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Critérios para fixação de competência penal sob o prisma constitucional

Critérios para fixação de competência penal sob o prisma constitucional

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COMPETÊNCIA – BREVES CONSIDERAÇÕES

Conforme estudado no resumo do tema anterior, a jurisdição é uma das formas de expressão da soberania do Estado e, como tal, é una, indivisível. Ocorre, entretanto, que o órgão jurisdicional – o juiz – não tem condições de aplicar o direito objetivo a todos os conflitos interindividuais que surgem, pois é inconteste o número elevado e diversificado de lides que se desenvolvem no país. Percebe-se, assim, a necessidade de se dividir tarefas, ou, numa linguagem mais técnica, de se distribuir os processos entre os diversos órgãos jurisdicionais previstos na Constituição Federal.

Frise-se que a jurisdição não comporta fragmentação, mas seu exercício sim. A divisão do exercício da jurisdição entre os diversos órgãos jurisdicionais é prevista na própria Lei Maior e também em dispositivos infraconstitucionais. Equivale dizer que há determinação legal para que cada juiz exerça sua jurisdição dentro de certos limites, afetos a grupos específicos de litígios.

Eis aí a definição de competência que, nos dizeres de Liebman, é a "quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos". [1] Para Mirabete, é "a medida e o limite da jurisdição, é a delimitação do poder jurisdicional". [2] Cintra, Grinover e Dinamarco bem sintetizam o assunto, lecionando que, in verbis:

"a função jurisdicional, que é uma só e atribuída abstratamente a todos os órgãos integrantes do Poder Judiciário, passa por um processo gradativo de concretização, até chegar-se à determinação do juiz competente para determinado processo; através de regras legais que atribuem a cada órgão o exercício da jurisdição com referência a dada categoria de causas (regras de competência), excluem-se os demais órgãos jurisdicionais para que só aquele deva exercê-la ali, em concreto". [3]

Clara está, portanto, a distinção entre competência e jurisdição.

A distribuição de competência é feita observando-se uma série de disposições, que vão das constantes na Constituição Federal às previstas em normas das Constituições estaduais, do Código de Processo Penal e das Leis de Organização Judiciária.

Scarance Fernandes esclarece que a doutrina vem tentando agrupar e sistematizar critérios científicos para a fixação da competência. [4] O primeiro deles é o que distingue a competência externa ou internacional, consubstanciada em regras que definem as causas que a justiça brasileira deverá conhecer e decidir, da competência interna, que aponta qual o órgão local se incumbirá especificadamente do exercício jurisdicional em cada caso concreto.

Outro critério de determinação da competência é o apresentado por Wach, defendido por Chiovenda e acolhido no Brasil por Moacyr Amaral Santos. [5] Segundo este, três são os critérios que devem ser observados: o objetivo (que se funda no valor ou natureza da causa ou, ainda, na qualidade das partes), o funcional (fundado na repartição das atividades jurisdicionais entre os diversos órgãos que devam atuar dentro de um mesmo processo) e o territorial (atribuída aos diversos órgãos jurisdicionais considerando-se a divisão do território nacional em circunscrições judiciárias, regiões, seções ou subseções judiciárias).

Um outro critério, defendido por Carnelutti, estrutura-se sobre o conceito de lide. Consiste em relevar dados referentes à lide e dados referentes ao processo. Nos primeiros, englobam-se aqueles que tangem à relação jurídica (natureza, fato constitutivo e cumprimento da obrigação), ao objeto (natureza, valor e situação) e às pessoas (qualidade e sede). Nos segundos, compreendem-se os dados alusivos à natureza do processo, à natureza do procedimento e à relação com o processo anterior. [6]

Para Cintra, Grinover e Dinamarco, que acolhem em parte o critério de Carnelutti, o legislador, para a distribuição da competência, utilizou-se do que chamaram de "três operações lógicas", que são:

"a) constituição diferenciada de órgãos judiciários; b) elaboração da massa de causas em grupos (levando em conta certas características da própria causa e do processo mediante o qual é ela apreciada pelo órgão judiciário); c) atribuição de cada um dos diversos grupos de causas ao órgão mais idôneo para conhecer destas, segundo uma política legislativa que leve em conta aqueles caracteres e os caracteres do próprio órgão". [7]

Tourinho Filho [8] e Mirabete [9], mais objetivamente, entendem que a limitação do exercício jurisdicional é feita com base na natureza da lide (ratione materiae), no território e nas funções que os órgãos podem exercer dentro dos processos.

Em termos constitucionais, a distribuição de competência encontra-se expressamente prevista segundo a estrutura do Poder Judiciário nacional. Assim, estão definidas na Constituição Federal as atribuições do Supremo Tribunal Federal (art. 102), do Superior Tribunal de Justiça (art. 105), da Justiça Federal (art. 108 – Tribunais Regionais Federais; art. 109 – Juízes Federais), das Justiças Especiais (art. 114 – Justiça do Trabalho; art. 121 – Justiça Eleitoral; art. 124 – Justiça Militar) e das Justiças Estaduais (art. 125).

De igual forma, são previstas na Lei Maior a delimitação do poder jurisdicional dos juizados especiais federais e estaduais (arts. 24, X, e 98, I) e também do que Mirabete classifica de jurisdição política, entendida como aquela afeta a órgãos não pertencentes ao Poder Judiciário (Senado Federal, Câmara dos Deputados e Assembléias Legislativas) aos quais é atribuído o poder de julgar os crimes de responsabilidade praticados por determinadas pessoas. [10]

O Código de Processo Penal, em seu artigo 69, estabelece que a competência criminal será fixada atentando-se para o lugar da infração (I), o domicílio ou residência do réu (II), a natureza da infração (III), a distribuição (IV), a conexão ou continência (V), a prevenção (VI) e a prerrogativa de função (VII). A rigor, a conexão e a continência não são formas de delimitação da competência, mas critérios de modificação da mesma.


COMPETÊNCIA MATERIAL

Na seara da competência material, três são os aspectos a serem obedecidos na delimitação do exercício do poder jurisdicional: a natureza da relação de direito (ratione materiae), a qualidade da pessoa do réu (ratione personae) e o território (ratione loci).

Como vimos, não é possível ao juiz conhecer de todas as causas, por isso, de acordo com a determinação constitucional e infraconstitucional, inclusive de normas de organização judiciária, lhe é permitido conhecer algumas causas específicas. Daí a competência estabelecida segundo a relação de direito ou, ainda, em consonância com o Código Processual Penal, a competência fixada pela natureza da infração (art. 69, III).

O exercício jurisdicional também é delimitado pela qualidade da pessoa do réu, de tal sorte que nem todos os juízes estão autorizados a exercer a jurisdição sobre qualquer indivíduo, devendo-se observar a função pública exercida pelo autor da infração, que poderá conferir-lhe o direito a foro especial por prerrogativa de função (art. 69, VII, CPP).

Os vários órgãos jurisdicionais, dentro de suas respectivas competências, sofre ainda nova delimitação quanto ao poder de julgar, considerando-se, desta feita, o território. É a competência definida em razão do lugar da infração (art. 69, I, CPP) ou da residência ou domicílio do réu (art. 69, II, CPP).


COMPETÊNCIA FUNCIONAL

Tourinho Filho define a competência funcional como aquela fundada na distribuição feita pela lei entre "diversos juízes da mesma instância ou de instâncias diversas para, num mesmo processo, ou em um segmento ou fase do seu desenvolvimento, praticar determinados atos". [11] Na mesma linha de pensamento, Mirabete ensina que a competência funcional tem como elemento de distribuição os atos processuais e os critérios de delimitação são três: as fases do processo, o objeto do juízo e o grau de jurisdição.

Em regra, a competência do juiz é ampla, açambarcando-se de todos os atos processuais, desde o conhecimento inicial do pedido à execução da sentença. Pode ocorrer, contudo, uma limitação legal à competência do juiz para a prática de determinados atos numa fase específica do processo. É o que ocorre, por exemplo, nas ações que versam sobre crimes dolosos contra a vida, onde há um juiz competente para a instrução e outro para o julgamento (art. 5°, XXXVIII, d, CF/88). Desse modo, a competência funcional por fases do processo se dá "quando dois ou mais órgãos jurisdicionais de uma mesma instância praticam, num determinado feito, determinados atos". [12]

De forma bastante semelhante, pode ocorrer que o objeto do juízo, ou seja, as várias questões que se apresentam para conhecimento e decisão no processo necessitem ser submetidas a órgãos jurisdicionais diversos, o que é bastante comum nos tribunais colegiados heterogêneos. Outra vez, o exemplo do tribunal do júri é por demais pertinente, pois "ao juiz incumbe ‘resolver questões de direito que se apresentarem no decurso do julgamento’ (art. 497, X [CPP]), lavrando a sentença condenatória ou absolvitória (art. 492 [CPP]) e fixando a pena, quando cabível (art. 59 do CP); aos jurados compete responder aos quesitos onde lhes são formuladas as questões em que o julgamento se fundará (art. 481 [CPP])". [13]

Dentro do Poder Judiciário, os órgãos jurisdicionais são classificados quanto à sua graduação ou categoria, podendo ser inferiores – aqueles correspondentes à primeira instância – ou superiores – os pertencentes à segunda instância ou outros tribunais ad quem. Verifica-se, destarte, a fixação de competência de acordo com o grau de jurisdição do órgão julgador.

Salienta Mirabete, quanto aos órgãos jurisdicionais de segunda instância, que a competência pode ser originária – nos casos de foro especial por prerrogativa de função – ou em razão de recurso – pelo princípio do duplo grau de jurisdição. [14]

Tourinho Filho apresenta uma classificação um pouco diferente para a competência funcional, estabelecendo a distinção entre competência horizontal – quando dois ou mais órgãos jurisdicionais da mesma instância podem praticar atos num mesmo processo – e competência vertical – quando dois ou mais órgãos jurisdicionais de instâncias diversas podem praticar atos num mesmo processo. Nesse diapasão, o ilustre doutrinador apresenta a competência funcional por fases do processo e por objeto do juízo como sendo horizontal, e a por grau de jurisdição (em razão de recursos) e originária (ratione personae ou ratione materiae) como vertical. [15]

Insta alertar que a competência funcional, qualquer que seja ela, pressupõe a existência da atribuição jurisdicional já delimitada pelos critérios da competência material em razão da relação de direito (ratione materiae) e do território (ratione loci).


COMPETÊNCIA PELO LUGAR DA INFRAÇÃO

Expressamente prevista no artigo 69, inciso I, do Código de Processo Penal, a competência fixada pelo lugar da infração, ou forum delicti commissi, é a regra para a determinação do juiz a quem incumbe o exercício do poder jurisdicional (artigo 70, 1ª parte, do CPP) naquele caso concreto. Mais precisamente, entende-se que o lugar onde se consumou a infração penal é o que firma a competência para o processo e julgamento da causa, pois é justamente neste foro onde há maior facilidade para coligir os elementos probatórios necessários à constatação da materialidade e à certeza da autoria. Ademais, é o lugar onde o exemplo de repressão é exigido.

Entenda-se foro como o território dentro de cujos limites o juiz exerce a jurisdição. Sob este prisma, Cintra, Dinamarco e Grinover esclarecem que, in verbis:

"Nas Justiças dos Estados o foro de cada juiz de primeiro grau é o que se chama comarca; na Justiça Federal é a seção judiciária. O foro do Tribunal de Justiça de um Estado é todo o Estado; o dos Tribunais Regionais Federais é a sua região, definida em lei (c. Const., art. 107, par. ún.), ou seja, o conjunto de unidades da Federação sobre as quais cada um deles exerce jurisdição; o do Supremo Tribunal de Federal, do Superior Tribunal de Justiça e de todos os demais tribunais superiores é todo o território nacional (Const., art. 92, par. ún.)." [16]

O artigo 70 do Código de Processo Penal, ao prever que "a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução", adota claramente a chamada Teoria do Resultado. Em contrapartida, o Código Penal, ao definir o lugar do crime (art. 6°), estabelece que "considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado", consagrando, para o Direito Penal, a Teoria da Ubiqüidade. Sobre o tema, manifesta-se Mirabete asseverando que "a superveniência da Lei n° 7.209, de 11-7-84, que deu nova redação à Parte Geral do Código Penal, não alterou a regra do artigo 70, caput, do CPP, já que o artigo 6° daquele Estatuto refere-se ao lugar do crime para os efeitos de direito penal e não como regra de competência" [17] (grifei).

Destarte, prevalece, para a determinação da competência, o lugar da consumação do crime, onde, em consonância com o artigo 14, inciso I, do próprio Código Penal, é possível se reunir todos os elementos para a definição do delito. Nesse sentido, a Súmula 200 do STJ orienta que "o juízo federal competente para processar e julgar acusado de crime de uso de passaporte falso é o lugar onde o delito se consumou" (grifei).

Excetuando a regra geral, a Lei n° 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, optou pela Teoria da Ubiqüidade, posto que, em seu artigo 63, prescreve que "a competência do Juizado será determinada pelo lugar em que foi praticada a infração penal". Nesse particular, esta regra, interpretada em conjunto com o artigo 6° do Código Penal, onde se tem por praticado o crime "no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado", resultou na adoção da teoria da ubiqüidade pela lei especial, resolvendo-se qualquer conflito pelo critério da prevenção. [18] Tourinho Filho, entretanto, diverge desde posicionamento. Para o ilustre jurista, o termo "praticada", utilizado no art. 63 da Lei dos Juizados Especiais, tem o sentido de realizada, executada, consumada. [19]

Nos casos de tentativa, a segunda parte do artigo 70, caput, do CPP, apregoa que a competência será firmada "pelo lugar em que for praticado o último ato de execução", assim entendido com o último ato comissivo ou omissivo praticado pelo agente ou omitente.

Os parágrafos 1° e 2° do artigo 70 do Código de Processo Penal versam sobre as hipóteses dos chamados crimes à distância ou de espaço máximo, onde estão em evidência a jurisdição de dois ou mais países soberanos. Dispõem os citados dispositivos legais que "se, iniciada a execução no território nacional, a infração se consumar fora dele, a competência será determinada pelo lugar em que tiver sido praticado, no Brasil, o último ato de execução" (§1°) e "quando o último ato de execução for praticado fora do território nacional, será competente o juiz do lugar em que o crime, embora parcialmente, tenha produzido ou devia produzir seu resultado" (§2°).

Seguindo as regras do artigo 70 do CPP, seu §3° estipula que "quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições [sic], ou quando incerta a jurisdição [sic] por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de duas ou mais jurisdições [sic], a competência firmar-se-á pela prevenção". Neste caso específico, Mirabete leciona que a sede do delito se equipara à sede do juízo, tornando-se prevento o órgão jurisdicional que primeiro tiver praticado algum ato do processo ou de medida a este relativa (art. 83, CPP).

Quanto aos delitos qualificados pelo resultado, como seria o caso dos previstos nos artigos 127, 129, §3°, 133, §§1° e 2°, 135, parágrafo único, 136, §§1° e 2°, 137, parágrafo único, 148, §2°, 157, §3°, 159, §§2° e 3°, 223, parágrafo único, 258, 263 e 264, parágrafo único, todos do Código Penal, a doutrina entende que a consumação ocorre onde se verifica um dos eventos que majoram a pena.

Dissertando sobre o assunto, Tourinho Filho bem o sintetiza, in verbis:

"Pois bem: diz o nosso Código que o crime se consuma quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal. Assim, para saber se houve ou não a consumação, deve o intérprete atentar para a definição legal do tipo. E, com definir um crime é dar os elementos que o constituem, deverá o intérprete investigar se o fato praticado reúne todos os elementos do tipo penal. [...] Ora, nos delitos qualificados pelo resultado, que os alemães chamam durch den Erfolg qualifizierte Delikte, o segundo resultado, isto é, aquela circunstância agravadora, que pode ser a morte ou a lesão grave, funciona, como diz Soler, como verdadeiro elemento constitutivo, e, assim, tal circunstância, nessas modalidades de crimes, é de capital importância para a definição legal do tipo". [20]

A fixação de competência relativa aos crimes continuados e permanentes, praticados em duas ou mais áreas distintas de exercício jurisdicional, é tratada com bastante clareza no artigo 71 do Código Processual Penal, onde está previsto o critério da prevenção para sua determinação.

É importante notar que apenas as capitais e grandes cidades têm varas da Justiça Federal. Por esse motivo, a competência pelo lugar da infração, em comarcas ou distritos que não possuem juízo federal, será resolvida nas leis de organização judiciária. [21]

Mirabete salienta que é possível a criação, por meio de lei estadual de organização judiciária, de varas especializadas para a apuração de certas espécies de delitos. Entretanto, alerta-nos o douto estudioso sobre o enunciado da Súmula 206 do STJ, que assegura que "a existência de vara privativa, instituída por lei estadual, não altera a competência territorial resultante das leis de processo". [22]

Por fim, resta esclarecer que a competência pelo lugar da infração não está estampada na Constituição Federal e, por assim ser, não se reveste do status de uma competência constitucional. Nesse caso, aplica-se à espécie o artigo 567 do CPP, pois a incompetência do juízo anulará apenas os atos decisórios, podendo o juiz competente, na forma do artigo 108, §1°, do CPP, ratificar os atos anteriormente praticados pelo juiz incompetente e prosseguir no processo. [23] A incompetência ratione loci é, portanto, causa de nulidade relativa e, como tal, deve ser argüida oportunamente e de forma hábil.


COMPETÊNCIA PELO DOMICÍLIO OU RESIDÊNCIA DO RÉU

A regra para se determinar a competência em limites territoriais brasileiros é, como estudamos, a do locus delicti commissi. Na impossibilidade, contudo, de se conhecer o lugar em que foi cometida a infração penal, prevê o artigo 72 do Código de Processo Penal que a competência seja fixada pelo domicílio ou residência do réu (forum domicilii). Tem-se, destarte, um critério subordinado, subsidiário, um foro supletivo para o exercício jurisdicional nos casos concretos em que não for conhecido o lugar onde o delito foi perpetrado e o critério da prevenção não puder ser aplicado.

Tourinho Filho alerta que domicílio e residência são expressões com significados distintos [24]. Não obstante isso, o Código de Processo Penal não define uma nem outra, o que força o intérprete a recorrer ao Código Civil para dirimir suas dúvidas. O artigo 70 do Novo Código Civil define o domicílio da pessoa natural como o "lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo". Infere-se, assim, que a residência tem um caráter mais transitório, exprimindo unicamente o fato da habitação. O domicílio, por sua vez, exprime algo mais permanente: a intenção de fixar residência.

Transpondo para o Processo Penal as definições constantes nos artigos 70 e seguintes do novo diploma civil de 2002 (antigos arts. 31 e seguintes do Código Civil de 1916), Mirabete esclarece que "deve-se entender que a competência é determinada pelo domicílio (residência com ânimo definitivo, centro de ocupações habituais, na falta de ambos o ponto central de negócio ou, na falta dos anteriores, o lugar onde for encontrado) ou pela residência (simples local de habitação ou morada)". [25]

Sobre o tema, Tourinho Filho afirma que "o legislador, tendo em vista a distinção que, no cível, se estabelece entre domicílio e residência, procurou, no campo processual penal, solucionar o problema de competência de maneira mais simples: tanto no domicílio como na residência poderá tramitar a causa penal". [26]

Caso o réu possua várias residências, considerar-se-á seu domicílio qualquer uma delas (art. 71, NCC). Na hipótese de não ter residência habitual, o foro competente será aquele onde for encontrado (art. 73, NCC). Em último caso, não se sabendo seu paradeiro, a competência será fixada por prevenção, na forma dos artigos 83 e 72, §2°, do CPP.

Por fim, ressalte-se que a competência também poderá ser determinada pelo domicílio ou residência do réu, mesmo quando conhecido o lugar da infração. É o que pode ocorrer nos casos referentes à ação privada exclusiva, bastando que, para tanto, o querelante expresse sua vontade nesse sentido (art. 73, CPP).


COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Algumas pessoas, tendo em vista a importância do cargo público que ocupam, são julgadas e processadas criminalmente por órgãos jurisdicionais superiores, distintos do foro comum previsto aos cidadãos em geral. Essa distinção, nos dizeres de Mirabete, funda-se "na utilidade pública, no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais superiores". [27]

Tourinho Filho ensina que "há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado e, em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria, gozam elas de foro especial, isto é, não serão processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas, pelos órgãos superiores, de instância mais elevada". [28]

Nesse exercício jurisdicional levado a termo por órgãos diferenciados, relevando-se o cargo ou a função pública da pessoa, é que se verifica a competência pela prerrogativa de função (art. 69, VII, CPP).

Observe-se que não se trata de um privilégio concedido à pessoa, pois isso seria contrário ao princípio da igualdade expressamente contido no caput do artigo 5° da Constituição Federal, mas de uma prerrogativa que decorre da relevância e da importância do cargo ou da função que a pessoa ocupa ou exerce.

Fernando Capez discorre acerca do assunto e defende o respeito ao princípio da igualdade nos casos de prerrogativa de função. In verbis:

"de fato, confere-se a algumas pessoas, devido à relevância da função exercida, o direito a serem julgadas em foro privilegiado [sic]. Não há que se falar em ofensa ao princípio da isonomia, já que não se estabelece a preferência em razão da pessoa, mas da função [...] Na verdade, o foro por prerrogativa visa preservar a independência do agente político, no exercício de sua função, e garantir o princípio da hierarquia, não podendo ser tratado como se fosse um simples privilégio estabelecido em razão da pessoa". [29]

Corroborando esta mesma tese, Tourinho Filho didaticamente esclarece que:

"Poderia parecer, à primeira vista, que esse tratamento especial conflitaria com o princípio de que todos são iguais perante a lei [...], e, ao mesmo tempo, entraria em choque com aquele que proíbe o foro privilegiado. Pondere-se, contudo, que tal tratamento especial não é dispensado à pessoa [...], mas sim ao cargo, à função. [...] O que a Constituição veda e proíbe, como conseqüência do princípio de que todos são iguais perante a lei, é o foro privilegiado e não o foro especial em atenção à relevância, à majestade, à importância do cargo ou função que essa ou aquela pessoa desempenhe. [...] Esse foro especial, como bem disse Garraud ‘se legitima e se explica em face da necessidade de serem criadas garantias especiais de firmeza e de imparcialidade nos processos aos quais essas pessoas são expostas’". [30]

Convém frisar, portanto, a distinção entre privilégio, que decorre de benefício à pessoa, e prerrogativa, que se alicerça na função ou no cargo que a pessoa exerce ou ocupa. No primeiro, há ofensa ao texto constitucional, no segundo, não.

As hipóteses de foro especial previstas na Constituição Federal estão separadas de acordo com os órgãos constantes na estrutura do Poder Judiciário.

Assim, pela ordem, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, "nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República (art. 102, I, b, CF/88) e "nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente" (art. 102, I, c, CF/88).

Ensina Scarance Fernandes que, para o STF, a competência por prerrogativa de função atinge também crime eleitoral e até mesmo a contravenção penal. [31]

Ao Superior Tribunal de Justiça compete processar e julgar, originariamente, nos termos do art. 105, I, a, da Lei Maior:

"nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais."

Contudo, no que concerne aos crimes eleitorais, o entendimento do próprio STJ é no sentido de que prevalece a competência da Justiça Eleitoral, no particular o Tribunal Superior Eleitoral, para o processo e o julgamento do delito, uma vez tratar-se de órgão jurisdicional especializado para conhecimento da matéria. [32]

Os Tribunais Regionais Federais são competentes para o processo e o julgamento dos "juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade" e dos "membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral" (art. 108, I, a, CF/88) (grifei).

Aos Tribunais Estaduais, compete o julgamento dos prefeitos municipais (art. 29, X, CF/88) e dos juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como dos membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral (art. 96, III, CF/88). Ainda em relação aos Tribunais Estaduais, preceitua o artigo 125 da Carta Magna que aos Estados, observados os preceitos constitucionalmente firmados, incumbe a organização de sua Justiça e que "a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça" (art. 125, §1°, CF/88).

Pelo princípio da simetria, as autoridades estaduais que ocuparem cargos ou exercerem funções equivalentes aos de âmbito federal têm a prerrogativa de ser julgadas por órgão jurisdicional superior que represente o equivalente estadual ao previsto na Lei Maior para os cargos federais. É de se atentar, porém, que o STJ já decidiu ser inconstitucional dispositivo constante em Constituição Estadual que institua foro por prerrogativa de função não previsto na Constituição Federal ou em lei federal.

Scarance Fernandes, em referência à Justiça Eleitoral, afirma que "no tocante ao processo e julgamento de autoridades sujeitas, em relação ao crime comum, ao Tribunal de Justiça Estadual, tanto o Supremo Tribunal Federal como o Superior Tribunal de Justiça atribuem a competência ao Tribunal Regional Eleitoral". [33]

Urge salientar que nos casos de competência por prerrogativa de função o local onde o delito foi cometido não é relevante, sendo sempre ressalvada a competência originária dos órgãos jurisdicionais. Infere-se, portanto, que se um Promotor de Justiça do Distrito Federal, por exemplo, for acusado de um crime praticado em São Paulo, deverá ser processado e julgado perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, e não perante o do locus delicti commissi. [34] De igual forma, se um Procurador da República ou um Juiz Federal, em exercício no TRF da 1ª Região, cometer um crime em São Paulo, não responderá perante o TRF da 3ª Região, mas perante o de 1ª Região, com sede e jurisdição em Brasília.

Com bastante proficiência, Mirabete ressalta que "os dispositivos constitucionais sobre prerrogativa de função, alteraram, evidentemente, os artigos 86 e 87 do Código de Processo Penal com relação à competência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação (de Justiça, de Alçada), além de acrescentar hipóteses de competência de nova Corte, o Superior Tribunal de Justiça". [35]

Interesse notar que a competência por prerrogativa de função, quando for o caso de concurso de pessoas, abrangerá também, ex vi arts. 77, I, e 78, III, do CPP, pessoas não gozam de foro especial. Contudo, consoante a jurisprudência, se a denúncia contra a pessoa que desfruta do foro especial for rejeitada, os demais denunciados, não beneficiados originalmente pela prerrogativa de função, serão processados e julgados segundo as regras gerais de competência, ou seja, o julgamento retorna para o primeiro grau de jurisdição (RT 740/643).

O artigo 85 do Código de Processo Penal prevê nova situação em que se assegura o foro especial por prerrogativa de função a pessoas que originariamente dele não poderiam se beneficiar. Vejamos: "Nos processos por crime contra a honra, em que forem querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação, àquele ou a estes caberá o julgamento, quando oposta e admitida a exceção da verdade".

Magalhães Noronha, citado por Mirabete, leciona que a razão para tanto é clara. In verbis:

"Movida ação por pessoa que goza de foro especial contra o autor da ofensa à sua honra, é óbvio que o processo deve ocorrer perante a Justiça comum, mas, oposta a exceptio veritatis, isto é, propondo-se o acusado demonstrar a verdade do fato que imputou, fato que acarretará conseqüências nocivas e prejudiciais e, eventualmente, até ação penal contra o ofendido, tudo aconselha a que o processo em curso, com a exceção de verdade, seja apreciado pelo Juízo competente conforme o foro por prerrogativa de função. Este que é competente para o processo do querelante é também para apreciar a exceção da verdade oposta contra ele. Dá-se agora, prorrogação e competência do foro especial". [36]

Mirabete bem lembra que, dentre os crimes contra a honra previstos na legislação penal, o artigo 85 do CPP somente é aplicável para os casos de calúnia, pois na injúria não se admite a exceção de verdade e na difamação, ainda que admitida a exceptio veritatis, não há imputação de fato definido como crime, mas apenas de fato ofensivo à reputação.

Nos casos de crime doloso contra a vida, em que o réu gozar de foro especial por prerrogativa, boa parte da doutrina entende que a competência para o processo e o julgamento será do foro especial e não do Tribunal do Júri, desde que a prerrogativa de função não esteja prevista em Constituição Estadual, em lei processual ou em normas de organização judiciária. Nesses casos, deverá prevalecer a norma constitucional. [37]

Outros, porém, consideram o Tribunal do Júri como uma garantia individual, posto que inserido no rol do artigo 5° da Constituição Federal. Nesse diapasão, elencado o sobredito instituto como cláusula pétrea, deve sempre sobrepor-se ao foro especial por prerrogativa de função. [38]

Como a competência por prerrogativa de função relaciona-se diretamente ao cargo ou função que a pessoa ocupe ou exerça, parece óbvio afirmar que a mesma não se estende aos delitos perpetrados após a cessação definitiva do exercício funcional, conforme apregoa a Súmula 451 do STF. [39] Nesse sentido, RTJ 75/420; RT 412/113, 499/302, 506/318, 534/380; RJTJESP 42/294 e outros.


A SÚMULA 394 DO STF E A LEI N° 10.628/2002

A Súmula 394 do STF enunciava que "cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício".

Depois de vigorar por mais de 35 (trinta e cinco) anos, a sobredita Súmula foi cancelada, por unanimidade, em sessão plenária do STF, realizada em virtude do julgamento de uma Questão de Ordem suscitada no Inquérito 687-SP, iniciado em 30/04/1997, em que figurava como indiciado um ex-deputado federal.

Nossa Corte Suprema impingiu interpretação restritiva aos dispositivos constitucionais e, por via oblíqua, infraconstitucionais no que tange à competência por prerrogativa de função, entendendo que desta somente podem se beneficiar aqueles que se encontrarem desempenhando cargo ou mandato que lhe garanta o foro especial.

Durante o julgamento do STF, o Ministro Sidney Sanches advertiu que "a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo". Continuou o insigne magistrado esclarecendo que "as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos".

Restou sedimentado, então, no STF, que deixando o cargo definitivamente, seja qual for o motivo, seu ex-titular não terá direito a processo e julgamento em órgão jurisdicional distinto daquele que teria qualquer um do povo.

Ocorre que, não obstante o pacífico entendimento da Suprema Corte, no dia 24 de dezembro de 2002, véspera de natal, foi promulgada a Lei n° 10.628, que alterou o artigo 84 do Código de Processo Penal, dando nova redação ao caput e acrescendo-lhe dois parágrafos. Vejamos a novo dispositivo legal:

"Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

§1°. A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§2°. A ação de improbidade administrativa, de que trata a Lei n. 8.249, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou a autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no §1°."

Esse novo texto incorporado à legislação processual penal, trouxe novamente à discussão a hipótese de manutenção do foro especial por prerrogativa de função em caso de definitiva cessação do exercício funcional que o alicerçava, questão, frise-se, já pacificada pelo STF, como já estudado.

O caput do artigo 84 teve poucas alterações. Na verdade, ocorreu apenas o aperfeiçoamento da redação, substituindo-se a expressão "Tribunais de Apelação" por "Tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal", e acrescendo-se o STJ no rol dos tribunais competentes para o processo e julgamento dos delitos sujeitos a foro especial por prerrogativa de função.

O §1°, ora inserido, contrariando entendimento do STF, conferiu foro especial aos agentes, mesmo após a cessação de sua função pública, em relação às condutas inerentes aos atos administrativos praticados quando da vigência do exercício funcional. Já o §2°, também novo, estendeu o foro por prerrogativa de função, também após o término do exercício da função pública, aos acusados de atos de improbidade administrativa – definidos na Lei n° 8.429/92 – por atos praticados durante sua gestão.

A inconstitucionalidade de tais dispositivos, face ao princípio da isonomia, consagrado no caput do art. 5° da CF/88, parece evidente. Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, referindo-se às novas regras quando ainda figuravam como Projeto de Lei n° 6.295/02, já advertia que "embora seja escandalosamente inconstitucional esse projeto foi estranhamente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, onde se supõe que haja conhecedores da Constituição". [40]

Salta aos olhos que o novo regramento deixa de proteger o cargo para, em afronta ao princípio constitucional da igualdade, beneficiar pessoas. Ora, se se trata de ex-funcionário, de ex-ocupante de cargo público, não é possível a manutenção do foro especial de prerrogativa de foro para estes, pois não estão mais investidos no cargo público e nem exercendo função pública relevante que justifique um tratamento diferenciado em relação aos demais cidadãos. Não há mais, no particular, o interesse público que legitima o foro especial, pois os ex-agentes públicos, ao cessar o exercício de sua função pública, voltam a ser cidadãos comuns e, por isso, devem ser submetidos a processo e julgamento sem privilégios, respeitando-se, assim, o princípio de que todos são iguais perante a lei.

Corroborando esse posicionamento, Luiz Flávio Gomes assevera que "esse foro especial só tem sentido, portanto, enquanto o autor do crime está no exercício da função pública. Cessado tal exercício (não importa o motivo: fim do mandato, perda do cargo, exoneração, renúncia etc.), perde todo o sentido o foro funcional, que se transformaria (em caso contrário) em odioso privilégio pessoal, que não condiz com a vida republicana ou com o Estado Democrático de Direito". [41]

Verifica-se, então, que o legislador não criou uma prerrogativa, mas sim um privilégio, que visa a beneficiar a pessoa do ex-ocupante do cargo público, e não o cargo em si. Nesse ínterim, não há, dentro do ordenamento jurídico pátrio, qualquer razoabilidade que justifique o privilégio em questão.

Quanto ao §2°, ora acrescentado, também padece de vício de inconstitucionalidade, pois o legislador, equivocadamente, por meio de lei infraconstitucional, ampliou o rol de competências originárias constitucionais do STF, do STJ, dos TRFs e, em alguns casos, dos TJs. Criou novas regras, portanto, à competência dos tribunais superiores, a qual é fixada através das normas previstas na Constituição Federal.

Percebe-se, destarte, que as alterações trazidas pela Lei 10.628/02 consubstanciam-se em "um duro golpe contra os princípios republicanos de igualdade; fomento à criminalidade política, à corrupção, e é sabido que muitos têm se valido de prerrogativas asseguradas pelas funções para delinqüir impunemente". [42] Ademais, "a Lei 10.628/02 contraria a Constituição Federal; todo e qualquer senso de Justiça; princípios constitucionais basilares; o interesse social, e não corresponde, em absoluto, com as idéias e ideais da sociedade brasileira contemporânea, representando, sem sobra de dúvidas, ranço primitivo e ditatorial". [43]

Por essa razão, em 27.12.2002, foi ajuizada ADIN pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, pleiteando-se a declaração de inconstitucionalidade dos novos §§1° e 2° do artigo 84 do CPP. Exercendo interinamente a Presidência do STF, o Ministro Ilmar Galvão negou liminar requerida alegando por estar configurado o periculum in mora suscitado pela CONAMP. O julgamento do mérito, até a presente data, encontra-se pendente.


Notas

1 LIEBMAN apud CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2003, p. 230.

2 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 10ª ed., 2000. p. 167.

3 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 230.

4 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 3ª ed., 2002. p. 135.

5 Ibidem.

6 Ibidem.

7 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 231.

8 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol 2. São Paulo: Saraiva, 25ª ed., 2003. p. 76.

9 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 170.

10 Ibidem.

11 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 219.

12 Idem. p. 221.

13 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 168.

14 Ibidem.

15 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. pp. 220-1.

16 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 238.

17 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 173.

18 Ibidem.

19 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 95.

20 Idem. p. 95.

21 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 173.

22 Idem. p. 174.

23 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001. p. 53.

24 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 111.

25 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 175.

26 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 112.

27 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 186.

28 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 129.

29 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 173.

30 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. pp. 129-31.

31 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 141.

32 Representação 19/PE – Rel. Min. Assis Toledo, Corte Especial, RSTJ, v. 31, p. 473-96.

33 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 156.

34 Idem. p. 166.

35 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 187.

36 NORONHA, Magalhães. Apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 189.

37 "Quando alguém, em face de sua função, deve ser submetido a julgamento originário por Tribunal e essa regra é da Constituição Federal, por ser especial, prevalece sobre a regra geral de competência do júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Não contudo, se a competência por prerrogativa de função estiver estabelecida em Constituição Estadual" (FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 175); "Gozando o autor de crime doloso contra a vida de foro por prerrogativa de função estabelecido na Constituição Federal, a competência para processá-lo e julgá-lo será deste foro especial e não do Júri, já que a própria Carta Magna estabelece a exceção à competência do Tribunal Popular. Entretanto, se o foro especial for estabelecido pela Constituição estadual, por lei processual ou de organização judiciária, o autor de crime doloso contra a vida deve ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri uma vez que tais preceitos jurídicos não podem excluir a competência do Juízo instituído pela Carta Magna" (MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. pp. 188-9).

38 Nesse sentido: Dr. Marco Antônio Marques da Silva, juiz do TJSP e livre-docente na PUC/SP.

39 "A competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional" (Súmula 451, STF).

40 DALLARI, Dalmo de Abreu. Privilégios antidemocráticos. CONAMP em Revista, out/dez de 2002, n°1, 1ª ed, p. 26.

41 GOMES, Luis Flávio. Reformas penais: foro por prerrogativa de função. http://www.ibccrim.org.br. 24.12.2002.

42 MARCÃO, Renato Flávio. Foro especial por prerrogativa de função: o novo art. 84 do código de processo penal. https://jus.com.br/artigos/3861/foro-especial-por-prerrogativa-de-funcao. 01.2003.

43 Ibidem.


Autor

  • Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia

    Graduado em Ciências da Computação pela Universidade Católica de Brasília (1995). Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2002). Pós-graduado em Direito Eletrônico e Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados (2008). Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade do Paraná. Delegado de Polícia Federal. Chefe do Núcleo de Repressão ao Crimes Cibernéticos da Polícia Federal do Paraná, com ênfase investigativa para os delitos de ódio e de pornografia infantojuvenil, mormente praticados pela Internet. Membro do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI), do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE) e do High Technology Crime Investigation Association (HTCIA).

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GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira. Critérios para fixação de competência penal sob o prisma constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 277, 10 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4996. Acesso em: 18 abr. 2024.