplo, é considerar um local que foi tombado e portanto não pode ter sua fachada modificada ou não pode ser demolido, tendo o proprietário o dever de restaurá-lo e mantê-lo nas devidas condições, pois ele atende a uma função social que pode ser vista tanto do ponto de vista histórico quando do cultural e deve então ser preservado. (COELHO, 2012, p. 61-67)

Ainda sobre esse caráter limitador da função social diante do direito de propriedade, Maria Helena Diniz faz uma análise muito precisa ao afirmar que:

Há limitação ao direito de propriedade com o escopo de coibir abusos e impedir que seja exercido, acarretando prejuízo ao bem-estar social. Com isso se possibilita o desempenho da função econômico-social da propriedade, preconizada constitucionalmente, criando condições para que ela seja economicamente útil e produtiva, atendendo o desenvolvimento econômico e os reclamos da justiça social. O direito de propriedade deve, ao ser exercido, conjugar os interesses do proprietário, da sociedade e do Estado, afastando o individualismo e o uso nocivo de domínio. (DINIZ, 2009, p. 848)

            Essa forma de delimitar o uso por parte do proprietário e estabelecer sobre a coisa objeto da propriedade não só direitos, mas também o dever de respeitar certos critérios é interessante, pois é base fundamental para o estudo da usucapião, que é objeto deste trabalho e será trabalhado de forma mais aprofundada nos tópicos seguintes.

2 OS TIPOS E CONCEITOS DE USUCAPIÃO

De um modo geral, a usucapião pode ser conceituada, como cita o Ministro Orozimbo Nonato, no Recurso Extraordinário 8.952/MG, ao afirmar que: “o usucapião é, como a transcrição, modo de adquirir domínio. É modo originário de adquirir domínio, com a perda do antigo dono, cujo direito sucumbe em face da aquisição”. (p. 97)

A usucapião tem como pressupostos a

coisa hábil (res habilis) ou suscetível de usucapião, posse (possessio), decurso do tempo (tempus), justo título (titulus) e boa-fé (fides). Os três primeiros são indispensáveis e exigidos em todas as espécies de usucapião. O justo título e a boa-fé são reclamados na usucapião ordinária. (GONÇALVES, 2009, p. 253)

Tendo em vista este conceito é preciso então apresentar as diferentes formas com a qual pode a usucapião se apresenta, são elas:

2.1 Usucapião Ordinária ou Comum

 

Prevista, para bens imóveis, no Art. 1.242 do Código Civil que diz

Art. 1.242 Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

Este tipo de usucapião tem como pré-requisitos, como demonstrado no texto legislativo à posse por 10 anos, somado ao justo título bem como a boa-fé na posse. Tal pré requisito enseja que o possuidor além de comprovar a boa-fé, precisa ainda demonstrar a existência de uma relação jurídica vinculada a propriedade, seja ela um contrato de compra venda ou ainda uma doação que deu origem a posse do bem. (COELHO, 2012, p. 85)

            Ainda dentro da usucapião ordinária, há existência de dois ramos deste tipo que são a “usucapião ordinária habitacional” e a “usucapião ordinária pro labore”. Ambas remetem ao parágrafo único do Art. 1.242 mais precisamente na ultima parte onde afirma que se houverem investimentos no imóvel que tenha por interesse resgatar o caráter social ou ainda econômico daquela propriedade, o prazo de 10 anos é reduzido para apenas a metade, ou seja, a posse continua agora é de apenas 5 anos.

Para bens móveis, o Art. 1260 é quem trata desta modalidade, afirmando que “aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade”, diferenciando-se, portanto da previsão anterior por tratar de bem móvel e por isto ter o prazo reduzido de 10 anos para apenas 3 anos

2.2 Usucapião Extraordinária

           

A usucapião extraordinária é tratada pelo Artigo 1.238, também do Código Civil que afirma:

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

            Como fica claro no dispositivo, este tipo de usucapião é bem mais flexível que a usucapião de forma ordinária, não exigindo duas das principais características desta que eram a boa-fé e o justo título. Evidentemente então que aquele que usar de má-fé para obter a posse do imóvel e/ou não possuir justo título poderá, sem impedimentos, obter a propriedade. Tal qual o disposto no artigo que trata da usucapião ordinária, se houver uma finalidade na ocupação do imóvel para fins habitacionais (usucapião extraordinária habitacional) ou ainda para fins econômicos (usucapião extraordinária pro labore) há também a redução do tempo mínimo de 15 anos para apenas 10 anos.

Tal modalidade de prescrição tem como antecedentes históricos a praescriptio longi temporis, a longissimi temporis (que chegou a ser de quarenta anos) e a precrisção imemorial (posse cujo começo não houvesse memória entre os vivos. Corresponde a espécie de usucapião mais comum e conhecida. (GONÇALVES, 2009, p. 238)

Assim como há usucapião de forma ordinária para bens imóveis e moveis, a extraordinária não é diferente tendo como previsão o disposto no Artigo 1.261 que diz: “Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.”

Sendo assim, os pressupostos da usucapião extraordinária são apenas a coisa hábil, a posse e o decurso do tempo estipulado para cada modalidade, seja móvel ou imóvel.


2.3 Usucapião Constitucional Habitacional ou Usucapião Especial Urbana e Usucapião Constitucional pro labore ou Especial Rural.

                   A usucapião especial urbana ou constitucional habitacional é mais uma forma de promover o direito fundamental à moradia consagrada na Carta Magna, pois busca assegurar um patrimônio mínimo à entidade familiar, visando, igualmente promover a utilização racional da propriedade sobre áreas urbanas estéreis e ociosas (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.355). Possui regulamentação expressa na Constituição Federal de 1988, art. 183 e Código Civil, art. 1240.

Constituição Federal: Art. 183 Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. 

2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (grifo nosso).

Código Civil: Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2o O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

                            Sendo assim, a usucapião especial urbana tem por requisitos: I) Não exigibilidade de boa-fé ou justo título; II) O imóvel, necessariamente urbano, não pode ultrapassar a área  de 250 m²; III) Não pode o possuidor que busca usucapir o bem ser titular de outro imóvel, seja ele rural ou urbano; e, por fim, IV) O possuidor deve exercer posse contínua por no mínimo 5 anos.

                 A usucapião especial rural ou constitucional pro labore, por sua vez, foi criada pela Constituição Federal de 1934, estando presente na legislação ordinária, inicialmente no contexto do artigo 98 da Lei nº 4.504/64, e posteriormente na Lei nº 6.969/81 (FARIAS, ROSENVALD, 2011, p.369). Essa espécie de usucapião foi criada com o objetivo de fixar o homem no campo, como é possível constatar na redação do art. 191 da Constituição Federal, que prevê a necessidade de ocupação produtiva do imóvel, devendo neste residir e trabalhar o usucapiente ou a entidade familiar (FARIAS, ROSENVALD, 2011, p.370).

Art.191 Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (grifo nosso).

                 Ainda, possui regulamentação no Código Civil brasileiro, em seu artigo 1239:

Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

                      Logo, tem como requisitos: I) Inexigibilidade de boa-fé ou justo título; II) O imóvel rural que não ultrapasse a área de 50 Hm²; III) O possuidor do bem não pode ser titular de outro imóvel, ainda que urbano; e, por fim, o possuidor deve exercer posse contínua por um prazo mínimo de 5 anos. Cumpre salientar que, além da observância aos requisitos constitucionalmente exigidos, o artigo 3º da Lei nº 6.969/81 “veda a usucapião rural em áreas indispensáveis à segurança nacional, terras habitadas por silvícolas e áreas declaradas pelo Poder Executivo como de interesse ecológico” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.369).

                 Ora, tanto na usucapião especial urbana como na especial rural a pessoalidade da posse é requisito essencial, ou seja, ninguém poderá adquirir a propriedade do bem imóvel pela habitação no local por outra pessoa (FARIAS, ROSENVALD, 2011, p.233). Ainda, por dispensarem os requisitos do justo título e boa-fé, tanto a usucapião urbana como a rural seriam, conforme as lições de Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p.355) espécies de miniusucapiões extraordinárias.

                  Nas modalidades acima estudadas de usucapião especial é facilmente constatada a demonstração da importância do princípio da função social da propriedade na Constituição Federal brasileira de 1988, pois “homenageia aqueles que, com animus domini, residem ou trabalham no imóvel em regime familiar, reduzindo os períodos aquisitivos de usucapião para cinco anos” (FARIAS, ROSENVALD, 2011, p.355). Salienta-se que no caso da usucapião especial rural a função social é ainda mais intensa, uma vez que a simples utilização da posse para moradia não conduz à aquisição do imóvel, se não vier acompanhada do exercício efetivo de uma atividade econômica – isso ocorre porque essa espécie de usucapião tem por objetivo promover a ocupação de vastas áreas rurais subaproveitadas, tornando a terra útil e produtiva (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.370).

2.4 Usucapião Urbana

                   O Estatuto da Cidade (lei n° 10.257/01), dentre outras matérias, disciplina a usucapião urbana, atuando como um instrumento de política urbana que objetiva efetivar a função social da propriedade. Conforme o entendimento de Liana Portilho Mattos (2002, p.152), a usucapião urbana surgiu num contexto em que função social da propriedade estava muito presente, relacionando-se intimamente com o artigo 182 da Constituição que estabelece sanções aos proprietários que não atendem a este princípio da política urbana.

               Os requisitos legalmente exigidos nessa modalidade de usucapião estão disciplinados no artigo 9º da Lei nº 10.257/01:

Artigo 9º: Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

                      Logo, tem como requisitos: I) Não exigibilidade de boa-fé ou justo título; II) Existência de composse, isto é, a posse é exercida de forma coletiva, não sendo possível definir precisamente a área em que cada um exerce posse; III) A área do imóvel urbano não pode ultrapassar 250m²; IV) O possuidor não pode ser titular de qualquer outro imóvel; e, por último, V) o possuidor deve exercer posse contínua por no mínimo 5 anos.

 

3 BENS FORMALMENTE PÚBLICOS V.S. USUCAPIÃO V.S. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

3.1 Bens Públicos

                     Os bens públicos, em razão de sua importância para a sociedade e da função que desempenham são disciplinados por um regime jurídico específico - compreendem todos os bens que possam ser afetados ao interesse público. Esse regime, segundo a doutrina tradicional significa que os bens públicos são impenhoráveis, inalienáveis e imprescritíveis, a impossibilidade de oneração e a intangibilidade (BERWIG, 2009).  Tais características são atribuídas em razão da finalidade visada pelo bem público, qual seja, os bens públicos são os necessários à concretização dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito - não sendo possível, dessa forma, generalizar todos os bens que são de propriedade do Estado e dos entes de sua administração indireta atribuindo a eles as características anteriormente citadas  (BERWIG, 2009).

                  Assim, bens públicos “são todas as coisas, corpóreas ou incorpóreas, imóveis, móveis e semoventes, créditos, direitos e ações, que pertençam, a qualquer título, às entidades estatais, autárquicas, fundacionais e empresas governamentais” (MEIRELLES, 2004, p.493). Os bens públicos de acordo com a classificação tradicional se subdividem em três tipos: I- bens de domínio público; II- bens de uso especial e III- bens dominicais.

                   Os bens de domínio público são os bens de uso comum da população, isto é, todos podem utilizá-los; podendo ser federais, estaduais ou municipais (MARINELA, 2011, p.802). Ainda, a destinação ao uso coletivo do bem público pela comunidade “pode decorrer da natureza do bem ou de previsão legal, como, por exemplo, ruas, praças, mares, praias, rios, estradas, logradouros públicos, além de outros” (MARINELA, 2011, p.802).

                  Os bens de uso especial, por sua vez “são os bens utilizados nos serviços prestados pela Administração; Como exemplo tem-se: o prédio de uma escola pública, terreno usado para depositar materiais ou para estacionamento, edifício de uma repartição” (MEDAUAR, 2004, p. 284).

                   Por fim, os bens dominicais são aqueles que não possuem destinação especial, nem ao uso comum do povo: O Estado possui tais bens como qualquer outro privado, sendo, portanto, alienáveis.

Os bens dominicais são os destituídos de qualquer destinação, prontos para ser utilizados ou alienados ou, ainda, ter seu uso trespassado a quem por eles se interesse. Pertencem à União, aos Estados-Membros, aos Municípios, ao Distrito Federal, às autarquias e fundações públicas. Tais entidades exercem sobre esses bens poderes de dono, de proprietário. Apesar disso, a alienação e o trespasse do uso podem exigir o cumprimento, previamente, de certos requisitos, como avaliação, concorrência e licitação. Desses bens são exemplos os terrenos sem qualquer afetação de propriedade das citadas pessoas públicas. Podem ser utilizados pelos seus proprietários para todos os fins de direito, observadas, evidentemente, as legislações dos demais entes federados. Assim, a União não pode dar a bem dominical de sua propriedade qualquer utilização que contrarie a lei municipal de uso e ocupação do solo (GASPARINI, 2011, p. 948).

 

3.2 Usucapião em bens formalmente públicos

          Além das classificações feitas acima, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 328) trazem mais uma classificação dos bens públicos: bens materialmente públicos e bens formalmente públicos. Os primeiros desde que preencham os critérios de legitimidade e merecimento (já que estes bens estão aptos a satisfação de tais critérios) são dotados da função social (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 328). Os bens formalmente públicos, por sua vez, são aqueles bens registrados em nome de uma pessoa jurídica de Direito Público excluídos de qualquer forma de ocupação e que dispõem apenas de uma potencial destinação (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 328).

                    Assim, a doutrina majoritária defende que bens públicos, de qualquer natureza, não podem ser adquiridos por usucapião:

O domínio patrimonial está sujeito a regime administrativo especial, não se lhe aplicando as normas que regem a propriedade privada, a não ser supletivamente. Orienta-se o domínio patrimonial por quatro princípios basilares, a saber, a inalienabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e não-oneração. A regra geral é que o Estado não pode alienar seus bens. Tal só ocorrerá excepcionalmente, na dependência de lei que autorize a transação. Pelo fato de serem inalienáveis, os bens públicos são também inadquiríveis, enquanto durar a inalienabilidade. Dessarte, não serão afetados pela “prescrição aquisitiva” ou usucapião (FIUZA, 2006, p. 769).

                  Em razão da imprescritibilidade e inalienabilidade dos bens públicos a doutrina majoritária entende que estes não estão sujeitos a aquisição por usucapião. Contudo, recentemente uma parte minoritária da doutrina tem buscado a flexibilização das normas que impossibilitam usucapir qualquer bem público. Essa flexibilização se faz necessária haja vista que em alguns casos concretos a aplicação da norma de forma literal gera grandes injustiças e viola o princípio da função social da propriedade, que possui guarida constitucional.

 Ora, princípio da função social da propriedade deve ser respeitado igualmente pelo Estado e pelos particulares, pois a “absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao valor (constitucionalmente contemplado) da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.328).

                   A Constituição Federal, em seus artigos 183, §3º e 191, parágrafo único, veda a usucapião de bens públicos, independentemente da natureza que possuem. Faz isso em razão da destinação atribuída a tais bens, qual seja: serem utilizados de forma a beneficiar a comunidade. Cumpre salientar que, se um bem público não cumpre a função social da propriedade, parâmetro que legitima toda e qualquer forma de domínio, ele não atinge sua destinação. Se não cumpre sua destinação, não é atingido pela característica da imprescritibilidade e inalienabilidade.

                  Sendo assim, os bens formalmente públicos, que não sejam destinados a satisfação do interesse público, desde que sejam atendidos os demais requisitos legais, são passíveis de se usucapir (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 329). Nos mesmo sentido argumenta a Desembargadora Lucila Toledo (2012), atendo-se aos bens dominicais:

Os bens públicos dominiais são os desprovidos de afetação. São bens que podem ser destinados à alienação. A partir do momento em que o bem entra para a esfera de disponibilidade do Estado, ele perde seu caráter público. A desafetação para alienação demonstra que o Estado já não possui mais interesse naquele bem. Significa que ele já não desfruta de interesse público. Se assim ocorre, não devem mais ser aplicadas as prerrogativas de que dispõem os bens essencialmente públicos. O imóvel destinado à alienação, como o do presente caso, torna-se apenas formalmente público. Não se pode afirmar que a sua natureza jurídica continua a mesma de, por exemplo, uma escola ou um hospital mantidos pelo Estado. Não há, portanto, razão para a sua imprescritibilidade, cuja observância, nesses casos, fere a proporcionalidade. Se é possível ao Estado alienar certo tipo de bem, não faz sentido que ele não possa perdê-lo, pela sua própria inércia. Impedir a prescrição aquisitiva do bem desprezado pelo Estado afronta a função social da propriedade. A norma constitucional que estabelece que os bens públicos são insuscetíveis de usucapião, deve ser interpretada de acordo com a destinação do bem. E o bem já desafetado não tem mais destinação pública. (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. EMB. INFR. Nº: 9172311-97.2007.8.26.0000/50000 Comarca de Campinas, Relatora Des. Lucila Toledo. 9ª Câmara de Direito Privado, julgado em São Paulo, 22 de maio de 2012).

                    Assim, a possibilidade de usucapião independe da titularidade do bem: não é a personalidade jurídica do titular que determinará a natureza do bem, e, portanto, a possibilidade ou não de se usucapir, mas a sua destinação, a afetação de suas finalidades a um serviço público (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 330). Dito de outra forma, “se o bem pertencente à União, Estados, Municípios, Autarquias e Fundações de Direito Público, não guarda qualquer relação com a finalidade pública exercitada pela pessoa jurídica de direito público, haverá possibilidade de usucapião” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 330).

                   Em sentido contrário José dos Santos Carvalho Filho (2007, p.977) manifesta discordância em relação a possibilidade de usucapir bens formalmente públicos:

Dissentimos, concessa venia, de tal pensamento, e por mais de uma razão: a uma, porque nem a Constituição nem a lei civil distinguem a respeito da função executada nos bens públicos e, a duas, porque o atendimento, ou não, à função social somente pode ser constatada em se tratando de bens privados; bens públicos já presumidamente atendem àquela função por serem assim qualificados (CARVALHO FILHO, 2007, p. 977).

                   O entendimento do autor não leva em consideração o princípio da função social da propriedade, desconsiderando qualquer forma de interpretação sistemática e teleológica da Constituição Federal, o que, dependendo do caso concreto fere o sentimento de justiça da coletividade. Não é plausível que o Estado viole o princípio da função social da propriedade sob o argumento de que bens públicos, em razão de sua natureza, são insuscetíveis de aquisição por meio de usucapião, por serem imprescritíveis e inalienáveis.

CONCLUSÃO

                 A doutrina majoritária, em razão da característica atribuída aos bens púbicos da imprescritibilidade e inalienabilidade tem rechaçado qualquer possibilidade de usucapir bens públicos, independentemente da sua classificação. Contudo, é necessário fazer uma distinção entre bens públicos e bens formalmente públicos a fim de resguardar a harmonia da constituição, pois a vedação à usucapião de qualquer espécie de bem público de forma absoluta não é adequada, conforme defende parte minoritária da doutrina pátria, se se considerar a lógica de uma interpretação sistemática e teleológica da constituição federal de 1988 e dos princípios inerentes à posse e propriedade.

              Não é admissível que o Estado brasileiro (em que milhões de pessoas tem seu direito fundamental a moradia violado), diante da omissão do Poder Público (ou mesmo negligência) possa manter-se proprietário de bens destituídos de qualquer função social - e, muitas vezes sem qualquer perspectiva futura de utilização em prol do interesse público - isentando-se, dessa maneira, do dever de atender ao princípio de guarida constitucional da função social da propriedade.

                Assim, é crucial compatibilizar dispositivo constitucional do art. 183, §3º da CF/88 com o seu art. 5º, XXIII e o princípio da dignidade da pessoa humana, intimamente atrelado ao direito fundamental à moradia.

REFERENCIAS    

BERWIG, Aldemir. Bens públicos e bens estatais: algumas reflexões. 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6130

>. Acesso em: 01/11/2013. 

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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.

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