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Identidade étnica, comunidades quilombolas e territorialidade: impasses para a regularização fundiária

Identidade étnica, comunidades quilombolas e territorialidade: impasses para a regularização fundiária

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O direito das comunidades quilombolas às terras que ocupam não se resume meramente a um direito patrimonial, pois representa um dos expoentes da manifestação da identidade étnica daquele povo, de modo que a sua garantia é requisito para a manutenção daquela comunidade.

"Houve um tempo em que a terra gemia

E um povo tremia de tanto apanhar

Tanta chibata no lombo que muitos morriam o mesmo lugar

Deu bandeira, dançou na primeira, dançou

Capoeira, dançou de bobeira, dançou na maior

Deu canseira, sambou na poeira, tossiu na fileira, dançou pra danar

O meu pai, minha mãe, minha avó tanta gente tristonha que veio de lá Minha avó já morreu, o meu pai lá se foi, só ficou minha mãe pra rezar

Deu bandeira...

Vez em quando me lembro dos fatos que meu avô cantava nas noites de frio

Não chorava, porém não sorria

Mentir não mentia, fingir não fingiu

Deu bandeira...

Liberdade além do horizonte, morreu tanta gente de tanto sonhar.

Foi Zumbi!

A Princesa Isabel assinou um papel

Dia 13!”

Itamar Assumpção

RESUMO:O presente trabalho teve como escopo a análise dos direitos territoriais das comunidades quilombolas como essenciais para a manutenção da identidade étnica desse povo, bem como dos impasses para a efetivação desses direitos. Inicialmente, realizou-se um estudo da identidade étnica, ressaltando a sua importância para a construção do conceito de comunidade quilombola. Em seguida, explicou-se o motivo para a territorialidade representar um dos fatores de grande relevância para a formação identitária desse povo. Foi abordado, ainda, o histórico da resistência do povo quilombola, examinando, também, as razões que levaram à escravidão do povo negro por parte dos colonizadores. A partir da análise da legislação vigente que tutela os direitos territoriais das comunidades quilombolas, bem como da ADI 3239 que requer a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003, foi abordada a problemática na efetividade dos direitos dos remanescentes de quilombo, mesmo diante de um aparato legislativo com respaldo constitucional, qual seja, o art. 68 da ADCT, buscando como possível solução a inversão no procedimento de titulação para dar maior celeridade ao processo de titulação das terras quilombolas.

Palavras-chave:Comunidades Quilombolas; Identidade Étnica; Direitos Territoriais; Impasses.

SUMÁRIO:​ 1..INTRODUÇÃO.2.IDENTIDADE ÉTNICA, COMUNIDADES QUILOMBOLAS E TERRITORIALIDADE   2.1... CAMINHOS DA IDENTIDADE E A ETNICIDADE..2.2... CONCEITO DE COMUNIDADE QUILOMBOLA.. 2.3... TERRITORIALIDADE E RESISTÊNCIA QUILOMBOLA..3....... ORIGENS DA RESISTÊNCIA QUILOMBOLA NO BRASIL E MARCO LEGAL..3.1... HISTÓRICO DA RESISTÊNCIA: DE PALMARES AOS DIAS ATUAIS.3.2... MARCO LEGAL E INSTITUCIONAL. 4....... O DIREITO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS E O DIREITO VIGENTE..4.1... A PREVISÃO CONSTITUCIONAL: ART. 68, ADCT E A PREVISÃO NAS CONSTITUIÇÕES ESTADUAIS..4.2... A IMPORTÂNCIA DOS PACTOS INTERNACIONAIS NA TUTELA DOS DIREITOS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS..4.3... ESTATUTO RACIAL E A PREVISÃO DE TUTELA ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS 4.4.  A PROBLEMATICA NA DEFINIÇÃO DO ORGAO COMPETENTE PARA A TITULAÇÃO ..4.5... O DECRETO 4.887 DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003: UM PASSO IMPORTANTE NA CONCESSÃO DO TÍTULO DE PROPRIEDADE ÀS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO.4.6... ANÁLISE DA ADI N 3239 EM DISCUSSÃO NO STF QUE PROPÕE A INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO Nº 4.887/2003. 4.7   A BUSCA POR SOLUÇÕES EFETIVAS.5....... CONSIDERAÇÕES FINAIS.REFERÊNCIAS.


1    INTRODUÇÃO

A abolição da escravidão no Brasil, em 1888, mesmo representando uma vitória do povo negro, ainda deixou marcas de desigualdade social e descriminação na sociedade atual.

O direito à cultura, à moradia, ao reconhecimento da identidade étnica da população negra, em especial do povo quilombola, tem estreita relação com a garantia dos seus direitos territoriais. Em outras palavras, garantir o direito a terra às comunidades quilombolas significa conceder-lhes o direito ao reconhecimento da sua identidade e a manutenção da sua existência.

O art. 68 da ADCT, prevendo o direito à propriedade definitiva das terras ao povo quilombola e, posteriormente, a edição do Decreto 4.887/2003, do Estatuto da Igualdade Racial, bem como a ratificação da Convenção 169 da OIT em território brasileiro, representaram um enorme avanço para a tutela dos seus direitos. Todavia, a efetividade de tais normas ainda encontra muitos empecilhos, tanto burocráticos, quanto políticos.

No presente trabalho, pretende-se analisar a situação jurídica das comunidades “remanescentes” de quilombo no Brasil, com enfoque na questão identitária e territorial. Em outras palavras, será feita uma análise da legislação vigente que tutela os direitos territoriais das comunidades quilombolas, com enfoque na previsão do art. 68 da ADCT,analisando, também, a ADI 3239 proposta pelo PFL (atualmente DEM) que requer a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003. Deste modo, buscaremos investigar a problemática na efetividade dos direitos territoriais dos remanescentes de quilombo.

Destarte, o trabalho situar-se-á no campo da sociologia jurídica, da análise jurisprudencial e doutrinária, empregando métodos das ciências sociais, hermenêutica e interpretação da ciência jurídica, utilizando como referência bibliográfica básica as obras dos autores Alfredo Wagner, Thaís Colaço, Daniel Sarmento, Gilmar Bittencourt, Roberto Cardoso de Oliveira, entre outros.


2    IDENTIDADE ÉTNICA, COMUNIDADES QUILOMBOLAS E TERRITORIALIDADE

2.1      CAMINHOS DA IDENTIDADE E A ETNICIDADE

A luta pelo direito à terra das Comunidades Quilombolas está intimamente ligada à manutenção da sua identidade étnica. Na formação do Estado Moderno tentou-se implantar a ideia da existência de apenas um povo, pregando-se a ideia de uma sociedade monista, embora na realidade ela fosse plural.

O que significa reconhecer a identidade de um povo, de uma etnia? Qual caminho deve ser trilhado para o reconhecimento dessa identidade? Esses são questionamentos que permeiam as pesquisas de muitos pensadores sobre o tema. Há, todavia, um certo consenso entre eles no que diz respeito ao aspecto relacional da etnicidade, devendo existir uma dualidade entre Nós/Eles,  pois a “etnicidade não se manifesta nas condições de isolamento, é, ao contrário, a intensificação das interações características do mundo moderno e do universo urbano que torna salientes as identidade étnicas” (POUTGNAT e STREIFF-FENART, 2011, p. 124).

Nesse sentido, Barth (apud POUTGNAT e STREIFF-FENART) explica que o conflito e a interação social são de extrema importância na formação identitária de cada grupo étnico. Para ele, não há uma fórmula pronta e pré-definida para a formação da identidade de um povo, não bastando identificar os seus traços culturais, a sua língua, o seu território e os seus costumes para que essa identidade seja formada. Em verdade, os grupos são “categorias de contraste” (BARTH apud POUTGNAT e STREIFF-FENART), ou seja, a sua identidade será formada a cada nova situação, a depender da interação daquele grupo com o outro e ou com o ambiente que ocupam.

Desta forma, quanto maior a inter-relação de um grupo com os demais, mais marcada será a sua fronteira étnica, na medida em que a cada situação vivenciada por aquele grupo, uma nova categoria étnica seria ativada, obrigando-o a adotar determinados padrões de existência, mas sempre reforçando a distinção e o dualismo entre Nós/Eles, ou seja, entre membros e não-membros.

Ora, desde então Barth verificou a importância da auto-definição para a formação identitária de um grupo étnico, pois não há como pré-definir diferenças que formarão a sua identidade, de modo que cada grupo irá definir aquelas que forem significativas para tanto em cada situação concreta (BARTH apud POUTGNAT e STREIFF-FENART).

Do mesmo modo, a cultura e as tradições daquele povo tem grande relevância para a formação da fronteira étnica entre os grupos, mas o que interessa não é o conteúdo daquela cultura, as vestimentas, os santos que cultuam, ou o modo como lidam com a terra, mas sim o “limite” (BARTH apud POUTGNAT e STREIFF-FENART) que será negociado pelo grupo a cada situação específica, a cada interação com o outro. Deste modo, importa dizer que a fronteira étnica de cada grupo pode variar, a depender da situação que será vivenciada por ele.

Essa relação de dualismo e interação é essencial para o reconhecimento do outro, mais especificamente da sua identidade étnica, de forma que é preciso considerar “os outros como doadores de sentido” como bem afirmou George Herbert Mead (apud OLIVEIRA, 2006, p. 26).

No mesmo sentido, é preciso esclarecer a diferença semântica entre “conhecer” e “reconhecer” apresentada por Alex Honneth (apud OLIVEIRA, 2006, p. 31-2). Honneth afirma que o conceito de conhecimento está ligado a uma atribuição individual, um “ato não público”, relaciona-se ao “valor social” que aquele indivíduo representa, evidenciado o caráter relacional do reconhecimento da identidade de um grupo ou indivíduo (apud OLIVEIRA, 2006, p. 31).

Todavia, é importante ressaltar que esse reconhecimento não está ligado unicamente ao campo jurídico, mas também ao campo moral. Negar o seu direito ao reconhecimento configura uma ofensa à moral daquele indivíduo ou grupo (HONNETH apud OLIVEIRA, 2006, p. 34).

Para que haja o reconhecimento de um povo, o seu auto-reconhecimento representa uma peça-chave, principalmente quando falamos nos direitos das minorias, mais especificamente dos negros e índios brasileiros. A partir do momento em que essa minorias passam a exigir respeito ao seu modo de vida, à suas tradições e cultura, recuperando a sua auto-confiança e auto-estima, o reconhecimento desse povo vem em seguida, quando o Estado passa a tutelar esses direitos, respeitando o direito à diferença, e reconhecendo o seu modo de vida como legítimo .

Mas como bem demonstrou Roberto Cardoso de Oliveira (2006, p. 46), a maior barreira que esses povos encontram para o seu auto-reconhecimento e, consequentemente, o reconhecimento pelo outro, é o preconceito, e não reconhecer o direito desses povos implica em negar-lhes a cidadania.

Para apresentar a relação entre o reconhecimento desses povos com o território que ocupam é necessário, de antemão, apresentar o conceito de etnia e, em seguida, de identidade étnica, como bem explicam as autoras Raquel Sparemberger e Carolina Kretzmann:

Expulsar as populações de seus locais de origem (como ocorre nos modelos de unidades de conservação integral, por exemplo), onde vêm desenvolvendo sua cultura e lutando pela sua sobrevivência há gerações, recolocando-os em áreas que não oferecem condições de manutenção e que não permitem a continuidade de seu modo de vida tradicional, apenas colabora para a sua marginalização e empobrecimento. (SPAREMBERGER e KRETZMANN, 2011, p.113).

O conceito de etnia, no senso comum, está relacionado unicamente ao conceito de raça, mas esse pensamento não condiz com o conceito mais apropriado, sendo o primeiro muito mais amplo que o segundo. “Etnia é a definição de um povo, marcado por traços culturais que lhe dão uma identidade própria” (BRITO, 2011, p. 46).

Antônio Brito entende que o conceito de raça é uma ideia ultrapassada, estando o conceito de etnia muito além dos “critérios físicos e reducionistas”. A cultura, sim, pode ser relacionada ao conceito de etnia, pois nós “conhecemos um povo pela forma como se veste, pela maneira que chora seus mortos, por suas preferências alimentares, por suas festas e suas crenças espirituais” (BRITO, 2011, p. 47). A partir da cultura de um povo, se constrói a sua identidade, sendo ela – a identidade – o que caracteriza a etnia.

Desta forma, verifica-se que a identidade de um povo é construída com base na diferença, no contraste derivado da inter-relação, como foi demonstrado acima com base nos ensinamentos de Barth (apud POUTGNAT e STREIFF-FENART). Em outras palavras, a identidade de um grupo étnico é formada com base no que aquele povo tem de particular, de diferente de outro povo, como disse Silva (apud BRITO, 2011, p. 48): “assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade”. Nesse sentido, as comunidades quilombolas buscam o respeito ou, a tolerância às diferenças[1].

É importante, também, apresentar o conceito de comunidades tradicionais na medida em que comunidades quilombolas são apenas uma de suas vertentes. Vejamos:

As comunidades tradicionais caracterizam-se pela dependência em relação aos recursos naturais com os quais constroem seu modo de vida; pelo conhecimento aprofundado que possuem da natureza, que é transmitido de geração a geração oralmente; pela noção de território e espaço onde o grupo se reproduz social e economicamente; pela ocupação do mesmo território por várias gerações; pela importância das atividades de subsistência, mesmo que em algumas comunidades a produção de mercadorias esteja mais ou menos desenvolvida; pela importância dos símbolos, mitos e rituais associados as suas atividades; pela utilização de tecnologias simples, com impacto limitado sobre o meio; pela auto-identificação ou pela identificação por outros de pertencer a uma cultura diferenciada, entre outras. (DIEGUES e ARRUDA apud SPARMBERGER e KRETZMANN, 2011, p. 109).

Para as comunidades tradicionais, a noção de território vai muito além do ponto de vista econômico, por ser a sua fonte de renda e subsistência, representando um dos aspectos essenciais para a formação da sua identidade. “Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território é também o locus das representações e do imaginário mitológico dessas sociedades tradicionais” (DIEGUES e ARRUDA, apud SPARMBERGER e KRETZMANN, 2011, p. 110).

2.2      CONCEITO DE COMUNIDADE QUILOMBOLA

A palavra “Quilombo”, na linguagem iorubá, significa “habitação”, e em banto, “reunião de acampamentos”, “união” (LOPES, 1988, p. 140). Além da conceituação morfológica, é de tamanha importância apresentar os conceitos de quilombo construídos socialmente, desde período escravagista, até os dias atuais.

O quilombo foi a unidade básica de resistência do escravo perante a sociedade em que vivia (MOURA, 1992, p. 14). O cerne do problema para a conceituação de Quilombo é a tendência em torná-la estática, vinculada à ideia de comunidades primitivas, associadas ao passado e ainda hoje, esse conceito está rodeado de muitas dúvidas e incertezas, o que acaba por dificultar a luta dessas comunidades pelo seu reconhecimento.

Moura (apud LEITE, 2000) ressalta o conceito de Quilombo como forma de organização e resistência, na medida em que se formaram em todos os lugares onde houve a escravidão. Somado a isso, a capacidade organizativa dos Quilombos também representa um traço característico de extrema relevância, pois mesmo tendo sido destruídos várias vezes, ressurgiam em novos lugares. Deste modo, a autosubisistência econômica desses grupos fortaleceu o seu poder de resistência (MOURA apud LEITE, 2000), pois eles conseguiam se reorganizar em novos lugares a cada novo ataque do “inimigo”.

É preciso, também, conceituar a forma de uso da terra por essas comunidades para contextualizar a problemática na conceituação de Quilombo.

Diante da ausência de denominação daquelas terras ocupadas por essas populações, surgiu a necessidade de uma nova categorização, qual seja, “ocupações especiais”. Ao se verificar que haviam situações onde a utilização de recursos naturais não se dava de forma individualizada, foi necessário criar uma nova categoria para abarcá-las pois, embora legítimas, ainda não haviam sido reconhecidas. Elas equivalem às “terras de uso comum”, que se caracterizam por utilizar diferentes formas de uso e apropriação da terra, relacionadas com “fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, por elementos identitários peculiares e por critérios político-organizativos e econômicos, consoante práticas e representações próprias” (ALMEIDA, 2002, p. 45). Em outras palavras, a designação oficial das “ocupações especiais” abarcava as chamadas “terra de preto, terra de santo e terra de índio”.

A Constituição Federal de 1988, que trouxe no art. 68 da ADCT a expressão “remanescente das comunidades dos quilombos”, embora tenha representado um avanço na luta das comunidades quilombolas pelo seu reconhecimento, causou muita discussão e discordâncias do conceito de quilombo que estava sendo construído. Vejamos: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

Todavia, a denominação “remanescente de comunidades de quilombos”, presente no citado artigo, pareceu estar mais voltada para o passado do que para o presente. Os movimentos sociais tiveram grande importância nesse momento, ao questionar o conceito restritivo de quilombo que estava posto na ordem constitucional, na medida em que o art. 68 da ADCT só estaria contemplando o direito sobre a terra por parte de ex-escravos e seus descendentes. Passou a se questionar qual seria o verdadeiro conceito de “quilombo” abarcado pela ordem jurídica brasileira.

Ficou comprovado que esse conceito ainda estava associado ao conceito do período escravagista, estando engessado até os dias atuais, tendo sido elaborado como uma resposta do rei de Portugal, em 1740. Nesse sentido, o conceito de quilombo era, segundo o Conselho Ultramarino de 1740,“toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranhos levantados e nem se achem pilões nele” (ALMEIDA, 2002, p. 47). Como se verifica, essa definição possui cinco elementos-chave.

Primeiramente, a fuga, ou seja, para a configuração de um quilombo era necessário que lá estivessem abrigados escravos fugidos. O segundo requisito é a quantidade mínima de cinco escravos em cada quilombo. Em terceiro lugar, o isolamento geográfico, ou seja, os quilombos deviam estar situados longe da “civilização”, da Casa Grande. Em quarto lugar, era o “rancho”, que configurava a necessidade de uma moradia habitual. Por fim, ressaltava-se a necessidade da existência do “pilão”, instrumento utilizado para transformar arroz cozido em alimento, ou seja, era necessário que aqueles escravos fugidos que ali se alojassem tivessem uma forma de autosubsistência e de reprodução.

Ressalte-se, ainda, que embora a ideia de quilombo estivesse associada à de “agrupamento de vadios que negavam o trabalho” (ALMEIDA, 2002, p. 49), ficou comprovada a produtividade desses quilombos, ainda no séc. XIX, durante algumas campanhas bélicas, onde eles – os quilombos – foram abrigos para famílias de imigrantes cearenses fugidos da seca. Os quilombos não eram destruídos, mas apenas os quilombolas eram expulsos das suas terras para dar lugar aos imigrantes, que passavam a utilizar as mesmas ferramentas, e forma de cultivo dos quilombolas.

Durante vários anos esses cinco elementos apresentados que compõem o conceito de quilombo não sofreram mudanças reais, até o momento em que ocorreu a abolição da escravatura e se imaginou que não mais seria necessário um conceito de quilombo, pois eles iriam desaparecer, juntamente com o regime escravocrata, o que não ocorreu. Somente 100 anos após a abolição da escravatura, na Constituição de 1988, foi elaborado o art. 68 da ADCT, fazendo surgir o quilombo como “remanescente”. Passou-se a reconhecer o que restou do passado, não o que existe no presente.

Embora existam autores que não enxerguem um conflito semântico com o uso da palavra “remanescente” para se referir às comunidades quilombolas atuais – como é o caso de Alcides Moreira Gama[2] (2007) –, Alfredo Wagner Almeida entende, sim, que há uma problemática em tal designação, pois não se deve “discutir o que foi, e sim o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente” (ALMEIDA, 2002, p. 53). Não se pode mais trabalhar com aquela conceituação de 1740. Para que haja esse rompimento é necessário, também, o abandono da ideia de “dualismo geográfico” que é atribuído ao quilombo, pregando que essas comunidades são situadas fora dos limites físicos da “casa grande”.

A situação de acamponesamento que se originou a partir da falência dos grandes proprietários não foi reconhecida pela lei de terras de 1850. Baseando-se no conceito dualista de quilombo (“trabalho”versus“vadiagem”), os quilombolas sofreram fortes repressões, sendo obrigados a retornarem à Casa Grande para ter a força de trabalho explorada e, por isso, muitos quilombos foram destruídos. O objetivo era transferir a força de trabalho que estava dentro dos quilombos para as grandes plantações sob a alegação de fazê-los retornarem ao trabalho e voltarem a ter “disciplina”, como se a disciplina e o trabalho não fossem as palavras-chave dos quilombos. (ALMEIDA, 2002).

Todavia, com a queda dos preços dos produtos, e com a perda do poder econômico dos grandes proprietários, a coerção não mais poderia ser exercida em face dos quilombolas. O quilombo mudou-se de lugar, agora ele estava dentro das grandes propriedades. Iniciou-se um processo de formação de uma camada de pequenos produtores familiares nessas áreas. A luta dos grandes proprietários havia invertido: antes, quilombo era aquilo que estava fora das grandes propriedades, e devia vir para dentro.

No entanto, o quilombo havia de ser posto para fora das grandes propriedades. Essa inversão acabou quebrando aquela dualidade outrora existente, pois restou claro que o quilombo tinha a sua autonomia, dentro, ou fora da grande propriedade. De acordo com os ensinamentos de Alfredo Wagner Almeida, “Isto muda um pouco aquele parâmetro histórico, arqueológico, de ficar imaginando que o quilombo consiste naquela escavação arqueológica onde há indícios materiais e onde estão as marcas ruiniformes da ancianidade da ocupação” (ALMEIDA, 2002, p. 60).

Quilombo é sinônimo de autonomia. Até mesmo durante o período colonial, restou comprovada a sua capacidade de autosubsistência, mas é preciso entender que os tempos são outros, que o seu conceito não deve mais ser associado àquele que fora construído no período escravagista, de modo que algumas provas documentais e arquivísticas podem e devem ser relativizadas.

A tradição popular brasileira concedeu ao Quilombo uma diversidade de significados (LOPES, SIQUEIRA e NASCIMENTO apud LEITE, 2000), “ora associado a um lugar, ora a um povo que vive neste lugar, ou a manifestações populares, ou ao local de uma prática condenada pela sociedade, ou a um conflito, ou a uma relação social, ou ainda a um sistema econômico”. Desta forma, o Quilombo tem o poder de representar diversas experiências e situações que dizem respeito à história das Américas pois, como bem assinalou Guilhermo Giucci (apud LEITE, 2000), a história das Américas produziu uma diversidade de histórias, estando o Quilombo presente na formação de várias delas, pois o povo negro estava inserido no movimento colonial “descobrindo, resgatando, povoando e governando – só que como povos dominados” (GIUCCI apud LEITE, p. 337).

A restrição imposta pelo art. 68 da ADCT, ao atribuir o direito à terra ao “remanescente” de quilombo é inapropriada, pois o conceito de “remanescente” está ligado à ideia de “fugido”, mas nem todos os escravos fugiram. Tiveram alguns que permaneceram, que ajudaram outros a fugir, mas isso não tira o seu direito de ter a posse da terra, pois embora não tenha chegado, de fato, à um quilombo, não tenha sido um escravo fugido, ter permanecido na casa grande, ou ajudado outros à saírem foi um papel importante para a resistência ao sistema então vigente (ALMEIDA, 2002).

Sendo ultrapassado esse conceito restrito de quilombo, inúmeras situações irão ser abarcadas pela nova definição: casos de terras compradas pelos próprios escravos alforriados, áreas adquiridas por herança e até mesmo recebidas por doação dos grandes proprietários falidos em razão da baixa dos preços dos produtos, ou até mesmo na questão das hipotecas, onde os escravos ajudavam a pagar a hipoteca, com a promessa de que a terra seria sua, o que jamais acontecia. Muitos conflitos ainda existem nos casos de terras herdadas, pois a documentação é precária. Por esse motivo, muitas vezes os documentos são relativizados e é dada uma maior importância a fontes secundárias, que são as narrativas dos agentes entrevistados.

Retomando as várias posições aventadas, pode-se asseverar que "quilombo" abrangeria hoje todas elas. Os fatores objetivos e a representação do real constituem, portanto, a realidade de referência. É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica "stricto sensu" e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa-de-força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos. A relativização dessa força do inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como quilombo. (ALMEIDA, 2002, p. 62).

Embora os legisladores coloniais tenham considerado o conceito de quilombo juridicamente diferente de “banditismo”, muitas vezes essa aproximação foi acentuada, como aconteceu no final do século XIX, quando houve a abolição da escravatura e, em tese, deixaria de existir a figura do quilombo, e os quilombolas passaram à categoria de “bandidos rurais” em razão de estudos de craniometria realizados por Nina Rodrigues e da marginalização que foram vítimas com a abolição da escravatura e a ausência de meios para se manter na sociedade. Apesar de ter discordado da teoria lombrosiana mais tarde, Nina Rodrigues continuou pregando a questão de “bando” e de seus “indícios étnicos”, o que ratificou a divisão de raças que já existia, reforçando a ideia de raça inferior e raça superior, pregando a ideia de “sobrevivência” dos quilombos, como se fossem uma forma bárbara, em contraposição à raça superior (ALMEIDA, 2002).

Para que haja uma ruptura com essa antiga definição de quilombo é necessário que os próprios grupos sociais, os “remanescentes” se autodefinam, como explicou Wagner Almeida (2002), ou seja, o que importa aqui não é como eles são definidos pelos outros, mas sim, quais são os critérios que formam a sua identidade, pois só eles conhecem os seus próprios conflitos, anseios e necessidades, e veremos que esse é um dos critérios de reconhecimento de uma comunidade quilombola previsto no Decreto 4.887/2003, que será abordado mais adiante. Eles têm a sua forma de utilizar a terra, de caçar, pescar e extrair recursos naturais, por exemplo. Algumas atividades são exercidas de forma coletiva, outras de forma individual, o que forma a identidade de cada grupo social. É preciso que cada grupo seja analisado da sua maneira, com os seus próprios olhos, ou a formação da sua identidade estará comprometida. Vejamos a explicação de Alfredo Wagner Almeida: “A incorporação da identidade coletiva para mobilizações e lutas, por uma diversidade de agentes sociais, pode ser mais ampla do que a abrangência de um critério morfológico ou racial” (ALMEIDA, 2002, p. 69).

A ideia da miscigenação seria o reflexo de uma sociedade não plural, onde cada um seria “posto em seu lugar devido”. A teoria democracia racial, apresentada por Gilberto Freyre (apud CARVALHO, 2005) demonstra o massacre da raça negra que ocorre com a aceitação da miscigenação.

Freyre insistia que nenhuma raça era inferior a outra por isso a nossa mestiçagem não era um problema e sim uma vantagem. Com esse argumento, ele conseguiu desviar inteiramente o debate da denúncia contra racismo social imperante, que incidia concretamente sobre a dificuldade de ascensão dos negros, feita, entre outros, pela Frente Negra Brasileira. Ao invés disso, enfatizou uma discussão de tipo humanista que colocava, de um lado, os vilões do século 19 que sustentava, a superioridade da raça ariana (Gobineau, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha); e de outro, os iluminados pela Antropolodia de Franz Boas, como o próprio Freyre, que enfatizavam a inexistência da desigualdade entre as raças. (CARVALHO, 2005, p. 19-20).

O quilombo dos Palmares, por exemplo, era formado por um conjunto de agentes sociais diversos: índios, “escravos fugidos”, “desertores”, “facinorosos do sertão”, que viviam juntos e havia, deste modo, uma sobreposição de formas no uso dos recursos naturais (ALMEIDA, 2002, p. 70). Neste sentido, as “terras de preto” não surgiram sozinhas, mas foram resultado de uma forte interação entre etnias. Deste modo, restringir a conceituação de um território quilombola a critérios arqueológicos seria contraditório, de modo que cada território quilombola tem a sua particularidade: aquele pode ter surgido em correspondência a um imóvel rural, aquele outro pode incluir imóveis rurais e, ainda, abranger terras públicas e privadas. Alfredo Wagner Almeida (2002) traz o conceito de novas etnias para explicar as novas categorias de formação e identidades coletivas[3].

Diante de tantas transformações sociais, generalizar as situações seria bastante perigoso, devendo ser feitas análises em cada caso concreto para não correr o risco de serem menosprezadas as especificidades de cada situação e, pregando uma igualdade que, na vera, não se concretizará.

A ruptura conceitual que derivou do surgimento das “novas etnias”, conceito trazido por Alfredo Wagner, tornou claro que a fronteira étnica deixou de coincidir com critérios raciais, culturais e linguísticos e passou a ser definida por um critério político-organizativo, ou seja, os grupos passaram a se formar com o intuito de obter condições para a sua reprodução econômica e cultural. O critério político-organizativo passou a ser um aglutinador. Abandonou-se a ideia de aceitar que o “outro” diga a qual grupo esse, ou aquele, ator social pertence, e quem passou a definir o seu caminho, a sua identidade. Cada um passou a ter a autoridade para tanto.

A forma como esses grupos lidam com a natureza traduz de forma bem precisa como é formada a sua identidade, como eles se autodefinem.

Nas áreas de comunidades quilombolas as fontes de água não secaram, diferentemente de muitos outros lugares que foram objeto de projetos agropecuários do Governo. A natureza ainda vive nesses lugares, e por que ainda insistem em se referir a tais comunidades como algo do passado, como “remanescente”?

Com o intuito de tentar solucionar a problemática da ideia “remanescente” de quilombo prevista no art. 68 da ADCT, o a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) foi convocada pelo Ministério Público para dar o seu parecer e tentar desfazer equívocos referentes à condição das comunidades quilombolas atuais. Em reunião realizada em outubro de 1994 com o Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, tentou-se desmistificar a associação feita entre quilombo e resíduos arqueológicos ou isolamento, tendo sido evidenciado o caráter organizacional, relacional e dinâmico (LEITE, 2000, p. 342) dos quilombos na atualidade, devendo ser visto como um direito a ser reconhecido na atualidade, não apenas como um passado a ser rememorado (LEITE, 2000).

2.3      TERRITORIALIDADE E RESISTÊNCIA QUILOMBOLA

O cerne dos conflitos que as comunidades quilombolas vivenciam dizem respeito à territorialidade, no seu direito à terra e, deste modo, na problemática da regularização fundiária. O princípio desse conflito está na forma como o homem lidou com a natureza nos primórdios da humanidade, ao instituir a necessidade de privatização de um bem, que até então era patrimônio de todos.

A relação dessas comunidades com os territórios que ocupam é de total dependência. “Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território é também o locus das representações e do imaginário mitológico dessas sociedades tradicionais” (DIEGUES, 2001, p. 50). O território pode ser entendido como “um espaço ao qual um certo grupo garante as seus membros direitos estáveis de acesso, de uso e de controle dos recursos e sua disponibilidade de tempo” (CASTRO, 1998, p. 174). Todavia, o conceito de território não se restringe apenas ao ponto de vista econômico e é no âmbito das comunidades tradicionais que tal conceito apresenta-se da forma mais ampla possível, refletindo na cultura, na religião e no modo de vida dessas comunidades.

Nas comunidades tradicionais, o conceito de território, bem como a organização para as atividades de trabalho, está intimamente relacionado às festividades, aos rituais e a outras manifestações de sociabilidade que configuram a interação entre os membros de tais comunidades.

A territorialidade para esses povos funciona como um fator identitário, como já dito anteriormente, inclusive para a promoção da defesa daquele grupo (ALMEIDA, 1989). Nesses casos, o acesso à terra não se resume à atividades produtivas de famílias, ou grupos de parentes, mas também por grupos que são formados em situações de adversidade.

Tais formas de uso da terra, também chamadas de “terra de uso comum” ainda são marginalizadas pelo nosso sistema legal, apesar da sua existência já ter sido evidenciada, não tendo sido, inclusive, objeto de qualquer inventariamento. Insiste-se em tratar essa modalidade de uso comum da terra como um anacronismo social, folclore, algo que não existe de fato, fruto das mentes "férteis" dos etnógrafos que recriam antigos “mitos” (ALMEIDA, 1989). Todavia, a existência desse sistema já é facilmente detectável, por pesquisadores, cientistas, técnicos de órgãos do governo que realizam vistorias nos imóveis rurais.

O censo agropecuário da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística tratou do tema de forma superficial, rebaixando a propriedade e a posse de tais terras à categoria censitária “estabelecimento”, sem qualquer atenção às particularidades que o usufruto comum da terra necessita para ser classificado e entendido sob o argumento de que tais formas de uso da terra tendem o desaparecimento (ALMEIDA, 1989).

Dizem, ainda, que o uso comum da terra e tais comunidades que delas fazem uso configuram-se por “instituições anacrônicas” que tornam aquelas terras impróprias para o mercado pois, segundo eles, tais sistemas de uso comum imobilizam a terra, na medida em que a endogamia, o casamento preferencial, as regras de sucessão e fatores étnicos criam mecanismos para a indivisibilidade daquele patrimônio, obstacularizando o repasse e, consequentemente, a inclusão daquela terra no mercado (ALMEIDA, 1989).

Deste modo, consideram que a expansão capitalista no campo “resolveria” tal situação, “liberando” aquelas terras para que fossem apropriadas individualmente, sem dar qualquer importância às particularidades que emanam daqueles territórios.

Para que se proceda o reconhecimento dos direitos daqueles que trabalham no campo, é necessário entender a forma como eles se apropriam dos recursos básicos. A luta camponesa para o reconhecimento de suas terras se concretizou no ano de 1985, quando foi lançado pelo INCRA a Proposta ao I Plano de Reforma Agrária da Nova República, diante das pressões sociais que ocorreram naquele ano (ALMEIDA, 1989). Estabeleceu-se o reconhecimento e a demarcação de tais terras de forma que não fosse destruída a organização e o sistema de apossamento que já era inerente àquela localidade. Impunha-se, também, medidas que assegurassem a permanência daqueles trabalhadores em suas terras.

Dessa luta derivou o Laudo Fundiário (LF) elaborado pela INCRA, que objetivava “levantar informações sobre os imóveis rurais e seus detentores a qualquer titulo, parceiros e arrendatários” (ALMEIDA, 1989, p. 138).

Neste documento, as terras de uso comum receberam a denominação genérica de “ocupações especiais”, abrangendo dentre outras, as chamadas “terras de santo”, “terras dos indios” (que não devem ser confundidas com as terras indígenas), “terras de negro”, “fundos de pasto” e “pastos comuns”, também cognominados “terras abertas”, “terras soltas” e “campos”. (ALMEIDA, 1989, p. 138).

Com a Nova República e a proposta de reforma agrária daquele tempo, as apreensões no sentido da não efetividade dos Laudos Fundiários aumentaram ainda mais.

Os sistemas de uso comum surgem como resultado de uma crise nas plantations, como foi explicado no tópico anterior, onde as grandes propriedades de monocultura deram lugar às terras de uso comum, diante do abandono, doação e entrega das suas terras pelos grandes proprietários aos camponeses.

A distribuição de funções de grupo não se dava necessariamente com fulcro no principio da igualdade, ou seja, nem todos possuíam a mesma quantidade de terra. Eles criaram seus próprios critérios para repartir a terra, as funções a serem desempenhadas. O critério para a distribuição era por interesses de cada grupo, que muitas vezes não coincidiam. Foi a partir daí que a terra de uso comum passou a se relacionar intimamente com a identidade desses grupos, que se definiam enquanto seres pertencentes àquela terra.

Alfredo Wagner Almeida (1989) explica que as formas de apropriação diferenciaram-se por meio de denominações específicas, cada uma com suas particularidades, quais sejam: “terras de preto”, “terras de santo”, “terras de Irmandade”, “terrasde parentes”, “terras de ausente”, “terras de herança” (e/ou “terras de herdeiros”) e “patrimônio”.

Embora atualmente já seja bastante debatida a ideia do desenvolvimento sustentável e da importância das comunidades tradicionais, a nossa sociedade permanece negando os saberes produzidos no âmbito de tais comunidades, em razão de preconceitos historicamente herdados, e que se perpetuaram, considerando que os saberes aí produzidos desembocam em um trabalho improdutivo (CASTRO, 1998).

Ademais, é importante salientar que o fato da Constituição Federal de 1988 ter rompido com a visão etnocêntrica e monolítica da sociedade brasileira, consagrando o respeito à plurietnia e o multiculturalismo, foi determinante para o reconhecimento e a regularização fundiária das comunidades quilombolas, pois nestas propriedades visualiza-se uma forma diferente de apossamento, denominada ‘’propriedade coletiva”(GIROLAMO, p. 13).

A partir dessa nova forma de entender a propriedade, desta vez associando o território a um processo identitário, não somente de delimitação territorial propriamente dita. Ainda assim, tal processo identitário nunca foi fácil, pois só depois de sete anos de vigência da atual Carta Magna o primeiro titulo de reconhecimento de domínio para os ‘’remanescentes das comunidades de quilombos”, em 20 de novembro de 1995, no município de Oriximiná, no Pará.

A vida nas comunidades tradicionais gira em torno do território. Os seus saberes, o seu vocabulário, suas vestimentas refletem a relação dos membros de tais comunidades com os territórios que ocupam. Percebe-se que o território é o lugar onde aqueles sujeitos reverenciam a sua existência, pois o trabalho, as redes de sociabilidade, só tem relevância se produzidos na terra que ocupam.

Embora tais comunidades não saibam explicar alguns fenômenos naturais que ocorrem, os saberes práticos produzidos por tais comunidades são muitos, conhecimentos estes produzidos e acumulados por gerações, o que, inclusive, interferem na formação da sua identidade e da sua cultura (CASTRO, 1998).

Para dimensionar a importância dos ecossistemas na vida dessas comunidades tradicionais, as formas de comunicação delas (comunidades) derivam do território onde vivem, quer dizer, o seu vocabulário é baseado na natureza, de onde tiram o seu sustendo e o seu modo de vida. Tais populações recebem suas denominações de acordo com a atividade exercida na natureza, como é o caso dos seringueiros, pescadores, coletores e caçadores, garimpeiros, quebradeiras de coco, entre outros (CASTRO, 1998).

Nesse sentido, tal luta está intimamente ligada à validação do conhecimento produzido pelas comunidades tradicionais, que jamais deve reduzido somente ao valor econômico. A origem desse conhecimento está vinculada à sobrevivência das comunidades pois, como foi dito anteriormente, o território é a fonte da formação identitária dessas populações e, não havendo identidade, não há comunidade tradicional.

A grande questão enfrentada pelas comunidades tradicionais na atualidade diz respeito à luta travada entre os saberes produzidos na natureza e os saberes tecnocientíficos. Após a inclusão na Convenção sobre Biodiversidade (1993) do princípio que estabelece o respeito aos direitos dos povos tradicionais, houve uma institucionalização desse modo de relação, não apenas como um respeito à natureza mas, também, com o olhar voltado para os saberes produzidos pelas comunidades tradicionais, que está intimamente relacionado com a formação da cultura destes povos (CASTRO, 1998).

Passou-se a perceber que a produção desses saberes, embora fossem locais e derivassem, também, de gerações passadas, projetam-se mundialmente, e para o futuro, na medida em que a preservação da natureza beneficia não apenas tais populações, mas sim a humanidade por completo (CASTRO, 1998). Todavia, o reconhecimento de tais saberes esbarra nos interesses do sistema capitalista, que enxergam na natureza a oportunidade de produção de riqueza desenfreada, sem qualquer respeito à biodiversidade.

Nos quilombos a unidade familiar é a base do sistema produtivo. Esse sistema é baseado em uma forma de cooperação simples entre inúmeras famílias, configurando uma divisão própria de trabalho, que se caracteriza pela produção para o próprio consumo e, também, para o mercado, mas não baseados na lógica do consumo do sistema capitalista.

A questão atual de enorme importância é proteger o direito das comunidades tradicionais, que se encontra ameaçado pelo avanço tecnológico, buscando não reduzir os seus sistemas de conhecimento ao sistema tecnocientífico. A proteção dos direitos das comunidades tradicionais reflete beneficamente para toda a humanidade, na medida em que ao mesmo tempo em que retiram da natureza o seu sustento, colaboram na preservação da mesma. Vejamos o que disseram sobre o assunto as autoras Raquel Sparemberger e Carolina Kretzmann (2011, p. 93-4):

A valorização e o respeito aos indígenas,quilombolas, caiçaras, babaçueiros e os demais povos detentores de saberes tradicionais e que dependem diretamente da natureza para viver, pode partir também do reconhecimento às formas de manejo que desenvolvem. Essas formas respeitam o ritmo da natureza, como, o fato de exercerem a pesca na época adequada e, quando há cheias ou piracema, buscarem outra forma de subsistência, como a pequena agricultura e o extrativismo vegetal.

O que está em pauta é a luta pelo "direito de continuar mantendo uma conexão vital entre a produção de alimentos e a terra. Impossível proteger a diversidade biológica sem proteger, concomitantemente, a sociodiverdidade que a produz e a conserva" (CASTRO, 1998, p. 176). A proteção ao direito das populações tradicionais de permanecer no seu território, produzir, cultivar, plantar é a proteção à própria vida dessas comunidades, pois não existe comunidade tradicional dissociada do seu território.


3    ORIGENS DA RESISTÊNCIA QUILOMBOLA NO BRASIL E MARCO LEGAL

3.1      HISTÓRICO DA RESISTÊNCIA: DE PALMARES AOS DIAS ATUAIS

Inicialmente, para que se entenda como surgiram os quilombos no território brasileiro, é necessário que voltemos aos séculos XV e XVI, quando passou a ser construída uma ideia do continente africano, pelo povo europeu, como um território “cheio de forças naturais adversas ao colonizador e ocupados por homens ditos indolentes” (ANJOS, 2009, p. 59).

Para que se entenda a origem do fundamento dado pelo pensamento eurocentrico à colonização é importante que se apresente a relação entre o poder e o discurso, trabalhada na obra de Eloise Damázio (2011) com base no pensamento de Nietzshe e Foucault.

A autora apresenta a ideia de Niestzshe e Foucault segundo a qual o conhecimento é fruto das relações de poder, e das intercorrências que derivaram dessas relações. Segundo Eloise Damázio “o que se denomina verdade é constituído pelo jogo de regras, pela ordem do discurso que condiciona esses saberes. A verdade é um produto do poder-saber, da articulação entre estratégias de poder e de discursos considerados como verdadeiros” (2011, p. 225).

Neste sentido, para justificar a colonização, foi criado um discurso baseado na ideologia do colonialismo (DAMÁZIO, 2011, p. 226), na tentativa de explicar racionalmente o motivo para o domínio de outros povos. “O objetivo do discurso colonial está em caracterizar o colonizado como população de tipo degenerado, possuindo como base uma origem racial” (BHABHA apud DAMÁZIO, 2011, p. 227). No discurso colonialista, o colonizado era um povo inferior, que necessitava da disciplina do colonizador.

Esse foi justamente o fundamento do povo europeu utilizado para legitimar a escravidão do povo africano. “A colonização foi gestionada como uma missão civilizadora, o africano deveria ficar no nível dos outros homens. A diferença que existia entre colonizado e colonizador era pensada em termos de superioridade e inferioridade” (DAMÁZIO, 2011, p. 320).

Entre os argumentos utilizados para justificar a sua inferioridade era a cor da pele. Pregou-se a ideia de que “o negro seria um branco degenerado, ou seja, devido ao clima tropical a cor da sua pele tinha ficado escura” (DAMÁZIO, 2011. p. 230-1). Juntamente com esse argumento, afirmava-se que o solo e a água que o povo africano consumia seriam inferiores, tornando a África um submundo, onde só existiam homens bárbaros, sedentos pela colonização a ser realizada pelo povo branco.

Outro fator que influenciou a escravidão do povo negro foi extensão territorial dos países europeus que não possibilitaria mais o seu crescimento. Passou a se buscar novas terras e espaços a serem colonizados. Com o início das grandes navegações e a conquista de novos territórios, tornou-se necessário uma produção cada vez maior de riquezas. A semente do capitalismo estava sendo plantada e o povo africano foi o instrumento necessário para a construção do mundo que estava nascendo a partir dali.

Era necessário recrutar mão-de-obra barata e de boa qualidade. O povo indígena não daria conta de tanto trabalho sozinho e, também, por conhecer as matas e as florestas, conseguiam fugir e encontrar abrigo mais facilmente, em comparação ao povo negro, que viria de outro continente e não estaria habituado àquelas terras. Ademais, a igreja protegia os índios, proibindo a sua escravização, o que não acontecia com os negros, na medida em que condicionavam a escravização destes à sua conversão ao cristianismo.

Outro fator importante que fez com que a escravização dos índios fosse substituída pela escravização dos negros trazidos da África foi o lucro que o tráfico internacional de escravos proporcionava ao povo europeu. Muitos africanos foram retirados de suas terras e muito sangue foi derramado. Iniciava a saga do povo negro no território Americano, mais especificamente, ao Brasil.

O tráfico de escravos passou a ser tão intenso que em meados do século XVII as exportações de Angola tinham sido quase que exclusivamente de escravos, passando inclusive a corresponder até quatro quinhos da sua receita publica (BETLHEL, 2002)

Segundo Bueno (2003, p. 221): “Em 1622, um escravo valia 29 mil réis; em 1635, 42 mil réis. Em 1835, o preço subiu para 375 mil réis e, em 1875, chegou a 1.256 mil réis, um aumento de 235%. Em moeda estrangeiras, em 1831, um escravo custava cinco libras na África e 98 libras ‘colocado’ no Brasil. Já no ano de 1846, o preço de 8 dólares na África chegou a 300 no Brasil’’.

Como bem explica Peregalli (2001), a resistência do povo negro começava ainda na África, pois muitos deles morriam ainda em solo africano na tentativa de evitar que suas aldeias fossem destruídas. Do mesmo modo, realizavam motins a bordo dos navios e queimavam tantos outros.

Em solo americano a resistência prosseguiu. Eles lutavam nos portos, nas poucas plantations africanas que existiam e principalmente nas revoltas dos quilombos.

Reis e Santos asseguraram (1996, p.9): ‘’Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente.’’ Deste modo, percebe-se que a convivência entre os colonizadores e os escravos jamais foi pacífica, e os quilombos surgem como o maior ícone de resistência à escravidão.

Os quilombos, também chamados de mocambos, passaram a representar um pedaço da África no Brasil, onde os escravos retomam a sua cultura, religião e identidade, que fora suprimida com a sua retirada forçada do seu habitat.

Surgem milhares de quilombos, de norte a sul, no território americano. Os palanques na Colômbia, no Equador, no México e em Cuba; cumbes, na Venezuela; marrons no Haiti, nas ilhas do Caribe Francês, no Suriname, nos Estados Unidos, nas Guianas e Jamaica; cimarons, em diversas partes da América Espanhola; marrons e bush negrões na Guiana Francesa. (CYPRIANO, 2006, p. 46).

Vale a pena ressaltar que os quilombos não eram isolados. Eles efetuavam trocas com comerciantes da localidade, inclusive enfraquecendo o comércio dos senhores, representando um núcleo de resistência autosubsistente.

O quilombo era inerente à escravidão. Só havia fugitivos e quilombolas porque existiam homens escravizados sob exploração e violência. A ação quilombola era explicada na negação ao regime escravista. Em outras palavras, ao fugir e se aquilombar, ainda que “sem conscientização”, os escravizados acabavam por “dinamizar a estratificação social” sob o cativeiro, já que sua força de trabalho deixava de ser simples mercadoria. Portanto, a fuga e o aquilombamento tornaram-se fundamentais em determinado momento político da história do Brasil. (GOMES, 2006, p. 14).

Um dos maiores exemplos de resistência, autosubisistência e autonomia das comunidades quilombolas é o Quilombo dos Palmares. Não se sabe, ao certo, o período de surgimento do Palmares, mas remonta-se ao ano de 1597. Palmares recebeu esse nome pois se situava em uma região repleta de palmeiras, rodeada de arbustos, espinhos, o que formava uma “barreira natural impenetrável” (GENNARI, 2011).

Durante uma noite, um grupo de aproximadamente 40 cativos teria fugido de um engenho da capitania de Pernambuco, atual estado de Alagoas, após massacrar a população livre que aí se encontra. Sabendo que a notícia se espalharia rapidamente pelas áreas vizinhas e que logo estariam sendo perseguidos, aos rebelados não resta outra saída a não ser a fuga. Em sua peregrinação, chegam a um lugar áspero e montanhoso onde, de uma das serras, muito íngreme, se pode observar toda a região. No topo desta, que, pela sua forma, ganha o nome de Serra da Barriga, vão abrir clareiras e levantar choças cobertas de palha. (GENNARI, 2011, p. 35-6).

A configuração do Quilombo dos Palmares era bastante plural, formado por diversos agrupamentos, cada um com suas lideranças ligadas por critérios de parentesco, a uma liderança principal. Há autores que acreditam que o Palmares era composto por até 30 mil pessoas.

A formação da identidade no Quilombo dos Palmares foi bastante peculiar, pois os membros dessa comunidade eram de diversas etnias: negros, índios, pardos e brancos. Em meio a essa explosão de identidades, foi preciso construir meios para se comunicar e conviver harmoniosamente, e assim foi construída a identidade étnica dessa comunidade, formada por traços da cultura negra, indígena e da religiosidade africana e até mesmo com traços do cristianismo.

A pesca, a caça, e a coleta de frutas e raízes eram a base da subsistência dos palmarinos. Ao longo do tempo, com o aperfeiçoamento dos instrumentos, passam a se dedicar à outras atividades, como  trabalho agrícola (GENNARI, 2011).

Após a sua destruição, em 1695, embora muitos outros quilombos tenham surgido até a década de 1880, nenhum tomou as proporções do Quilombo dos Palmares.

A destruição de Palmares foi um divisor de águas, pois a partir de então, aconteceram profundas alterações na política de repressão à “rebeldia escrava”, que passou a ser ainda mais rígida, inclusive com o aprimoramento do ofício do capitão-do-mato.

Mesmo após a abolição da escravatura, os quilombos continuaram habitados por ex-escravos, que encontraram naquele espaço um dos critérios formadores da sua identidade: a territorialidade. Atualmente, as comunidades quilombolas não se afiguram mais como forma de resistência ao regime escravocrata, mas o vínculo que construíram com a terra que ocupam ainda vigora, representando um cunho político e ideológico muito forte, sendo essa uma das mais importantes lutas das comunidades quilombolas dos dias atuais: a titularização de suas terras como requisito para a manutenção da sua identidade.

Vale ressaltar que a abolição da escravidão passou por um longo processo até que de fato de concretizasse, perdurando por quase todo o século XIX. Tal processo se iniciou por volta de 1810 até 13 de maio de 1888 (GIROLAMO, 2006).

 Como bem explica Girolamo (2006), o processo para a extinção da escravidão se deu paulatinamente, de modo que as leis foram sendo elaboradas para libertar, a cada momento, uma certa categoria de escravos. Entre esses instrumentos normativos, estão o Decreto 3.725 de 6 de novembro de 1866, que libertou os escravos que se alistassem no exército brasileiro, e a lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, denominada ‘’Lei do Ventre Livre’’, que concedeu liberdade aos escravos que nasciam em cativeiro, a lei 3.270 de 28 de setembro de 1885, a Lei do Sexagenário, que libertou os que atingiam esta idade. Todavia, no caso da última lei, os valores exigidos para a conquista dessa liberdade eram exorbitantes.

Por fim, houve a Lei Áurea, lei 3.353 de 13 de maio de 1888, que dispunha de dois artigos: ‘’art. 1º É declarada extinta a escravidão no Brasil. Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário’’. Segundo Freitas (1980), O Brasil foi o ultimo país independente a abolir a escravidão.

A maioria dos argumentos utilizados pelos oposicionistas aos projetos de lei que previa a libertação dos escravos giravam em torno dos prejuízos que seria causado à sociedade brasileira, na medida em que tais escravos libertos, em sua maioria, estariam estregues à própria sorte, vivendo de esmolas, assim como arruinaria a economia do país e a produção dos latifundiários, que seriam prejudicados com a diminuição da sua mão de obra barata (MENDONÇA, 2001), de modo que em nenhum momento se pensava em indenizar os escravos libertos, bem como de garantir-lhes uma vida digna dali em diante, mas apenas de indenizar os antigos senhores por terem sido privados de sua ‘’propriedade’’ (MENDONCA, 2001, p. 25).

Ora, considerando que na religiosidade de alguns desses povos, o enterro na terra era considerado uma forma de retornar à África, muitos deles cometiam suicídio para serem ali enterrados, assim como muitas escravas cometiam abortos para evitar que seus filhos também se tornassem escravos.

 Desta forma, os quilombos não configuravam apenas um refúgio de escravos fugidos, um pedaço da África no Brasil, mas sobretudo uma ruptura com a ordem jurídica então vigente. Melo (2005, p. 2) trouxe esse posicionamento:

Os quilombos que se formaram e se espalharam pelo território brasileiro traziam duas praticas insurrecionais. A primeira relativa à ocupação da terra que não se fazia dentro do modelo estatal da compra e venda ou da sucessão hereditária e o segundo que guarda relação com o próprio questionamento do regime servil e que contribuiu para a sua derrocada. Com efeito, o apossamento de um território quilombola significava uma medida duplamente insurgente e aí se encontra a grandeza da luta histórica dos escravos fugidos que lograram trazer, a despeito da distancia continental, um pedaço da África para o Brasil, no tocante ao território e cultura, ajudando a que o país se livrasse da maldição de manter pessoas cativas servindo a outras sem liberdade, mas também foi a primeira demonstração de que a posse da terra, com instituto independente da propriedade, podia ser utilizado em sua função social para afirmar a moradia, produção e trabalho dos rebelados do sistema escravagista.

A Lei de Terras, Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 passou a estabelecer que a única forma de aquisição de terras devolutas seria pela compra, de modo que todos os beneficiários de programas de reforma agrária teriam que pagar para receber título de propriedade, contrariando o que antes vigorava, onde os posseiros podiam ocupar a terra sem qualquer operação de compra (GIROLAMO).

Acontece que os escravos libertos não tinham capital suficiente para adquirir tais propriedades, o que iniciou o processo de marginalização dos negros na sociedade.

O processo de abolição da escravatura no Brasil se deu de forma a valorizar a propriedade privada, tornado esta a única forma de acesso a terra. A Lei de Terras, em seu art. 2º, considerava crime a posse primária. Essa criminalização perdura até os dias atuais, com a perseguição aos movimentos de ocupação de terras rurais e urbanas.

A Constituição Federal de 1988, com seu artigo 68 do ADCT, veio para resgatar uma divida histórica com o povo quilombola, de modo que a institucionalização do direito à terra dos remanescentes de quilombo representa, além do reconhecimento da propriedade, uma ação pela inclusão social desse povo.          

3.2      MARCO LEGAL E INSTITUCIONAL

A Constituição Federal de 1988, com a previsão do art. 68 da ADCT, trouxe inúmeros avanços para o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas. Desde então, muitas vitórias foram conquistadas, mas a luta desse povo ainda encontra muitos obstáculos, principalmente no que diz respeito à burocracia estatal para a concessão dos títulos de propriedade definitiva das terras que ocupam.

O art. 68 da ADCT e os artigos 215 e 216 da Constituição Federal representam o aparato constitucional para à efetivação dos direitos das comunidades quilombolas. Juntamente com a Constituição Federal, o Decreto 4.887/2003, os tratados internacionais os quais o Brasil é signatário, a Instrução Normativa n. 57 do INCRA e o Estatuto da Igualdade Racial conferem às comunidades quilombolas a proteção legal para a efetivação dos seus direitos. Algumas Constituições estaduais também colaboraram para o avanço na conquista desses direitos, em razão da pressão do movimento negro. A respeito dos diplomas constitucionais e legais, faremos a abordagem no capítulo terceiro desse trabalho.

É importante ressaltar que, juntamente com o aparato legislativo, as instituições que participam do processo de titulação, bem como aquelas que promovem políticas públicas para o desenvolvimento dessas comunidades, têm um forte papel na concessão dos direitos das comunidades quilombolas.

A Fundação Cultural Palmares (FCP) foi instituída no dia 22 de agosto de 1988 pelo então presidente da república José Sarney com o objetivo de promover e preservar a arte e a cultura afro-brasileira, diminuindo as desigualdades raciais, valorizando a cultura e manifestações artísticas do povo negro brasileiro.

A Fundação Cultural Palmares tem um papel crucial no reconhecimento das comunidades quilombolas. Com a edição do Decreto 4.887/03, foi incumbido a FCP o dever de emitir certificados de reconhecimento dessas comunidades quilombolas, que será feito após o recebimento da declaração de auto-reconhecimento feita pela própria comunidade. Recebida a declaração, a FCP inscreve a comunidade no Cadastro Geral e, em seguida, é expedido o certificado de auto-reconhecimento.

Além de dar efetividade ao Decreto 4.887/03, a FCP tem um forte papel na aplicabilidade da lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da História da África e Afro-brasileira nas escolas, incentivando a sua aplicabilidade, em prol da preservação e valorização da cultura negra no nosso país.

Para garantir o respeito aos direitos das comunidades quilombolas, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a FCP trabalham juntos. O INCRA é uma autarquia federal, hoje vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, criada pelo Decreto 1.110, de 9 de julho de 1970 com o fim de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. Veremos mais adiante que um longo caminho foi percorrido até que essa atuação conjunta fosse institucionalizada.

Em relação ao direito territorial das comunidades quilombolas, assim como a Fundação Cultural Palmares, O INCRA desempenha um papel de extrema importância. Após expedição da certidão de auto-reconhecimento da comunidade quilombola pela FCP, o processo seguirá para o INCRA, onde será elaborado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que é um conjunto de documentos referentes à história de formação e ocupação do território quilombola, sendo considerada a ancestralidade, a tradição e a organização socioeconômica daquela comunidade.

Após a elaboração do RTID, inicia-se a fase de desintrusão, onde os imóveis particulares serão desapropriados, e o INCRA reassentará as famílias não quilombolas que se enquadrem no Plano Nacional de Reforma Agrária. Somente depois da desapropriação, com o devido pagamento da indenização aos antigos proprietários, a comunidade quilombolas receberá o título de propriedade definitiva das suas terras, com fulcro no art. 68 da ADCT. O processo de titulação será abordado com mais afinco em capítulo posterior.

Outro órgão importante para a tutela dos direitos do povo negro e, em especial, das comunidades quilombolas é a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que foi criada pela Medida Provisória nº 111 de 21 de março de 2003, mais tarde convertida na Lei 10.678. A data de criação da SEPPIR é a mesmo em que se comemora o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela ONU (Organização das Nações Unidas), em memória ao Massacre de Shaperville, que aconteceu na África do Sul, em 21 de março de 1960.

A referência política para o exercício da SEPPIR na formulação, coordenação e articulação de políticas para a promoção da igualdade racial é o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei 12.288/2010, que influenciou na formação do Plano Pluri Anual (PPA 2012-2015), fazendo nascer o programa “Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial”, que tem estreita relação com a luta na garantia do direito territorial das comunidades quilombolas, na medida em que o território representa um dos fatores de formação da identidade dessas comunidades, como já fora abordado, e o reconhecimento desse direito também é uma forma de combate a racismo.

A SEPPIR tem um papel importante na tutela dos direitos das comunidades quilombolas de forma geral, na medida em que tem o dever de formular, coordenar e monitorar as ações e projetos que assegurem o acesso dessas comunidades às políticas públicas, inclusive devendo realizar estudos diagnósticos para acompanhar a efetividade dos direitos nessas comunidades, mas também tem o dever de lutar pelo combate ao racismo institucional, conceito cunhado pelo grupo Panteras Negras, StokelyCarmichael e Charles Hamilton em 1967, que o define como “uma falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica” (CARMICHAEL e HAMILTON apud GELEDÉS, 2013, p. 11).

As comunidades quilombolas ainda são vítimas do racismo institucional, e encontram muitos empecilhos para a efetivação dos seus direitos. As barreiras para a chegada das políticas públicas de saúde, educação e desenvolvimento dessas comunidades ainda persistem, mesmo tendo avançado de modo significativo a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, e a SEPPIR desempenha um papel importante na luta contra a descriminação racial e da desigualdade social sofrida pelo povo negro.

Por fim, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (SEPROMI), foi lançada no governo de Jaques Wagner, pela lei 10.549 de 28 de dezembro de 2006. Tem como fim planejar e executar políticas de promoção da igualdade racial, além de proteger os direitos de indivíduos e grupos étnicos atingidos pela discriminação e demais formas de intolerância.

Assim como a SEPPIR, a SEPROMI teve as suas metas estabelecidas no PPA (2012-2015), na busca de um desenvolvimento sustentável nas comunidades quilombolas, na promoção de políticas afirmativas em prol do povo quilombola, na defesa e promoção dos seus direitos, inclusive apoiando e estimulando a criação de conselhos municipais para a discussão e resolução das necessidades e conquistas das comunidades quilombolas de cada região.

Nota-se, deste modo, que o papel das instituições públicas na defesa e promoção dos direitos das comunidades quilombolas é de extrema relevância, pois de nada adiantaria as previsões legais e constitucionais na defesa dos direitos desse povo, se não existisse meios e instituições organizadas para a efetividade desses direitos.


4    O DIREITO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS E O DIREITO VIGENTE

O Brasil é fruto da exploração do trabalho escravo. Como disse Gilmar Bittencourt (2013, p. 20), “a sociedade brasileira foi construída, ainda que em passado centenário, sobre os ombros do trabalho escravo”. Mesmo após décadas do término da escravidão, os remanescentes de quilombo foram deixados à própria sorte pelo Estado brasileiro. “O elevado grau de injustiça social vivenciado na atualidade pelos brasileiros deflui, em grande parte, do próprio processo de desenvolvimento do país” (SPAREMBERGER e KRETZMANN, 2011, p. 130-1). A dívida que temos com esse povo começou a ser reparada a partir de 1988, mas esse foi só o início, pois ainda havia muito o que se fazer para mudar a história daquele ano em diante.

O reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas ainda se encontra em processo de construção. O passo inicial foi dado com a Constituição Federal de 1988, que previu no Ato de Disposições Transitórias (ADCT) o art. 68, conquista essa decorrente da pressão política dos movimentos sociais que tiveram um forte papel em busca da garantia dos direitos das comunidades quilombolas.

Ademais, a interpretação do art. 68 deve ser feita conjuntamente com outros dispositivos da Constituição Federal. Tais artigos são: Artigo 3º, que apresenta os objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil; bem como o Artigo 215, que protege as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, assim como dos outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; e o Artigo 216, que prevê o tombamento dos documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Todavia, a luta pelo reconhecimento de seus direitos fundamentais encontra obstáculo quando a sua conquista esbarra em interesses econômicos e políticos mais fortes, na medida em que a titulação de suas terras representa o ponto principal a ser alcançado. Para que tais direitos sejam efetivados é imprescindível a tutela estatal. Nas palavras Gilmar Bittencourt (2011, p. 17) sobre o assunto:

No caso dos negros quilombolas, o desafio reside, justamente, na efetivação dos seus direitos fundamentais, com ênfase para as garantias sociais historicamente negligenciadas, de modo a tornar nossa democracia menos formal/retórica e mais substantiva. Para cumprir esta tarefa, mostra-se imperioso que o Estado seja encarado enquanto instrumento para erradicação do racismo e a reversão de suas sequelas (estigmas, exclusões e desigualdades raciais); ao reconhecimento da cidadania dessas populações; ao resgate e a preservação do seu patrimônio cultural; e anda para a titulação, em caráter definitivo da propriedade ancestralmente ocupada pelos povos quilombolas.

Juntamente com a previsão constitucional, coexistem outros diplomas legais que surgiram para dar efetividade aos direitos das comunidades quilombolas, entre eles está a Convenção 169 da OIT, ratificada no Brasil em 2002, com hierarquia de norma constitucional, bem como algumas Constituições Estaduais que ingressaram na luta.

O Estatuto Racial e o decreto 4.887/2003 fortalecem ainda mais a luta pelo reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas. Reconhecer que utilizar parâmetros universalistas para atender às necessidades do povo negro era um erro foi o passo inicial dado a favor. O aparato legislativo está em mãos, mas é preciso que haja efetividade.

4.1      A PREVISÃO CONSTITUCIONAL: ART. 68, ADCT E A PREVISÃO NAS CONSTITUIÇÕES ESTADUAIS

A Constituição Federal de 1988 trouxe grandes avanços no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas. A previsão constitucional do art. 68 da ADCT foi apenas o início da luta dessas comunidades para ter o seu direito reconhecido, pois o problema que enfrentam na atualidade diz respeito à efetividade dessa norma constitucional. Talvez pelo fato de encontrar-se nas normas de caráter transitório sua efetividade estivesse comprometida, à beira do esquecimento, quase que imperceptível mas, mesmo diante de tantos impasses, o fato desse direito estar previsto na nossa Carta Magna garante que ele deve ser posto em prática. In verbis: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).       

Ademais, conforme explicação de GIROLAMO (2006), a posição dessa norma de tutela às comunidades quilombolas no ADCT não deve ser visto como de valor secundário, pois esta também é fruto do Poder Constituinte originário. Ainda assim, a sua posição nas normas de caráter transitório se fundamenta na transitoriedade desta norma, que em que pese se prolongue por quase 20 anos, perderá a sua eficácia na medida em que todas as comunidades quilombolas tiverem seu direito reconhecido.

A hermenêutica jurídica tem um papel muito importante na aplicação dessa norma de tutela às comunidades quilombolas. Todo o Ordenamento Jurídico deve ser interpretado em conformidade com a norma constitucional, em razão da sua rigidez, e todas as normas deverão respeitar os aspectos formais previstos em nossa Carta Magna mas, não apenas isso, a supremacia da Constituição tem que garantir que as normas ali postas sejam efetivadas pelos três poderes, como bem explica Gilmar Bittencourt (2013, p. 77):

Então, a discussão sobre a Constituição não pode ser apenas, no que pese aspectos formais, quanto à legalidade, ou seja, quanto a haver uma norma que regulamente detidamente os atos a uma edição formal de um texto jurídico advindo do Congresso, Assembléia ou Câmara. A discussão sobre a constitucionalidade tem de ir mais adiante, ela deve colocar sob o prisma dos Poderes o sentido e a responsabilidade de realizar os desígnios constitucionais.

Destarte, ainda existem muitas barreiras a serem destruídas para que esse direito seja alcançado por todas as comunidades quilombolas do território nacional, a primeira delas é o esclarecimento do conceito de comunidades “remanescentes” de quilombo. Embora essa problemática já tenha sido abordada no capítulo 2 desse trabalho, é necessário que façamos uma recapitulação a respeito.

Os quilombos surgiram durante a época da escravidão como resistência dos escravos ao sistema opressor que os perseguia e explorava a sua força de trabalho. Com a abolição da escravidão em 1888, muitas dessas comunidades continuaram a existir, não mais como resistência ao sistema escravocrata. Segundo LEITE (2000), “o quilombo é trazido novamente ao debate para fazer frente a um tipo de reivindicação que, à época, alude a uma ‘dívida’ que a nação brasileira teria para com os afro-brasileiros em consequência da escravidão”, ou seja, os quilombos passam a representar uma luta em prol não apenas das comunidades quilombolas, mas do povo negro como um todo, em razão da “dívida” e das marcas da escravidão que insistem em permanecer até os dias atuais.

Nesse sentido, âmbito de aplicação do art. 68 da ADCT deve ser expandido ao máximo, para garantir o acesso à terra das comunidades de quilombos, até mesmo aquelas que se originaram após o período da escravidão, em razão da descriminação racial, da exclusão social e do ranço escravocrata que persiste em nossa sociedade até os dias atuais. Nesse sentido, até mesmo aquelas comunidades quilombolas que surgiram durante o período colonial, mas tiveram suas terras tomadas em razão do crescimento urbano, sendo obrigados a se instalarem em outras localidades, devem ter o seu direito à terra efetivado.

Lamarão (2011, p. 35) explica a importância da concessão desse direito às comunidades quilombolas: “É evidente, pois, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas, a que se refere o artigo 68 do texto constitucional, possuem um valor natural como meio de produção e de sobrevivência. Mas elas são também essenciais como instrumento de identidade cultural e antropológica das comunidades que nelas se estabeleceram para escapar à escravização, criando um mundo próprio que cumpre ao Estado defender e preservar, registrando-o no acervo histórico de seu povo”.

Em razão das normas constitucionais serem de eficácia plena, conforme classificação de José Afonso da Silva (1982), sua aplicabilidade é imediata, ou seja, independe de lei posterior que lhe dê efetividade e não há lei que possa conter a sua eficácia. Deste modo, a sua simples existência garante o direito à propriedade das comunidades “remanescentes” de quilombo.

No mesmo sentido, em razão da Constituição Federal ser rígida, ou seja, todas as outras normas do ordenamento jurídico devem estar em conformidade com as normas constitucionais, e estando o art. 68 do ADCT previsto (ainda entre as normas de caráter transitório) na Constituição Federal prevendo o direito às comunidades quilombolas à propriedade definitiva de suas terras, o Estado não deve omitir-se para efetivar essa exigência constitucional. Nesse sentido, explica Dirley da Cunha Junior (2006, p. 26-7):

Todas as normas constitucionais das Constituições rígidas, independentemente de seu conteúdo, têm estrutura e natureza de normas jurídicas, ou seja, são normas providas de juridicidade, que encerram um imperativo, vale dizer, uma obrigatoriedade de um comportamento. São, pois, verdadeiras normas jurídica. É certo, porém, que a Constituição brasileira, como a maioria das Constituições contemporâneas, contém normas de diversos tipos, função e natureza de modo que algumas são dotadas de maior eficácia que outras. Mas isso não significa, no entanto, que haja em seu texto normas não-jurídicas. Todas as normas constitucionais, sem exceção, mesmo as permissivas, são dotadas de imperatividade, por determinarem uma conduta positiva ou uma omissão, de cuja realização são obrigadas todas as pessoas e órgãos às quais eles se dirigem.Não existe norma constitucional destituída de eficácia: todas ela irradiam efeitos jurídicos, já ressaltava de há muito o grande RUY BARBOSA, de tal sorte que, segundo o ilustre baiano, "não há, numa Constituição, cláusulas a que se deve atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm força imperativa de regra, ditadas pela soberania nacional ou popular aos órgãos".

Para Sundfeld (2002, p. 119): “O descumprimento deste dever gera uma inconstitucionalidade por omissão, a ser suprida pelos mecanismos próprios previstos na Constituição Federal’’. Deste modo, conforme explanado, estamos falando de um dispositivo com eficácia plena e aplicabilidade imediata, que independe de norma regulamentadora para ter a sua efetividade alcançada.

Existe uma enorme discussão entre os operadores do direito em torno da aplicabilidade desse dispositivo para indivíduos isolados, ou seja, se seria possível reconhecer o direito de propriedade a um individuo remanescente das comunidades dos quilombos.

Segundo Rocha (2005, p. 98-99): “A direção interpretativa do artigo 68 impõe a translação semântica da expressão ‘remanescentes das comunidades de quilombos’ para ‘comunidades remanescentes dos quilombos’, inversão simbólica que os liberta dos marcos conceituais filipinos e manuelinos, contemplando-os com uma norma reparadora pelos danos acumulados’’.

Em 2001 foi editado o decreto 3.912 de 10 de setembro, que passou a regulamentar a questão da regularização fundiária das comunidades quilombolas. Mais tarde, em 2003, esse decreto foi revogado pelo Decreto 4.887 de novembro de 2003. Na mesma esteira, foi editada pela União a Instrução Normativa n. 20, que estabeleceu a forma de aplicação do referido decreto, que fora substituída pena Instrução Normativa n. 49, vigorando, atualmente, a Instrução Normativa n. 57.

Todavia, em junho de 2004, o Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente DEM, utilizando, entre outros argumentos, a ideia de que apenas lei poderia regulamentar o art. 68 da ADCT, ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade - ADIN n. 3239, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), requerendo a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887 e da IN n. 20, que já fora substituída pela IN n. 49, e posteriormente pela IN n.57. O processo ficou paralisado de abril de 2012 até março de 2015, em razão do pedido de vista da ministra Rosa Weber, após o voto do relator do processo, ministro Cesar Peluso, que julgou procedente a ação e votou pela inconstitucionalidade do decreto. Logo após o voto da ministra Rosa Weber o processo foi paralisado novamente em razão de novo pedido de vista, dessa vez  do ministro Dias Toffoli. O tema será abordado com mais afinco em capítulo específico deste trabalho.

            O movimento negro teve grande importância para conquistar essa vitória também no âmbito das constituições estaduais, como é o caso das Constituições dos estados da Bahia (art. 51 ADCT), de Goiás (art. 16 ADCT), Maranhão (art. 229), Mato Grosso (art. 33, ADCT) e Pará (art. 322), que reconhecem o direito à propriedade de suas terras às comunidades remanescentes dos quilombos.

            Como bem explica GIROLAMO (2006), podem ser identificados os seguintes pontos em comum entre tais Constituições:

1. Obrigação de emitir o titulo – o Estado deve reconhecer a propriedade e emitir o titulo em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos; é uma obrigação legal de reconhecimento de um direito constitucional.

2. Auto-aplicabilidade – Enquanto o Maranhão exige uma lei complementar, Mato grosso diz expressamente não ser necessária. As titulações iniciaram sem ter sido elaborada a lei complementar.

3. Prazo – Bahia, Mato Grosso e Pará estabeleceram o prazo de um ano para a emissão dos títulos de reconhecimento de domínio.

Ora, a previsão nas constituições estaduais reforça ainda mais a luta pelo reconhecimento desse direito às comunidades quilombolas, haja vista que uma atuação em âmbito local possibilita a obtenção de resultados mais efetivos.                    

4.2      A IMPORTÂNCIA DOS PACTOS INTERNACIONAIS NA TUTELA DOS DIREITOS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

A Constituição Federal de 1988 trouxe inúmeros avanços no que diz respeito aos direitos das comunidades quilombolas. Juntamente com o art. 68 da ADCT, os pactos internacionais que tratam do tema e os quais o Brasil é signatário também representam um forte papel na luta pelos direitos territoriais das comunidades quilombolas, embora nem sempre os autores abordem com veemência essa questão.

Vejamos o que diz o art. 5º, §3°da Carta Magna. In verbis: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988).

É mister esclarecer, todavia, algumas divergências que derivam do enquadramento jurídico dos tratados internacionais, em decorrência da previsão do art. 5º, § 2º da Constituição Federal, que prevê que os direitos e garantias constitucionais "não excluem" aqueles decorrentes de tratados ou convenções internacionais em que o Brasil seja signatário. Vejamos: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outro decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988).

Em decorrência disso, a doutrina passou a diferenciar três formas de identificação dos direitos fundamentais: aqueles que derivam de normas expressas da Constituição; aquelas que decorrem dos princípios, ou seja, estão implicitamente previstos na nossa Carta Magna; por fim, aquelas decorrentes dos pactos internacionais os quais o Brasil é signatário (SIMÃO NETO, 2011, 47-8).

Em suma, o aplicador do direito não poderá se eximir de observar tais normas, que também acrescentam elementos de proteção aos direitos fundamentais, assim como aquelas previstas explicitamente na Carta Magna, e aquelas previstas implicitamente nos princípios constitucionais.

Vale ressaltar, ainda, que apenas os tratados que versem sobre direitos humanos terão aplicabilidade imediata, diversamente dos ditos “tratados tradicionais” (PIOVESAN apud BITTENCOURT, 2013, p. 46), os que versam sobre direitos comuns, que serão incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro com status infraconstitucional. Do mesmo modo, como o art. 5º, § 1º, estabelece que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata", o Estado jamais poderá furtar-se ao dever de dar efetividade às normas que preveem direitos fundamentais, na medida em que seu exercício não dependerá de uma regulamentação infraconstitucional. Sendo assim, os pactos internacionais que prevêem normas de direitos humanos terão aplicabilidade imediata em território brasileiro.

Entre os pactos internacionais que versam sobre direitos fundamentais e foram incorporados pelo sistema jurídico brasileiro estão: a) a Convenção para a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais; b) a Convenção sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação; c) a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; d) o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e) Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos; e f) a Convenção n 169 da OIT.

A Convenção para a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais estabelece as seguintes obrigações aos Estados signatários:

a) proteger e promover a diversidade das expressões culturais; criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em benefício mútuo; b) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz; c) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos; d) promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional; e) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo; e) reconhecer natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados; f)reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território; g) fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando,especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais. (ONU, 2005).

A Convenção sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, por outro lado, apresenta as formas discriminação no trabalho/emprego que não devem ser praticada pelos Estados signatários:

Para os fins desta Convenção, o termo "discriminação" compreende:

a) toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão;

b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou tratamento no emprego ou profissão, conforme pode ser determinado pelo País-membro concernente, após consultar organizações representativas de empregadores e de trabalhadores, se as houver, e outros organismos adequados. (OIT, 1958).

  A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, do mesmo modo, estabelece que o Estado signatário deverá:

a)  cada Estado parte compromete-se a efetuar nenhum ato ou prática de discriminação racial contra pessoas, grupos de pessoas ou instituições e fazer com que todas as autoridades públicas nacionais ou locais, se conformem com esta obrigação;

b) cada Estado Parte compromete-se a não encorajar, defender ou apoiar a discriminação racial praticada por uma pessoa ou organização qualquer;

c) cada Estado parte deverá tomar as medidas eficazes, a fim de rever as políticas governamentais nacionais e locais e para modificar, ab-rogar ou anular qualquer disposição regulamentar que tenha como objetivo criar a discriminação ou perpetra-la onde já existir;

d) cada Estado Parte deverá, por todos os meios apropriados, inclusive, se as circunstâncias o exigirem as medidas legislativas, proibir e por fim, a discriminação racial praticadas por pessoa, por grupo ou das organizações;

e) cada Estado Parte compromete-se favorecer, quando for o caso, as organizações e movimentos multi-raciais e outros meios próprios a eliminar as barreiras entre as raças e a desencorajar o que tende a fortalecer a divisão racial. (BRASIL, 1968).

O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais  estabelece as seguintes obrigações ao Estado parte:

a) compromete-se a agir, quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas;

b) Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados serão exercidos sem discriminação alguma baseada em motivos de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento, qualquer outra situação;

c) Os países em vias de desenvolvimento, tendo em devida conta os direitos do homem e a respectiva economia nacional, podem determinar em que medida garantirão os direitos econômicos no presente Pacto a não nacionais. (ONU, 1966).

O Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos prevê que:

1) Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.

2) Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto, os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a tomar as providências necessárias com vistas a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as disposições do presente Pacto. (BRASIL, 1992).

A discriminação racial é um dos grandes problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas, segundo o Comitê sobre os Direitos Econômicos Socais e Culturais da ONU (CtDESC). A CtDR (Comitê para Eliminação da Discriminação Racial), órgão responsável por interpretar os direitos da CEDR (Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial) chegou à conclusão de que a ausência de garantia dos direitos territoriais das comunidades quilombolas também era uma forma de discriminação e, consequentemente, uma afronta à CEDR (ALVES, 2012)

Em 2004, o CtDR, ao analisar o relatório do Brasil, demonstrou-se preocupado com o fato do reconhecimento e titulação das terras de comunidades quilombolas enfrentava sérios problemas de morosidade, recomendando que esse processo fosse mais célere. O CtDR demonstra a sua preocupação com a garantia dos direitos territoriais das comunidades tribais e indígenas (incluindo as comunidades quilombolas) como forma de garantir a não discriminação desses povos (ONU apud ALVES, 2012).

No seu relatório sobre o Brasil em 2003, o CtDESC, órgão que fiscaliza a aplicação da CEDR, chegou à conclusão que os direitos territoriais das comunidades quilombolas não estavam sendo respeitados. Em um de seus comentários abordou a questão da moradia adequada e que o "despejo forçado" representava uma violação ao artigo § 1º do art. 11º do PIDESC (Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos Sociais e Culturais). O conceito de "despejo forçado", apresentado pelo CtDESC é "a remoção permanente ou temporária de indivíduos, famílias e/ou comunidades, contra sua vontade,  de suas casas e/ou da terra que ocupam, sem [...] acesso a formas apropriadas de proteção" (ALVES, 2012, p. 76).

Uma das possibilidades de "despejo forçado" é a expulsão de comunidades tradicionais de suas terras. Em seu relatório, o comitê reprovou o desejo forçado de comunidades quilombolas de suas terras (ONU apud ALVES, 2012) e recomendou ao Estado brasileiro que qualquer "despejo forçado" se dê em conformidade com os princípios do Comentário Geral nº 07 do Comitê (ONU apud ALVES, 2012).

O CtDESC estabeleceu algumas obrigações aos Estados Parte:

1) adotar medidas, legislativas ou não, para prevenir e, e apropriado, punir despejos forçados;

2) implementar uma legislação que proteja efetivamente o indivíduos e grupos dos despejos forçados, e que contenha medidas que (a) promovam a maior segurança possível da posse legítima da terra; (b) estejam em conformidade com as disposições do pacto; (c) determinem de maneira estrita as possibilidades legítimas de despejo;

3) revisar a legislação e as políticas publicas concernentes para torná-las totalmente compatíveis com todas as obrigações que advêm o direito à moradia adequada." (ONU apud ALVES, 2012).

Os Estados têm o dever de evitar ao máximo que o despejo ocorra, adotando todas as medidas alternativas possíveis e, caso ele ocorra, o uso da força deverá ser evitado, ou minimizado.

Lembra, ainda, que os despejos legítimos não podem deixar as pessoas afetadas desabrigadas, e os seus direitos humanos jamais devem ser infringidos, devendo o Estado garantir, com os recursos que possuir, uma moradia digna para essas pessoas.

O CtDH ressalta que é dever do Estado dar assistência à essas comunidades tradicionais, incluindo as comunidades quilombolas, inclusive dando mecanismos para que elas participem das decisões que venham a afetá-las, tomar decisões que busquem evitar os danos ambientais que decorrem da mineração e, ainda, adotar medidas que garantam que essas comunidades tradicionais gozem dos direitos previstos no art. 27 do PIDCP.

O PIDCP (Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos), em seu comentário geral nº 23, deixou claro que a proteção aos direitos culturais previstos no art. 27 também poderiam recair sobre o território, pois ele também reflete uma forma de expressão da cultura daquele povo. É justamente o que ocorre com as comunidades quilombolas.

Em seus artigos iniciais, tanto o PIDCP quanto o PIDESC, tratam da questão do direito à autodeterminação dos povos, estabelecendo que o direito deles à autodeterminação, prevendo o seu estatuto jurídico e dispondo livremente dos seus recursos naturais (art. 1º, §§ 1º, 2º).

Embora tenha havido dúvida a respeito da aplicação, ou não, dos artigos 1º e 27º do PIDCP às comunidades quilombolas, haja vista o PIDESC ter tratado os quilombolas como minorias, não como povos, essa dúvida foi afastada quando o CtDR afirmou que todas as suas prescrições para os povos indígenas também abarcavam as comunidades quilombolas (ALVES, 2012).

Mesmo diante de tantos tratados os quais o Brasil recepcionou, a Convenção 169 da OIT, que entrou em vigor no território nacional em 25 de julho de 2003, representa aquele de maior visibilidade quando falamos dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, pois o seu tema principal é a regulação das relações de trabalho no Estado Brasileiro no que diz respeito às populações tradicionais.

Essa convenção estipulou a necessidade da auto-atribuição dos povos como critério de definição da sua identidade, negando o critério da heteroatribuição como definidor da mesma. Ou seja, uma comunidade tradicional definirá a sua identidade por si própria, independente da definição do "outro", como já foi abordado e explicado em tópico anterior com base nos ensinamentos de Alfredo Wagner Almeida (1999).

O texto da Convenção trouxe uma importante inovação no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, que foi a adoção da palavra "povos" ao se referir à essa população, reforçando o vínculo entre tais comunidades e o Estado, reconhecendo a diversidade étnica e cultural desses povos, conferindo-lhes o direito de participar das decisões que lhes dizem respeito e protegendo-lhes o direito de estabelecer as suas prioridades no que tange ao desenvolvimento econômico, social e cultural.

A primeira seção estabelece as políticas que deverão ser seguidas pelo Estado para a participação dos povos tradicionais nas decisões que lhes dizem respeito, bem como no que concerne à decisões legislativas e administrativas. A segunda seção, por outro lado, prevê os direitos dos povos indígenas e tribais e as obrigações do Estado no que diz respeito à terra, trazendo um grande avanço no em relação ao direito ao reconhecimento, não apenas das terras que tradicionalmente ocupam, mas também àquelas que, de alguma forma, tais comunidades utilizem para suas atividades e subsistência. In verbis:

Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes (artigo 14, parte II). (BRASIL, 2004).

A terceira parte versa sobre questões empregatícias das comunidades tradicionais, estabelecendo os direitos desses povos e as obrigações do Estado no que diz respeito ao acesso a emprego, condições de trabalho, assistência médica e social, etc.

Ao prever o direito desses povos de dispor das mesmas condições de formação profissional que os demais cidadãos lhes foi conferido o direito à igualdade de tratamento e de oportunidades, reconhecendo o direito à diversidade de tais comunidades, que não precisam se adequar aos parâmetros pré-estabelecidos na sociedade.

Do mesmo modo, foi reservado a tais comunidades o direito à saúde, previdência social, educação, meios de comunicação e facilitação na celebração de contratos entre povos tribais através das fronteiras.

Por fim, nas disposições gerais, ficaram estabelecidos os encargos do Governo no que diz respeito à criação de instituições para a efetivação dos direitos das comunidades tradicionais.

Restou claro, desta forma, que as normas e tratados internacionais são de grande importância para a efetivação dos direitos das comunidades tradicionais e, consequentemente, para as comunidades quilombolas. O grande problema enfrentado por esses povos não é a inexistência do aparato legislativo que tutelem os seus direitos, mas sim a efetividade de tais normas, que ainda encontram muitas barreiras para a sua concretização.

4.3      ESTATUTO RACIAL E A PREVISÃO DE TUTELA ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

A luta para a entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Racial foi árdua. O então Deputado Federal Paulo Renato Paim, em 2000, apresentou o Projeto de Lei n 3.198, visando instituir o Estatuto da Igualdade Racial. Desde então, muitos conflitos foram travados, modificações foram feitas, novos projetos surgiram, e somente em 16 de julho de 2010 o Estatuto fora aprovado, após supressões feitas ao longo de 10 (dez) anos e por meio de uma nova proposta apresentada por Demóstenes Torres, do DEM, com uma versão muito diferente da que fora originalmente proposta, o que gerou muitas críticas. Em 20 de julho de 2010 fora assinado pelo então Presidente Luís Inácio Lula da Silva.

As heranças da escravidão deixaram marcas difíceis de serem apagadas, e a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial representa uma vitória no histórico da resistência negra, pois "o fato de abolição da escravidão não ter trazido consigo políticas públicas para o povo negro não fez com que eles desistissem de sua liberdade e voltassem para as senzalas. Eles resistiram" (PAIM, 2011, p. 57).

O Estatuto da Igualdade Racial representa mais um diploma normativo à disposição da luta pela igualdade racial no Brasil. No que diz respeito aos direitos das comunidades quilombolas, que está previsto no texto do Estatuto em seu capítulo IV, embora o art. 68 da ADCT seja plenamente aplicável e não dependa de regulamentação posterior para lhe dar efetividade, o Estatuto, juntamente com o Decreto Federal 4.887/2003, dão maior representatividade à luta do povo negro e quilombola. Garante-se a continuidade da realização da política pública em prol da regularização fundiária das terras ocupados por Comunidades Quilombolas e, consequentemente, confere-se à estes povos o reconhecimento dos seus direitos territoriais e identitários.

No que diz respeito às comunidades quilombolas, o Estatuto dedicou 16 artigos à tutela dos seus direitos, prevendo normas protetivas com o fim de garantir as atividades produtivas da população negra no campo por meio: do acesso ao financiamento agrícola; apoio na infraestrutura para escoamento da produção; educação e orientação profissional agrícola para trabalhadores e comunidades negras rurais; políticas de desenvolvimento sustentável para as comunidades de quilombos; e o financiamento das atividades produtivas e de infraestrutura dos quilombos e, por fim, juntamente com o art. 68 da ADCT, o Estatuto confere à essas comunidades o direito à propriedade definitiva as terras que ocupam. In verbis: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

Embora existam muitas críticas a respeito da constante edição de diplomas normativos para tratar de um mesmo tema, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial trouxe maior segurança às comunidades quilombolas, que passam a ter os seus direitos tutelados por uma lei, esgotando a discussão a respeito da constitucionalidade do decreto 4.887/2003 que apresentaremos mais adiante. Vejamos o que disse Gilmar Bittencourt (2013, p. 96): “Apesar desta crítica sobre o juspositivismo, que se cristaliza pela constante edição de leis e atos, muitos sem efetividade, este tipo de norma ainda causa, ao menos, uma certa expectativa dos destinatários da norma e algum acolhimento do Estado”.

Fica resguardado, também, o direito à preservação dos seus costumes e tradições, reforçando o mandamento constitucional previsto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. In verbis:

Art. 17. O poder público garantirá o reconhecimento das sociedades negras, clubes e outras formas de manifestação coletiva da população negra, com trajetória histórica comprovada, como patrimônio histórico e cultural, nos termos dos arts. 215 e 216 da Constituição Federal. (BRASIL, 2010).

No mesmo sentido, prevê o art. 18 do Estatuto: “É assegurado aos remanescentes das comunidades dos quilombos o direito à preservação de seus usos, costumes, tradições e manifestos religiosos, sob a proteção do Estado” (BRASIL, 2010).

As comunidades quilombolas, por fazerem parte do núcleo negro e rural, sofrem não apenas pela sua etnia, mas também por testemunharem um sistema jurídico moroso, que retarda a titularização de suas terras, negando-lhes o direito à própria vida, afinal, como já dito inúmeras vezes nesse trabalho, negar o direito à terra à esses povos, é negar-lhes o direito à própria existência.

Negar a discriminação ou considerá-la irrelevante na estrutura da desigualdade racial brasileira significa ser indiferente aos dados apresentados por inúmeros institutos de pesquisas, inclusive oficiais, que demonstram reiteradamente, ano após ano, a permanente discrepância dos indicadores sociais entre negros e brancos. Expressões como "racismo estrutural", "embranquecimento da pirâmide social", entre outras, já se tornaram clássicas para notabilizar a discriminação contra a população negra como elemento de identidade na formação socioeconômica brasileira. (SOUZA, 2011, p. 81).

Todavia, o Movimento Negro Unificado (MNU) apresentou muitas críticas ao texto que fora aprovado, por estar distante do que fora originalmente proposto, de forma que durante quase 10 anos de tramitação do projeto, foram retirados quatro ou mais itens de grande relevância para a promoção da igualdade racial.

Entre os temas que foram retirados do texto original, estão as cotas para negros dentro dos partidos políticos, as cotas raciais em universidades e a política de saúde. Outra questão que causou descontentamento foi o fato do Estatuto ter sido rebaixado para uma condição “autorizativa”, não tendo sido garantido recursos para a sua execução, o que impossibilitaria a sua efetividade por parte dos gestores públicos.

Ora, a edição o Estatuto da Igualdade Racial não se deu da forma desejada, mas o fato é que uma porta fora aberta para que novas mudanças ocorram a partir de então. Mesmo que de forma tímida e sem tanta representatividade, não há como negar que a edição desse diploma é um marco legal de grande relevância para o povo negro.

4.4       A PROBLEMÁTICA NA DEFINIÇÃO DO ORGÃO COMPETENTE PARA A TITULAÇÃO

Um dos grandes problemas existentes na definição da competência para o processo de titulação das terras remanescentes de quilombo se encontra no próprio dispositivo constitucional que regula essa titulação, o art. 68 da ADCT.

Muita discussão surgiu a respeito da interpretação do termo ‘’Estado’’, pois alguns juristas acreditaram que esse termo diria respeito apenas à União, sendo a única competente para expedir títulos.

A respeito do tema a Dra. Ella Wiecko (2002) se manifestou afirmando que quando o art. 68 do ADCT se refere a ‘’Estado’’ ele quis dizer Poder Público de forma ampla, não se referindo apenas à União. Ou seja, estariam abarcados os Estados-membros, o Distrito Federal e até mesmo os Municípios, tendo eles competência concorrente para emitir o titulo.

Outro problema surgiu a respeito da definição dessa competência, pois tanto o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a FCP (Fundação Cultural Palmares) passaram a trabalhar na titulação, havendo muita discordância a respeito do órgão competente para tratar do tema.

Por um lado, o INCRA construiu um procedimento administrativo próprio para a regularização das terras de quilombos. Esse processo se resume da seguinte forma: primeiramente, havia o pedido da comunidade, contendo a solicitação da área a ser reconhecida; em segundo lugar ocorria um levantamento cartorial, onde se verificava a existência de títulos em face daquelas terras, e não havendo estas seriam arrecadadas e matriculadas em nome da União; em terceiro lugar ocorria um levantamento ocupacional, onde era feita uma vistoria pelos técnicos do INCRA, que realizavam entrevistas com as famílias da áreas, inclusive com os moradores dos povoados vizinhos, para evitar eventuais conflitos; em quarto lugar ocorria a apresentação e aprovação do mapa e dos levantamentos ocupacional e cartorial, onde o INCRA apresentava a proposta de mapa que era debatida com as demais comunidades não quilombolas; em seguida ocorria a demarcação; por fim, ocorria a expedição do título.

Vale ressaltar que a expedição desses títulos dispensava a produção de laudos periciais para a comprovação da ‘’condição de quilombola’’, bastando, para tanto, as declarações das comunidades.

Uma proposta de decreto presidencial de 1996 atribuía a competência para a identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação das terras das comunidades quilombolas à Fundação Cultural Palmares. As discussões foram intermináveis, como bem explica Girolamo (2006). Não apenas as comunidades quilombolas se mostraram insatisfeitas com tal medida, mas também a Comissão Pro-Índio de São Paulo, que se manifestou afirmando ser equivocada a atribuição dessa competência para a Fundação Cultura Palmares, pois estaria considerando a regularização dessa categoria de terra como uma questão prioritariamente cultural, levando a um órgão do Ministério da Cultura a competência para gerenciar o processo de titulação destas terras.

As discussões aumentaram ainda mais no final de setembro de 1999, com uma nova proposta de anteprojeto de decreto sobre procedimentos administrativos para identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos, apresentada pelo então Chefe da Casa Civil da Presidência da República, Pedro Parente. Esse anteprojeto delegava tais funções à FCP, o que gerou indignação do movimento negro, das comunidades quilombolas e de varias organizações não governamentais.

Eles alegavam que como se não bastasse o erro em considerar esse reconhecimento uma questão cultural, ao atribuir a um órgão do Ministério da Cultura tal atribuição, havia ainda o fato da Fundação Cultural Palmares não possuir um corpo técnico para desempenhar essa função, tampouco recursos financeiros pra tanto.

Outra critica feita a essa atribuição de competência era que esse anteprojeto exigia a comprovação de tais comunidades quilombolas de que ocupavam as terras desde 1888, de modo que um decreto jamais poderia reduzir o alcance de uma norma constitucional.

O Deputado Paulo Mourão sugeriu que o Ministro do Desenvolvimento Agrário acrescentasse às atribuições do INCRA a tarefa de identificar e demarcar as terras de quilombos, afirmando que a função da FCP seria preservar valores culturais, não possuindo vocação para interferir em matéria de ordem tributária.

Os protestos e sugestões não foram ouvidos pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, que em outubro de 1999 editou a MP n 1.911-11, atribuindo ao Ministério da Cultura a competência para implementar o disposto no art. 68 do ADCT, e impedindo o INCRA de continuar intervindo na titulação dessas terras. O Ministério da Cultura, por sua vez, delegou essa competência à FCP.

O Decreto 3.912 de setembro de 2001 regulamentou o processo de titulação das terras de quilombo, determinando a competência para tanto à Fundação Cultural Palmares.

As críticas a esse decreto foram inúmeras (GIROLAMO, 2006), entre elas, a exclusão do INCRA do processo de titulação das terras de quilombo; restringir o número das comunidades de quilombo que poderiam ter suas terras tituladas; a exigência de que as comunidades deveriam estar naquelas terras desde 1888; assim como a previsão no decreto de que os Estados só poderiam titular em convênio com a União, o que acabava gerando a possibilidade de quebra do pacto federativo, ignorando a possibilidade de maior celeridade e efetividade dos procedimentos realizados em nível local.

Ademais, a falta de recursos para o pagamento das indenizações das benfeitorias de boa-fé gerou muitos conflitos.

O Movimento Negro, ONGs e entidades sindicais passaram a pressionar o governo federal, as Universidades e os governos estaduais para que fosse efetivadas pesquisas a respeito dessas comunidades. No Maranhão, Pernambuco, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Alagoas, São Paulo, Pará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia e em vários outros estados essas pesquisas começaram a aparecer e colaborar para a busca na efetividade do art. 68 do ADCT.

 Em que pese a Coordenação Nacional Quilombola ter apresentado uma carta ao então presidente Lula afirmando que o Decreto nº 3912/01 havia paralisado todas as ações em curso de órgãos como o INCRA e o IPHAN, trazendo prejuízos financeiros e políticos no andamento dos processos de titulação das terras de quilombo, o presente Lula manteve o Ministério da Cultura como órgão responsável pela titulação dessas terras, por meio da Medida Provisória nº 103 (convertida na lei nº 10.683 de 28 de maio de 2003).

Durante o governo de Lula foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), cujo objetivo é coordenar as politicas de promoção da igualdade racial. A partir de então foi introduzida no Brasil a possibilidade de serem elaboradas politicas afirmativas em favor dos quilombolas. Entre elas estão a criação de politicas de cotas em concursos públicos para provimentos de cargos efetivos ou comissionados, bem como para o ingresso em universidades públicas.

Com a elaboração do Decreto 3.912 de 2001, foi criado um Grupo de Trabalho com o intuito de não apenas rever as disposições do Decreto nº3912 de 2001, mas também para propor uma nova regulamentação para o reconhecimento e titulação das terras de quilombo, bem como para sugerir medidas com o intuito de implementar o desenvolvimento das áreas já reconhecidas e tituladas pela  FCP.

Após um longo período de avaliações e discussões, surgiu o Decreto nº 4.888 03, que transferiu a competência para delimitar as terras para o MDA/INCRA, bem como o Decreto nº 4885/03, que dispõe sobre a composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e o Decreto 4887/03, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por essas comunidades. Todavia, a FCP continuou a participar do procedimento de titulação, como veremos adiante.

4.5.        O DECRETO 4.887 DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003: UM PASSO IMPORTANTE NA CONCESSÃO DO TÍTULO DE PROPRIEDADE ÀS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO

A garantia das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades quilombolas é um dever constitucionalmente previsto, como já dito, no art. 68 da ADCT.  Embora o art. 68 fosse auto-aplicável, independendo de norma posterior para a sua efetividade, o decreto 4.887/2003 surge como mais um diploma normativo a serviço das comunidades quilombolas no que diz respeito aos seus direitos territoriais, passando a ser o instrumento utilizado para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombo. In verbis:          

Art. 1º Os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto. (BRASIL, 2003).

O art. 68 da ADCT não parecia efetivamente tutelar os direitos territoriais das comunidades quilombolas. Após promulgação da Constituição Federal de 1988, mais de uma década havia se passado e os direitos territoriais dessas comunidades ainda não tinham qualquer visibilidade. Em razão dessa inércia do poder estatal, em 21 de junho de 2000 entidades representantes de remanescentes de comunidades de quilombos de diversas unidades da federação ingressaram com um Mandado de Injunção em face da omissão estatal no que diz respeito à efetivação de um direito constitucionalmente previsto.

O Mandado de Injunção, julgado apenas em 2005, havia perdido o seu objeto, pois em 2001 fora editado o Decreto 3.912 de 10 de setembro de 2001, que passou a regulamentar as disposições relativas ao processo administrativo para identificação das comunidades remanescentes de quilombo, bem como o seu reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras ocupadas por essas comunidades.

Ocorre que esse decreto exigia a prova de que tais comunidades estariam ali alocadas pelo menos desde 1888, conforme dito anteriormente, tendo permanecido naquele território até 1988, ano de promulgação da Constituição Federal. In verbis:

Art. 1º  Compete à Fundação Cultural Palmares - FCP iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas.

Parágrafo único.  Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que:

I - eram ocupadas por quilombos em 1888; e

II - estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988.

Obviamente, tal exigência não deveria prosperar, pois impor como requisito para reconhecimento da propriedade dessas comunidades a permanência naquele local durante tantos anos seria absurdo. O presente decreto vigorou por pouco tempo, tendo sido substituído pelo Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003.

A maior conquista trazida pelo decreto 4.887/2003 foi a forma de definição de uma comunidade remanescente de quilombo para efeito de regularização fundiária. Com a edição do decreto 4.887/2003, o Estado brasileiro adotou o critério da autoatribuição, ou seja, reconhecer-se remanescente de quilombo é o passo inicial para o processo de titularização das terras ocupadas. Vejamos a explicação de Gilmar Bittencourt (2011, p. 52) sobre o tema:

Para tanto, teria o Estado dois critérios distintos, o heterorreconhecimento e o autorreconhecimento. No primeiro, o Estado relegaria a um órgão de Estado ou comissão o dever de identificar quais seriam os grupos de pessoas que seriam identificadas com a ancestralidade requerida. Por óbvio, o autorreconhecimento implica entregar ao suposto titular do direito o dever de autoidentificar-se como "herdeiro" de uma condição de descendência especial e, portanto, titular de um direito público subjetivo à proteção da sua cultura.

Todavia, antes mesmo do decreto 4.887/2003, muitos outros projetos de lei foram apresentados por parlamentares com o intuito de regulamentar a matéria, mesmo sendo reconhecida a auto-aplicabilidade do dispostitivo.

O Deputado Alcides Modesto (PT-BA), em 13 de junho de 1995, juntamente com outros parlamentares, apresentou o projeto de lei nº 627/95. Alguns meses depois a senadora Benedita da Silva (PT-RJ) apresentou outro projeto de lei (PL nº 129/95) com o mesmo intuito, regulamentar o processo de titulação das terras de quilombo. Mais uma vez, e com o intuito de acabar com a discussão a respeito do órgão competente para o processo de titulação, o Deputado Paulo Mourão, e 23 de maio de 2000, apresentou o Projeto de lei 3.081/00, que atribuía tal competência ao ‘’orgão fundiário’’.

 As propostas de regulamentação deste dispositivo constitucional não pararam por aí, tendo sido proposta a Emenda Constitucional nº 38/97 pelo Senador Abdias Nascimento, tendo sido arquivada, todavia, em janeiro de 1999; bem como a proposta de Emenda à Constituição apresentada pelo senador Lúcio Alantâra (PSDB – CE), que propôs a criação do Titulo VIII no Capítulo VIII da Constituição, com o fim de garantir os direitos patrimoniais dos quilombolas. O Deputado Jairo Carneiro (PFL-BA), em setembro de 2001, apresentou o PL nº 5.447/01, que também tinha o intuito de conceder o direito à propriedade dessas comunidades quilombolas.

O Deputado Luiz Alberto (PT-BA), relator da Comissão da Câmara que tinha a função de analisar os projetos de lei, apresentou um compilado desses projetos (nº 3207/97), que acabou sendo vetado em 27 de maio de 2004 pelo Congresso Nacional.

Vale ressaltar que além da autorreconhecimento como remanescescente de quilombo, é necessário que tenhamos em mente a amplitude do conceito de "remancescente", como bem fora abordado no capítulo primeiro deste trabalho. Como fora explicado, é preciso que o conceito arqueológico de quilombo, cunhado no século XVIII, cuja designação de quilombo estava diretamente associada à "negros fugidos", seja abandonado, e dê lugar ao conceito atual de quilombo, que nada tem a ver com esse conceito estagnado no tempo. Nos dias atuais, a ideia de Quilombo está associada ao vínculo cultural, religioso, identitário e econômico entre os componentes daquela comunidade.

A declaração de autorreconhecimento será destinada à Fundação Cultural dos Palmares. É conferido um prazo para contestação. Todavia, não basta apresentar a mera negativa, é necessário que se apresente um conjunto robusto de provas para comprovar a inverdade da declaração. É importante ressaltar que o autorreconhecimento é apenas o início do procedimento de titulação do território, pois o laudo antropológico só será elaborado, dando prosseguimento ao processo de titulação, com a análise antropológica feita pela Fundação Cultural dos Palmares.

Na questão em debate a presunção jamais poderá ser confrontada apenas pela prova testemunal. Por um motivo simples, se o critério é de autoatribuição, afasta-se de logo qualquer mecanismo de hetererreconhecimento, que, portanto, implica passar a outro o direito de avaliar quem se é. Conforme se discutiu antes, não importa que dez pessoas digam que alguém é índio, se ele próprio não se assimila como tal. (BITTENCOURT, 2011, p. 57).

O Ministério do Desenvolvimento Agrário, por intermédio do INCRA, será responsável pela identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas, com a competência concorrente dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

O procedimento deverá ser assistido pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, como forma de garantir os direitos étnicos e territoriais das comunidades quilombolas, bem como pelo Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, para que também seja resguardado a identidade cultural daquela comunidade. Vale ressaltar, ainda, que é defeso aos remanescentes das comunidades quilombolas participar de todas as fases do procedimento, direito esse que fora reforçado pelo Estatuto da Igualdade Racial, conforme explicitado anteriormente.

Após a conclusão dos trabalhos de campo para a identificação, delimitação e levantamento ocupacional e cartorial, o INCRA publicará edital por duas vezes consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localiza o território, conforme previsto no art. 7º do Decreto.

Elaborados os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA enviará o relatório técnico às entidades relacionadas no art. 8º do referido Decreto, no prazo de 30 dias. Expirado o prazo sem que haja qualquer manifestação dos órgãos relacionados, presumir-se-á que houve a concordância com o conteúdo do relatório.

Concluídas as publicações e notificações, abre-se o prazo de noventa dias para que os interessados se manifestem, caso entendam pertinente, sendo resguardado o direito ao contraditório e à ampla defesa. Não havendo manifestações, o trabalho de titulação da terra ocupada pela comunidade é concluído.

Os artigos seguintes versam a respeito da possibilidade das terras ocupadas situarem-se em áreas de marinha, unidades de conservação constituída, terras de propriedade das unidades federativas, território que incidam título de domínio particular não invalidado, entre outras situações, estipulando em cada artigo a competência para a solução dos impasses dali decorrentes.

Em seguida, será dado prosseguimento ao processo de regularização fundiária, mediante o processo de desapropriação e/ou o pagamento de indenização àqueles que estejam ocupando as terras dos remanescentes de quilombo. É justamente nessa fase do processo que está o grande problema, e a grande parte da demora dos processos de titulação encontra-se nesse momento.

Não sendo nulo, comisso ou prescrito o título de propriedade, deverá ser instaurado o procedimento de desapropriação previsto no art. 184 da Constituição Federal, em respeito à supremacia da Constituição Federal, sequer descrevendo-o no texto da instrução. In verbis:

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

§ 1º - As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.

§ 2º - O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.

§ 3º - Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.

§ 4º - O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.

§ 5º - São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária. (BRASIL, 1988).

Verifica-se, desta forma, que foi adotado o procedimento mais célere para a garantia ao direito de propriedade às comunidades quilombolas, pois no parágrafo único do art. 20 está prevista a utilização de um procedimento mais complexo de desapropriação, quando recair em área de proteção ambiental, como bem explicou Bittencourt (2011), embora Sarmento (2008) defenda que o procedimento de desapropriação previsto no Decreto fora criado especificamente para as situações de desapropriação de terras quilombolas, não havendo previsão anterior, tampouco na Constituição Federal, conforme veremos adiante.

O processo de titulação das terras ainda é bastante demorado e repleto de entraves burocráticos. Mas será que é certo conferir a responsabilidade unicamente ao Decreto 4.887 de 2003? Compartilhamos do pensamento de Gilmar Bittencourt (2011) e entendemos que grande parte dos entraves não derivam da legislação, mas da deficiência no aparelhamento estatal:

Não há duvidas de que o processo é longo e, indubitavelmente, será demorado. Na verdade, não é a norma que está incorreta, mas a falta de aparelhamento do Estado, principalmente do INCRA Com a melhoria da estrutura dos órgãos vinculados a essas questões, poder-se-ia conferir maior celeridade ao processo de reconhecimento e entrega das terras. (BITTENCOURT, 2011, p. 72).

Ficou instituída, também, a necessidade de um Comitê Gestor (art.19) que irá elaborar, no prazo de noventa dias, um plano de etnodesenvolvimento em favor dessas comunidades, ou seja, buscando um plano de desenvolvimento estruturado sob as ideia de pluralismo e diversidade dessas comunidades.

Ressalte-se, ainda, a previsão do art. 20 do Decreto, que prevê a prestação de um tratamento diferenciado à tais comunidades pelos órgãos competentes. In verbis:

Art. 20.  Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento preferencial, assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à realização de suas atividades produtivas e de infra-estrutura. (BRASIL, 2003).

É importante ressaltar que a titulação será registrada por meio da concessão de um título coletivo, que será emitido em nome de uma associação representativa daquela comunidade quilombola. In verbis:

Art. 17.  A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2º, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.

Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas. (BRASIL, 2003).

A respeito desse artigo, muitas críticas já foram travadas por aqueles que defendem a inconstitucionalidade do Decreto sendo, inclusive, um dos fundamentos da ADI nº 3239 proposta pelo PFL, atualmente DEM, cujo tema abordarei com mais afinco na última parte desse trabalho. Mas, tecendo alguns esclarecimentos a respeito do assunto, os defensores da inconstitucionalidade do decreto alegam, entre outros argumentos, que a concessão da propriedade a essas comunidades está em desacordo com o Ordenamento Jurídico, afirmando que esse Decreto trouxe uma forma diferente de propriedade, coletiva e indivisível, de modo que essa nova categoria não poderia ser regulada por um Decreto, mas somente por uma lei.

Esquecem-se, todavia, que o Direito Brasileiro já consagra modalidades de propriedade coletiva, como é o caso do condomínio, de modo que essa categoria não é tão absurda quanto parece ser.

4.5      ANÁLISE DA ADI N 3239 EM DISCUSSÃO NO STF QUE PROPÕE A INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO Nº 4.887/2003

A discriminação racial pode ser verificada de inúmeras formas, e uma delas é privar o povo negro de um tratamento diferenciado frente à tamanha desigualdade existente no nosso país. A ideia da democracia racial cunhada por Gilberto Freyre em sua obra "Casa Grande & Senzala" já devia ter se tornado um mito na sociedade brasileira, juntamente com a prática de políticas públicas universalistas cunhadas com base no princípio da igualdade previsto na nossa Carta Magna. Mas que igualdade é essa? Ela realmente existe, ou é preciso que, finalmente, nos demos conta que o Brasil é um país desigual e grande parte dessa desigualdade é fruto da disparidade de oportunidades ofertadas à brancos e negros?

A ADI nº 3239 proposta pelo PFL, agora DEM, é mais uma forma de discriminação do povo negro, Douglas Martins de Souza (2011, p. 103-4) denomina essa discriminação de "indireta". Vejamos:

[...] a indiferença aos efeitos perenes da discriminação e sua sustentação mediante políticas aparentemente neutras é, ela mesma, discriminação       indireta. No contexto da discriminação indireta a conduta relevante é omissiva (deixar de incluir quando a inclusão se faz necessário), distinguindo-se radicalmente da conduta exigida para a discriminação direta (excluir quando a exclusão se encontra legalmente banida). A marca de distinção entre ambas é a visibilidade, sendo fato que a discriminação direta é visível e a discriminação indireta é "invisível", ainda que perceptível.

Deste modo, interpor uma ADI que visa declarar inconstitucional e extirpar do Ordenamento Jurídico o Decreto 4.887/2003 que, mesmo diante de tantas dificuldades, e estando refém da morosidade do sistema jurídico brasileiro, trouxe tantos avanços no que diz respeito aos direitos das comunidades quilombolas configura, de fato, exercício de uma discriminação disfarçada, oculta, mas perceptível aos olhos do povo quilombola, e de todos os brasileiros que lutam pelo reconhecimento dos direitos desse povo.

Em parecer dado em 2008, o Procurador Regional da República, Daniel Sarmento, apresentou a sua posição a respeito da ADI nº 3239:

A dimensão social da questão de fundo debatida na ação é inequívoca.Com efeito, cadastradas na Fundação Cultural Palmares existem hoje mais de mil comunidades de remanescentes de quilombo, espalhadas por todo o país, e há estimativas de que este número possa passar de três mil, o que envolve, por mais cautelosos que sejam os cálculos, centenas de milhares de pessoas, portadoras de identidade étnica própria, e quase todas extremamente pobres. Caso sejam acolhidas as teses sustentadas na ADI 3.239, qualquer possibilidade de tutela atual dos direitos destas pessoas será sacrificada, com sério risco para a sobrevivência das comunidades quilombolas e das suas tradições culturais, que integram o patrimônio imaterial da Nação.

Analisaremos, a partir de agora, os fundamentos apresentados pelo Partido DEM para a propositura da ADI nº 3239 em face do Decreto 4.887/2003, apresentando os argumentos contrários à declaração da inconstitucionalidade do referido decreto.

Os argumentos apresentados na ADI 3239 em análise no STF são os seguintes: (a) impossibilidade de edição de regulamento autônomo para tratar da questão, haja vista o princípio constitucional da legalidade; (b) a inconstitucionalidade do uso da desapropriação, prevista no art. 13 do Decreto 4.887/03, bem como do pagamento de qualquer indenização aos detentores de títulos incidentes sobre as áreas quilombolas, tendo em vista o fato de que o próprio constituinte já teria operado a transferência da propriedade das terras dos seus antigos titulares para os remanescentes dos quilombos. Quanto para uma análise mais sociológica da legislação ao alegar que (c) a inconstitucionalidade do emprego do critério de auto-atribuição, estabelecido no art. 2º, caput e § 1º do citado Decreto, para identificação dos remanescentes de quilombos; (d) a invalidade da caracterização das terras quilombolas como aquelas utilizadas para “reprodução física, social, econômica e cultural do grupo étnico” (art. 2º, § 2º do Decreto 4.887/03) – conceito considerado excessivamente amplo – bem como a impossibilidade do emprego de “critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades de quilombos” para medição e demarcação destas terras (art. 2º, § 3º), pois isto sujeitaria o procedimento administrativo aos indicativos fornecidos pelos próprios interessados.

O primeiro fundamento da referida ação é o desrespeito ao princípio da legalidade, diante da impossibilidade de edição de regulamento autônomo para tratar da questão, qual seja, o dispositivo constitucional 68 da ADCT. Bittencourt (2011) apresenta um contra-argumento plausível a respeito do tema. Segundo o autor, esse excessivo apego ao princípio da legalidade no sistema jurídico brasileiro apresenta seu lado negativo. Para Bittencourt, negar aplicabilidade a um dispositivo constitucional que clama por regulamentação, somente pelo fato do instrumento normativo que o tenha feito não ter sido uma lei é demasiado incoerente. Utilizar o argumento de que, no Brasil, para a edição de um decreto não é necessária a participação popular não cabe para o caso em análise, pois a população brasileira, em especial o povo quilombola, lutou para que houvesse a regulamentação do art. 68 da ADCT. Diante da inércia do Poder Legislativo, o poder Executivo, acertadamente, tomou as rédeas da situação e criou o decreto em comento. 

Segundo Clève (apud BITTENCOURT, 2011), é plausível que essa regulamentação seja feita por decreto, quando inexistir lei afinal, como acertadamente conclui Bittencourt (2011), anular um decreto que regulamenta um dispositivo constitucional em razão da ausência de lei que o tenha feito seria uma inversão da hierarquia, onde o Decreto passaria ao topo, passando a gerir a sistemática normativa do Ordenamento Jurídico. Sobre o assunto, vejamos a explicação de Bittencourt (2013, p. 89):

O decreto ou a resolução que, fundado na Constituição, a regula (a Constituição), e não extrapolando os limites impostos nos direitos vinculados pela Constituição Federal, é plenamente constitucional. Raciocínio contrário nos conduziria a um paradoxo jurídico facilmente comprovável. Aceitando que um direito formulado na Constituição pudesse depender de norma infraconstitucional para o exercício, ter-se-ia o absurdo caso de ausência de Lei que sobresta a Constituição, mais claramente, é dizer que no período em que não havia norma que regulava o art. 2° os poderes da União (Legislativo, Executivo e Judiciário) não poderiam ser independentes e harmônicos, pois não havia lei que dissesse. Um maior ou menor grau de autonomia podia não existir, posto que autonomia só viria com orçamento e prática de atos de independência,mas alegar que, até estas leis, não havia autonomia é sujeitar a Constituição a norma de menor gabarito, portanto, inadmissível.

Ainda assim, para os legalistas que não se sentem plenamente convencidos com todos os argumentos apresentados, foi editado o Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, que acabou com a controvérsia a respeito da necessidade de regulamentação do art. 68 da ADCT por uma lei, não por uma decreto, trazendo em seu artigo 31 o requisito necessário para pôr fim à polêmica da ilegalidade do referido Decreto. Vejamos: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 2010).

Daniel Sarmento, em seu parecer já mencionado neste trabalho, traz à baila outro argumento bastante convincente a respeito do tema. Segundo o Procurador, a propositura da ADI 3239 pelo partido DEM foi incoerente, pois o Decreto 4.887/2003 não foi a primeira norma infraconstitucional a regulamentar o dispositivo constitucional 68 da ADCT, pois antes da sua edição vigorava o Decreto 3.912 de 10 de setembro de 2001, como já fora abordado neste trabalho anteriormente.

Deste modo, sendo considerado inconstitucional o Decreto 4.887/2003, o mesmo valerá para o Decreto 3.912 de 2001. Neste sentido, explica Daniel Sarmento (2008):

Ora, sabe-se que a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo possui efeitos repristinatórios, na medida e que implica na restauração da vigência da norma anterior, que fora revogada por aquela invalidada. Portanto, se fosse invalidado o Decreto 4.887/03, restaurar-se-ia a eficácia do Decreto 3.912/01, que o primeiro revogara.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal entende que não é admissível a ADI nesses casos, qual seja, quando a norma anterior que fora revogada esteja eivada do mesmo vício de inconstitucionalidade, sendo que no pedido do autor não tenha sido requerida a invalidação da primeira norma. A título exemplificativo, vejamos o seguinte aresto:

CONSTITUCIONAL.AÇÃO DIRETA DEINCONSTITUCIONALIDADE: EFEITO REPRISTINATÓRIO: NORMA ANTERIOR COM O MESMO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE.

I. - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade da norma objeto da causa, ter-se-ia a repristinação de preceito anterior com o mesmo vício de inconstitucionalidade. Neste caso, e não impugnada a norma anterior, não é de se conhecer da ação direta de inconstitucionalidade. Precedentes do STF. II. - ADIn não conhecida. (STF, Pleno, ADI 2.574/AP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 29.08.2003)

Deste modo, não tendo o Autor da ADI n 3239, o partido DEM, requerido da inconstitucionalidade do Decreto 3.912/01, a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003 restou prejudicada.

A ADI 3239 contém, ainda, como fundamento para decretação da inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, a alegação de que o art. 68 da ADCT, por se tratar de um dispositivo constitucional, é auto-aplicável e prescinde de norma infraconstitucional que trate do mesmo tema. Ora, não há quem discorde do fato de que o art. 68 da ADCT, por se tratar de um dispositivo constitucional que visa resgatar uma dívida histórica do Brasil com a comunidade negra, especificamente com a comunidade quilombola, trata-se, não menos, da previsão de um direito fundamental e, por este motivo, terá aplicabilidade imediata, conforme previsto no art. 5º, § 1º, do texto constitucional. In verbis

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. (BRASIL, 1988).

O Autor da ADI 3239 alega que a previsão de desapropriação do art. 13 do Decreto 4.887/03 é inconstitucional, pois o constituinte já teria efetuado essa transferência de propriedade com o art. 68 da ADCT e, deste modo, não caberia ao Decreto prever, novamente, a desapropriação do terreno e, tampouco, estabelecer a obrigação indenizatória ao antigo proprietário. Sustenta, ainda, o argumento de que a desapropriação prevista no referido Decreto não se encaixaria em nenhuma das modalidades previstas no art. 5º, XXIV da Constituição Federal ou em qualquer outro diploma normativo que verse a respeito do tema.

Sarmento (2008) propõe que seja feita uma análise do art. 13 do referido Decreto em conformidade com a Constituição, ou seja, haja vista já ter o art. 68 da ADCT transferido a propriedade aos quilombolas, independente de prévia desapropriação, deve ser reconhecido o direito dos antigos proprietários o direito à indenização, conforme as regras empregadas na ação expropriatória. Em outras palavras, Sarmento defende que o referido Decreto, de fato, não se encaixa em nenhuma modalidade de desapropriação prevista no Ordenamento Jurídico, sendo uma modalidade implementada em atenção ao direito territorial das comunidades quilombolas que, como já dito, é um direito fundamental que tem aplicabilidade imediata.

Alega, ainda, que o direito territorial das comunidades quilombolas não deve ser subordinado aos interesses e recursos das autoridades públicas que são encarregadas de efetuar a desapropriação e, por este motivo, as modalidades de desapropriação já existentes seriam manifestamente ineficazes para o reconhecimento do direito dessas comunidades, e não há como negar que muitas comunidades quilombolas tem sofrido com esse mal. Sobre o tema, explica Sarmento (2008, p. 20):

Exigir prévia desapropriação significa, nestes termos, subordinar a garantia do direito à terra das comunidades quilombolas à disponibilidade dos recursos públicos pelo INCRA, e às escolhas políticas do Estado sobre que demandas priorizar, num quadro de escassez financeira. Implica, em outras palavras, postergar indefinidamente a possibilidade de fruição, pelos seus titulares, de direitos fundamentais dotados de aplicabilidade imediata, condicionando-os a variáveis políticas e financeiras altamente incertas.

Do mesmo modo, Sarmento ressalta a importância do pagamento da indenização aos antigos proprietários como uma forma de repartir o ônus do financiamento dos custos para a efetivação do art. 68 da ADCT, ou seja, seria injusto que apenas os antigos proprietários arcassem com esse ônus, na medida em que toda a sociedade brasileira tem uma dívida história com as comunidades quilombolas, sendo este um momento crucial para sanar uma parte dela. Essa parece ser uma saída para diminuir a lentidão do procedimento de desapropriação dessas terras, conferindo à comunidade quilombola o direito á propriedade dessas terras antes mesmo do pagamento da indenização aos antigos proprietários.

Outro argumento utilizado para conferir à indenização aos antigos proprietários posteriormente à entrega da terra às comunidades quilombolas é a utilização do principio da proporcionalidade.

Como já foi demonstrado, o direito das comunidades quilombolas às terras que ocupam não se resume meramente a um direito patrimonial, pois representa um dos expoentes da manifestação da identidade étnica daquele povo, de modo que a sua garantia é requisito para a manutenção daquela comunidade. Somado a isso, o direito às terras que ocupam é um direito fundamental, como já fora abordado neste trabalho em diversas passagens. Do outro lado, está o direito à propriedade dos antigos proprietários. Afinal, à luz do principio da proporcionalidade, não há dúvidas de que o direito das comunidades quilombolas tem um peso maior nesse conflito de interesses. Explica Sarmento (2008, p. 29-30):

Portanto, diante da caracterização de uma área como território de remanescente de quilombo, a tutela ao direito de propriedade da comunidade quilombola deve ser imediata, ainda que sobre o local incidam títulos em nome de particulares. Sem embargo, nesta situação, o Poder Público deve oferecer a tais particulares uma indenização justa, e, em caso de impasse quanto ao seu valor, propor demanda judicial, a fim de que o arbitramento da importância a ser paga ocorra de forma dialética e imparcial. Neste caso, o âmbito de cognição da ação ficará restrito ao quantum debeatur e ao exame de eventuais vícios processuais – exatamente como ocorre na desapropriação -, facultando-se ainda ao antigo proprietário a possibilidade de impugnar em juízo, através de ação autônoma, a decisão administrativa que reconheceu e titulou a área como remanescente de quilombo.

Sarmento aduz, ainda, que havendo a demora do Poder Público no pagamento da indenização devida ao antigo proprietário, ele poderá interpor uma ação indenizatória, como ocorre na desapropriação indireta, ressaltando, todavia, que o não pagamento jamais deverá interferir no direito à propriedade das comunidades quilombolas.

A solução apresentada por Daniel Sarmento parece de grande valia e possui argumentos contundentes e plausíveis. Os impasses para a efetivação do direito à terra das comunidades quilombolas permanecerão enquanto novas alternativas para solucionar essa situação não surgirem. Subordinar a efetivação dos direitos desses povos, que tanto sofreram durante séculos, à mais uma burocracia estatal seria injusto e contraditório. As comunidades remanescentes de quilombo anseiam pelo reconhecimento e aceitação da sua cultura, do seu modo de vida, e conceder-lhes o direito à terra é o mínimo que se pode fazer para sanar a dívida que temos com esse povo.   

Do mesmo modo, considerar inconstitucional o Decreto em função do critério da auto-atribuição utilizado para identificar um remanescente de quilombo não encontra respaldo nem na ordem jurídica constitucional, tampouco dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Primeiramente, o argumento não deve prosperar pois o critério da auto-definição não é o único exigido no Decreto 4.887/03, pois para impedir que pessoas que não  sejam quilombolas, e autodefinam desta forma, é necessário, também, a observação de outros requisitos dispostos no art. 2º, caput. In verbis.

Art. 2º  Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Desta forma, embora de tamanha importância auto-definição para o reconhecimento de uma comunidade quilombola, o Decreto não se restringe a esse critério para identificar os remanescentes de quilombo. Vejamos o entende Alfredo Wagner Almeida (1999, p. 67-8) sobre o assunto:        

A meu ver, o ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprio agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas em face dos grupos sociais com quem interagem. Esse dado de como os grupos sociais chamados "remanescentes" se autodefinem é elementar, porquanto foi por esta via que se construiu e afirmou a identidade coletiva. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produto de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes.

É importante ressaltar, todavia, que o art. 5º, § 2º, da Carta Constitucional, expressa que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988).

Deste modo, relembrando o fato do Brasil ser signatário da Convenção 169 da OIT, e esta prever em seu artigo 1º, item 1, alínea "a", o critério da auto-definição para o reconhecimento dos povos indígenas e tribais, o Decreto 4.887/03 está de acordo com mais uma norma hierarquicamente superior ele, estando, mais uma vez, incongruente o argumento de inconstitucionalidade do referido Decreto abordado da ADI 3239.

A utilização do conceito de quilombo expedida pelo Conselho Ultramarino de 1740, como quer o Partido Democratas com a interposição da referida ADI, não deve prosperar. Seria como utilizar mais uma forma de repressão contra esse grupo, que tanto sofreu durante o período escravocrata, e sofre até hoje em razão das heranças desse tempo que ainda não se apagaram. Estaríamos, pois, conferindo ao quilombo um conceito estático, congelado no tempo, o que acabaria por refletir na dinâmica da sua cultura e seu modo de vida.

Do mesmo modo, carece de veracidade o argumento apresentado para a declaração da inconstitucionalidade do Decreto em comento a respeito da definição do território quilombola ser elaborada por critérios definidos unicamente pelos remanescentes de quilombo. Como já dito anteriormente, o Partido Democratas pretende que para que seja reconhecido um território quilombola é preciso que aquela comunidade ali tenha permanecido de 1888 até 1988, de forma pacífica e ininterrupta, ou seja, como bem observou Sarmento (2008) em seu parecer a respeito da ADI , está se exigindo um prazo absurdo de 100 anos para a configuração de usucapião das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombo, como estava previsto no Decreto 3912/01, revogado pelo atual Decreto 4.887/03.

Ora, o próprio Código Civil, em seu art. 1238, estabelece o prazo máximo de 15 anos para a configuração da usucapião, então não seria minimamente razoável exigir esse prazo para a concessão da propriedade à uma comunidade quilombola. A respeito do tema, a Convenção 169 da OIT prevê em seu artigo 13.1 a importância da delimitação territorial feita pelas comunidades quilombolas. In verbis:

Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou segundo ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos desta relação. (BRASIL, 2004).

É importante ressaltar, também, que o Decreto 4.887/03 não restringe o critério da delimitação territorial àquela feita pela comunidade quilombola, na medida em que o Poder Público irá se utilizar de outros critérios para tal delimitação, inclusive garantindo um prazo para o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa àqueles que se sentirem prejudicados.

Como foi dito anteriormente, O processo ficou paralisado de abril de 2012 até março de 2015, em razão do pedido de vista da ministra Rosa Weber, após o voto do relator do processo, ministro Cesar Peluso, que julgou procedente a ação e votou pela inconstitucionalidade do decreto. Logo após o voto da ministra Rosa Weber o processo foi paralisado novamente em razão do pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

4.6      A BUSCA POR SOLUÇÕES EFETIVAS

Um dos grandes problemas enfrentados pelo povo quilombola no reconhecimento de suas terras é o fato de mesmo após tantos anos de promulgação da Constituição Federal de 1988 ainda existe uma falta de informações atualizadas a respeito da quantidade comunidades quilombolas existentes no território brasileiro.

Os dados obtidos pelos Estados não estão de acordo com os obtidos pela Fundação Cultural Palmares, que em 2000 reconheceu a existência de 743 comunidades no território brasileiro.

Os números variam a cada ano, não apenas em razão do desconhecimento dos estudiosos da matéria, mas também pela dinâmica do movimento social negro, que tem uma postura ativa na busca da efetividade do art. 68 do ADCT.

Uma das reivindicações do povo quilombola é a realização de um CENSO que possa dar base mais consistente na elaboração das políticas públicas, não utilizando como parâmetro apenas as pesquisas realizadas pela FCP.

Ora, criar mais entraves para efetivar tais direitos seria como ampliar ainda mais a divida do Brasil com o povo negro, de modo que é preciso que esse problema seja visto como questão prioritária pelo Governo Federal e Governos locais que, atuando de forma integrada, podem ampliar ainda mais os resultados positivos no reconhecimento desses direitos ao povo quilombola.


5    CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar os impasses para a efetivação dos direitos destinados às comunidades quilombolas brasileiras, com enfoque na questão fundiária, bem como ressaltar o papel que o território representa na cultura e na formação da identidade desse povo, e de que modo privá-los do direito à propriedade definitiva de suas terras influencia para a degradação da cultura, da tradição e desenvolvimento da própria comunidade quilombola.

As heranças da escravidão ainda deixaram marcas na sociedade atual, e o povo negro é a maior vítima da desigualdade social que impera no nosso país. Não bastasse isso, mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a previsão do artigo 68 da ADCT, bem como dos pactos internacionais que tratam do tema e os quais o Brasil é signatário, a edição do Decreto 4.887/03 e do Estatuto da Igualdade Racial, diplomas normativos que tem em sua essência o dever de tutela dos direitos dos remanescentes de quilombo, inúmeras comunidades do território nacional ainda são vítimas do lento processo de titulação de suas terras e ficam a mercê da demora do aparelhamento estatal e da disponibilidade de recursos públicos para que seus direitos sejam efetivados.

Os impasses para a efetivação dos direitos territoriais das comunidades quilombolas são diversos, entre eles estão os seguintes: o Estado não tem dado conta de tantas demandas étnicas; a disponibilidades de recursos para o pagamento da indenização aos antigos proprietários em razão da desapropriação é escassa ou, quando existente, há uma distribuição irregular desses recursos; o grande descontentamento dos grandes latifundiários em perder as “suas” terras para conferir às comunidades quilombolas o mínimo de dignidade; e, talvez o mais grave dos problemas, a ADI 3239 proposta pelo PFL, atualmente DEM, requerendo a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, pedra angular no reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades quilombolas, representando a maior conquista desse povo nos últimos 10 anos, com base em argumentos incongruentes.

Verificou-se, com a elaboração deste trabalho, que o processo de titulação das terras das comunidades quilombolas ainda é lento e burocrático, o que demonstra que o Estado ainda não tem dado conta da demanda.

Como alternativa para acelerar o processo de concessão da propriedade definitiva ao povo quilombola, bem como para pôr fim à discussão a respeito da constitucionalidade do Decreto 4.887/03, foi apresentada a alternativa de inversão do procedimento desapropriatório, ou seja, na fase da desapropriação das terras quilombolas ocupadas por particulares, o direito à indenização dessas pessoas deveria ser retardado para um momento posterior à entrega das terras à comunidade quilombola, impedindo que a efetividade do direito territorial desse povo fique subordinado à burocracia estatal pois, como foi visto, o principio da proporcionalidade coloca o direito das comunidades quilombolas em um patamar superior ao direito dos particulares à indenização.

Isso não quer dizer, todavia, que os particulares ficariam desassistidos, de modo que caso houvesse a demora do Estado no pagamento do valor, os particulares poderiam interpor uma ação indenizatória em face do Estado.

Isto posto, concluímos que a garantia do direito à terra às comunidades quilombolas, além de conferir um direito fundamental à esse povo, representa um avanço e um privilégio em grande escala, conferindo uma melhor qualidade de vida não só para eles mas, indiretamente, para toda a sociedade brasileira.


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Notas

[1] "A tolerância não advém de um sentimento caridoso, nem da resignação diante de um acontecimento inevitável. Tolerar o ‘outro’ não significa um conformismo diante de uma convivência não desejada, mas, antes de tudo, um olhar de respeito à singularidade do ‘Outro’ [...]" (BRITO, 2011, p. 48).

[2] Segundo Gama, a expressão “remanescente” deve ser interpretada extensivamente, pois havendo uma aplicação literal do texto, não haveria como aplicá-lo pois, segundo ele, “caso haja algum remanescente do período escravocrata, ele deve estar no seu leito de morte. Então, onde se lê remanescente, entenda-se descendente que significa derivar, provir por geração" (GAMA, p. 8, 2007).

[3] Como é o caso das quebradeiras de coco babaçu (MA, PA, PI e TO) e das artesãs de arumã do Rio Negro (AM), onde a formação da sua identidade está ligada a critérios ocupacionais, no caso dos ribeirinhos, critérios relativos à localização geográfica, entre outros(ALMEIDA, 2002, p. 72).



Informações sobre o texto

Monografia (Pós-Graduação). Faculdade Baiana de Direito, Salvador, 2016.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Amanda Ester Barreto. Identidade étnica, comunidades quilombolas e territorialidade: impasses para a regularização fundiária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4822, 13 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51997. Acesso em: 25 abr. 2024.