Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/5031
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A independência do magistrado e o desvio de poder nos atos jurisdicionais

A independência do magistrado e o desvio de poder nos atos jurisdicionais

Publicado em . Elaborado em .

1- Introdução:

O meio jurídico brasileiro já há algum tempo tem assistido debates acerca das súmulas vinculantes. Nota-se, claramente, a existência de duas correntes opostas, uma a favor e outra contra a adoção das referidas súmulas. Os partidários desta segunda tese utilizam como argumento principal a liberdade de convencimento do juiz.

O objetivo do presente trabalho é analisar perante o ordenamento jurídico brasileiro atual os contornos do princípio do livre convencimento do juiz. Procurar-se-á analisar, dentro desse tema, mais especificamente a seguinte questão: pode o magistrado brasileiro, perante o ordenamento jurídico atual, ao fundamentar a sentença, concordar com uma certa tese, mas não respaldá-la devido à existência de jurisprudência dominante contrária à referida tese?

Desde logo se adianta que a resposta à pergunta formulada é "não". Demonstrar-se-ão as razões desta afirmação.


2- Os juízes como agentes públicos:

A doutrina confere às pessoas físicas que atuam em nome do Estado a denominação de agentes públicos. José dos Santos Carvalho Filho assim os conceitua:

"A expressão agentes públicos tem sentido amplo. Significa o conjunto de pessoas, que a qualquer título, exercem uma função pública como prepostos do Estado. Essa função, é mister que se diga, pode ser remunerada ou gratuita, definitiva ou transitória, política ou jurídica. O que é certo é, quando atuam no mundo jurídico, tais agentes estão de alguma forma vinculados ao Poder Público. Com se sabe, o Estado só se faz presente através de pessoas físicas que em seu nome manifestam determinada vontade, e é por isso que essa manifestação volitiva acaba por ser imputada ao próprio Estado. São todas essas pessoas físicas que constituem os agentes públicos." (1)

Esse também é o conceito legal de agente público, de acordo com o art. 2° da lei 8.429/92 que dispõe:

"Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior."

A análise dos conceitos expostos nos permite concluir que os integrantes do Poder Judiciário estão contidos dentro da categoria dos agentes públicos [2].

Essa constatação é bastante importante, pois conforme assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, "a noção de agente público não é construção sistemática de caráter meramente acadêmico, mas tem repercussão no ordenamento jurídico positivo" [3]. É que a inclusão dos membros do Poder Judiciário dentro da categoria dos agentes públicos implica submetê-los a um regime jurídico específico, que muito difere do regime aplicável aos demais sujeitos de direito.

Faz-se essa afirmação porque os agentes públicos exercem função. Esse termo, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello designa "um tipo de situação jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas no interesse de outrem, sendo que, este sujeito - o obrigado- para desincumbir-se de tal dever, necessita manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio que está a seu cargo prover. Daí, uma distinção clara entre a função e a faculdade ou o direito que alguém exercita em seu prol. Na função o sujeito exercita um poder, porém o faz em proveito alheio, e o exercita não porque acaso queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever" [4].

Não há, portanto, autonomia da vontade por ocasião do exercício da função. A esse respeito Celso Antônio Bandeira de Mello afirma o seguinte:

"Onde há função, pelo contrário, não há autonomia da vontade, nem a liberdade em que se expressa, nem a autodeterminação da finalidade a ser buscada, nem a procura de interesses próprios, pessoais. Há adscrição a uma finalidade previamente estabelecida e, no caso de função pública, há submissão da vontade ao escopo pré-traçado na Constituição ou na lei e há o dever de bem curar um interesse alheio que, no caso, é o interesse público; vale dizer, da coletividade como um todo e não da entidade governamental em si mesma considerada" (5).

Há uma razão bastante clara para isso. É que "o eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever" [6]. É que o agente público exerce competência. Carlos Ari Sundfeld assim conceitua competência:

"A expressão competência é usada no Direito com intenção muito definida. Significa-se, com ela, o poder conferido pelo ordenamento, cujo exercício só é lícito se realizado: a) pelo sujeito previsto; b) sobre o território sob sua jurisdição; c) em relação às matérias indicadas na norma; d) no momento adequado; e) à vista da ocorrência dos fatos indicados na norma; e, especialmente f) para atingir a finalidade que levou à outorga do poder. Em outras palavras, a competência é um poder intensamente condicionado" (7).

Celso Antônio Bandeira de Mello, complementa a noção de Carlos Ari Sundfeld acrescentando que as competências são:

"a) de exercício obrigatório para os órgãos e agentes públicos. Vale dizer: exercitá-las não é questão entregue à livre decisão de quem as titularize. Não está em pauta um problema "pessoal" do sujeito, ao qual ele possa dar a solução que mais lhe apraz. Está sotoposto ao dever jurídico de atender à finalidade legal e, pois, de deflagrar os poderes requeridos para tanto sempre que presentes os pressupostos de seu desencadeamento;

b) irrenunciáveis, significando isto que seu titular não pode abrir mão delas enquanto as titularizar;

c) intransferíveis, vale dizer, não podem ser objeto de transação, de tal sorte que descaberia repassá-las a outrem, cabendo, tão-somente, nos casos previstos em lei, delegação de seu exercício, sem que o delegante, portanto, perca, com isto, a possibilidade de retomar-lhes o exercício, retirando-o do delegado;

d) imodificáveis pela vontade do próprio titular, o qual, pois, não pode dilatá-las ou restringi-las, pois sua compostura é a que decorre de lei. A lei pode, contudo, admitir hipóteses de avocação. Esta é a episódica absorção, pelo superior, de parte da competência de um subordinado, ainda assim restrita a determinada matéria e somente nos casos previstos em lei;

e) imprescritíveis, isto é, inocorrendo hipóteses de sua utilização, não importa por quanto tempo, nem por isto deixarão de persistir existindo" [8].

Verifica-se, assim, que os agentes públicos recebem certos poderes para exercer certos deveres e que são extremamente condicionados no exercício de suas atividades. Os magistrados, como integrantes dessa categoria, no exercício de suas funções, também se submetem às restrições trazidas pela regra que lhes atribui competência. Isso significa dizer que os juizes não têm o direito de julgar, mas sim competência para fazê-lo e somente podem exercitar sua atividade nos estritos limites estabelecidos pela lei.


3- A função jurisdicional e a independência dos magistrados:

Remonta a Monstequieu a separação das funções estatais em três atividades básicas: a executiva, a legislativa e a judicial [9]. Todas essas três funções têm os seus contornos traçados pelo ordenamento jurídico. É assim que tanto o administrador, quanto o legislador e o magistrado submetem-se às leis. A submissão, no entanto, é maior ou menor de acordo com a atividade exercida [10].

O administrador tem a submissão extrema, pois a ele somente é dado atuar de acordo com a estrita legalidade. O legislador, por sua vez, possui um âmbito maior de liberdade, já que a este é dado inovar originariamente o ordenamento jurídico, podendo até mesmo alterar as leis e ficando submetido apenas à Constituição. Ao magistrado é dado o poder de dizer em instância final qual o conteúdo de uma certa lei e de averiguar se esta é constitucional. Isso lhe confere também uma maior liberdade.

Essa liberdade, contudo, é limitada, pois conforme já se afirmou antes, os agentes públicos exercem função [11] . É que o Estado, ao assumir para si o exercício dessas funções, assumiu também o ônus de desempenhá-las a contento e de acordo com o interesse da coletividade.

Em relação ao caso específico da função jurisdicional, pode-se dizer que a substituição da justiça privada por uma justiça oficial trouxe para o Estado o dever de definir o direito aplicável ao caso concreto e de aplicá-lo coativamente se necessário [12]. Há um "um poder-dever de prestar a tutela jurisdicional a todo cidadão que tenha uma pretensão resistida por outrem, inclusive por parte de algum agente do próprio Poder Público" [13].

O modo de garantir o correto exercício desse poder-dever é assegurar a independência dos magistrados no exercício de suas funções [14]. Não há no contexto de um Estado Democrático de Direito quem sustente que a magistratura não necessite de independência para exercer o seu mister [15]. A existência de uma concordância teórica quanto a esse tema não impede um certo distanciamento entre a teoria e a prática. Dalmo de Abreu Dallari aponta vários obstáculos à independência do Poder Judiciário e elenca como um deles a postura da própria magistratura. Afirma o referido autor o seguinte:

"Entre os inimigos da independência da magistratura estão os próprios magistrados que, por ações e omissões, renunciam à sua independência. Isso tem ocorrido de muitas formas, de modo claro ou sob a invocação de argumentos aparentemente razoáveis, chegando em certos casos a adquirir conotações de verdadeira cumplicidade em iniciativas contra a magistratura." (16)

Mais adiante, o mesmo autor aponta casos em que a própria magistratura renuncia à sua independência. Afirma o referido autor:

"Há renúncia explícita à independência quando o magistrado pratica atos judiciais acolhendo e aplicando regras legais ou ordens de autoridades manifestamentes inconstitucionais ou ilegais, alegando que contra a força não há resistência possível e que seria quixotesco proferir decisões que não terão eficácia, porque os poderosos do dia não permitirão. Com essa colaboração dos juízes, as autoridades arbitrárias são poupadas do trabalho de negar cumprimento à decisão de um tribunal e do desgaste que isso, certamente, acarretaria.

Foi desse modo que a magistratura alemã acobertou as violências do nazismo, que possivelmente não teriam tido curso tão fácil se os juízes tivessem resistido às primeiras investidas inconstitucionais contra os opositores do governo e as instituições democráticas. Foi assim também que as magistraturas da América Latina deram apoio às atrocidades e à corrupção praticadas pelas ditaduras militares que tomaram o poder a partir da década de sessenta. Os desaparecidos, os assassinados em cárceres políticos, os torturados, os seqüestrados, os presos arbitrariamente, os que tiveram invadido seu domicílio, os que se exilaram na iminência de serem assassinados ou presos por motivos políticos, os banidos, os expulsos ilegalmente de seus cargos e de suas funções públicas, as vítimas das muitas violências não existiriam ou seriam um número muito menor se a magistratura, por muitos de seus membros, tivesse resistido, como alguns resistiram.

A magistratura brasileira que durante aquele período ajudou agredir a Constituição, dando precedência aos atos institucionais, aos estados de exceção e às razões de segurança nacional, submetendo-se docilmente aos agentes do arbítrio e mantendo com eles convivência amistosa, renunciou à sua independência e foi cúmplice na prática de injustiças. Essa mesma renúncia e essa mesma cumplicidade estão presentes quando, livre da coação militar, a magistratura admite ‘inconstitucionalidades convenientes’, sob pretexto de evitar conflitos sociais ou de ser necessária uma regulamentação para o uso de direitos claramente assegurados pela Constituição ou, ainda, pelo cuidado de não criar dificuldades para o governo. Dobrando-se às conveniências dos economicamente fortes ou dos governantes, a magistratura é, uma vez mais, inimiga de sua independência." [17]

Ocorre que a independência não pode ser renunciada. Faz-se essa afirmação com base nas considerações dantes expostas, de que os magistrados exercem função. Procurando sintetizar os ensinamentos já transcritos sobre o regime jurídico dos agentes públicos e aplicando-os aos magistrados, pode-se afirmar o seguinte:

a-) o ordenamento jurídico confere aos membros do poder judiciário o dever-poder de aplicar a lei ao caso concreto solucionando definitivamente certos litígios;

b-) para que possa bem desempenhar esse objetivo, o ordenamento jurídico confere aos magistrados certas prerrogativas, dentre as quais se insere à independência;

c-) essas prerrogativas não podem ser renunciadas, porque os juízes não possuem o direito subjetivo de julgar, mas sim competência para tanto;

d-) o conjunto de deveres e poderes conferidos aos magistrados pela regra de competência é irrenunciável.

Essa é a razão pela qual Dalmo de Abreu Dallari afirma que "a rigor, pode-se afirmar que os juízes têm a obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações das injustiças" [18].


4- O princípio do livre convencimento e a independência do poder judiciário

O ordenamento jurídico brasileiro, como forma de assegurar a independência do julgador por ocasião da elaboração de suas decisões, consagrou o princípio do livre convencimento motivado.

É assim que o art. 131 do CPC dispôs:

"Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não legados pelas partes; mas deverá indicar na, sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento"

De acordo com o referido dispositivo o juiz tem liberdade ao apreciar a prova, mas deve motivar suas decisões demonstrando as razões do juízo de valor que emite por ocasião da sentença. É que "a liberdade judicial tem limites. Não se pode admitir discricionariedade e/ou arbitrariedade, como no exemplo do juiz de Rebelais, que decidia jogando dados" [19]. "O juiz só decide com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais (CPC, arts. 131 e 436; CPP, arts. 157 e 182)".

Essa liberdade de convicção, porém, não equivale à sua formação arbitrária: o convencimento deve ser motivado (Const., art. 93, inc. IX; CPP, art. 381, inc. 111; CPC, arts. 131, 165 e 458, inc. II), não podendo o juiz desprezar as regras legais porventura existentes (CPC, art. 334, inc. IV; CPP, arts. 158 e 167) e as máximas de experiência (CPC, art. 335)" [20].

Ao formar o seu juízo de valor acerca dos fatos que lhe são expostos e do direito aplicável ao caso o juiz possui liberdade. Essa liberdade, contudo, é limitada pelo campo semântico que toda norma possui [21]. A liberdade, contudo, cessa a partir do momento em que o magistrado firma o seu convencimento. Formado o juízo de valor, o magistrado não pode dele abdicar, pois determinou diante do caso concreto qual é o sentido da norma por ele interpretada. Perde, com isso, a liberdade que antes possuía, pois já exercitou o mister de decidir de acordo com o livre convencimento. Isso ocorre porque toda decisão judicial envolve um "juízo de subsunção da norma legal ao caso concreto" [22]. É que o poder judiciário "tem por função específica realizar o enlace entre a norma jurídica abstrata e o caso concreto que lhe é submetido a julgamento" [23]. Feito esse enlace, ou seja, realizada a subsunção, não pode o julgador decidir em contrariedade à norma que considera ser aplicável ao caso concreto, pois a livre convicção cederia lugar ao arbítrio.

O julgador que afirma ser aplicável ao caso concreto a norma X, mas em virtude de jurisprudência em sentido contrário aplica a norma Y está a decidir com base no entendimento de um terceiro, que não participa do processo nem possui sobre ele (o julgador) qualquer poder hierárquico. Está a dizer que a norma aplicável ao caso concreto é X, mas que em virtude do que outrem equivocadamente pensa acerca do tema aplicará a norma Y. Ao assim agir renuncia a competência que lhe foi conferida por lei e a atribuí a esse terceiro. É o terceiro quem "involuntariamente" decide o processo e não mais o julgador competente, que age como um pilatos, lavando as próprias mãos. Ocorre que essa atitude é vedada, pois o exercício da competência é irrenunciável.

Nem mesmo a existência de jurisprudência contrária ao entendimento de um magistrado o autoriza a abdicar de sua convicção. Isso ocorre porque julgar de acordo com o livre convencimento não é um poder do magistrado. É, na realidade, um dever.

Esse dever não deixa de existir em virtude do excesso de causas em trâmite no Poder Judiciário. Decidir contrariamente à íntima convicção, sob o argumento de que a prolação de decisões contrárias à corrente jurisprudencial dominante apenas acarreta um trabalho desnecessário ao Judiciário, tornando a justiça menos célere é trocar o acessório pelo principal. É colocar a celeridade do processo acima do dever de o juiz proferir decisões justas. É colocar um interesse secundário como preponderante em relação ao interesse primário do Estado [24]. É sobrepor o interesse do próprio Judiciário ao interesse da sociedade. Essa sobreposição é vedada e isso torna as decisões assim proferidas nulas em virtude de desvio de poder.


5- Desvio de poder nos atos judiciais.

O desvio de poder há muito é estudado pelo direito administrativo. Ele consiste em um mau uso da competência. O agente público utiliza sua competência para atingir um fim diverso daquele para o qual ela foi atribuída [25]. É que "cada ato expressivo de uma competência traz insculpido em si um destino correspondente àquela competência. Ora, cada competência só pode ser exercitada para alvejar os fins em vista dos quais foi normativamente instituída; donde, os atos consectários de uma competência não podem ser expedidos senão para atender às finalidades a ela inerentes" [26].

A doutrina comumente menciona duas modalidades de desvio de poder, que assim são sintetizadas por Celso Antônio Bandeira de Mello:

"a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse público. Isto sucede ao pretender usar de seus poderes para prejudicar um inimigo ou para beneficiar a si próprio ou amigo.

b) quando o agente busca uma finalidade – ainda que de interesse público – alheia à "categoria" do ato que utilizou. Deveras, consoante advertiu o preclaro Seabra Fagundes: "Nada importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente lícita. Mesmo moralizada e justa, o ato será inválido por divergir da orientação legal" (27).

Ambas as modalidades mencionadas podem ser encontradas nos atos judiciais. É que, embora seja construída em torno de conceitos de direito administrativo, a teoria do desvio de poder é plenamente aplicável aos atos praticados por todos os poderes. Essa teoria aplica-se aos agentes públicos que exorbitem de suas competências, exercitando os poderes que o ordenamento jurídico lhes confere para atingir fins estranhos aos estabelecidos na regra de competência. Esse também é o entendimento de Caio Tácito ao afirmar que "tanto o desvio de poder legislativo, como o desvio de poder jurisdicional, se podem caracterizar na medida em que o legislador ou o juiz destoem, de forma manifesta, do âmbito de seus poderes que, embora de reconhecida amplitude, não são ilimitados e atendem a fins que lhe são próprios e definidos" [28].

Isso significa dizer que sempre que o fim perseguido em uma decisão judicial for alheio ao interesse público de aplicar a lei ao caso concreto, o ato será viciado.

A hipótese de abdicar do dever de decidir de acordo com o entendimento acerca da norma aplicável ao caso concreto, em virtude da existência de jurisprudência contrária ao entendimento do julgador, enquadra-se na segunda hipótese de desvio de poder mencionada por Celso Antônio Bandeira de Mello. É que o magistrado recebe o dever-poder de decidir os litígios de acordo com a sua consciência e não pode dele abdicar em nome de qualquer outro fim, ainda que esse fim vise a atender em alguma medida o interesse público. A conseqüência prática é que os atos assim praticados serão viciados por desvio de poder.

A simples ocorrência de desvio de poder torna o ato jurisdicional nulo, independentemente de qualquer cominação legal a esse respeito. Sobre a existência de nulidades não previstas expressamente na lei processual trazemos o ensinamento de Humberto Theodoro Júnior:

"Dentro das regras do Código de Processo Civil há nulidades que são expressamente enunciadas por dispositivo da lei (cominadas) e outros que se deduzem do sistema processual, em seu conjunto de princípios fundamentais (não cominadas)" [29].

Mais adiante, o mesmo autor afirma o seguinte:

"Sempre, pois, que estiverem em jogo as condições ou pressupostos da própria prestação jurisdicional, e não apenas o interesse particular da parte, a nulidade será absoluta, ainda que não prevista em lei".

É em nosso entendimento o que ocorre no caso em tela. Decidir em desacordo com a "norma concreta" extraída do cotejo entre a norma abstrata e os fatos, fere os pressupostos da própria prestação jurisdicional.


6- Conclusão

Demonstra-se, assim que o juiz tem o dever de decidir de acordo com a norma que entende ser aplicável ao caso concreto e que, caso não o faça, as decisões por ele proferidas serão nulas.

Poder-se-ia indagar qual a razão para tanto celeuma, eis que para escapar do vício do desvio de poder basta ao magistrado não dar notícia de sua íntima convicção, quando sentenciar em desacordo com ela.

A essa indagação responde-se que o presente trabalho serve no mínimo como um lembrete aos magistrados. Um lembrete feito há muito por Sócrates de que "o juiz não toma assento para dispensar o favor da justiça, mas para julgar; ele não jurou favorecer a quem bem lhe pareça, mas julgar segundo as leis" [30]. Uma lembrança sobre o correto exercício da função de julgar, que de acordo com Carlos Maximiliano exige "são e ardente sentir, grandeza d’alma, tato, simpatia" [31]. Ensinava ainda o mesmo mestre que a ação inovadora da jurisprudência sempre se faz sentir nos órgãos julgadores inferiores, pois "vêem estes de mais perto os interesses e os desejos dos que recorrem à justiça: uma jurisdição demasiado elevada não é apta a perceber rápida e nitidamente a corrente das realidades sociais. A nova lei vem de cima; as boas jurisprudências fazem-se embaixo" [32].

Carlos Maximiliano afirmava, ainda que "os julgados constituem bons auxiliares de exegese, quando manuseados criteriosamente, criticados, comparados, examinados à luz dos princípios, com os livros de doutrina, com as exposições sistemáticas do Direito em punho. A jurisprudência, só por si, isolada, não tem valor decisivo, absoluto. Basta lembrar que a formam tanto os arestos brilhantes, como as sentenças de colégios judiciários onde reinam a incompetência e a preguiça" [33].

É por isso que o mesmo autor ensinava "que o julgado, para constituir precedente, vale sobretudo pela motivação respectiva; o argumento científico tem mais peso do que o de autoridade" [34].

Concluía Carlos Maximiliano fazendo um alerta em relação à subserviência dos magistrados:

"Aos magistrados que acham meritório não ter as suas sentenças reformadas (prova apenas de subserviência intelectual) e seguem, por isso, de modo absoluto e exclusivo, a orientação ministrada pelos acórdãos dos tribunais superiores, Pessina recorda o verso de Horácio: os demasiado cautos e temerosos da procela não se alteiam ao prestígio, nem à glória: arrastam-se pela terra, como serpentes – serpit humi tutus nimium timidusque procelloe" [34].

É essa a conclusão a que se pretendia chegar. A de que os magistrados devem assumir a responsabilidade pela elaboração de suas sentenças. Se querem ser subservientes, que o sejam, e acatem calados as decisões dos tribunais superiores. Se compactuam com as decisões dos tribunais superiores, que reconheçam expressamente essa realidade.

Essa, contudo, não é atitude que esperamos, pois queremos uma magistratura independente e disposta a defender sua independência em nome do ideal maior de justiça. Essa magistratura não dá gritos tímidos de inconformismo no momento em que acata decisões estapafúrdias. Age diferente. Utiliza o dever-poder que o ordenamento jurídico lhe confere e combate esses equívocos com as suas decisões. Essa luta muitas vezes é inglória, mas pior do que perder a batalha é perecer sem nem mesmo ter lutado.


BIBLIOGRAFIA

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.

CINTRA, Ada Pellegrini et. al. Teoria Geral do Processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros.

DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4.ed. São Paulo: Malheiros.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. 39.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, vol. I, 2003.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992.

PEREZ, Jesus Gonzáles. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 2. ed. Madrid: Civitas, 1989.

PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil (Processo de conhecimento). 2 .ed. Porto Alegre, Fabris, vol. I, 1991.

SÓCRATES. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, p. 44. Edição de 1996.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

TÁCITO, Caio. Temas de direito público (estudos e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar, vol. I, 1997.


Notas

1 José dos Santos Carvalho Filho. Manual de direito administrativo, p. 447.

2Esta expressão – agentes públicos – é a mais ampla que se pode conceber para designar genérica e indistintamente os sujeitos que servem ao Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam apenas ocasional ou episodicamente.

Quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita, é um agente público. Por isto, a noção abarca tanto o Chefe do Poder Executivo (em quaisquer das esferas) como os senadores, deputados e vereadores, os ocupantes de cargos ou empregos públicos da Administração direta dos três Poderes, os servidores das autarquias, das fundações governamentais, das empresas públicas e sociedades de economia mistas nas distintas órbitas de governo, os concessionários e permissionários de serviço público, os delegados de função ou ofício público, os requisitados, os contratados sob locação civil de serviços e os gestores de negócios públicos. (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p.226-227)

3Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, p. 228.

4Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional, p.13.

5Curso de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello, p. 89.

6Discricionariedade e controle jurisdicional. Celso Antônio Bandeira de Mello, p.14.

7Fundamentos de direito público.Carlos Ari Sundfeld, p.102.

8Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, p. 134-135.

9O âmbito do presente trabalho não comporta um maior aprofundamento em relação ao tema das diferentes funções estatais.

10Sobre esse tema já escrevemos um trabalho intitulado "O Estado de Direito Brasileiro e a Quebra no Princípio da Tripartição dos Poderes".

11"A atividade pública - cujo exercício é regulado pelo direito público - constitui função. Função, para o Direito, é o poder de agir cujo exercício traduz verdadeiro dever jurídico e que só se legitima quando dirigido ao atingimento da específica finalidade que gerou sua atribuição ao agente. O legislador, o administrador, o juiz, desempenham função: os poderes que receberam da ordem jurídica são de exercício obrigatório e devem necessariamente alcançar o bem jurídico que a norma tem em mira".(Carlos Ari Sundfeld. Fundamentos de direito público, p. 151).

12Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil, p. 35.

13Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil, p. 153.

14"Uma das principais características da função jurisdicional é a independência com que o juiz a exerce, o que de um lado constitui fator muito favorável à dinâmica da Constituição e da lei, cujo conteúdo se altera na medida das evoluções havidas na consciência axiológica nacional (o juiz independente não se aferra às linhas interpretativas da jurisprudência formada sob o império de juízos valorativos superados) - e de outra parte é condição propícia a possíveis resistências às "mudanças" operadas, porque o juiz independente, sendo conservador, terá sempre a legítima possibilidade de liberar as suas próprias tendências e com isso repudiar as interpretações progressistas".(Cândido Rangel Dinamarco. A Instrumentalidade do Processo, p. 43)

15Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 47.

16 Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 51.

17 Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 52-53.

18Dalmo de Abreu Dallari. O poder dos juízes, p. 45.

19Rui Portanova. Princípios do Processo Civil, p. 246.

20Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido R. Dinamarco. Teoria Geral do Processo. p. 67-68.

21 As normas jurídicas são expressas por intermédio de palavras. Em virtude disso, algumas vezes acabam assumindo a imprecisão que é própria da linguagem. A imprecisão, contudo, é reduzida pelo sistema no qual a norma se insere, pelos princípios jurídicos e pela própria significação dos conceitos utilizados. A norma deve ter um campo significativo mínimo, sem o qual jamais poderia ser compreendida ou aplicada e o interprete não pode afastar-se desse campo sob pena de desvirtuar a norma a pretexto de aplicá-la.

22 Ovídio Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, Vol. I, p. 337

23 Ovídio Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, Vol. I, p. 337 e 338

24"Também assim melhor se compreenderá a distinção corrente da doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários - que são os interesses da coletividade como um todo - e interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem-fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal modo, defendendo interesses apenas "seus", enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos.

Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axiomaticamente os encarna e representa.

(Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, p. 63)

25"La desviación de poder, correctamente delimitada en el artículo 83.3, de la Ley de la Jurisdicción contencioso-administrativa, consiste en el ejercicio de potestades administrativas para fines distintos de los fijados por el Ordenamiento jurídico. Es un supuesto patológico en el que la anormalidad se concreta, según há destacado la jurisprudencia, en, <la discrepancia entre la finalidad que el Ordenamiento jurídico señala a la actividad de un órgano de la Administración, para cuya finalidad éste está dotado de la adecuada potestad, y el uso que tal órgano hace en caso concreto de tal potestad..." (Jesus Gonzalez Perez. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo, p. 46-47)

26Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional, p.65.

27Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, p. 372.

28Caio Tácito. Temas de Direito Público: Estudos e Pareceres, p. 341.

29 Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil. p. 259.

30Os Pensadores. Sócrates, p. 44.

31Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p.171.

32Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 180.

33Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p.183.

34Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 186.

34Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 182-183.


Autor

  • Marcelo Harger

    Marcelo Harger

    Advogado em Joinville (SC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduado em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ex-conselheiro do Conselho Estadual de Contribuintes de Santa Catarina. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo e Gestão Pública do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC. Professor em diversos cursos de graduação, pós-graduação e extensão universitária. Membro do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC. Autor de diversos artigos científicos publicados nas principais revistas jurídicas do país. Autor dos livros "Os consórcios públicos na lei n° 11.107/05" e "Princípios Constitucionais do Processo Administrativo". Coordenador do livro "Curso de Direito Administrativo". Co-autor dos livros "ICMS/SC - regulamento anotado", "Direito Tributário Constitucional" e "Princípios Constitucionais e Direitos Fundamentais".

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARGER, Marcelo. A independência do magistrado e o desvio de poder nos atos jurisdicionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 269, 2 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5031. Acesso em: 19 abr. 2024.