Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/5027
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A constitucionalidade da política de quotas para negros nas universidades

A constitucionalidade da política de quotas para negros nas universidades

Publicado em . Elaborado em .

SUMÁRIO: 1.Da situação dos negros 2.Igualdade Material ou de Resultados e Formal ou Procedimental 2.1Ações Afirmativas 2.2 Do sujeito de direitos 3.Dos argumentos contrários e de suas respectivas improcedências 4.Amparo normativo 4.1As Quotas e os Direitos Humanos 4.2Considerações sobre a implantação da política de quotas 5.Outros argumentos 6. Conclusões 7.Referências

Abstract: The present study it has as objective to demonstrate the constitutionality of the politics of quotas for blacks in the universities, from the constitutional reading of the principle of the equality, of the international treated to human rights and a series of other devices constitutional and infraconstitutional, which not only support as also they stimulate the adoption of the measure. Remembering, also, of the historical debt of the Brazilian State with the blacks and of the necessity of the urgent enrollment of all the society in the solution of the problem of the racial relations in Brazil.

Resumo: O presente estudo tem como objetivo demonstrar a constitucionalidade da política de quotas para negros nas universidades, a partir da leitura constitucional do princípio da igualdade, dos tratados internacionais de direitos humanos e de uma série de outros dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, os quais não só amparam como também incentivam a adoção da medida. Lembrando, também, da dívida histórica do Estado brasileiro com os negros e da necessidade do urgente engajamento de toda a sociedade na equalização do problema das relações raciais no Brasil.


1. Da situação dos negros

Na primeira década do século 21, a população afrodescendente encontra-se alijada, como historicamente esteve, dos mais embrionários processos de inclusão social, a exemplo de escolas primárias e do mercado de trabalho. Em contrapartida, os estudos e pesquisas que objetivam diagnosticar a situação dos afrodescendentes, inclusive de órgãos governamentais, são unânimes em apontar a presença desses setores em grotões de pobreza com números vergonhosamente alarmantes. Temos, por exemplo, na síntese de indicadores sociais elaborada pelo IBGE em 20021, que a população parda e negra ocupada – pois sabe-se que o desemprego também atinge mais drasticamente a população negra - percebe rendimentos mensais médios em torno de 50% do que os rendimentos percebidos pelos brancos. Chegando, em Salvador, uma das capitais mais negras do país, senão a mais negra, à risível situação de um negro auferir rendimentos, em média, de R$ 421,00 ao passo que os brancos percebem, em média, R$ 1233,00.

Tais dados concorrem com a inclusão da discriminação racial na agenda de discussões da pseudodemocracia brasileira para a desconstrução de mitos de democracia racial, a partir do reconhecimento da discriminação existente nas relações sociais brasileiras, que por seu turno deve avançar para a superação da mesma como forma de implantação da igualdade e da instauração da saúde democrática.

Após o estabelecimento dos primeiros engenhos de açúcar, estimativamente, não muito antes de 1549 e não muito depois de 15502, deu-se início ao ultraje e ao vilipêndio dos negros, com a reificação e escravização de homens e mulheres que passaram a formar a força motriz do Brasil, passando a serem tratados como bem semovente pelas Ordenações Filipinas, o tratamento dispensado ao negro assumiu novas roupagens, mas nunca deixou de carregar no seu bojo grandes doses de perversidade, até desembocar, no início do século passado, em teses epistemologicamente insustentáveis, apoiadas em intelectuais como Buffon e De Pawn, os quais inventaram teses absurdas.

Uma dessas teses, defendida no I Congresso Internacional de Raças, realizado em julho de 1911 – "Sur les métis au Brésil" afirmava "o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução"(Lacerda, 1911).3 Tais aberrações já foram superadas, ou pelo menos estão sendo, como pode-se inferir da leitura da Declaração da Conferência contra Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas realizada em Durban:

"Qualquer doutrina de superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e deve ser rejeitada juntamente com as teorias que tentam determinar a existência de raças humanas distintas".4

O racismo, o preconceito, a discriminação racial carecem de medidas urgentes, heterodoxas ou não, nos mais variados campos da atividade humana, como expediente de extirpação dessas chagas da sociedade, posto que são verdadeiros óbices a uma questão prioritária no processo democrático: a igualdade. Dentre tais medidas, vislumbramos a reformulação dos conteúdos de livro didáticos que devem contar mais do que conta a historiografia oficial, fomento a pesquisas que informem o papel de entidades, líderes e lendas negras no imaginário e na vida das populações associadas com a valorização de uma cultura que embora muito presente em nosso país encontra-se marginalizada, como foi com o Código Penal que criminalizou a capoeira. No seio dessas medidas temos as chamadas ações afirmativas, que por seu turno, tem como espécie a política de cotas nas universidades objeto do presente trabalho.


2. Igualdade Material ou de Resultados e Formal ou Procedimental

Os indivíduos humanos, como membros de uma mesma categoria que são, reclamam tratamento igual. Assim, sempre que o tratamento for desigual os desfavorecidos necessitarão de políticas compensatórias para que todos possam ter a mesma coisa, ou seja, as mesmas condições de acesso a oportunidades de desenvolvimento.

O princípio da igualdade é um velho conhecido da humanidade o qual remonta aos tempos de Aristóteles, muito embora nem sempre vivenciamos o mesmo. Foi somente no Século das Luzes que houve uma radicalização do mesmo e a decisão política de se colocar

ele como sustentáculo da sociedade liberal burguesa.

O constitucionalismo clássico pautado em Montesquieu, Locke e Rousseau prevê a necessidade do Estado assegurar o "process regarding quality" e "procedural due process of law", uma vez que "a sociedade os faz perdê-la (a igualdade), e eles não se tornam de novo iguais senão através das leis"5. O Brasil, na ordem constitucional vigente, encontra-se em estágio mais avançado, a saber, o promocional da igualdade, e não meramente processual.

Quando surge a sociedade de classes, canonizando juridicamente o princípio liberal da igualdade de todos os cidadãos, este contudo não logra nem o pretende a anulação completa das desigualdades. Apenas não a contempla, firmando assim uma igualdade formal que se limita a desconhecer as desigualdades reais.6 Não podemos deixar de reconhecer a veracidade do pensamento de Machado Neto, posto que as desigualdades originadas no regime combatido pela burguesia reclamavam um combate por meio da proclamação da igualdade, o que, fora de toda dúvida, foi um grande avanço. Entretanto, o Novo Regime não criou mecanismos para obstar o surgimento de desigualdades de natureza diversa daquelas encontradas.

José Afonso da Silva(JAS) preleciona em seu clássico Manual de Direito Constitucional: "O direito de igualdade não tem merecido tantos discursos como a liberdade(...). É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá a liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa."7 Contudo, é chegada a hora de dedicarmos os aludidos discursos, sucedidos, é claro, das necessárias ações acreditando na práxis como critério da verdade e impedindo toda e qualquer decisão ou atitude vocacionada ao sobrestamento do processo de implementação da igualdade positivada no caput do artigo 5º de nossa Constituição Federal advindo da C de 91 e repetido por todas Cs posteriores, que por seu turno deriva da 9ª Emenda a C americana de 1791.

Logo, os imperativos formais de igualdade, para lograrem êxito na sua missão, necessitam de adequação aos critérios materiais ou reais, pois o princípio da igualdade impõe em determinados casos um tratamento diferenciado entre os homens exatamente para estabelecer, no plano do fundamental, a igualdade.8

Até porque, do que adiantaria contarmos com o mais avançado sistema de proteção dos direitos e da igualdade, se esse sistema não comportasse medidas promocionais e não se efetivasse, ou assim, não pudesse ser feita? Ou melhor, não poderíamos denominar tal sistema de avançado. O Estado Social de Direito cuidou de dar um passo a mais na luta pela garantia da igualdade jurídica, desconstruindo a noção dogmática liberal de realização da igualdade apenas com a consideração genérica do indivíduo. A supremacia da Constituição reside no seu processo de reforma, dizia Nelson Sampaio, e, também, acrescento, na sua efetividade.

A proclamação oitocentista de igualdade carrega no seu bojo toda a historicidade do Direito, posto que, aquele momento de evolução do conceito, utilizou-o a fim de aniquilar as desigualdades oriundas do Regime Feudal. Nossas Constituições, desde a Imperial à vigente cuidaram de dar guarida ao princípio da isonomia e combinar o uso das acepções formal e material, posto que restou provado a ineficácia do uso do princípio isonômico apenas em seu caráter proibitivo e, por conseguinte, o novo momento histórico, pós-moderno, incitou a evolução do conceito, sendo que a atual Constituição preocupou-se em amparar as igualdades formal e material.

Princípio este que dirige-se tanto à sociedade - função normativa – quanto aos legisladores – função informativa – e aos operadores do Direito – função interpretativa. Resultando que o legislador está obrigado a tratar os desiguais desigualmente posto que além do caráter principiológico a igualdade no Direito brasileiro assume feições programáticas de redução das desigualdades sociais. Como podemos perceber da leitura do seguinte artigo:

"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;"

Na implementação da igualdade racial existe o risco de cometer inconstitucionalidade de duas maneiras, conforme o ensinamento de JAS. A primeira, outorgando benefício legítimo a pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso, a declaração de inconstitucionalidade deve se dar caso - a - caso pois não se pode retirar direitos conferidos legitimamente, e mais, atentar que pessoas são iguais em um aspecto e diferentes em outro, por exemplo, há pessoas iguais em sua condição econômica – pobre - mas distintas no que tange a critérios de diferenciação racial - negros e não negros - a justificar plenamente, pois, o critério racial de discrimine.

A segunda possibilidade de se cometer inconstitucionalidade é a imposição de uma obrigação, dever, ônus, sanção, ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupo de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permaneceram em condições mais favoráveis.

Nesta segunda hipótese, a declaração de inconstitucionalidade pode ser feita via Ação Declaratória de Inconstitucionalidade – ADIN – ou casuisticamente. Respaldando as quotas temos o fato de não haver igualdade entre um negro pobre e um branco pobre. Frise-se que não se trata de impedir que haja ações afirmativas, ou quotas para tal grupo marginalizado, nem muito menos, impedir a existência de políticas universalistas -colorblind -, mas, tão - só, propor políticas que levem em conta o racismo, posto que a experiência histórica no Brasil e em outros Estados mostra a inépcia de políticas universalistas para o combate do racismo. Ademais, notamos a improcedência da equiparação dos negros e brancos pobres no momento em que a sociedade propõe-se a combater o racismo mais incisivamente, pois a nossa sociedade fundamenta uma série de privilégios na exclusão racial, é o caso do ensino superior, logo, o fundamento do combate aos privilégios que engendra desigualdades também deve ser racial, uma vez que não pretendemos ver a perpetuação de iniquidades.

Ademais, "... toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício em igualdades de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, tratamento igual em situações diferentes e tratamento diferente em situações iguais" (Piovesan) vedada pela nossa Carta Magna não se verifica no caso da política de quotas como podemos asseverar na leitura da Convenção de todas formas de racismo assinada e ratificada pelo Brasil ainda na década de sessenta:

"não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência a manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos".

Conclui-se que a Constituição Federal(CF) não veda Ações Afirmativas(AA) e, logicamente, nem suas espécies, da qual as cotas são uma delas, ao contrário, ela autoriza e motiva as AA como expediente para alcançar um dos objetivos da República Federativa do Brasil. Até porque, "os princípios constitucionais mencionados anteriormente (igualdade e suas acepções) são vocacionados a combater toda e qualquer disfunção social originária de preconceitos e discriminações incrustados no imaginário coletivo, vale dizer, os preconceitos e discriminações de fundo histórico e cultural. Não se trata de princípios de aplicação seletiva, bons para curar certos males, mas inadaptados a remediar outros"9

Assim, aos opositores que fundamentam seu entendimento, ou pelo menos julgam fundamentar, em uma acepção meramente formal do princípio isonômico já esgotada e atrelada a um modelo estatal igualmente esgotado - o modelo liberal burguês de estado neutro e que ignora as desigualdades - a imperatividade do ato de compulsar os manuais e tratados jurídicos que debruçam-se sobre a matéria, além de é claro aguçar a visão e aumentar as horas de observação da sociedade na qual está inserido. Para que não aleguem vício em medida constitucional que não carece sequer de diploma jurídico para ser implementada pelo Poder Público ou pela iniciativa privada. Sobrestando, destarte, a própria realização da concretude da CF mediante medida necessária e que guarda profunda correlação lógica com o fator de discrimine, com o objetivo a que se propõe e com o próprio texto constitucional.

2.1 Ações Afirmativas

As iniciativas governamentais adotadas para solucionar problemas sociais ou econômicos (políticas públicas) e as medidas privadas ou governamentais de caráter compulsório, facultativo ou voluntário que visam a eliminação ou a mitigação de desigualdades históricas contra grupos e suas respectivas conseqüências, notadamente no trabalho e na educação são estratégias para consecução dos fins estatais positivados e ganham o nome de AA.

Fora de qualquer dúvida, a igualdade de oportunidades é um dos pilares de toda e qualquer sociedade democrática. E para atingir tal fim cumpre-nos observar as duas fases da isonomia, a saber a igualização e a desigualização. Felizmente, como nos mostra Marco Aurélio "se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos "construir", "garantir", "erradicar" e "promover" implicam, em si, mudança de óptica, ao denotar "ação"10. Não basta não discriminar como fez a lei 7716 (lei Caó).

Aqui vemos surgir a necessidade da desigualização como instrumento para o alcance da isonomia e, neste momento, a ninguém é facultado o direito de invocar igualizações por acreditar que as desigualizações foram aquelas, pois não se trata de violar princípio de isonomia, ao revés temos a realização dos mesmos, ou seja, a própria realização do direito. A violência com que são tratados os negros nas várias instâncias sociais não será superada pela simples declaração da igualdade ou com a proibição da exclusão, ela só virá se as medidas vierem combinadas com políticas compensatórias que catalisem o processo de igualização de oportunidades como verdadeiro direito dos negros. Martin Luther King já dizia que a lei não fará com que os brancos amem os negros, mas permitirá que não viole seus direitos.

Nesse sentido, forçoso se faz a adoção de AA, as quais surgiram na Inglaterra em 1935 – lei trabalhista – inspirada no centenário conceito legal de equidade (equity)11, e aplicada em outros Estados como Índia (anos 40) e Estados Unidos (anos 50 e 60)12. Já contamos com ações afirmativas para os negros em alguns setores da Administração Pública, além da proposta do, então deputado federal, senador Paulo Paim do Fundo Nacional para o desenvolvimento de AA – FNDAA e o Estatuto da Igualdade Racial. Vale ressaltar que as medidas de inclusão propostas pela sociedade negra organizada, como é do conhecimento daqueles que se informam minimamente, não se esgota com as AA, muito menos com as cotas. São exemplos de AA, também, sistemas de preferências, bônus e incentivos fiscais, que devem ser implementadas consoante as necessidades locais, assim como as quotas.

Convém lembrar, que as AA devem vir acompanhadas de medidas para garantir a permanência dos ingressandos negros na faculdade, pois de nada adiantará permitir o acesso sem possibilitar a subsistência mínima na Academia, e de reformas que (re)pensem a Universidade como um todo, pois o conhecimento é produzido por e para pessoas conforme seus respectivos interesses.

2.2 Do sujeito de direitos

Em Direito, não interessam as indefinições com as quais os conflitos não podem ser dirimidos. Para a implementação de quotas de inserção do negro no ensino superior, forçoso se faz a definição do sujeito de direitos, ou seja, aqueles que poderão ser beneficiados com a política de quotas. Os opositores à medida alegam a inexistência de raças como a Moderna Biologia atesta, bem como, o fato dos estudos mais recentes mostrarem que a origem da espécie humana deu-se no continente africano e, portanto, toda a humanidade é afrodescendente.

Tais afirmações são irrefutáveis se levarmos em conta, exclusivamente a acepção biológica do conceito, contudo, dificilmente, obteremos êxito nessa empreitada posto que, faz décadas que houve o esvaziamento do conteúdo biológico de raças distintas, restando apenas o seu conteúdo sócio-político, esse sim causa geratriz de uma série de efeitos deletérios para as sociedades humanas.

Com efeito, o termo raça é introduzido na literatura mais especializada em inícios do século XIX, por Georges Cuvier, inaugurando a existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos13. Ao lado de Cuvier, haviam outros que pugnavam por teses deterministas e levavam a cabo doutrinas como a frenologia e a antropometria. A partir das quais respaldavam teoricamente movimentos de exclusão e subjugação.

Achavam eles que a desigualdade vinha associada com a inferioridade e, assim, justificavam a hierarquização social.14 Posteriormente, a humanidade desconstruiu tais leituras e, por conseguinte, deslegitimou a hierarquização pautada em doutrinas de hierarquização social. Entretanto, as seqüelas de tais entendimentos hegemônicos, ditos científicos, até menos de um século cuidou de contaminar a sociedade brasileira, que por sua vez, utilizou tais teorias como fundamentação ideológica para a promoção de privilégios e desigualdades.

Agora a população afetada negativamente pelo processo de escravização e por seus sucedâneos no decorrer da história brasileira, cientes de sua identidade e da necessidade de políticas compensatórias das desigualdades raciais, devem figurar como sujeito de direitos da medida afirmativa, haja vista que raça é um conceito sócio – político, criado para legitimar um tipo de exploração característico da primeira fase do capitalismo – a escravidão.

À época utilizou-se uma visão eurocêntrica para poder explicar o processo escravagista. Com a abolição da escravatura, essa justificação ideológica ( a existência e a hierarquização de raças) perdura como forma de justificar as novas relações sociais que então surgiram. Biologicamente, "qualquer doutrina de superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e deve ser rejeitada juntamente com as teorias que tentam determinar a existência de raças humanas distintas". 15

A definição pragmática para implementação da medida está longe de não ter base lógica razoável, pois apesar de ter o seu conteúdo biológico esvaziado o seu teor sócio – político continua a nortear situações vexatórias na vida pública e privada. O sujeito de direitos são os negros oriundos de escola pública, porque concordamos com o entendimento de Joaquim Barbosa e, vamos além, ao preenchermos a lacuna deixada na sua seguinte afirmação: "Entre nós fala-se exclusivamente de sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo, deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal."16. Situação análoga temos com a comunidade judaica, que faz parte da espécie/raça humana, no julgamento do Habeas Corpus 15155/STJ que teve como relator o min. Gilson Dipp, em que teve a comunidade judaica figurando como raça.

"Não há ilegalidade na decisão que ressalta a condenação do paciente por delito contra a comunidade judaica, não se podendo abstrair o racismo de tal comportamento, pois não há que se fazer diferenciação entre as figuras da prática, da incitação ou do induzimento, para fins de configuração do racismo."

O fundamento do privilégio deve ser usado como fundamento do discrimine para combater práticas e doutrinas racistas, e suas conseqüências em todas as suas formas de manifestação, inclusive, na exclusão do ensino superior.

O conceito político de raça não é um dado, mas um construído, por isso os documentos multilaterais, inclusive, A Declaração Universal dos Direitos do Homem adotam conceito amplo de racismo, alcançando a discriminação fulcrada em origem étnica/racial. Assim temos que o elemento raça, que é definido pela sociedade serve para motivar comportamentos pautados na destruição do outro que representa o que a idéia racista quer combater, por exemplo a posição social que alguns supostamente deveriam ocupar.


3. DOS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS E DE SUAS RESPECTIVAS IMPROCEDÊNCIAS

O argumento contrário, aparentemente, mais espinhoso é, sem dúvida, o mérito. Aurélio define como sendo um substantivo masculino que se traduz em merecimento17, nós acrescentamos mérito são a prioris estabelecidos por algo ou por alguém. O "Princípio da Diferença na Igualdade", enunciado no artigo abaixo transcrito, informa a opção constitucional que rege o meio de garantia de acesso ao ensino superior no nosso Ordenamento Jurídico.

"Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;"

Destarte, a educação não será utilizada como forma de legitimação da opressão e da pobreza, pois sabemos que somente mediante a igualização das condições reais de acesso e permanência na escola, algo deveras complicado numa sociedade tão discriminatória, é que poderemos falar verdadeiramente em mérito, conquanto, tão-somente, a oferta de condições adequadas poderemos falar em igualdade de condições para o acesso a escola, nesse caso superior, como enunciado no artigo infra.

"Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;"

Peter Singer, da Universidade de Princeton, coloca de forma didática que a maior inteligência não é passaporte obrigatório às coisas boas a serem desfrutadas pela sociedade. Se uma Universidade elege candidatos de maior inteligência, segundo seus métodos discricionários de aferição como garantido pelo texto constitucional, não é porque estes gozam de Direito de serem admitidos pelo simples fato de terem logrado maior êxito nos exames vestibulares, mas sim, porque, assim a Universidade acredita estar favorecendo os seus interesses. Assim, se a Universidade resolve fomentar a Igualdade Racial e implementa uma política de quotas, os antigos beneficiados não tem nenhum reclamo especial, apenas eram beneficiários da velha política e, agora, com as alterações no posicionamento da Universidade não o são mais.18

Um centro de produção de conhecimento para emancipação das sociedades e de homens não deve contar, nos quadros que exijam qualificação, pessoas desprovidas de conhecimentos elementares. Tal situação não vislumbramos com a política aqui defendida, conquanto a simples previsão de percentual mínimo - ponto de corte - para a admissão nos cursos aniquilará com a possibilidade de uma eventual queda na qualidade dos cursos. Restando àqueles candidatos que não lograram êxito na sua missão de alcançar nota igual ou superior ao ponto de corte, a frustração e a amargura.

Nos dias atuais, as estatísticas dos serviços de seleção das várias Instituições de Ensino Superior (IES) revelam que a busca maciça pelos cursos oferecidos pelas mesmas, faz com que a diferença entre os candidatos aprovados e os não-aprovados seja ínfima, resultando que o ingresso, por exemplo, do primeiro candidato da lista dos não aprovados não implica em desqualificação do corpo discente. Assim, aqueles que ficaram acima do ponto de corte para ingresso farão jus ao uso da política de quotas.

A responsabilidade de superar as desigualdades, e alcançar a democracia, não é só dos negros, mas de toda a sociedade, portanto, cabe a nós formularmos mecanismos institucionais de comprometimento do Estado e da sociedade. Nesse contexto as quotas ganham relevância à medida que são uma resposta concreta para um problema que o Brasil deve superar, se quiser ter os princípios e as normas programáticas constitucionais - construir uma sociedade justa e igualitária – efetivadas, posto que a democracia pressupõe igualdade, ou em última análise, confunde-se com ela.

Ademais, "...ao se atribuir ao próprio negro a responsabilidade pela sua situação, a premissa é racista embora o resultado pareça não ser."19 Ou seja, as práticas segregacionistas foram engendradas por aqueles que agora não querem assumir nenhum ônus no resgate daqueles colocados em situação de vulnerabilidade social, fato este que por sua vez, permitiu aos primeiros gozar dos direitos e garantias oferecidos ao cidadão e mais dos privilégios.

A suposta pressuposição de inferioridade funda-se numa compreensão da sociedade desprovida de capacidade de observação e ignorante frente as últimas pesquisas estatísticas e acadêmicas. As AA não tratam os negros como seres inferiores aos demais grupos étnicos, apenas reconhece o estado de fragilidade engendrado por processos de exclusão racial orientados contra o negro. A subrepresentação dos negros nas várias esferas de reprodução social é que se traduz em vergonhosa situação para a sociedade brasileira.

Qualquer estigmatização dos beneficiados é desmotivada uma vez que os beneficiados não desfrutam de um privilégio. Porque a política de quotas se traduz em um expediente reparatório e não em um meio de imputação de benefício infundado, até porque, seria grave afronta ao princípio da igualdade. Tal argumento pressupõe o gozo de um privilégio indevido por parte dos beneficiados, ao invés, de atentar para o caráter combativo da medida amparada pela CF e afinada com as novas técnicas de inclusão social.

Negros com maior escolaridade serão os únicos beneficiados. A adoção combinada dos critérios social e racial permitirá a não ocorrência desse fenômeno injustificável, porque as AA em educação não excluem nem as políticas universalistas como já foi dito, e muito menos AA em outros setores da atividade humana, como no mercado de trabalho, que por sua vez compensarão os desdobramentos do racismo vocacionados a anular os direitos dos poucos negros mais aquinhoados.

Políticas de quotas, como já foi dito, já vem sendo adotadas com sucesso em mais de duas dezenas de países, não sendo procedente a crítica de ser uma mera cópia americana e, portanto, não seria passível de adoção no Brasil. Além disso, as respostas competentes não apresentam nenhum elemento impeditivo de incorporação por parte daqueles que, em essência, atravessam os mesmos problemas.

Identificamos os Estados Unidos como um país da diáspora africana, onde houve institucionalização da segregação, algo semelhante houve no Brasil, restando aos dois países a via da reparação neste caso, pela política de quotas também. Logo não devemos ignorar as limitações da indução, nem a feliz experiência dos vizinhos do Norte.

A experiência histórica interna (lei do batom) e externa nos mostram a real eficácia da medida, como não poderia deixar de ser, porquanto a inserção de grupos vulneráveis nas instituições públicas e privadas proporcionam maior igualdade, na medida em que asseguram maior possibilidade de participação. A respeito, a Plataforma de Ação de Beijing de 1995 afirma, em seu parágrafo 187, que em alguns países a adoção da ação afirmativa tem garantido a representação de 33,3% (ou mais) de mulheres em cargos da Administração nacional ou local.


4. AMPARO NORMATIVO

O caput do artigo 5º, o qual consagra o Princípio da Igualdade, por si só já justificaria abstratamente a constitucionalidade da política de quotas, todavia percorrendo o texto constitucional encontramos inúmeros outros trechos que dão respaldo à medida em questão, por exemplo uma interpretação teleológica do artigo 1º

"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;"

nos leva a concluir que o constituinte, investido dos poderes outorgados pelo povo pretende um Brasil em que todos possam participar, pois esse é o sentido que deve ser dado a palavra cidadania – participação – no inciso II, além do reconhecimento de valor em si mesmo à pessoa humana no inciso III. Ora tais pretensões carecem de efetivação e as AA são uma alternativa para a concretização da CF.

"Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

II - prevalência dos direitos humanos;

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;"

Ora, o artigo 4º nos informa qual deve ser o comportamento do Brasil, nas relações internacionais e este não deve ser distinto, por lógica, no plano nacional, pois o que serve para os estrangeiros, logicamente serve para os nacionais.

No dever do Estado de assegurar à educação e à profissionalização, encontramos outro dispositivo motivador das AA, sempre que os adolescentes forem sujeitos de direitos, o que não raro acontecem nas nossas universidades.

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."

Vemos, fora de toda dúvida, as AA como excelente instrumento garantidor do pleno exercício dos direitos culturais, do acesso as fontes da cultura nacional e de inserção do negro no ensino superior, posto que séculos de repressão cultural motivada pela crença na superioridade acabou por escamotear a contribuição dada pelos negros no processo de formação nacional. Não obstante, a sobrevivência de diversas manifestações adaptadas ou não a outras formas de reprodução cultural. A inserção do negro consiste numa maneira de abrir as portas de um centro de pesquisas qualificado para emancipação do homem, reconhecimento e redistribuição de papéis. A universidade palco de produção de conhecimento servirá para desconcentrar etnicamente a produção e democratizar a sociedade que, principiologicamente, é plural.

"Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais."

No trecho reservado à saúde temo-la colocada como direito de todos e dever do Estado:

"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,..."

e, na segunda parte, do aludido artigo temos que as mesmas serão garantidas mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e outros agravos. Pois bem, ao longo de aproximadamente dois séculos de existência de Universidades no País vemos as doenças que afetam o contingente populacional negro pouco ou não estudadas, fruto da posição secundária a qual foi relegada o povo negro.

Longe de ser uma panacéia, as quotas constituem a ponta de um iceberg que durante décadas vem submergindo nas vozes do movimento negro, em outras palavras, tal política fazem parte de um conjunto de políticas públicas e ações afirmativas orientadas a reverter a situação de usurpação de direitos em que se encontra o negro e que, no caso em tela permitirá a produção de conhecimento pelos negros para a solução de problemas que secularmente afetam os negros.

Desse modo, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde estará mais próximo, dando ares mais sadios ao nosso jovem, inacabado e não implementado projeto democrático.

Inspirada em fundamentos de justiça compensatória ou distributiva e de equidade. O objetivo revelado na disposição geral do Título VIII - DA ORDEM SOCIAL, que na vigente CF encontra-se separado da ordem econômica, ao contrário da anterior (EC/69), com vistas a enfatizar o valor da Ordem Social, consoante MGFF, - temos uma verdadeira convocação para a reversão de qualquer quadro de exclusão e/ou desigualdade.

"Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais."

Em casos de vedação de acesso a direitos e serviços básicos, em cujo as possibilidades de desenvolvimento humano e, por conseguinte, do exercício da cidadania estejam prejudicados, devemos adotar medidas urgentes, ainda que temporárias como esta, pois, invocando a Carta Cidadã:

"Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."

Como se não bastasse a motivação dada em vários lugares, o texto constitucional demonstra ser engajado na luta pelo combate de distorções sociais, ao carregar no seu próprio corpo AA, como exemplo, no artigo 37 com Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 19, de 04/06/98.

"Art. 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;"

muito embora, não tenha sido feliz ao utilizar a expressão deficiente em detrimento de portador de necessidades especiais, com efeito, era à segunda expressão que queria se referir ao texto, motivando a adoção de políticas promocionais perseguidoras da igualdade e da democracia.

Outros exemplos expressos de AA encontramo-nos nos artigos 24, inciso XIV/ 227, §§ 1º, inciso II e 2º/ 244 e no

"Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;

XXXI –proibição de qualquer discriminação no tocante a salários e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência"

No plano nacional, contamos com inúmeras AA promovidas pelo Poder Público, a exemplo do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Instituo do Rio Branco e do Supremo Tribunal Federal. Além dessas, contamos com as leis, 8213/91, 8666/93, 8112/90 e 9504/97 – que em seu artigo 10º, parágrafo 2º assegura cotas para mulheres na candidatura partidária/lei do batom. Comentando o último diploma jurídico, Joaquim Barbosa Gomes, diz: "... essa política ingressa nos "moeurs politiques" da Nação, uma vez que foi aplicada sem contestação em dois pleitos eleitorais".

4.1 AS QUOTAS E OS DIREITOS HUMANOS

Podemos encarar, também, as políticas compensatórias sobre o prisma da proteção dos direitos fundamentais do homem e do cidadão, que como já vimos está inscrito no título II da nossa Carta Fundamental. Flávia Piovesan nos informa que a segunda fase de proteção de direitos humanos superou a antecedente – igualdade formal – ao enxergar a grave limitação imposta por tal concepção, a qual tratava o indivíduo de forma genérica e abstrata. Destarte, determinadas violações exigem uma resposta específica e diferenciada. Agora a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção deles. 20Numa verdadeira proclamação do direito a desenvolver-se.

Portanto, temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de sermos diferentes quando nossa diferença nos descaracteriza (Boaventura Souza Santos)21, conclusivamente temos que mesmo a análise mais superficial da CF não seria passível de ser feita no sentido de ordenar aos cidadãos que aguarde passivamente a efetividade dos direitos fundamentais assegurados formalmente, pelo contrário põe como objetivo central a igualização das oportunidades, inclusive tais direitos e garantias encontram guarida no núcleo duro da Constituição. Tarefa impostergável, compromisso ético-político para todo país que se pretende democrático, assegurar os direitos humanos de todos.

Para tal mister, cabe perguntarmos: o que são Direitos Humanos?

A definição do que seja "direitos humanos", como explica Flávia Piovesan, aponta para uma pluralidade de significados, da qual, considerando sua historicidade, opta-se pela concepção contemporânea, introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, fundada na universalidade e indivisibilidade desses direitos. Diz-se universal "porque a condição de pessoa há de ser o requisito único para a titularidade de direitos, afastada qualquer outra condição"; e indivisível "porque os direitos civis e políticos hão de ser somados aos direitos sociais, econômicos e culturais, já que não há verdadeira liberdade sem igualdade e nem tampouco há verdadeira igualdade sem liberdade" (Cf. Piovesan, 1999, p. 92).22

A Declaração e Programa da Ação de Viena, de 1993, não deixa dúvidas sobre o assunto em discussão, dispondo no seu parágrafo 5º que:

"Todos os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em configuração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais."

Convém lembrarmos um dos princípios do Direito Penal afinado com a promoção e o respeito aos Direitos Humanos: subsidiariedade. No Brasil, há tempos existe previsão penal para práticas racistas, inicialmente como contravenção (lei Afonso Arinos) e, agora, como crime inafiançável e imprescritível com sede no texto constitucional.

"Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;"

Ou seja, recorreu-se ao Direito Penal ciente que estavam os legisladores da gravidade da situação, entretanto, outra porção maior de agentes públicos e privados não contaram com a mesma sensibilidade, uma vez que esquecidas foram as outras formas legais de combate ao racismo, como as ações afirmativas e a realização efetiva da função das ações civis públicas na defesa dos direitos da comunidade negra.

Dentro de tal seara, encontramos importante instrumento de legitimação das AA. O Direito Internacional dos Direitos Humanos (International Human Rights Law) vem consolidando-se ao longo das últimas décadas como importante instrumento de efetivação dos direitos fundamentais dos indivíduos, acarretando, conseqüentemente, uma série de obrigações aos países signatários dos tratados que proliferam na ordem internacional e ratificados na ordem interna.

O art. 27 da Declaração de Viena fala da impossibilidade de inadimplemento de tratados:

"Uma parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado."

O primado dos tratados internacionais (TI) sobre o Direito interno, verdadeiro princípio de Direito Internacional, não necessitaria ser invocado, uma vez que além dos tratados com os quais o Brasil obrigou-se, a nossa Carta Magna consubstancia uma série de dispositivos, como já mostramos que norteiam o uso da política de quotas na universidade, contudo podemos perceber que a interpretação sistemática do parágrafo 2º do artigo 5º com o parágrafo 1º deixa uma cláusula aberta propiciando aos tratados internacionais gozarem de efeito aditivo.

Adotamos a tese de que os TI de Direitos Humanos não são passíveis de controle de constitucionalidade, posicionamento decorrente de uma forma de entender o Direito que coloca o homem como a pedra angular da existência do mesmo. 23

A CF consagrou no que concerne ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla fonte normativa, sendo uma delas os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Deixando-nos mais aptos a combater violações aos direitos humanos.

O § 2º, do art. 5º:

"Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."(grifo nosso)

reforça e amplia o comprometimento estatal com a defesa dos direitos humanos, neste caso com a previsão da terceira espécie de direitos e garantias individuais, ao lado dos expressos e implícitos, os inscritos nos tratados internacionais de Direitos Humanos.

Embora, o STF venha adotando a teoria da paridade, o que esperamos ver revisto com a nova composição do Tribunal, defendemos que os TI encontram-se em uma posição como se estivessem escritos no próprio Texto Maior, haja vista que os tratados de Direitos Humanos são superiores aos demais tratados, pois formam um universo de princípios não imperativos, chamados de jus cogens com caráter de normas imperativas de Direito Internacional Geral podendo ser modificados apenas por uma norma ulterior de DI geral que trate da mesma matéria.24

Ademais, o art. 1º, art. 5º determina expressamente a adição automática com aplicação imediata dos TI, salvo se houver previsão contrária que comprometa o Estado a legiferar para propiciar o gozo do direito.

"As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata."

Tal adição, convém destacar, tem caráter petrificante, por força da disposição do art. 60, § 4º, inc. IV, e, por conseguinte, insuscetível de Denúncia, que é a forma específica de revogação dos TI. Cabendo Denúncia, apenas, para os tratados que não tenham como objeto os DH.

Destarte, garantimos a sobrevivência de um bloco material mínimo, fruto de uma atividade axiológica constituinte comprometida com direitos e garantias básicos para a sobrevivência com dignidade de todos.

Anedota de péssimo gosto, ou ainda, gracejo com os poderes constituídos. Como pode Norma de hierarquia constitucional, pois essa é a hierarquia de que goza os tratados internacionais autorizam um ato e alguém prontificar-se a questionar, em última análise a constitucionalidade da própria CF que motiva em inúmeros momentos e até possui AA.

4.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMPLANTAÇÃO DA POLÍTICA DE QUOTAS

Não me parece possível afirmar que o aumento da concorrência e, por conseguinte, a dificultação do acesso a universidade dos não negros pobres seria passível de ser inconstitucional, posto que a educação é direito de todos e dever do Estado vem sendo perseguida pela política em estudo, sem, em qualquer momento, propor a não adoção de qualquer outra. Assim, a imputação de direito legítimo aos negros não é passível de ser inconstitucional.

Roberto Martins, consultor da ONU para o assunto, defende a criação de uma comissão composta por antropólogos, membros da sociedade, do movimento negro e da universidade que barrará a tentativa de fraudes, sendo essa uma resposta concreta a uma eventual falha da política de quotas: a auto declaração.

Questiona-se se não há usurpação da competência legiferante da União.

"Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;"

, contudo é posicionamento completamente destituído de respaldo legal, posto que a interpretação literal do artigo supracitado desmoraliza e esvazia o conteúdo jurídico-legal do argumento. O mesmo pode ser concluído da leitura do artigo 24, senão vejamos:

"Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

IX - educação, cultura, ensino e desporto;

§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados suplementar no mesmo sentido do caput

parágrafo terceiro supletiva

Assim, tanto complementarmente como enunciado no § 1º, como suplementarmente como enunciado no § 2º, temos a autorização constitucional da adoção das medidas pelas Assembléias Legislativas Estaduais, como foi feito na Universidade do Estado da Bahia. Dando sentido, também, ao artigo 211em que é previsto o regime de colaboração entre os sistemas de ensino dos entes federados, colaboração orientada, por óbvio, a consecução dos fins do Estado brasileiro, os quais, como já vimos comportam amplamente as quotas.

"Art. 211 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino."


5. OUTROS ARGUMENTOS

A política de quotas virão oxigenar as escleroses sociais e devolver a possibilidade de sonhar àqueles que terão renovadas as expectativas de inclusão com personalidades emblemáticas, sem falar na saída da situação de risco que geralmente se encontra a juventude negra assediada, diuturnamente, por promotores de atividades ilícitas. O líder negro Jesse Jackson no encontro da Rainbow PUSH – People United to Save Humanity falou a respeito, nos seguintes termos: "more cars dealers means less cars stealers"25

As quotas para imigrantes europeus e a lei do boi denotam a falta de dificuldade de convívio da população brasileira com a medida e, ao mesmo tempo, geram uma dívida histórica como compromisso isonômico. Assim como, o Estado se mostrou como meio idôneo para alcançarmos a superação de outros desafios é chegada a hora de superar a situação de ilegítimo cerceamento de vontades.

A razoabilidade trazida no bojo da medida encontra-se afinada com as técnicas promocionais da pós-modernidade, que por sua vez, apontam para o despertar do eterno gigante adormecido. Conquanto a redução da marginalidade de enorme contingente populacional resultará em novos paradigmas para a sociedade, aquecerá a economia e fomentará um projeto de nação amplo e participativo, no qual o Brasil, esperamos, possa, enfim, despontar como potência mundial e oferecer condições dignas para todos os seus filhos.


6. CONCLUSÕES

Os negros, no Brasil, foram vitimizados pela institucionalização de uma série de distorções nas relações sociais, as quais engendraram um quadro de exclusão, e legou profundas seqüelas para gerações futuras. Gerando, assim, um débito do Estado brasileiro com as vítimas das distorções.

A Constituição brasileira abriga, no seu artigo 5º, o Princípio da Igualdade em suas duas acepções, obviamente, material ou de resultados e formal ou procedimental, face a insuficiência da adoção do princípio, apenas, em sua vertente formal que se mostrou incapaz de promover a igualdade na prática limitando-se a reconhecê-la formalmente.

Face a essa constatação, surge a necessidade de criarem-se mecanismos de comprometimento do Estado e da sociedade para a equalização da problemática da exclusão de metade da população brasileira: as AA, dentre elas as quotas. Medidas amparadas e até sediadas no próprio texto constitucional.

Indubitavelmente, os indivíduos fenotipicamente negros devem ser os beneficiários da política, conquanto o racismo se reproduz, no nosso país, matizados nesse tipo de aferição. Nada mais razoável do que aqueles que não são passíveis de serem perseguidos em locais supostamente inacessíveis a eles, não se beneficiarem diretamente da medida.

O mérito são a prioris estabelecidos por uma opção política, a qual pode ser revista, dialeticamente mediante a construção de outros entendimentos e argumentos, os quais devem ser confrontados objetivando alcançarmos a superação e o fim da desinteligência dos discursos.

A adoção de um ponto de corte, assim como é adotado para todos os candidatos aniquilará a possibilidade de queda da qualidade no ensino superior. A política de quotas não se traduz em benefício, mas sim em política compensatória vocacionada ao alcance da igualdade e eliminação de um sem fim de condições vexatórias, as quais os negros foram e são submetidos.

A combinação do critério social com o critério racial, que é menos objetivo, impedirá que negros que já experimentaram alguma mobilidade social beneficiem-se das quotas, posto que o rol de ações afirmativas não esgota-se com quotas, e muito menos com quotas na educação, restando, perfeitamente para esses as outras medidas que, em caráter de urgência urgentíssima, devem ser adotadas.

A experiência histórica do direito interno e comparado nos mostra a eficácia da política de quotas, bem como, o seu potencial para correção de distorções, nesse caso, as provocadas por doutrinas de crença na superioridade racial.

A leitura do texto constitucional revela o amplo respaldo dado à medida, além do seu potencial concretizador de vários dispositivos, não consubstanciando-se em uma panacéia, contudo. Daí podermos deduzir que as políticas universalistas devam continuar sendo adotadas para a equalização de outros problemas, até porque as quotas, em momento algum, foi colocada como sucedâneo natural ou artificial de políticas colorblind, mas sim como o meio idôneo para resolver um problema específico não contemplado por estas.

Uma leitura fulcrada nos Direitos Humanos e, mais especificamente, no Direito Internacional dos Direitos Humanos permite-nos concluir, definitivamente, a constitucionalidade da política de quotas, pois os tratados internacionais de direitos humanos são fontes do sistema constitucional de proteção dos direitos, mediante uma interpretação sistemática dos §§ do art. 5º, uma vez que existem tratados assinado e ratificados pelo Brasil prevendo AA, às mesmas gozam de status constitucional.

Restando a essas, por fim, a atenção necessária na implantação de qualquer política pública ou privada, papel que deve ser desempenhado por todos os setores da sociedade que pretendem vê-la igualitária e democrática.

Portanto, após ter passado pelo controle político de constitucionalidade no Senado Federal (PLS-650), esperamos ver proclamada a constitucionalidade das AA e julgada improcedente a ADIN n.º 2858-8 que questiona a sua legitimidade, bem como, ver a proliferação de medidas neste sentido, promotoras da igualdade e, em última análise, da democracia. Até porque, "O princípio da democracia corrompe-se quando se perde o espírito da igualdade."26

Conclusivamente, a metade da população brasileira reivindica o pleno gozo dos seus direitos fundamentais insculpidos na CF, dentre eles a liberdade, a qual só se estabelecerá com a igualdade, pois enquanto todos não forem cidadãos, ninguém será cidadão.


7. REFERÊNCIAS

1 Jornal do Senado, 16/06/03, p.2

2 TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia, p. 52, São Paulo, EDUFBA/EDUSP.[ano?]

3 SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930, p.11, São Paulo, Editora Cia. Das Letras, [ 1993] .

4 World Conference Against Racism of Durban, pp. 10 e 11.

5 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo, Editora Saraiva, 1994, p. 143.

6 MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia Jurídica. 6. ed. São Paulo, Editora Saraiva, [ 1987] .

7 SILVA, José Afonso da. Manual de Direito Constitucional Positivo, 20. ed., Editora Malheiros, [ 2000] .

8 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Federal de 1988, Editora Malheiros, p. 27.

9 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. O Debate Constitucional sobre as Ações Afirmativas. In: www.mundojurídico.com.br

10 Marco Aurélio. Óptica Constitucional: A igualdade e as Ações Afirmativas. Revista da EMERJ, vol.5, n.º 18. Rio de Janeiro. 2002.

11 SANTOS, Ceres.

12 Jacques d''adesky. In: Humberto Adami, Luiz Silva e Sérgio Abreu. ADIN contra a lei de quotas para negros no vestibular: intervenção de entidades afro-brasileiras como "amicus curiae".

13 SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930, p.47, São Paulo, Editora Cia. Das Letras, [ 1993] .

14 ibid., 57 e ss.

15 World Conference Against Racism of Durban

16 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. O Debate Constitucional sobre as Ações Afirmativas. In: www.mundojuridico.com.br

17 Minidicionário Aurélio.

18 SINGER, Peter. Ética Prática, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.58

19 SILVÉRIO, Roberto. p. 16. [email protected]. Argumentos anti-cotas. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por <[email protected]> em 11 ago. 2003.

20 PIOVESAN, Flávia. II Seminário – O negro na universidade: o direito à inclusão, 2003. Salvador.

21 ibid.

22 MAZZUOLI, Valério. Hierarquia constitucional e incorporação automática dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no Ordenamento Brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Out./Dez., 2000. Brasília, ano 37, n. º 148, p.232.

23 Nesse sentido, "A Constituição de 1988 no § 2 do art. 5º constitucionalizou as normas de direitos humanos consagradas nos tratados. Significando isto que as referidas normas são normas constitucionais, como diz Flávia Piovesan citada acima. Considero esta posição já como um grande avanço. Contudo sou ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada. A nossa posição é a que está consagrada na jurisprudência e tratado internacional europeu de que se deve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano, seja ela interna ou internacional. A tese de Flávia Piovesan tem a grande vantagem de evitar que o Supremo Tribunal Federal venha a julgar a constitucionalidade dos tratados internacionais". (Celso de Albuquerque Mello, O § 2º o art. 5º da Constituição Federal, In: Ricardo Lobo Torres (Org.), Teoria dos Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1999).

24 MAZZUOLI, Valério. Revista do Tribunal de Justiça de Sergipe, pp. 29-31, 2002.

25 The Economist, 18/08/2001. Disponível em: www.theeconomist.com

26 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo, Editora Saraiva, 1994, p. 141.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Arivaldo Santos de. A constitucionalidade da política de quotas para negros nas universidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 268, 1 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5027. Acesso em: 26 abr. 2024.