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Culpabilidade: pressuposto da pena ou característica do crime?

Culpabilidade: pressuposto da pena ou característica do crime?

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SUMÁRIO: Introdução; 1.Evolução histórica da culpabilidade; 2. Teorias e conceitos de culpabilidade, 2.1.Considerações introdutórias, 2.2.Teoria psicologica da culpabilidade, 2.3.Teoria psicológico-normativa da culpabilidade, 2.4.Teoria normativa pura da culpabilidade; 3. Elementos da culpabilidade, 3.1.Da imputabilidade, 3.1.1.Conceito, 3.1.2.Causa da exclusão da imputabilidade, 3.1.2.1.Da imputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, 3.1.2.2.Da imputabilidade por embriagez completa proveniente de caso fortuito ou força maior, 3.2. Potencial consciência da antijuricidade, 3.2.1.Considerações introdutórias, 3.2.2.Teoria extrema do dolo e culpabilidade , 3.2.3.Teoria limitada do dolo e culpabilidade, 3.2.4.Teoria extrema da culpabilidade, 3.3. Da exigibilidade de conduta diversa; 4. Da culpabilidade enquanto pressuposto penal, 4.1. Considerações introdutórias, 4.2. Do possível entendimento dado pelo Código Penal Brasileiro, 4.3. Da incidência da culpabilidade sobre o agente do fato; 5.Da culpabilidade enquanto característica do crime, 5.1. Considerações introdutórias, 5.2. O crime e sua relação com a sanção penal, 5.3. Da incidência do juízo de censura sobre a ação criminosa; Conclusões, Referências Bibliográficas; Notas.


INTRODUÇÃO

Desde há muito discutida, a culpabilidade até hoje intriga os mais respeitáveis juristas do mundo, que, no intuito de determinar o verdadeiro papel desse juízo de reprovação na Teoria Geral do Direito Penal, travam intermináveis debates.

Longe de se tornar pacífico, o adequado papel da culpabilidade é apontado através de diversas teorias, que, na maioria das ocasiões encontram-se dispersas pelos Compêndios de Direito Penal, uma vez que cada doutrinador apresenta diferentemente suas idéias e seus argumentos nesse sentido.

Por conseqüência, a pesquisa a respeito do tema se torna extremamente dificultosa, o que prejudica o contato com o assunto, principalmente por parte de leigos e iniciantes no campo do campo do Direito, necessitando, dessa forma, de um trabalho que procure reunir esses diversos entendimentos, confrontando-os e apontando um caminho que demonstre ser o mais sensato a seguir.

Ademais, dispensável se frisar que se trata de um dos mais curiosos e interessantes temas que o Direito Penal guarda, sem falar no seu grau de importância, haja vista que corresponde a um item da parte geral do Código Penal, do qual todo o restante encontra-se na dependência.

Indubitavelmente, a culpabilidade é de extrema importância para a teoria geral do Direito Penal, não apenas porque funciona como característica do crime ou pressuposto da pena, segundo o entendimento que se achar cabível, mas, certamente por ser um elemento extremamente abstrato e, na maioria das vezes, difícil de se determinar, sendo esta a principal razão da mesma funcionar como objeto de intermináveis discussões entre os Doutos.

O objetivo do presente trabalho é justamente demonstrar quais são os principais pontos de debates realizados entre os doutrinadores em relação ao juízo de reprovação.

Para tanto, abordar-se-á todas as nuances que cercam o referido instituto, demonstrando toda a sua evolução histórica e, por conseguinte, tratando efetivamente dos seus elementos caracterizadores até chegar ao ponto central do presente trabalho: o real posicionamento da culpabilidade na Teoria Geral do Delito: característica do crime ou pressuposto da pena?

Sem dúvida nenhuma tal questão está longe de se tornar pacifica entre os que discorrem a respeito, sendo por isso necessário dar a todos os interessados uma visão completa a respeito de tão debatido e tormentoso assunto.


1-EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CULPABILIDADE

Para um perfeito entendimento de qualquer ramo do direito e seus institutos na atualidade, é extremamente importante que se conheça sua origem e desenvolvimento.

A história da culpabilidade é caracterizada por uma constante e intensa evolução, indo desde os tempos em que bastava o simples nexo causal entre a conduta e o resultado (responsabilidade objetiva), até os tempos atuais, em que a culpabilidade apresenta como elementos a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa (responsabilidade subjetiva).

Por ocasião do chamado período primitivo do Direito Penal, época que remonta ao tempo em que homem ainda vivia reunido em tribos, não se podia falar em um sistema orgânico de princípios penais.

Dessa forma, as regras de comportamento eram desconexas e não escritas, calçadas apenas na moral, nos costumes, crenças, magias e temores.

Nos grupos sociais dessa era, envoltos em ambiente mágico e religioso, a peste, a seca, as doenças, todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como resultantes das forças divinas encolerizadas pela prática de fatos que exigiam reparação. Para aplacar a ira dos deuses, criaram-se séries de proibições conhecidas por tabus, que, não obedecidas acarretavam castigo [1].

Nesse período, a responsabilidade era puramente objetiva e confundida com a vingança, bastando para a punição o nexo causal entre a conduta e o resultado. Essa vingança privada era feita sem qualquer limitação e sempre resultava em excessos.

Assim, durante essa época observou-se a eliminação de grande número de homens válidos e aptos para o trabalho e, principalmente, fortes para a guerra, enfraquecendo, conseqüentemente, o grupo social em que se encontravam.

Com a evolução social, no intuito de se evitar a dizimação das tribos, surgiu o talião (de talis = tal), limitando a ofensa a um mal idêntico ao praticado (fractura pro fractura, oculum per oculo, detem pro dente restituat), dando à pena uma característica de pessoalidade, sendo, também, previamente fixada [2].

Nesse período, apesar da responsabilidade ter passado a ser pessoal, a mesma continuava a ser objetiva, bastando o nexo causal.

Em Roma, evoluindo-se das fases da vingança, por meio do talião e posteriormente da composição, Direito e Religião separam-se.

Nessa época, o crime deixou de ser encarado apenas como uma violação ao interesse privado e passou a ser considerado também como um atentado contra a ordem pública, fazendo com que a pena, em regra, também se tornasse publica.

Com a Lei das Doze Tábuas, consagrou-se o princípio da responsabilidade individual, assegurando-se a proteção do grupo do agressor contra a vitima. Portanto, certamente pode-se afirmar que, nessa época, houve um grande desenvolvimento da teoria da culpabilidade, garantindo e aplicando a idéia de uma responsabilidade subjetiva, ou seja, exigindo dolo e culpa [3].

Ressalte-se, ainda, que no Direito Romano observa-se a criação de princípios penais sobre o erro, culpa (leve e lata), dolo (bonus e malus), imputabilidade etc, o que contribuiu decisivamente para a evolução do Direito Penal.

Na mesma época o Direito Penal germânico primitivo, marcado pela ausência de leis escritas, mantinha inúmeros costumes dos povos bárbaros, os quais eram a base de sua organização.

Dessa forma, o Direito Penal volta a ser marcado por características acentuadamente de vingança privada, que se estendia a toda estirpe do transgressor. A responsabilidade era puramente objetiva, não havendo distinção entre dolo, culpa e caso fortuito, determinando-se a punição do autor do fato sempre em relação ao dano causado e não de acordo com o aspecto subjetivo de seu ato.

No período medieval, observou-se no Direito Penal a profunda influência pelas idéias do cristianismo, o que contribuiu para que o livre arbítrio viesse a fundamentar os ideais de justiça daquela época.

Dessa forma, nesse período, erigiu-se o crime como forma de pecado praticado pelo homem, sendo este livre para decidir entre o bem e o mal.

Assim, vigoraram os princípios da responsabilidade subjetiva, justificando-se apenas aquelas punições aos sujeitos que "pecavam", movidos pelo dolo ou pela culpa, observando-se a proporcionalidade da pena em relação ao fato praticado [4].

Mais tarde, com o aparecimento do chamado período moderno do Direito Penal, também conhecido como época humanitária do Direito, observou-se a intensa influência do Iluminismo, movimento que pregou a reforma das leis e da administração da justiça penal.

Esse tempo foi marcado por novos ideais de justiça, no qual Montesquieu, D’Alembert, Voltaire e Rosseau defendiam a libertação do indivíduo da onipotência do Estado.

Outro marco importante decorrente no período moderno foi a obra Dei delitti e delle pene, publicada pelo jornalista Cesare Bonnesana, conhecido como Marques de Beccaria, na qual o autor propunha uma radical mudança no sistema punitivo. Iniciava-se, assim, o repúdio das penas injustas e da responsabilização sem culpa.

Já no século XIX, ainda com resquícios do movimento iluminista, principalmente em relação às idéias expostas por Beccaria, observou-se a produção de várias obras ligadas ao Direito Penal, cujos autores reunidos, formaram a Escola Clássica.

Essa escola foi fortemente influenciada pelo direito canônico e pelo jus naturalismo, tendo como maior expoente Francesco Carrara, preconizando a vontade humana como base do Direito Penal.

Para a escola clássica não bastava o nexo causal entre ação e o dano, pois a pena é aplicável somente às condutas subjetivamente proibidas.

Frise-se que, nessa época, com a escola positiva italiana, Lombroso, Ferri e Garofalo já defendiam que a criminalidade derivava de fatores biológicos, pelo qual é inútil ao homem lutar. Tal escola era contrária a teoria do livre arbítrio e não relacionou pena com a idéia de castigo, mas como um remédio aplicável a um ser doente [5].

Hodiernamente, a culpabilidade é vista como possibilidade de reprovar o autor de um fato punível porque, de acordo com os fatos concretos, podia e devia agir de modo diferente. Sem culpabilidade não pode haver pena e sem dolo ou culpa não pode existir crime. Pelo exposto, a responsabilidade objetiva (fundada na relação causa e efeito) é insustentável no sistema penal vigente, que, certamente, encampou as idéias da responsabilidade penal subjetiva [6].


2. TEORIAS E CONCEITO DA CULPABILIDADE

2.1. Considerações introdutórias

Como bem ressalta o grande mestre Cezar Roberto Bitencourt, "Estado, pena e culpabilidade formam conceitos dinâmicos inter-relacionados" [7].

Dessa forma, uma concepção de Estado corresponde uma de pena e esta uma de culpabilidade, e esses conceitos modificam-se de acordo com a realidade vivida por uma sociedade. Para uma melhor compreensão da sanção penal, necessário que se leve em consideração o modelo sócio-econômico e a forma de Estado que se desenvolve esse sistema sancionador.

Por conseqüência, forçoso é se afirmar que é evidente a relação entre determinada teoria de Estado com uma teoria da pena, e entre a função e finalidade desta com o conceito de culpabilidade.

Ressalte-se que em decorrência dessa inter-relação entre esses três institutos, com a evolução da forma de um determinado Estado, muda-se também, o Direito Penal, não apenas em seu plano geral, mas também, em cada um de seus conceitos fundamentais.

Por força disso, sem dúvida nenhuma, pode-se afirmar que o conceito do juízo de reprovação é extremamente dependente do momento político, social e até cultural que um determinado Estado vive, o que já era percebido por Von Litz que destacava: "pelo aperfeiçoamento da teoria da culpabilidade mede-se o progresso do Direito Penal [8]".

Em razão dessa dinâmica que o conceito de culpabilidade apresenta, diversas teorias foram construídas no intuito de melhor explicar tão tormentoso instituto, sendo a partir de então, analisadas paulatinamente.

2.2. Teoria psicológica da culpabilidade

Desde o desaparecimento da responsabilidade objetiva, observada principalmente no Direito Penal da Antiguidade, passou-se a ter uma maior preocupação no sentido de se aplicarem sanções somente ao homem causador do resultado lesivo, cujo evento danoso poderia ter evitado.

A partir desse momento, então, fala-se em uma responsabilidade subjetiva, na qual se nota a imprescindível necessidade de se apurar a "culpa" do autor da conduta.

Para que fosse imputada determinada infração a um sujeito, a partir de então, imperiosa seria a realização de uma profunda análise no sentido de se determinar a ausência ou presença da vontade ou da previsibilidade por parte do autor na prática do fato danoso.

Por força desses dois elementos, dois importantíssimos conceitos jurídico-penais foram construídos: o dolo (vontade) e culpa stricto sensu (previsibilidade) [9].

Pautada nesses conceitos, surge a tradicional teoria que visa dar um entendimento técnico de culpabilidade, conhecida na doutrina penal como Teoria Psicológica da Culpabilidade.

Essa corrente doutrinária entende que o juízo de reprovação reside na relação psíquica do autor com o seu fato; a culpa é o nexo psicológico que liga o agente ao evento, apresentando-se o dolo e a culpa stricto sensu como espécies da culpabilidade. Essa teoria tem por fundamento a teoria causal ou naturalística da ação [10].

É pacífico na doutrina que as insuficiências dessa teoria são notórias. O grande equívoco que ela apresenta, o ponto crucial bombardeado pelos penalistas, é o fato da mesma reunir o dolo e a culpa stricto sensu como formas da culpabilidade.

Ora, como bem ressalta Damásio E. de Jesus, "se o dolo é caracterizado pelo querer e a culpa pelo não querer, conceitos positivo e negativo, não podem ser espécies de um mesmo denominador comum, qual seja a culpabilidade" [11].

Não é correta a afirmação da respeitável teoria psicológica de que o ponto de identidade entre o dolo e a culpa seja a relação psíquica entre o autor e o resultado, uma vez que na culpa inconsciente [12] não se observa essa previsão de resultado por parte do sujeito ativo, não havendo, conseqüentemente, qualquer liame psicológico entre este e o evento danoso.

Ademais, os atos humanos são penalmente relevantes somente quando contrariam a norma penal. O dolo e a culpa, em si mesmos, que existem em todos os atos voluntários que resultam num dano, indubitavelmente, não caracterizam a culpabilidade se a conduta não for considerada reprovável pela lei penal, se assim o fosse, o inimputável também agiria culpavelmente, pois o menor e o doente mental também são capazes de agir com vontade.

A culpa é exclusivamente normativa, baseada no juízo que o magistrado faz a respeito da possibilidade de antevisão do resultado, sendo dessa forma, impossível de, um conceito normativo (culpa) e um conceito psíquico (dolo), serem espécies de um mesmo denominador comum.

Por todos esses motivos, a teoria em questão foi fortemente combatida pelos doutrinadores penais, resultando em seu total fracasso.

2.3. Teoria psicológico-normativa da culpabilidade

Essa corrente doutrinária teve seu início a partir dos estudos de Frank, em 1907, que, preocupado com a impossibilidade do dolo e da culpa serem espécies de culpabilidade, passou a investigar entre eles um liame normativo.

Analisando o Código Penal alemão, precisamente em seu artigo 54, que tratava do estado de necessidade inculpável, o estudioso supracitado avaliou o caso da tábua de salvação e nele percebeu que existem condutas dolosas não culpáveis [13].

O sujeito que mata em estado necessário age dolosamente, entretanto, sua conduta não é culpável, visto que, diante da inexigibilidade de outro comportamento, a ação não se torna reprovável.

Diante disso, chega-se a conclusão de que tanto em casos dolosos como nas situações em que o sujeito age com culpa, o elemento caracterizador da culpabilidade também é a reprovabilidade.

A culpabilidade, a partir de então, passa a ter um conceito complexo, apresentando, não somente o dolo e a culpa como elementos constitutivos, mas também uma nova característica, a reprovabilidade.

Nesse ensejo, cabe o correto posicionamento defendido por Heleno Cláudio Fragoso que diz [14]:

A essência da culpabilidade está na reprovação que se faz ao agente por sua motivação contrária ao dever. O juízo de reprovabilidade já não teria por fulcro apenas a vontade, em seu sentido puramente naturalístico, como a teoria psicológica acreditava, mas sim a vontade reprovável, ou seja, a vontade que não deveria ser.

De acordo com a teoria em estudo, o dolo e a culpa stricto sensu, enquanto liames psicológicos entre o autor e o fato, devem ser valorados normativamente. Deve-se fazer um juízo de censura sobre a conduta e, baseado nessa análise, aquela somente será ilícita se, nas circunstâncias, se pudesse exigir do agente um comportamento de acordo com o direito, incidindo, nesse caso, o outro elemento da culpabilidade, que é a reprovabilidade.

Embora tal teoria tenha sido aceita por inúmeros penalistas e por meio da mesma se tenha se observado um grande avanço na teoria da culpabilidade, essa corrente doutrinária peca por alguns defeitos que também foram encontrados na doutrina psicológica e que ainda persistiram na presente teoria.

O ponto principal de crítica a essa corrente é a presença do dolo, ainda, como elemento da culpabilidade.

Como foi visto, o dolo é um elemento psicológico que deve sofrer um juízo de valoração, sendo, desta forma, inconcebível do mesmo estar presente como elemento da culpabilidade, que é um fenômeno normativo.

Ora, se a culpabilidade é um fenômeno normativo, seus elementos devem ser, também, normativos. O dolo, porém, apresentado por esta teoria como elemento da culpabilidade, não é normativo, mas sim psicológico.

Ademais, como bem ressalta Damásio E. de Jesus, citando um provérbio alemão, "a culpabilidade não está na cabeça do réu, mas na do juiz; o dolo, pelo contrário, está cabeça do réu" [15].

Assim, o dolo não pode manifestar um juízo de valoração; ele é objeto desse juízo.

2.4. Teoria normativa pura da culpabilidade

Preocupada com determinadas colocações feitas pela teoria psicológico-normativa a respeito da culpabilidade, surge uma nova corrente doutrinária, apoiada na teoria finalista [16], que visa a dar uma nova explicação para o que realmente vem a ser a reprovabilidade.

A teoria normativa pura da culpabilidade parte do pressuposto de que o fim da conduta, elemento intencional da ação, é inseparável da própria ação.

Ao pegar-ser o dolo, por exemplo, sabe-se que este é a consciência do que se quer, é a vontade de realizar o tipo; sem esse elemento, sem dúvida nenhuma, não ter-se-á um fato típico doloso. Ora, a ausência do dolo, não implica somente na eliminação da culpabilidade pelo que o sujeito praticou, mas elimina o fato típico propriamente dito, pois o fim da conduta (vontade de praticá-la) está tão ligado a esta, de forma que, face a inobservância de uma, a outra, sequer, existirá.

A culpabilidade, por sua vez, não se reveste, como pretende a doutrina tradicional, da característica psicológica. É um puro juízo de valor, puramente normativa, não tendo nenhum elemento psicológico, sendo, por isso mesmo, insuscetível de ter o dolo como um de seus elementos.

Foi baseado nesses preceitos que a teoria em estudo veio a combater a corrente psicológico-normativa, que, equivocadamente, colocava o dolo e a culpa como elementos a culpabilidade.

Dessa forma, foram retirados os elementos anímicos subjetivos (dolo e culpa stricto sensu) dos elementos do juízo de reprovação, passando aqueles a pertencerem à conduta, ficando a culpabilidade, segundo a teoria em questão, com os seguintes elementos: a)imputabilidade; b) exigibilidade de conduta diversa e c) potencial consciência da ilicitude, que serão analisados paulatinamente a partir de então.

Ressalte-se, ainda, que atualmente cresce a idéia entre os penalistas de que do conceito de culpabilidade não se pode excluir definitivamente o dolo e a culpa [17]. Para os que pensam dessa forma, o dolo ocupa dupla posição: em primeiro lugar, como realização consciente e volitiva das circunstâncias objetivas, e, em segundo, como portador do desvalor da atitude interna que o fato expressa.


3. ELEMENTOS DA CULPABILIDADE

3.1. Da imputabilidade

3.1.1. Conceito

Para que se possa dizer que uma conduta é reprovável, ou seja, que há culpabilidade, é necessário que o agente tivesse podido agir de acordo com a norma.

Entretanto, para que o sujeito aja de acordo com o direito é imperioso que o mesmo tenha a capacidade psíquica de entender o que a lei determina e que face a sua não observância, haverá uma sanção predeterminada.

Essa capacidade psíquica denomina-se de imputabilidade.

Não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma definição desse elemento do juízo de reprovação, ficando essa tarefa a cargo de nossa doutrina.

Para Heleno Cláudio Fragoso, "imputabilidade é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar segundo esse entendimento" [18].

Segundo Damásio E. de Jesus, "imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível" [19].

Das definições acima mostradas chega-se ao entendimento de que o indivíduo incapaz de compreender o caráter ilícito do fato em razão de alguma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou até mesmo de uma embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior, não deve responder pelo seu ato praticado, ou seja, não é culpável, vez que, juridicamente, podemos considerá-lo inimputável, nos termos do Código Penal Brasileiro [20].

No Direito Penal, o fundamento da imputabilidade é a capacidade de entender e de querer. Somente o somatório da maturidade e da sanidade mental confere ao homem a imputabilidade penal. O seu reconhecimento depende de aptidão para conhecer a ilicitude do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento.

Importante ressaltar que a capacidade de entender o caráter criminoso do fato não deve se confundir com a exigência de que o agente tenha consciência de que sua conduta se encontra descrita em lei como infração. Imputável, segundo Damásio E. de Jesus, "é o sujeito mentalmente são e desenvolvido que possui a capacidade de saber que sua conduta contraria os mandamentos da ordem jurídica" [21].

3.1.2. Causas de exclusão da imputabilidade

Como visto há pouco, a imputabilidade, em suma, consiste na capacidade de entender e de querer, entretanto, essa aptidão pode estar ausente, seja porque o indivíduo, por questão de idade, não alcançou determinado grau de desenvolvimento físico e psíquico, ou porque existe em concreto uma circunstância que a exclui. Nesse caso, fala-se em inimputabilidade.

Importante ressaltar, que a imputabilidade é a regra, sendo exceção a inimputabilidade. Todo individuo, a priori, é imputável, salvo quando ocorrer uma causa de exclusão.

Há vários sistemas utilizados para se determinar quais os que, por serem inimputáveis, não podem ser considerados culpáveis.

O primeiro é o sistema biológico ou etiológico, no qual aquele que apresenta uma anomalia psíquica é sempre inimputável. Presente a enfermidade mental, ou o desenvolvimento psíquico deficiente ou a perturbação transitória da mente, é ele, sem quaisquer outras investigações psicológicas, considerado inimputável. Dispensável se ressaltar que, obviamente, trata-se de um critério falho visto que deixa impune aquele que tem discernimento e capacidade de determinação, apesar de ser portador de uma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto.

O segundo sistema é o psicológico, onde se verificam apenas as condições psíquicas do autor no momento do fato, afastada qualquer hipótese de verificação da presença de doenças mentais ou distúrbio psíquico patológico. Para alguns doutrinadores, dentre eles Julio Fabbrini Mirabete [22], E.Magalhães Noronha [23], esse sistema é pouco científico, de difícil averiguação, ensejando abusos na prática e dilatando desmensuradamente a esfera da imputabilidade.

O terceiro sistema, denominado de biopsicológico, e adotado pela lei brasileira, é a junção dos critérios anteriores e consiste, em primeiro lugar, na verificação se o agente apresenta doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Em caso negativo, não é inimputável. Caso positivo, será necessário analisar se o indivíduo era capaz de entender o caráter ilícito do fato; será inimputável se não tiver essa capacidade. A inimputabilidade decorre da conjugação dos critérios anteriores.

O Código Penal Brasileiro, em seus artigos 26, caput e 28, §1º, prevê quatro causas de exclusão de imputabilidade, que por conseqüência excluem a culpabilidade. São elas: a) doença mental; b) desenvolvimento mental incompleto; c) desenvolvimento mental retardado; d) embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou forca maior.

3.1.2.1.Da imputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado

Previstas pelo artigo 26 do Código Penal Brasileiro, a doença mental, o desenvolvimento mental incompleto e o desenvolvimento mental retardado, enquanto motivos que excluem a imputabilidade, e conseqüentemente, a culpabilidade, são situações absolutamente diferentes uma das outras e merecem ser analisadas em separado.

A doença mental, assim referida pela legislação penal substantiva, deve ser entendida como perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento [24].

Para Júlio Fabbrini Mirabete, a expressão utilizada pelo Código Penal é muito vaga e sem maior rigor científico [25]. Partindo desse pensamento, o jurista conceitua doença mental como qualquer moléstia que causa alteração mórbida à saúde mental. Neste ensejo, data vênia, convém se ressaltar que a definição dada pelo doutrinador é um tanto precipitada, até porque a doença mental que o Código Penal se refere não é qualquer uma que acomete o indivíduo.

Ora, a imputabilidade é a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. Para que haja exclusão da imputabilidade por doença mental é necessário que esta tenha o condão de eliminar a capacidade de entender e de querer do indivíduo, características principais daquele elemento da culpabilidade. Se a doença mental não comprometer essa capacidade, certamente que a imputabilidade não será excluída.

A expressão em análise abrange, dentre outras doenças, as psicoses em geral, a esquizofrenia, a loucura, a histeria, a paranóia, a epilepsia etc [26].

Alguns doutrinadores, entre eles Flávio Augusto Monteiro de Barros, costumam afirmar que a doença mental pode ser, ainda, permanente ou transitória, levando em consideração o tempo em que a doença afeta o indivíduo [27]. O essencial é que a doença subsista no momento da prática da conduta criminosa, podendo, inclusive, ter origem tóxica, como no caso de ingestão de álcool, cocaína etc.

Nesse ensejo, necessário se frisar que a dependência patológica de substâncias tóxicas (psicotrópica), configura doença mental, segundo dispõe a Lei nº 6.368/76, em seu artigo 19 [28], sempre que retirar a capacidade de entender ou de querer do indivíduo.

Refere-se o Código Penal, ainda, em desenvolvimento mental incompleto, como segunda causa de exclusão da imputabilidade. O desenvolvimento mental incompleto é aquele que ainda não se concluiu, devido à recente idade cronológica do agente ou a sua falta de convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional [29].

É o caso dos menores de idade e dos os silvícolas, os quais serão objetos de análise a partir de então.

A magna carta, repetindo os dizeres do artigo 27 do Código Penal, dispõe em seu artigo 228 que "são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeito a normas da legislação especial". Ressalte-se, ainda, que, além de serem tratados nos dois artigos supracitados, os menores de idade estão inseridos, também, no artigo 26 da lei penal substantiva, quando determina como causa de exclusão da imputabilidade o desenvolvimento mental incompleto.

Nesse sentido, necessário se frisar que alguns penalistas, dentre eles Heleno Cláudio Fragoso [30], entendem que, em relação aos menores acima citados, aos quais a lei os isenta de sua aplicação, não deve se pensar que seja um caso de inimputabilidade, haja vista que tais indivíduos estão fora do Direito Penal, o que não acarreta na ausência de capacidade de culpa, mas proporciona aos mesmos a impossibilidade desses ocuparem o pólo ativo de um determinado fato punível e definido como crime.

Data Vênia, discorda-se dos doutrinadores que seguem a corrente acima, visto que os menores de dezoito anos são exemplo cristalino da inimputabilidade, mesmo porque o próprio Código Penal Brasileiro usa tal expressão no momento em que se refere a esses indivíduos, por ocasião do artigo 27. Além do mais, mesmo que não considerássemos o artigo retro, ainda assim, os menores deveriam ser considerados inimputáveis, vez que também estão acobertados pela expressão "desenvolvimento mental incompleto", causa de exclusão daquele elemento da culpabilidade, assim utilizada pelo art.26, caput, da legislação penal substantiva.

Ao determinar que os menores de idade são inimputáveis, o Código Penal adotou o chamado critério biológico, que já tivemos oportunidade de aludir. Há nesse caso uma presunção absoluta de que os menores de 18 anos não reúnem a capacidade de autodeterminação. Nessa oportunidade, importante observar que alguns autores, com razão, entendem tal critério como mera ficção, pois nenhum critério científico é capaz de demarcar o exato momento em que se dá o pleno desenvolvimento da personalidade moral de um indivíduo, principalmente nos dias de hoje, onde as crianças, nos seus primeiros anos de vida, já começam o seu processo educacional [31].

Estão, ainda, abrangidos pela expressão "desenvolvimento mental incompleto", os silvícolas (também chamados homens da floresta).

Em relação a esses indivíduos é necessário registrar que só serão considerados inimputáveis se não estiverem adaptados a civilização. Se o agente é índio integrado e adaptado ao meio civilizado não incorrerá em uma causa excludente da imputabilidade.

De acordo com alguns doutrinadores, entre eles Damásio E. de Jesus, a inimputabilidade do silvícola é discutível, visto que não há razão para considerar os indígenas inadaptados como carentes de desenvolvimento mental completo, porque podem ter um desenvolvimento muito mais completo que outras raças [32].

Entendendo de outra forma, Flávio Augusto Monteiro de Barros, defende que, sem dúvida alguma, há situações em que o silvícola sofre de desenvolvimento mental incompleto [33]. O que deve, principalmente, ser levado em consideração é o critério norteado pelo legislador ao fixar tal situação como causa de exclusão da imputabilidade: a assimilação dos valores da vida civilizada por parte do índio.

Indubitavelmente, no caso dos silvícolas imperioso será a realização de um laudo pericial para que se possa aferir a inimputabilidade.

Refere-se o Código Penal, ainda, em seu artigo 26, caput, em desenvolvimento mental retardado, como excludente da imputabilidade. Para Fernando Capez, tal desenvolvimento "é o incompatível com o estágio de vida em que se encontra a pessoa, estando, portanto, abaixo do desenvolvimento normal para idade cronológica" [34].

Ao contrário do desenvolvimento incompleto, no qual não há maturidade psíquica em razão da ainda precoce fase de vida ou da falta de conhecimento empírico do agente, no desenvolvimento retardado a capacidade não corresponde às expectativas para aquele momento da vida, o que significa que a plena potencialidade jamais será adquirida.

É o caso dos oligofrênicos (idiotas, imbecis e débeis mentais), que são pessoas de reduzidíssimo coeficiente intelectual.

Dada a sua quase insignificante capacidade mental, ficam impossibilitados de avaliar de forma correta a realidade que os cerca, não tendo, por conseguinte, condições de entender o crime que porventura cometerem.

Segundo a classificação de Terman, os oligofrênicos obedecem a seguinte escala, de acordo com o nível de seu quociente de inteligência [35] :

Q.I.

Significação

Acima de 140

Gênio

De 120 a 140

Inteligência muito superior

De 110 a 120

Inteligência superior

De 90 a 110

Normal

De 70 a 90

Debilidade mental fronteiriça

De 50 a 70

Debilidade mental

De 25 a 50

Imbecilidade

Abaixo de 25

Idiota

Ressalte-se que para alguns doutrinadores somente haverá exclusão de imputabilidade nas faixas mais baixas.

Por último pode-se classificar como portadores de desenvolvimento mental retardado os surdos-mudos, conforme circunstâncias. O isolamento do surdo-mudo pode impedir o desenvolvimento mental e afetar a capacidade de discernimento no campo intelectual ou ético, ainda que não acompanhado de doença mental ou oligofrenia.

No tocante a esses indivíduos, nem sempre os mesmos se revelam inimputáveis, competindo a perícia fixar o grau de seu retardamento sensorial. Podem ocorrer três hipóteses [36]:

a) o surdo-mudo, ao tempo do crime, não tinha capacidade de autodeterminação; nesse caso, ele é considerado deficiente mental, equiparando-se aos oligofrênicos (art.26, caput, do Código Penal).

b) o surdo-mudo, ao tempo do crime, estava com a capacidade de autodeterminação diminuída; nesse caso, deverá ser tratado como semi-imputável [37], enquadrando-se no parágrafo único do art.26 do Código Penal.

c) o surdo-mudo, ao tempo do crime, reunia plena capacidade de autodeterminação; nesse caso, deverá ser tratado como imputável e sofrer pena cabível.

Por fim, necessário registrar que não basta somente a presença dessas situações de base biológica (doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado) para que fique excluída a imputabilidade, é necessária, também, a observância de determinado estado psicológico por parte do agente.

O Código Penal, em seu artigo 26, caput, determina que só é inimputável aquele que ao tempo da ação ou omissão era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Ora, já ficou demonstrado em linhas passadas que a imputabilidade, essencialmente, é a capacidade de entender e de querer determinado fato definido em lei como crime. Dessa forma, pode o sujeito, por ocasião da prática de um delito, estar apresentando um daqueles estados mórbidos há pouco descritos e, ao mesmo tempo, ser perfeitamente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou pelo menos podemos verificar que seu aspecto volitivo não foi comprometido. Nesse caso, sem dúvida nenhuma o critério biológico deverá ser descartado, predominando, conseqüentemente, a característica psicológica, base do conceito do elemento da culpabilidade em análise. Em razão disso, deverá o agente ser, perfeitamente, considerado imputável nos termos do artigo retrocitado, visto que a capacidade de entender e de querer estão presentes.

Excluída a imputabilidade por incapacidade total de entendimento da ilicitude do fato ou de autodeterminação, o autor é absorvido e aplicar-se-á obrigatoriamente a medida de segurança.

3.2.1.2.Da imputabilidade por embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior

Para que se possa compreender claramente essa última causa de exclusão de imputabilidade, necessário se conhecer alguns conceitos referentes a embriaguez.

Para Fernando Capez, a embriaguez é uma "causa capaz de levar à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória causada por álcool ou qualquer substância de efeitos psicotrópicos, sejam eles entorpecentes (morfina, ópio etc.), estimulantes (cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico)" [38].

Para efeitos didáticos, a doutrina penal costuma dividir a embriaguez em três em fases, a saber:

a) Também chamada de embriaguez incompleta por Mirabete [39], a primeira fase é marcada pela excitação. É um estado eufórico inicial provocado pela inibição dos mecanismos de autocensura. O agente torna-se inconveniente, perde a acuidade visual e tem seu equilíbrio afetado. Em virtude de sua maior extroversão, esta fase denomina-se "fase do macaco" [40].

b) Passada a excitação inicial, o ébrio começa a migrar para a segunda fase da embriaguez. Estabelece-se uma confusão mental e há irritabilidade, que deixam o sujeito mais agressivo. Por isso denomina-se fase do leão.

c) Na última fase, denominada por Mirabete [41] como embriaguez comatosa, sendo alcançada somente se o ébrio ingerir grandes doses do conteúdo, observa-se um estado de dormência profunda por parte do agente, com perda do controle sobre as funções fisiológicas. Nesta fase, conhecida como "fase do porco", evidentemente, o ébrio só pode cometer delitos omissivos.

Os penalistas costumam, ainda, dividir a embriaguez em espécies, levando em consideração a origem desse estado e sua intensidade, ou seja, a forma como o sujeito veio a adquirir tal situação e o grau de influência que o conteúdo ebriante apresenta sobre o organismo do indivíduo.

Desse modo, então, temos as seguintes espécies de embriaguez:

a) Embriaguez não acidental: são todos os casos em que o agente ingere a substância alcoólica ou de efeitos análogos, que não sejam em razão de caso fortuito ou forca maior. Esse tipo de embriaguez subdivide-se em voluntária (dolosa ou intencional) e culposa.

Na embriaguez voluntária, dolosa ou acidental o agente ingere a substância alcoólica com a intenção de embriagar-se. Nessa situação, então, se observa um desejo por parte do agente de ingressar em um estado de alteração psíquica.

Na embriaguez culposa, ainda como subespécie de embriaguez não acidental, o agente quer ingerir a substância, mas sem intenção de embriagar-se, vindo isso acontecer, contudo, por força da imprudência de consumir doses excessivas.

As duas subespécies de embriaguez não acidental há pouco descritas podem, ainda, ser classificadas de acordo com o grau de influência que a substância ebriante possui sobre o organismo do agente.

Nesse sentido, fala-se em embriaguez completa e incompleta, sendo a primeira aquela situação na qual se observa a retirada total da capacidade de entendimento e vontade do agente, que perde integralmente a noção sobre o que está acontecendo e a segunda aquela embriaguez na qual há a retirada apenas parcial da capacidade de entendimento e autodeterminação do agente, que ainda consegue deter um resíduo de compreensão e vontade.

Alguns doutrinadores [42] falam, ainda, em embriaguez preordenada quando o agente embriaga-se propositadamente para cometer o crime; é a embriaguez com o escopo de encorajar a pessoa a delinqüi, e funciona como circunstância agravante genérica [43].

Necessário se faz ressaltar que a embriaguez não acidental jamais excluiu a imputabilidade, seja ela voluntária, culposa, completa ou incompleta. Isso ocorre porque o indivíduo, no momento em que ingeria a substância, era livre para decidir se devia ou não fazer. A conduta, mesmo que praticada em estado de embriaguez completa, originou-se de uma ato de livre arbítrio do sujeito, que optou por ingerir o líquido ebriante, quando possuía a possibilidade de não o fazer.

Dessa forma, observa-se que, nesse caso, o que se leva em consideração é o momento da ingestão e não a prática do fato delituoso. É o que os penalistas costumam chamar de aplicação da teoria da actio libera in causa (ações livres na causa).

Tal teoria não apresenta problemas nenhum ao ser aplicada nos casos de embriaguez preordenada na qual o sujeito embriaga-se propositadamente para pôr-se em estado de inimputabilidades para cometer o crime.

Quanto aos casos de embriaguez completa, voluntária ou culposa, e não preordenada, onde o sujeito se embriaga completamente porque possui tal intenção ou porque chegou àquele estado em razão de sua imprudência quando da ingestão do líquido, e chega a delinqüir não porque possui o animus específico, mas porque estava privado da sua capacidade de querer e de autodeterminação, é certo afirmar que a teoria acima citada encontrará dificuldades quando da sua aplicação.

Para alguns doutrinadores, a aplicação dessa teoria constitui resquício da responsabilidade objetiva em nosso sistema penal e pode ser admitida excepcionalmente quando for de todo necessário para não deixar o bem jurídico sem proteção.

Para outros penalistas, entre eles Damásio E. de Jesus, o Código Penal Brasileiro, quando determinava a aplicação da actio libera in causa, sem dúvida nenhuma admitia a responsabilidade penal objetiva [44], entretanto, tal situação alterou-se com a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 5º, LVII [45], introduziu o princípio do estado de inocência, não mais permitindo-se a interpretação da legislação penal substantiva com a presença da responsabilidade penal objetiva, o que leva-se a concluir pela inaplicabilidade da teoria acima citada.

Quanto a essa discussão, correto é o posicionamento de Fernando Capez, quando afirma que "ainda existem casos em que se mantêm resquícios de responsabilidade objetiva em nosso sistema penal, quando imprescindível para a proteção do bem jurídico" [46]. A actio libera in causa é uma desses casos. A fim de que o agente não fique imune a ação punitiva estatal e o bem jurídico sem tutela, na embriaguez não acidental leva-se em conta, exclusivamente, o momento em que o sujeito escolheu livremente entre consumir ou não a substância.

b) Ainda como espécie de embriaguez, tem-se a aquela decorrente de acidentes, mais precisamente em razão de caso fortuito ou forca maior, assim determinada como causa de exclusão da imputabilidade pelo Código Penal, em seu artigo 28, §1º [47].

Para Fernando Capez, a embriaguez acidental proveniente de caso fortuito é aquela na qual o indivíduo ingere bebida na ignorância de que tem conteúdo alcoólico ou dos efeitos psicotrópicos que provoca [49]. É também o caso do agente que, após tomar antibiótico para tratamento de uma gripe, consome álcool sem saber que isso fará perder completamente o poder de compreensão. Nessa hipótese o sujeito não se embriagou porque quis, nem porque agiu com culpa.

A embriaguez acidental proveniente de força maior é aquela que deriva de uma forca externa ao agente, que o obriga a consumir droga. É o caso do sujeito obrigado a ingerir álcool por coação física ou moral irresistível, perdendo, em seguida, o controle sobre suas ações.

Em relação a esses dois casos de embriaguez acidental, necessário se registrar que só há exclusão de imputabilidade se aquela for completa, ao tempo da ação ou omissão, e em conseqüência da qual o agente se encontrar inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determina-se de acordo com esse entendimento.

Ressalte-se que a exclusão da imputabilidade só ocorre caso haja a redução da capacidade intelectual ou volitiva do agente ao tempo da prática do fato. Se não se observar essa redução, mesmo frente a uma embriaguez acidental proveniente de caso fortuito ou forca maior, o agente deverá responder pelo crime, subsistindo a imputabilidade na íntegra.

Por outro lado, caso o agente venha a delinqüir sob a influência da embriaguez, observando-se, apenas uma diminuição da capacidade de entender caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, deverá reduzir a pena de um a dois terços, nos termos do artigo 28, §2º do Código Penal. Nesse último caso, há uma situação de semi-imputabilidade.

A embriaguez admite todos os meios de prova, inclusive a testemunhal. A prova ideal é o exame de sangue para verificação da dosagem alcoólica. O bafômetro tem se mostrado útil. Todavia, ninguém é obrigado a extrair sangue ou submeter-se ao bafômetro. A recusa a essas provas constitui lícito desdobramento do princípio da ampla defesa e do direito ao silêncio.

3.2. Potencial consciência da antijuridicidade

3.2.1.Considerações introdutórias

Hodiernamente, para que o indivíduo seja realmente culpável é de mister importância que, além de imputável, aquele tenha, pelo menos, a possibilidade de entender o caráter ilícito do fato praticado. Não se concebe uma idéia de culpabilidade desprovida de potencial consciência da ilicitude do fato.

A pena só será justamente aplicada naquele indivíduo que, ao praticar o evento danoso, tinha, pelo menos, a possibilidade de entender que sua conduta é considerada como delito pelo local onde a praticou.

Alguns doutrinadores [50], tentando justificar esse elemento da culpabilidade, afirmam que:

A mesma razão que leva a considerar-se inculpável a ação cometida por um inimputável (impossibilidade de entender o caráter criminoso ou de determinar-se de acordo com esse entendimento), deve pesar, também, para impedir que seja movida uma censura a quem, mesmo sendo normal e imputável, age igualmente sem a possibilidade de entender o caráter criminoso do fato, isto é, sem a consciência da ilicitude, embora por deficiências momentâneas e circunstanciais, mas inevitáveis.

Dessa forma, percebe-se sem muito esforço, que para que o sujeito seja realmente considerado culpável é indispensável que se apure se aquele poderia estruturar, em lugar da vontade antijurídica da ação praticada, outra conforme o direito. Se essa possibilidade não for verificada, certamente, o juízo de reprovação estará excluído e, conseqüentemente, o criminoso não responderá pelo ilícito praticado.

A respeito desse elemento da culpabilidade, de acordo com Damásio E. de Jesus, há três teorias que tentam determinar a correta colocação da potencial consciência da ilicitude na estrutura do delito, variando de acordo com a doutrina adotada em relação ao conceito da ação e da culpabilidade [51], já abordados nesse trabalho. São elas: teoria extrema do dolo, teoria limitada do dolo, teoria extrema da culpabilidade, as quais, a partir de então, serão abordadas.

3.2.2.Teoria extrema do dolo e culpabilidade

A teoria extrema do dolo, a mais antiga, situa o dolo na culpabilidade e a consciência da ilicitude, faz parte desse, devendo a mesma ser atual, não sendo suficiente a possibilidade de conhecimento do injusto.

Segundo essa teoria, se o indivíduo, ao praticar uma determinada conduta ilícita, não tiver o real conhecimento de que sua ação é considerada como delito, certamente o dolo estará excluído, quando a ausência daquele conhecimento for inevitável, uma vez que, nulo está seu elemento normativo, que é a consciência da ilicitude.

Assim, para a teoria em análise a real consciência da ilicitude é excludente do dolo, podendo o sujeito responder por crime culposo, se evitável o erro ou a ignorância da norma e prevista modalidade culposa.

3.2.3.Teoria limitada do dolo e culpabilidade

Surgida como aperfeiçoamento da doutrina extrema do dolo, a teoria limitada procurou evitar as lacunas de punibilidade que esta possibilitava, exigindo no dolo apenas a potencialidade do conhecimento do injusto e não a real e atual consciência da ilicitude.

Para essa doutrina, essa medida evitaria absolvições infundadas e condenações baseadas na culpa de direito ou cegueira jurídica.

Para Damásio E. de Jesus, tal teoria não merece aplausos, uma vez que a denominada inimizade ao direito ou cegueira jurídica é muito vaga para fundamentar decisões na prática [52].

Cézar Roberto Bitencourt, ao tratar do assunto, afirma que a potencial consciência da ilicitude, enquanto elemento do dolo, baseada na cegueira jurídica e inimizade ao direito, é extremamente importante, principalmente nos casos em que o autor do crime (normalmente, um delinqüente habitual) demonstra desprezo ou indiferença tais para com os valores do ordenamento jurídico que, mesmo não se podendo provar o conhecimento da antijuridicidade, deve ser castigado pelo crime doloso [53].

Por outro lado, não se deve deixar de perceber que a substituição do conhecimento atual da ilicitude (defendido pela doutrina extrema do dolo) pelo conhecimento presumido, de certa forma, introduziu o polêmico elemento denominado por alguns penalistas de culpabilidade pela condução de vida, criando, dessa forma, a possibilidade de condenação do agente não por aquilo que ele faz, mas por aquilo que ele é, dando origem ao combatido direito penal do autor.

3.2.4.Teoria extrema da culpabilidade

Em relação a teoria extrema da culpabilidade, empreendida pela teoria finalista da ação e pela doutrina da culpabilidade normativa pura, necessário se registrar que esta parte da reelaboração dos conceitos de dolo e culpabilidade.

Para os seguidores dessa doutrina [54], o dolo e a consciência da ilicitude são institutos completamente distintos, com diferentes funções dogmáticas, não devendo o segundo integrar o primeiro.

Tratando-se o dolo de um elemento puramente psicológico certamente deve ser transferido para o injusto, devendo fazer parte do tipo penal.

A consciência da ilicitude, por sua vez, não possuindo dados psicológicos, é desconsiderada como elemento do dolo, haja vista que tem natureza normativa, e, junto com a exigibilidade de conduta diversa, passa a fazer parte da culpabilidade, num puro juízo de valor. Dessa forma, se o magistrado chega à conclusão de que o sujeito não teve possibilidade de conhecer o caráter ilícito do fato, deve absolvê-lo não por ausência de dolo, mas por inexistir reprovabilidade.

Com propriedade, Damásio E. de Jesus afirma que tal doutrina "está apta a chegar sempre a resultados justos, sem extremar-se em severidade quanto ao delinqüente. Mas, sobretudo, evita os vazios que por força de coisas resultam quando se aceita a teoria do dolo" [55]

3.3. Da exigibilidade de conduta diversa

Para que a culpabilidade fique realmente caracterizada não é necessário que se observe apenas os dois elementos há pouco estudados, quais sejam, a imputabilidade e a potencial consciência da ilicitude; é necessário, ainda, que a conduta ilícita tenha sido realizada em circunstâncias normais, de modo que o agente podia e devia proceder conforme o direito. A esse último requisito do juízo de reprovação, chama-se de exigibilidade de conduta diversa.

De acordo com Fernando Capez, tal elemento da culpabilidade consiste "na expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente. Somente haverá exigibilidade de conduta diversa quando a coletividade podia esperar do sujeito que tivesse atuado de outra forma" [56].

Assim, a inexigibilidade de outra conduta conforme o direito exclui a culpabilidade.

Para Flávio Augusto Monteiro de Barros, o elemento do juízo de reprovação em análise se justifica por motivos óbvios, haja vista que, por uma questão humanitária e lógica é fácil perceber que, em circunstâncias anormais, o comportamento contrário ao direito não é reprovável quando o agente não podia proceder de outra maneira [57].

É inquestionável que o homem deve amoldar seus atos aos modelos traçados pelo ordenamento jurídico, entretanto, esse modelo é desenhado para ser cumprido dentro da normalidade.

O não cumprimento da norma jurídica em circunstâncias anormais, quando não possível realizar um comportamento diferente, por via de conseqüência faz desaparecer a culpabilidade.

A inclusão desse elemento no juízo de reprovação deve-se a Frank, que em 1907, afirmou que a culpa em sentido amplo é algo mais que uma relação entre o sujeito e o resultado: a culpabilidade depende da normalidade das circunstâncias concomitantes, pois só assim o agente teria a possibilidade de motivar normalmente sua vontade no rumo da conduta realizada [58].

No Brasil, a adoção da teoria normativa da culpabilidade é evidenciada nos institutos da coação moral irresistível e obediência hierárquica, de ordem não manifestamente ilegal. Ambas constituem causas legais de exclusão de culpabilidade, inspiradas na inexigibilidade de conduta diversa, podendo ambas serem aplicadas tanto aos fatos dolosos como também ao culposos.


4. DA CULPABILIDADE ENQUANTO PRESSUPOSTO DA PENA

4.1.Considerações introdutórias

Ao longo do desenvolvimento do Direito Penal, a culpabilidade, seguindo essa marcha, sofreu inúmeras alterações, as quais dizem respeito tanto a sua verdadeira importância enquanto elemento necessário para a configuração do crime, quanto aos seus componentes caracterizadores.

Durante muito tempo, a doutrina penal acreditava que o juízo de reprovação, sem dúvida alguma, seria uma das características do crime, sem a qual este em hipótese alguma estaria configurado [59]. Entretanto, com o aparecimento da Teoria Finalista da ação, o dolo e culpa estrito senso, até então considerados como elemento da culpabilidade, passaram a integrar a conduta, esvaziando, dessa forma, o juízo de reprovação, o que levou alguns doutrinadores a repensarem sobre os conceitos formulados em relação ao correto posicionamento da culpabilidade.

É claro que sem dolo e culpa não há falar-se em delito. Logo, enquanto esses elementos anímicos faziam parte da culpabilidade, a doutrina de forma unânime não hesitava em posicioná-la entre as características do crime, ao lado da tipicidade e da antijuridicidade.

Acontece que, frente a mudança de posição do dolo e da culpa estrito senso para o tipo (conduta), René Ariel Dotti, seguido de outros penalistas [60], passaram a afirmar que a culpabilidade teria ficado completamente vazia, não merecendo mais o lugar que ocupava frente a teoria geral do delito, visto que aquela estaria despida dos principais "elementos" do delito (dolo e culpa), devendo tão somente ser tratada como pressuposto da pena e não mais como característica do crime.

Tentando justificar essa idéia de culpabilidade funcionando como pressuposto da pena, os penalistas adeptos a essa corrente, comandada atualmente no Brasil por Damásio E.de Jesus, tentam buscar diversos argumentos tanto pautados em nosso Código Penal Brasileiro, quanto na análise de casos concretos, os quais a partir de então serão objetos de apreciação.

4.2. Do possível entendimento dado pelo Código Penal Brasileiro

A culpabilidade funcionando tão somente como reprovabilidade ou censurabilidade da conduta, leva-se a crer que o crime existe por si mesmo, por ser um fato típico e antijurídico. Dessa forma existirá delito sem que haja culpabilidade.

Tentando justificar esse entendimento, Damásio E.de Jesus defende que o próprio Código Penal Brasileiro de 1940 adota esse posicionamento frente a tão tormentoso assunto [61].

Sustentando o entendimento em análise, o jurista explica que pode-se perceber claramente a adoção dessa idéia pelo Código Penal Brasileiro quando o mesmo utiliza determinadas expressões ao tratar de causas excludentes de antijuridicidade e causas de exclusão de culpabilidade.

Nesse sentido, quando o Código Penal trata de causa excludente de antijuridicidade, emprega expressões como "não há crime" (artigo 23, caput), "não se pune o aborto" (artigo 128, caput), "não constituem injúria ou difamação punível"(artigo 142, caput), "não constitui crime"(artigo 150, §3º) etc. Quando, porém, cuida de causa excludente de culpabilidade, emprega expressões diferentes: "é isento de pena"(artigos 26, caput e 28, §1º), só é punível o autor da coação ou da ordem"(artigo 22, pelo que se entende que "não é punível o autor do fato").

Da leitura desses dispositivos, os penalistas filiados a essa corrente afirmam que a razão dessa diferença é clara: o crime existe por si mesmo com os requisitos "fato típico" e "ilicitude". Mas o crime só será ligado ao agente se este for culpável. É por isso que a legislação penal substantiva recorre as expressões "não há crime" ou é "é isento de pena", quando trata das causas de exclusão da antijuricidade e excludentes de imputabilidade, respectivamente, uma vez que as primeiras excluem o crime e nas últimas o delito existe, havendo apenas a exclusão da punibilidade.

Indo mais a fundo na tentativa de explicar o revolucionário posicionamento da teoria em análise, os doutrinadores afirmam que o crime de receptação, tipificado no artigo 180, caput, do Código Penal [62], vem corroborar mais ainda a adoção desse posicionamento pela legislação penal substantiva.

Neste ensejo, é cabível lembrar a explicação dada por Damásio E.de Jesus [63], que ao tratar sobre o assunto, discorre:

A receptação pressupõe receber, adquirir ou ocultar coisa produto de crime. Suponha-se que o agente haja receptado coisa furtada por sujeito inimputável, nos termos do artigo 26, caput. Ele responde por receptação (artigo 180, §4º). Ora, o agente inimputável, nos termos do artigo 26, caput, não é culpável: o fato típico e ilícito não apresenta a culpabilidade do agente. Então, a coisa não seria produto do crime se a culpabilidade fosse requisito ou elemento do delito. Mas o artigo 180, §4º, diz que "a receptação é punível, ainda que... isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa". Assim, o pressuposto da receptação é um fato em que não se exige a culpabilidade do agente. Em suma: para o legislador brasileiro existe crime sem culpabilidade.

Frente ao fato, inquestionável seria a adoção da idéia de culpabilidade enquanto pressuposto da pena pelo nosso Código Penal.

4.3.Da incidência da culpabilidade sobre o agente do fato

A culpabilidade é um juízo de reprovação. É o elo de ligação do agente com sua conduta praticada e definida em lei como crime.

Partindo desse entendimento, como já dito, para os simpatizantes da teoria da culpabilidade enquanto pressuposto da pena, basta somente a presença de dois requisitos: fato típico e antijuridicidade para que fique configurado o crime. A culpabilidade servirá apenas para ligar o sujeito a pena preestabelecida.

Levando em consideração que o juízo de reprovação é o elo de ligação entre o sujeito e a sanção preestabelecida na conduta tipificada como crime pelo Código Penal, forçoso é concluir que aquele elemento, então pressuposto da pena, recai sobre o agente, em si, de forma isolada [64], e não sobre a conduta propriamente dita.

É justamente por essa razão que se afirma ser a culpabilidade um pressuposto da sanção penal, visto que aquela não incide sobre o fato praticado pelo agente (crime), mas sobre o agente do fato. A reprovação da conduta é dirigida ao agente, que é quem vai sofrer a pena. Tanto é verdade que seus elementos são valorações feitas a posteriori diretamente sobre o sujeito [65].

Praticado um fato típico, não se deve concluir que seu autor cometeu um delito, visto que eventualmente pode ocorrer uma causa de exclusão da antijuridicidade. É necessário que, além de típico seja um fato antijurídico, ou seja, que não ocorra qualquer causa de exclusão da ilicitude. Basta somente isso para que se observe o crime pleno em sua existência. Entretanto, para que o sujeito seja punido por tal fato praticado, é necessário que não esteja acobertado por nenhuma causa justificadora que exclua a culpabilidade. Caso positivo, o crime existirá com todos os seus elementos (fato típico e antijuridicidade), apenas não podendo haver aplicação da sanção sobre o delinqüente, visto não estar presente a culpabilidade. Caso o agente não esteja acobertado por nenhuma causa excludente do juízo de reprovação, haverá a existência do crime e ao criminoso será aplicado o preceito secundário da norma, qual seja, a sanção.

A culpabilidade, como se vê, "é o juízo de reprovação sobre o comportamento passado do criminoso. É, pois, um juízo de valoração posterior, isto é, destacado do fato criminoso praticado pelo agente, que é antecedente, razão pela qual se pode dizer que ela integra esse fato criminoso" (66).


5-DA CULPABILIDADE ENQUANTO CARACTERÍSTICA DO CRIME

5.1.Considerações introdutórias

Também conhecida como teoria tripartida por alguns doutrinadores [67], o entendimento de que a culpabilidade funciona como característica do crime, ainda hoje, é a mais aceita, não só pela doutrina brasileira como também pela maioria dos juristas internacionais.

Como foi dito, durante muito tempo, pacificamente, perdurou a idéia de que a culpabilidade faria parte dos elementos caracterizadores do crime. Foi somente com o aparecimento da Teoria Finalista da ação, a qual retirou do juízo de reprovação dois dos mais importantes elementos necessários para que de fato o crime venha a existir (dolo e a culpa estrito senso), colocando-os na conduta e pertencendo ao fato típico, que a doutrina passou a discutir o real papel da culpabilidade a partir de então: característica do crime ou pressuposto da pena?

Apesar da grande discussão doutrinária a respeito do tormentoso tema, a idéia de que a culpabilidade é característica do crime ainda é predominante, não apenas porque grande parte dos penalistas simpatizantes dessa corrente tenta resistir à idéia inovadora de culpabilidade enquanto pressuposto da pena, mas porque também ainda não se apresentou nenhum argumento que de fato viesse a derrubar por completo as justificativas que colocam a culpabilidade no patamar de característica do crime.

Tais justificativas, apesar de já terem sido construídas há bastante tempo pela doutrina penal, ainda estão atualizadas e, certamente, são capazes de combater e até mesmo derrubar a idéia de que a culpabilidade, com a Teoria Finalista da ação, ficou completamente vazia, não merecendo mais ocupar o papel de característica do crime, devendo funcionar somente como mero pressuposto da pena.

Dessa forma, necessário se utilizar algumas linhas para explicitar melhor tais justificativas, com destaque para aquelas que combatem ferozmente a idéia de que o juízo de reprovação funciona como pressuposto da pena, o que será realizado a partir de então.

5.2.Do crime e sua relação com a sanção penal

A Legislação Penal Substantiva, sabiamente, não se preocupou em nenhum momento com a definição do que realmente venha a ser o crime.

A lei de introdução ao Código Penal dá uma idéia do que seja o delito, conforme pode se observar, in verbis:

Art.1. Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa;(...)

Apesar de se encontrar tal definição dada pelo legislador, a tarefa árdua de demonstrar realmente o que seja o delito fica a cargo da doutrina.

Sabe-se que o crime, sob a visão dos penalistas pátrios, pode ser conceituado sobre três aspectos: a) material: é concepção da sociedade sobre o que pode e deve ser proibido, mediante a aplicação de sanção penal; b) formal: é a concepção do direito acerca do delito. É a conduta proibida por lei, sob a ameaça de aplicação de pena, numa visão legislativa do fenômeno; c) analítico: é a concepção da ciência do direito, que não difere na essência do conceito formal. Trata-se de uma conduta típica, antijurídica e culpável [68].

Para a abordagem do tema em questão utilizar-se-á somente a definição de crime sob o aspecto analítico, que enumera as características do delito, quais sejam tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

Demonstrou-se na unidade passada que existe atualmente uma parte da doutrina penal que acredita estar a culpabilidade vazia de elementos essenciais e, portanto, não merece ocupar lugar de nota do crime, devendo não mais pertencer a ele, mas sim a funcionar como pressuposto da pena. Nesse sentido, o crime existirá sempre que se observar um fato típico e antijurídico, sendo aplicada a sanção penal somente se se observar a culpabilidade.

Seguindo o raciocínio dessa corrente doutrinária, somente com a observância do juízo de reprovação é que haverá a imposição de uma pena, o que nos leva a concluir que esta está ligada ao crime através da culpabilidade. A não observância desta enseja na não aplicação daquela.

Sobre o assunto, necessário se registrar o entendimento de René Ariel Dotti, que levou inclusive, Damásio E.de Jesus a mudar de opinião;

O crime como ação tipicamente antijurídica é causa da resposta penal como efeito. A sanção será imposta somente quando for possível e positivo o juízo de reprovação que é uma decisão sobre um comportamento passado, ou seja, um posterius destacado do fato antecedente [69].

Inevitavelmente, a afirmação acima nos leva a algumas indagações: será que poderia se impor sanção a uma ação típica, que não fosse antijurídica? Poder-se-ia sancionar uma ação ilícita que não se adequasse a uma descrição típica? A sanção penal (penas e medidas) não é uma conseqüência do crime?

Ora, respondidas as indagações certamente chegar-se-á a conclusão de que a tipicidade e a antijuridicidade são também pressupostos da pena. Na medida em que a sanção penal é conseqüência do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela.

Dessa forma, sem muito esforço poderá se afirmar que não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a antijuridicidade são pressupostos da pena; o crime, em si, é pressuposto da pena. Aliás, com bastante propriedade, Heleno Cláudio Fragoso já discorria nesse sentido, senão veja-se: "Crime é, assim, o conjunto de todos os requisitos gerais indispensáveis para que possa ser aplicável a sanção penal. A análise revela que tais requisitos são a conduta típica, antijurídica e culpável (...)" [70].

Diante do exposto, perfeito é a afirmação irrefutável de Cerezo Mir, citado por Cezar Roberto Bitencourt, que discorre:

"Os diferentes elementos do crime estão numa relação lógica necessária. Somente uma ação ou omissão pode ser típica, só uma ação ou omissão típica pode ser antijurídica e só uma ação ou omissão antijurídica pode ser culpável" [71].

Entretanto, ainda não convencido do entendimento supracitado e tentando justificar a nova idéia de que a culpabilidade certamente é pressuposto da pena, Damásio E.de Jesus [72] assevera que o Código Penal sustenta essa posição, pois quando trata da exclusão da ilicitude, utiliza expressões como "não há crime"(artigo 23), "não se pune o aborto" (artigo 128), "não constituem injúria ou difamação punível"(artigo 142), ao passo que, para tratar da exclusão da culpabilidade as expressões usadas são "é isento de pena"(artigos 26, caput, e 28, §1º). Conclui que, na primeira hipótese, quer a lei dizer que não existe o crime, e, na segunda, o agente não é culpável, mas o crime existe.

Esta argumentação não é suficiente para dar sustentação à idéia defendida, até porque não é coerente. Nessa oportunidade, necessário se registrar a opinião de Ney Moura Teles, que discorre [73]:

Ao falar da expressão utilizada na norma do art.22—que trata da exclusão da culpabilidade pela coação moral irresistível ou obediência hierárquica—"só é punível o autor da coação ou da ordem"¸ Damásio E. de Jesus explica que, a contrário senso, está a lei dizendo "não é punível o autor do fato". Então, a lei usa a expressão "não é punível", para se referir a exclusão da culpabilidade. Ora, o mesmo Código Penal, no art.128, quando trata da exclusão da ilicitude do aborto necessário e do aborto ético, usa a expressão "não se pune" o aborto praticado por médico.

Dessa forma, partindo da explicação dada pelo doutrinador acima, necessário que se responda uma indagação: qual a diferença, de se perguntar, entre as expressões "não é punível" e "não se pune"?

É óbvio que não há nenhuma diferença. Não se pode buscar nas expressões utilizadas pela lei as soluções que ela não autoriza. Ademais, o Código Penal não se preocupou em conceituar o crime, daí porque usa expressões diversas para tratar de excludentes da ilicitude e igualmente diferentes para falar de excludentes da culpabilidade.

Indo mais além e não aceitando, em definitivo, a idéia de que a culpabilidade é característica do crime, Damásio E. de Jesus ainda tentando buscar subsídios na legislação penal substantiva para o entendimento de que a o juízo de reprovação é pressuposto da pena, apresenta um outro argumento, o qual, data vênia, pode-se dizer ser um tanto equivocado, uma vez que o jurista certamente não levou em consideração alguns aspectos que seriam imprescindíveis e que sem dúvida nenhuma, não apoiariam a idéia defendida.

Como já se tratou no capítulo anterior, acredita o citado jurista que o Código Penal Brasileiro admite a punibilidade da receptação, mesmo quando "desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa".

Convém registrar que em 1942, quando o Código entrou em vigor, ainda não se haviam propagado as idéias do finalismo, que apenas se iniciava.

Com efeito, sem nenhuma influência da doutrina finalista, o Código que então entrava em vigor, se embasou em outros pressupostos de política criminal, os quais, Cézar Roberto Bitencourt enumera [74]:

1º—De um lado, representa a adoção dos postulados da teoria da acessoriedade limitada, que também foi adotada pelo Direito Penal alemão em 1943, segundo o qual, para punir o partícipe, é suficiente que a ação praticada pelo autor principal seja típica e antijurídica, sendo indiferente a sua culpabilidade, que será sempre individual; 2º—de outro lado, representa a consagração da teoria da prevenção, na medida em que pior que o ladrão é o receptador, posto que a ausência deste enfraquece o estímulo daquele; 3º—finalmente, o fato de o nosso Código prever a possibilidade de punição do receptador, mesmo que o autor do crime seja isento de pena, não quer dizer que esteja se referindo, ipso facto, ao inimputável. O agente imputável, por inúmeras razões, como por exemplo, coação moral irresistível, erro de proibição, erro provocado por terceiro, pode ser isento de pena.

Dessa forma, impossível se afirmar que o próprio Código Penal Brasileiro aceita a idéia de que a culpabilidade é pressuposto da pena, visto que o crime de receptação foi tratado por ele, tendo em vista determinadas influências de legislações alienígenas, as quais nem sequer ainda levavam em consideração o pensamento finalista que ainda se iniciava no mundo jurídico.

Aliás, em razão de todo o exposto nesta unidade, nenhum argumento tem o condão de convencer de que o Código Penal pátrio adotou o posicionamento segundo o qual o juízo de reprovação não faz parte do crime, até porque é fácil perceber-se que a idéia de culpabilidade enquanto característica do delito é capaz de combater quase todos os entendimentos contrários a ela.

5.3.DA INCIDÊNCIA DO JUÍZO DE CENSURA SOBRE A AÇÃO CRIMINOSA

Foi exaustivamente tratado nesse capítulo que o crime, do ponto de vista analítico pode ser visto como um fato típico, antijurídico e, para alguns doutrinadores, de acordo com o seu posicionamento, também culpável.

Frisou-se, ainda, que uma corrente doutrinária, cada vez mais forte no Brasil e comandada atualmente por Damásio E. de Jesus, acredita que a culpabilidade não deve fazer parte das características do crime, mas sim funcionar como mero pressuposto da pena, visto que, com a Teoria Finalista, a mesma esvaziou-se dos "seus" elementos fundamentais, quais seja o dolo e a culpa, integrantes, a partir de então, da conduta, elemento do fato típico.

Questão interessante que deve ser discutida é o fato de que a culpabilidade, enquanto elemento necessário para imposição da pena, recai sobre o agente e não sobre o fato; em outras palavras, seria correto a afirmação de que sempre que o agente comete um fato descrito em lei como crime e não esteja acobertado por uma excludente de ilicitude, o delito existirá, mas, para que haja a imposição de pena é necessário que seja feita a análise da culpabilidade diretamente no sujeito, pois é nele que aquele elemento vai incidir?

Em verdade, a reprovação recai sobre o comportamento do sujeito, e não sobre ele isoladamente, como se fosse possível isolá-lo do fato.

A concepção do crime apenas como conduta típica e antijurídica, colocada a culpabilidade como concernente à teoria da pena, talvez venha trazer sérios riscos ao Direito Penal.

Deve-se ter sempre em vista que o direito de punir do Estado baseia-se em condutas proibidas previamente em lei. O núcleo de cada crime que o Código Penal descreve são verbos e verbos significam ações, condutas que se forem praticadas certamente terão uma resposta penal, que é a sanção.

Ora, talvez o Direito Penal que atende aos interesses de uma sociedade democrática é aquele que se assenta sobre o fato praticado pelo agente, e não ao contrário, sobre o agente do fato, como os defensores da culpabilidade enquanto pressuposto da pena pensam. É claro e evidente que a reprovação da conduta é dirigida ao agente, quem é quem vai sofrer a pena, como não poderia deixar, mesmo, de ser, mas isso não significa que ela incide sobre a pessoa do sujeito, sem a consideração do fato praticado.

É necessário sempre se ter em vista que o crime é furtar, estuprar, matar. Pune-se, de conseqüência, o furto, o estupro, o homicídio, não o ladrão, por ser ladrão, nem o estuprador e o homicida, por serem estuprador e homicida.

Talvez um Direito Penal que volte seu norte para a culpabilidade do agente, com sua personalidade e seu caráter, privilegiando-a, em detrimento da culpabilidade do fato praticado, pode significar um golpe profundo nas conquistas obtidas pela humanidade nos últimos anos, deixando de lado um Direito Penal que pune fatos e acolhendo de volta o Direito Penal do autor, de pesarosas lembranças.


CONCLUSÕES

Como já dizia Heleno Cláudio Fragoso, "a culpabilidade é o tema mais tormentoso do Direito Penal desde os seus primórdios" [75].

O objeto do presente trabalho é um exemplo da complexidade que envolve tão fascinante instituto jurídico.

O que seria a culpabilidade? Pressuposto da pena? Característica do crime?

Demonstrou-se em várias laudas que diversas são as opiniões entre os renomados juristas, os quais, preocupados com a temática, tentam determinar o correto papel do juízo de reprovação na Teoria Geral do Delito.

A idéia de que a culpabilidade é pressuposto da pena pauta-se basicamente no entendimento de que aquela não incide sobre o fato, mas sim sobre o sujeito isoladamente. Com efeito, o agente, ao praticar um fato típico e antijurídico, estará incidindo em um ilícito penal e, portanto, haverá crime, independentemente do mesmo ser culpável ou não. O juízo de reprovação apenas funcionará como elo de ligação entre o indivíduo e a pena; em outras palavras haverá crime sempre que o sujeito praticar um fato descrito e definido em lei como crime e não acobertado por uma das causas excludentes da ilicitude, entretanto, o indivíduo só será punido se for culpável.

Já os doutrinadores que entendem que a culpabilidade é e sempre será característica do crime, acreditam, basicamente, que o crime possui três notas características, quais sejam: a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. O verdadeiro pressuposto da pena é o crime, em si, com todas as suas peculiaridades. Em verdade, a culpabilidade incide sobre o comportamento do sujeito e não sobre ele isoladamente. O que o direito pune são os fatos praticados pelos indivíduos e não estes propriamente ditos.

Ambas as correntes doutrinárias merecem ser respeitadas, entretanto, data vênia, a idéia de que a culpabilidade é característica do crime é a mais concisa e resistente frente aos diversos questionamentos levantados a respeito do assunto.

Não se pode acolher a concepção bipartida do crime que refere ser este apenas um fato típico e antijurídico, simplificando em demasia a culpabilidade e colocando-a como mero pressuposto da pena.

Assim sendo, haveria-se de considerar criminoso o menor de 18 anos simplesmente porque praticou um fato típico e antijurídico ou aquele que tenha sido levado a sua prática por erro escusável de proibição. Assim, sem ter a menor idéia de que o que praticava era ilícito, seria considerado um criminoso.

Ora, se não se pode reprovar a conduta desses agentes, porque ausente a culpabilidade, é incabível dizer que são "criminosos", mas deixam apenas de receber pena. Se não há reprovação—censura—ao que fizeram, não há crime, mas somente um injusto, que pode ou não dar margem a uma sanção.

A importância da culpabilidade se alarga no Direito Penal moderno e não diminui, de forma que é inconsistente deixá-la de fora do conceito de crime, até porque traz sérios riscos do Direito Penal.

Deve-se ter sempre em vista que o direito de punir do Estado baseia-se em condutas proibidas previamente em lei. O núcleo de cada crime que o Código Penal descreve são verbos e verbos significam ações, condutas que se forem praticadas certamente terão uma resposta penal, que é a sanção.

Do ponto de vista funcional o Direito Penal que atende aos interesses de uma sociedade democrática é aquele que se assenta sobre o fato praticado pelo agente, e não ao contrário, sobre o agente do fato, como os defensores da culpabilidade enquanto pressuposto da pena imaginam. É claro e evidente que a reprovação da conduta é dirigida ao agente, que é quem vai sofrer a pena, como não poderia deixar de ser, mesmo, mas isso não significa que ela incide sobre a pessoa do sujeito, sem a consideração do fato praticado.

Dessa forma, torna-se curial citar a precisa conclusão de David Teixeira de Azevedo, criticando, identicamente, a posição bipartida (fato típico e antijurídico) do crime [76]:

A concepção do crime apenas como conduta típica e antijurídica, colocada a culpabilidade como concernente a teoria da pena, desmonta lógica e essencialmente a idéia jurídico penal de delito além de trazer sérios riscos ao Direito Penal de cariz democrático, porquanto todos os elementos que constituem pressuposto da intervenção estatal na esfera da liberdade- sustentação de um Direito Penal minimalista- são diminuídos de modo a conferir-se destaque à categoria da culpa, elevada agora a pressuposto único da intervenção. Abre-se perigoso flanco à concepção da culpabilidade pela conduta de vida, pelo caráter, numa avaliação tão-só subjetiva do fenômeno criminal. O passo seguinte é conceber o delito tão-só como índice de periculosidade criminal, ao feito extremo da defesa social de Filippo Gramatica, cuidando-se de assistir, para modificar o homem, seus valores, sua personalidade. É uma picada aberta ao abandono do Direito Penal do fato, pelo desvalor da conduta e acolhimento do Direito Penal do autor, de pesarosas lembranças.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AZEVEDO, David Teixeira de. A culpabilidade e o conceito tri-partido do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.


NOTAS

1 Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, p.35, v.1.

2 Fernando Capez, Curso de direito penal,p.195, v.1.

3 Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, p.37, v.1.

4 Cézar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, p.123.

5 Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, p.40, v.1.

6 Cézar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, p.125.

7 Cézar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, p.111

8 Franz Von Litz, Tratado de derecho penal,p.390 apud Cézar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, p.116

9 O crime pode, pois, ser doloso, quando o agente quer o fato ou culposo, quando o agente não quer, mas dá causa ao resultado previsível.

10 Para a Teoria Causal, a conduta é um comportamento humano voluntário no mundo exterior, que consiste em fazer ou não fazer. É um processo mecânico, muscular e voluntário em que prescinde do fim a que essa vontade se dirige. Basta que se tenha a certeza de que o agente atuou voluntariamente, sendo irrelevante o que queria, para se afirmar que praticou a ação típica.

11 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.458, v.1.

12 Na culpa inconsciente o resultado não é previsto pelo agente, embora previsível. É a culpa comum que se manifesta pela imprudência, negligência ou imperícia.

13 Sobre o assunto, v. Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.458, v.1.

14 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal, p.196.

15 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.458, v.1.

16 Para a teoria finalista da ação, como todo comportamento do homem tem uma finalidade, a conduta é uma atividade final humana e não um comportamento simplesmente causal. A vontade constitui elemento indispensável à ação típica de qualquer crime, sendo seu próprio cerne.

17 Neste sentido, Júlio Fabbrini Mirabete,, Manual de direito penal, p.197.

18 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal, p.197

19 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.467, v.1.

20 Art.26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

21 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.469, v.1.

22 Júlio Fabbrini Mirabete,, Manual de direito penal, p.211.

23 E.Magalhães Noronha, Direito penal, p.165, v.1.

24 Fernando Capez, Curso de direito penal, p.282, v.1.

25 Júlio Fabbrini Mirabete,, Manual de direito penal, p.211.

26 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.501, v.1.

27 Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.330, v.1.

28 Art.19. É isento de pena o agente que, em razão de dependência, ou sob efeito de substancia entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica proveniente de caso fortuito ou forca maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

29Fernando Capez, Curso de direito penal, p.283, v.1.

30 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal, p.197

31 Neste sentido, Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.329, v.1.

32 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.501, v.1.

33Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.331, v.1.

34 Fernando Capez, Curso de direito penal, p.283, v.1.

35 Genival Veloso de Franca, Medicina legal, p.78.

36 Neste sentido, Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.331, v.1.

37 Indivíduo que apresenta perda de parte da capacidade de entendimento e autodeterminação, em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

38Fernando Capez, Curso de direito penal, p.285, v.1.

39 Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, p.220.

40 Genival Veloso de Franca, Medicina legal, p.102.

41 Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, p.220.

42 Neste sentido, Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.338, v.1.

43 Circunstância agravante genérica é todo componente não essencial da figura típica situado ao seu redor com a finalidade de lhe conferir características meramente acessórias, que levam a pena a ficar mais grave.

44 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.513, v.1.

45 Art.5º, LVII. Ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

46 Fernando Capez, Curso de direito penal, p.288, v.1.

47 Art.28, §1º-É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou forca maior, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

48 Fernando Capez, Curso de direito penal, p.288, v.1.

49 Neste sentido, Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.346, v.1.

50 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.513, v.1.

51 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.474, v.1.

52 Cézar Roberto Bitencourt, Manual de direito penal, p.110.

53 Neste sentido, Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.474, v.1.

54 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.475, v.1.

55 Fernando Capez, Curso de direito penal, p.298, v.1.

56 Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.357, v.1.

57 Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, p.230.

58 Grande parte da doutrina ainda compartilha desse pensamento, entretanto essa corrente está sendo fortemente combatida por alguns penalistas encabeçados por Damásio E.de Jesus que acredita que a culpabilidade seja tão somente pressuposto da pena.

59 Neste sentido, Damásio E. de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete, Celso Delmanto, Flávio Augusto Monteiro de Barros, entre outros.

60 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.453, v.1.

61 Art.180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte.

62 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.454, v.1.

63 Será visto mais adiante que para os penalistas simpatizantes da idéia de culpabilidade enquanto característica do crime, o juízo de reprovação deve, como sempre aconteceu, incidir sobre o fato e não levar em consideração tão somente o sujeito isoladamente.

64 Necessário se lembrar que os elementos da culpabilidade são: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

65 Flávio Augusto Monteiro de Barros, Direito penal, p.105, V.1.

66 Alguns doutrinadores conhecem essa corrente como Teoria Tripartida em razão dos elementos caracterizadores do crime, o qual, para os adeptos a esse entendimento são o fato típico, a antijuridicidade e a culpabilidade.

67 Guilherme de Souza Nucci, Código penal comentado, p.91.

68 René Ariel Dotti, O incesto, p.173 apud Cezar Roberto Bitencourt, Direito penal, p.103.

69 Heleno Cláudio Fragoso. Lições de direito penal, p.198.

70 José Cerezo Mir, Curso de derecho penal español, p.267 apud Cezar Roberto Bitencourt, Direito penal, p.107.

71 Damásio E. de Jesus, Direito penal, p.453, v.1.

72 Ney Moura Teles, Direito penal, p.290, v.1.

73 Cezar Roberto Bitencourt, Direito penal, p.106.

74 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal,p.125.

75 David Teixeira de Azevedo, A culpabilidade e o conceito tri-partido do crime, p.68.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, Luciano da Silva. Culpabilidade: pressuposto da pena ou característica do crime?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 271, 4 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5047. Acesso em: 18 abr. 2024.