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Teoria subjetiva da posse

Teoria subjetiva da posse

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Nada que foi escrito sobre a posse antes de Savigny se compara ao seu Tratado da Posse, pela sistemática, pela clareza e pelo engenho. As idéias de Savigny sobre a posse dominaram a doutrina por mais de meio século.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Posse. Noções Preliminares; 3. Teoria Subjetiva da Posse, 3.1. O Corpus na Teoria de Savigny, 3.2. O Animus na Teoria de Savigny, 3.3. Aplicações Práticas; 4. Críticas à Teoria Subjetiva da Posse; 5. A Orientação Seguida pelo Ordenamento Brasileiro sobre Posse; 6. O Posicionamento da Legislação Estrangeira sobre o Conceito de Posse, 6.1. França, 6.2. Itália, 6.3. Portugal, 6.4. Espanha, 6.5. Argentina, 6.6. Alemanha, 6.7. Suíça, 7. Conclusão; 8. Bibliografia


1. INTRODUÇÃO.

Em 1803, aos vinte e quatro anos de idade, Friedrich Carl Von Savigny (1779-1861) publicou o Tratado da Posse (Das Recht des Besitzes / Traité de la Possession en Droit Romain), aonde se dedicou a analisar o instituto da posse, numa tentativa de reconstrução do direito romano.

Em tal obra, "que, por si só, bastaria para imortalizá-lo", segundo Moreira Alves, Savigny desenvolveu sua teoria sobre o conceito e os elementos essenciais da posse, posteriormente batizada como teoria subjetiva da posse, que obteve grande repercussão, influenciando a maioria das legislações do século XIX.

As idéias de Savigny não eram, de todo, desconhecidas da doutrina jurídica. Entretanto, nada que foi escrito sobre a posse antes de Savigny se compara ao seu Tratado da Posse, pela sistemática, pela clareza e pelo engenho. Por essas razões, as idéias de Savigny sobre a posse dominaram a doutrina por mais de meio século.

O próprio Jhering, principal opositor das idéias de Savigny, assinala a obra "Tratado da Posse" como uma das principais obras da literatura a respeito da posse. Ressalta, ainda, que esse livro "abriu novos horizontes, influindo não somente na teoria da posse, como também no desenvolvimento de toda a ciência romanista", e que, "sob o ponto de vista da história do assunto, terá sempre o mérito de haver excitado e favorecido poderosamente a investigação científica no terreno da teoria possessória".

Entretanto, apesar de toda a sua reconhecida importância histórica, a obra de Savigny desencadeou conflitos sem precedentes, e sofreu inúmeras críticas em todos os seus pontos fundamentais, críticas essas que culminaram, com o passar do tempo, na superação da teoria subjetiva e na adoção da teoria objetiva de Jhering nas legislações atuais.

Mas como bem observa Orlando Gomes, mesmo aqueles contrários à teoria subjetiva são "surpreendidos com a persistente penetração de seus conceitos, numa interferência indesejada, mas irresistível. Concessões ao seu sistema se encontram em todos os Códigos que preferiram a doutrina oposta".

São essas concessões subjetivistas assumidas pelas legislações modernas, bem como o valor histórico da teoria de Savigny, que mantêm o interesse na análise da referida teoria sobre a posse, objeto do presente estudo.


2. POSSE. NOÇÕES PRELIMINARES.

Como bem observa Tito Fulgêncio, a palavra "posse" tem sido usada abrangendo variadas significações impróprias, o que deve ser evitado a fim de garantir a precisão técnica da terminologia. Comumente, o conceito de posse tem sido exprimido com as seguintes significações:

a) "Posse" como sinônimo de propriedade. Tal equívoco remonta ao próprio direito romano e até hoje figura na linguagem do povo e mesmo de juristas. É certo que a posse exprime, em regra, o conteúdo da propriedade, mas é errônea, tecnicamente, a confusão dos dois institutos;

b) "Posse" como sinônimo de tradição, significando condição de aquisição do domínio, o que também consiste numa imprecisão técnica, tendo em vista que a posse tem um conteúdo mais amplo do que a simples forma de aquisição da coisa;

c) "Posse" significando o exercício de um direito qualquer, independente de recair diretamente sobre coisas, o que tem sido alvo de grande polêmica sobre a possibilidade de posse de direitos pessoais. O nosso código civil, inclusive, utiliza a expressão "posse do estado de casados", nos arts. 1.545 e 1.547;

d) "Posse" denotando o compromisso do funcionário no qual se compromete a exercer sua função com honra.

Maria Helena Diniz, acrescenta que o termo "posse", além das utilizações aludidas acima, tem sido ainda equivocadamente empregado nas seguintes situações:

e) "Posse" como sinônimo de domínio político, haja vista que no direito internacional público é normal a utilização da expressão "possessão de um país";

f) "Posse" na acepção de poder sobre uma pessoa. Essa confusão tem seu âmbito no direito de família, quando da referência ao poder que os pais têm sobre os filhos.

Ultrapassadas essas considerações preliminares sobre a significação vulgar do termo posse, é mister ressaltar que vários doutrinadores se esforçaram na tentativa de precisar o significado técnico desse instituto, que, na opinião de Sílvio de Salvo Venosa, é, fora de dúvida, "o instituto mais controvertido de todo o direito, não apenas do direito civil".

Os romanos, que já conheciam bem a posse e já disciplinavam a defesa da situação possessória, como historia Silvio Rodrigues, concentraram-se aprioristicamente nos aspectos práticos da posse, sem conceituá-la, perquirir sua natureza jurídica ou sistematizar as regras sobre a matéria. Essa tarefa de explicar o instituto coube aos doutrinadores modernos.

A tarefa de conceituar a posse, todavia, é bastante árdua, pois, assim como tudo que se refere à posse (origem, elementos essenciais, natureza jurídica e etc), suscita grande divergência doutrinária. Dentre as várias teorias que se dispõem a definir a posse, um ponto é fundamental, como bem assevera Serpa Lopes e é entendimento unânime na doutrina: toda a discussão gira em torno da configuração jurídica de dois elementos da posse - corpus e animus.

Por outro lado, o esforço da doutrina em obter essa conceituação teve o "objetivo de fornecer um critério para se distinguir o possuidor do detentor", na opinião de Orlando Gomes, o que tem grande efeito prático a partir do momento em que à posse são atribuídos efeitos jurídicos, especialmente no que se refere a sua proteção, que à detenção são negados.

Sem sombra de dúvida, imprescindíveis na análise desse prélio são as teorias dos notáveis Savigny e Jhering, respectivamente denominadas teoria subjetiva e teoria objetiva da posse, que obtiveram "repercussão legislativa evidente", como salienta Caio Mário da Silva Pereira.

Savigny e Jhering concordavam que a posse era composta por um elemento material e um elemento moral ou intelectual (corpus e animus). O ponto de discordância dos referidos autores, no que se refere à conceituação da posse, é exatamente a caracterização desses elementos.

Savigny também manifestou seu pensamento em relação a vários outros aspectos da posse, além do conceito e elementos essenciais, como natureza jurídica, efeitos e fundamento da proteção possessória, o que gerou várias outras teorias referentes à posse. Nesta oportunidade, entretanto, cabe-nos enfocar mormente a teoria subjetiva da posse, examinando-a mais detalhadamente, como se procederá a seguir.


3. TEORIA SUBJETIVA DA POSSE.

Savigny atribuiu as dificuldades surgidas a respeito da posse à deficiente compreensão do direito romano nesse ponto. Como ensina Serpa Lopes, a teoria subjetiva surgiu num contexto em que a teoria medieval era preponderante, afirmando que a idéia de posse refletia a de um contato pessoal, desprezando o aspecto interno da posse que se reflete na relação direta e imediata com a coisa.

Investindo contra essa teoria, Savigny apresenta como paradigma a situação de alguém ter em mãos uma moeda de prata, caso que indubitavelmente configura a posse. A partir do seu posicionamento, a idéia de tangibilidade física tornou-se fundamental para a aquisição da posse.

Como historia António Menezes Cordeiro, "Savigny teve de enfrentar, no seu estudo sobre a posse, o problema da grande prolixidade: ele refere, só sobre a posse e temas possessórios, 78 obras". Como conseqüência dessa realidade, havia o problema da imprecisão terminológica e confusão quanto a regras, restando-lhe a tarefa de simplificar os estudos sobre esse instituto.

O ilustre autor alemão partiu da observação de que, no direito romano, apenas dois efeitos legais se atribuem à posse de forma independente da propriedade, que são o usucapião e os interditos possessórios (teoria da pluralidade dos efeitos da posse). A posse seria uma condição de existência desses efeitos.

Nas palavras do próprio Savigny, "Nous ne trouvons dans tout le droit romain que deux effets légaux que l’on puisse attribuer à la possession comme telle et indépendamment de toute sdée de propriété: ce sont l’usucapion et les interdits".

Após analisar, no Tratado da Posse, os efeitos da posse, Savigny analisa a natureza desse instituto, concluindo: "Ainsi, elle est à la fois un fait et un droit: par elle-même c’est un fait, par ses conséquences elle ressemble à un droit, et cette double nature est infiniment importante pour tout ce qui concerne cette matière".

Assim, na visão de Savigny, a posse seria ao mesmo tempo um fato e um direito. Considerada em si mesma, a posse seria um fato e, considerada nos seus efeitos (interditos possessórios e usucapião), a posse manifestaria a feição de um direito..

A partir dessas constatações, Savigny, no Tratado da Posse, dedicou-se a definir a posse, conceituando-a como a faculdade real e imediata de dispor fisicamente da coisa com a intenção de dono, e de defendê-la contra as agressões de terceiros. O fundamento da proteção possessória seria o princípio geral de que toda pessoa deve ter a proteção do Estado contra qualquer ato de violência (teoria da interdição da violência).

Nessa definição de posse dada por Savigny, como resta claro, encontram-se presentes os dois elementos essenciais da posse civil, corpus e animus. Esses elementos devem estar sempre conjugados para que exista posse, pois fazem parte da sua própria estrutura, não se adquirindo a posse somente pela apreensão física ou somente com a intenção de dono – "Adipiscimur possessionem corpore et animus; nec per se corpore, nec per se animo".

Nas palavras do próprio Savigny, "Toute acquisition de possession repose sur un acte physique, corpus ou fait, accompagné d’une volonté déterminée, aninus". (grifo nosso)

Pode-se perceber, portanto, que para uma perfeita compreensão do pensamento de Savigny quanto ao conceito de posse, que é o objetivo desse estudo, faz-se imperativa uma análise detalhada dos elementos estruturais corpus e animus, tarefa que agora tencionamos cumprir.

3.1. O corpus na teoria saviniana.

O corpus de Savigny é o fato material pelo qual a coisa está submetida à vontade humana, criando para o titular da coisa a possibilidade de dispor fisicamente desta, excluindo a intromissão de todas as outras pessoas.

Vale ressaltar que o corpus não é a coisa em si, mas o poder físico do possuidor sobre a coisa, a "possibilidade de ter contato direto e físico com a coisa". Nas palavras de Caio Mário, "é o fato exterior, em oposição ao fato interior", ou, segundo Jhering, "a supremacia de fato sobre a coisa".

Segundo Washington de Barros, a noção de corpus sofreu uma mutação dentro da própria teoria subjetiva. Num primeiro momento, o corpus era tido como o próprio contato físico, direto e permanente do possuidor com a coisa; num segundo momento, como a simples possibilidade de exercer esse contato, tendo sempre a coisa a sua disposição.

E, aceitando o corpus nessa acepção mais evoluída como possibilidade de exercer o contato com a coisa ou influência sobre a coisa, Savigny distinguia, ainda, graus de possibilidade (ou de corpus) conforme se tratasse de adquirir ou conservar a coisa, como assevera Antonio Hernández Gil.

Conforme esse autor espanhol, "Para adquirir es indiscutiblemente preciso que la influencia sea inmediatamente posible; para conservar, ya no. Es suficiente para conservar que la relación de poder, la influencia sobre la cosa, pueda producirse a nuestra voluntad, y de esa manera la posesión cesa cuando desaparece tal posibilidad".

Lafayette, ao dissecar a teoria de Savigny, afirma que, na visão desse autor, "basta a simples presença do adquirente para que se perfaça a aquisição da posse. Mas, se no local achar-se outra pessoa, que se atribua a posse da mesma coisa, ela somente se adquire com o seu consentimento, ou com o seu afastamento pela violência".

Como conseqüência, para que a apreensão física da coisa se concretize, faz-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos:

1º) Disponibilidade da coisa;

2º) Possibilidade direta e imediata de submetê-la ao seu poder físico;

3º) Excluir toda a intervenção estranha.

Da configuração desses requisitos resulta para o possuidor a possibilidade de fazer da coisa o que quiser e ainda afastá-la da ação de outras pessoas. Conclui-se, ainda, que a teoria subjetiva não permite o desdobramento da posse em posse direta e indireta, tendo em vista que, com o desdobramento, estar-se-ia considerando possuidor alguém que não teria a possibilidade de estabelecer o contato direto com a coisa quando bem lhe entendesse. A noção de posse como poder de fato sobre a coisa é incompatível com a bipartição da posse em graus, pois se não há o poder de fato não haveria posse.

3.2. O ANIMUS NA TEORIA SAVINIANA.

A visão subjetiva da posse, implicando a vontade do possuidor, não foi uma inovação de Savigny. Essa visão já havia sido consagrada na obra de Pothier (Traité de la Possession – 1772), ao afirmar que a posse adquirir-se-ia corpore et animo, baseando-se na doutrina desenvolvida pelos jurisprudentes Cujas e Donneau, aos quais se deve o animus domini posteriormente resgatado por Savigny.

Ao tratar do elemento psíquico da posse, Savigny, no Tratado da Posse, declara:

"Ainsi,, pour être considéré comme véritable possesseur d’une chose, il faut nécessairement que celui qui la détient se gère à son égard en propriétaire; em d’autres termes, qu’il prétende en disposer en fait comme un propriétaire aurait la faculté légale de le faire en vertu de son droit, ce qui implique en particulier aussi le refus de reconnaître daus le chef d’autrui un droit quelconque supérieur au sien. L’idée de la possession n’exige absolument rien de plus que cet animus domini; elle ne suppose nullement la conviction que l’on soit réellement propriétaire (opinio seu cogitatio domini); voilá porquoi le voleur et le brigand peuvent tout aussi bien avoir la possessin de la chose volée que le propriétaire lui-même, et ils diffèrent de la même manière que celui-ci du fermier qui, lui, ne possède pas, puisqu’il ne considère pas la chose comme sienne".

O animus, na posse, segundo Savigny, deve ser a intenção de ter a coisa como proprietário (animus domini) ou de ter a coisa para si (animus rem sibi habendi). Não se trata de convicção de ser dono, mas de vontade de ter a coisa como sua, conforme ressalta Caio Mário. Esse animus domini é uma evolução da Ψυχη δεσπόζοντος das fontes gregas.

Não se deve confundir, como lembra Orlando Gomes, animus domini e opinio domini, pois para esta é preciso que o possuidor seja de fato o proprietário. No animus domini, na vontade, Savigny enxerga o elemento preponderante da posse. Por essa razão a sua teoria foi batizada de teoria subjetiva.

Na falta desse elemento interior ou psíquico, animus domini, não existe posse, mas simples detenção. Isso não quer dizer que não haja um elemento psíquico na detenção, pois existe. Trata-se do animus detinendi, pois há uma vontade também ao se possuir nomine alieno e não nomine proprio.

De acordo com o animus, Savigny estabelece a seguinte classificação das pessoas:

a) O proprietário, o que se crê proprietário, o ladrão e o que se apoderou violentamente de um imóvel;

b) Aquele que detém a coisa em virtude de um direito real;

c) Aquele que detém a coisa por força de um vínculo obrigacional;

d) O que detém a coisa em nome do proprietário.

Todas as pessoas incluídas na primeira categoria ("a") seriam possuidoras, pois incontestável o animus domini. No caso do proprietário há mais que animus domini, há opinio domini, pois o possuidor tem, de fato, a propriedade.

Em contrapartida, fora de dúvida seria a exclusão da posse em relação às pessoas da quarta categoria ("d"), pois ao deter a coisa em nome de outrem (nomine alieno), fica automaticamente afastado o animus domini. É o que ocorre, por exemplo, no mandato. Neste caso, a posse não teria nenhuma justificação, pois o mandatário não tem nenhum interesse pessoal a fazer valer, possui no interesse de outrem.

Na visão saviniana, se alguém detém a coisa sabendo que esta pertence à outra pessoa, não há animus domini e, conseqüentemente, não existe posse. É o que ocorre também com as pessoas da segunda ("b") e terceira ("c") categorias, além da quarta categoria("d").

A esse princípio, consagrado na teoria subjetiva, de que "o conhecimento de que a coisa pertence a outrem descaracteriza a possibilidade de posse por outro que não o proprietário", ocorre uma exceção no caso dos ladrões e dos que se apoderam violentamente de um imóvel, incluídos na primeira categoria ("a"). A razão disso é que estes sujeitos, embora sabendo pertencer a coisa a outrem, insurgem-se contra essa propriedade, manifestando claramente a intenção de ser dono, animus domini.

Não havendo animus domini e, conseqüentemente, inexistindo posse, as pessoas descritas na segunda ("b"), terceira ("c") e quarta ("d") categorias seriam meros detentores. Na detenção haveria apenas a posse natural, em contraposição à posse civil, que seria protegida juridicamente.

Entretanto, apesar da ausência de animus domini e da impossibilidade de configuração de posse, Savigny defende a utilização dos interditos possessórios por algumas pessoas incluídas na segunda categoria ("b"), mesmo sem possuírem a qualidade de possuidores, o que confere a essa situação o status do que ele chamou de "quase-posse".

Orlando Gomes explica com muita clareza o que Savigny chamou de quase-posse, ou posse derivada (possessio derivata), que ocorre com sujeitos pertencentes à segunda categoria ("b"), e o por que da proteção especial a alguns casos que não seriam exatamente posse na visão de Savigny.

Já havia no direito romano uma proteção possessória a certos direitos sem a configuração do animus domini. Estavam nessa situação o credor pignoratício, o precarista e o depositário da coisa litigiosa (categoria "b"). Era preciso outorgar a essas situações a proteção possessória para que os titulares pudessem conservar a coisa que lhes foi confiada, embora não pudessem ter a vontade de se comportar como dono da coisa.

Apenas nesses casos de posse derivada, Savigny admitia que o possuidor originário pudesse transferir para outros a sua posse, não apenas a detenção material, mas também o jus possessionis, que ensejam o direito aos interditos possessórios.

Fora às exceções dos casos de posse derivada, como explicado retro, para Savigny, ainda que haja um fundamento jurídico para deter a coisa, as relações jurídicas em que as pessoas conservam a coisa em seu poder sem a intenção de tê-la como dono não constituem relações possessórias (como na locação, comodato, etc.), tornando descabida, nesses casos, a proteção possessória. Esse pensamento traz graves repercussões práticas.

Aquelas pessoas que Savigny considera meras detentoras não gozariam, segundo sua teoria, de uma proteção direta da lei, e, ocorrendo turbação ou esbulho da sua "posse natural", devem dirigir-se à pessoa que lhes conferiu a detenção para que esta pessoa, como possuidora, invoque a proteção possessória.

Pode-se imaginar o inconveniente que essa posição geraria em casos como, p. ex., o do locatário e os demais sujeitos incluídos na terceira categoria ("c"), pois essas pessoas agem em vista do seu próprio interesse, possuem em interesse próprio, diferentemente do que ocorre na quarta categoria ("d"). Por outro lado, o ladrão, por considerar a coisa como sua, não encontraria esses obstáculos para defender sua posse, o que é, no mínimo, uma incoerência do ponto de vista social.

Como ressalta Sílvio Venosa, na teoria subjetiva é o animus que distingue o possuidor do simples detentor. Apenas com a análise do corpus não seria possível a distinção, pois ambos exteriorizam o mesmo comportamento em relação à coisa aos olhos da comunidade. O que os diferenciaria seria a intenção, o elemento psicológico. Os detentores não possuem animus domini, mas animo nomine alieno.

3.3. APLICAÇÕES PRÁTICAS.

Serpa Lopes, analisando a obra de Savigny, enumera algumas aplicações práticas da teoria subjetiva, sintetizando-a.

A) Aquisição.

Em regra, a aquisição da posse ocorre pela conjunção de um fato ou ato físico de apreensão (corpus) e uma vontade determinada (animus domini). A conseqüência da aquisição é a possibilidade da exclusão da intervenção de qualquer outra pessoa sobre a coisa.

B) Apreensão de imóveis.

A posse de um imóvel é obtida pela presença pessoal do possuidor. A proximidade imediata seria a razão de poder o possuidor fazer com o imóvel o que melhor entender. Diferentemente do que ocorre na aquisição da propriedade, na aquisição da posse de imóveis não é necessário qualquer tipo de registro como requisito necessário para a aquisição.

C) Apreensão dos móveis.

A aquisição da posse das coisas móveis consuma-se pela apreensão material ou pela presença imediata que coloca a pessoa em condições de tomar a coisa.

D) Teoria da custódia.

Savigny teria criado a teoria da custódia, visando adaptar à teoria subjetiva alguns casos práticos aos quais ela não se ajustaria naturalmente ou entraria em conflito. Um exemplo desses casos práticos seria a situação em que alguém compra um objeto e o vendedor assume a obrigação de entregar o objeto no domicílio do comprador.

A idéia de custódia ou depósito pressupõe os seguintes requisitos:

1º) desnecessidade de a coisa comprada permanecer na presença do comprador após a aquisição;

2º) desnecessidade de o comprador estar presente em seu domicílio no momento da entrega;

3º) o simples depósito da coisa comprada no domicílio do comprador constitui atribuição da posse.

A teoria da custódia abre uma exceção para que aquele que seria simples detentor, na visão de Savigny, seja alçado à condição de possuidor, no intuito de proteger a posse do proprietário mesmo quando ainda não houve a apreensão física de fato.

E) Conservação.

Se o corpus e o animus são elementos essenciais da posse, esta persiste pela continuidade de suas condições ou elementos essenciais, enquanto existirem suas condições. A posse, segundo Savigny, mantém-se quando subsiste a possibilidade de reproduzir, quando se quer, o estado originário, o estado em que foi adquirida.

F) Perda da posse.

As idéias de conservação e perda da posse são correlativas, deixando de existir o corpus ou o animus, deixa de existir a posse, há a perda da posse, sendo impossível a reprodução do estado originário.

Outra questão de ordem prática, que desemboca na prova do animus e suscita grande polêmica, como ressalta José de Oliveira Ascensão, é se esse animus deve ser alguma coisa psicologicamente existente ou se deve resultar de certos indícios, de certos elementos objetivos.

Em relação a essa questão existem duas correntes, a teoria da vontade concreta e a teoria da vontade abstrata ou da causa. De acordo com o referido autor português, aquela procura de várias formas descobrir qual a vontade concreta do agente; esta atribui a cada sujeito o animus correspondente à causa porque detém, ou seja, analisa-se a relação jurídica que está na base da posse para se definir o animus.

De fato, os países que ainda hoje adotam a teoria subjetiva procuram elementos objetivos para se verificar com clareza o animus no caso concreto, conforme prega a teoria da causa. Isso acaba por ser um ponto de contato entre a teoria subjetiva e a teoria objetiva.

Vale ressaltar, sobre o assunto, a opinião de Saleilles:

"Este animus domini no puede ser únicamente un fenómeno íntimo existente sólo en el fuero interno, porque si así fuera, no habría más prueba de él que la declaración del pretendido poseedor: tiene que aparecer del título mismo en virtud del cual detenta".


4. CRÍTICAS À TEORIA SUBJETIVA DA POSSE.

As maiores críticas à teoria subjetiva se dirigem ao seu exagerado subjetivismo, que faz a caracterização da posse, instituto de fundamental importância para a sociedade, depender de um estado íntimo do sujeito, difícil de ser precisado no caso concreto.

O principal crítico da teoria subjetiva foi Jhering, em suas obras "Fundamentos da Proteção Possessória" e "Papel da Vontade na Posse". Aliás, o subjetivismo passou a ser reconhecido como tal graças ao próprio Jhering, que criou a imagem do subjetivismo para o criticar. Contrapondo-se a Savigny, Jhering também analisa a posse tomando como base seus dois elementos: corpus e animus.

Para Jhering, "a posse consiste no fato de uma pessoa proceder intencionalmente em relação à coisa, como normalmente procede o proprietário, a dizer, na posse tem a propriedade sua imagem exterior, este direito, a sua posição de fato". O fundamento da proteção possessória seria facilitar a defesa da propriedade.

Percebe-se, por essa definição, que Jhering discorda que o corpus seja a possibilidade material de dispor da coisa e, ainda, diminui consideravelmente o papel da vontade na constituição da posse, ao contrário do que pregou Savigny.

Isto ocorre porque, segundo Jhering, nem sempre o possuidor terá a possibilidade física de dispor da coisa, sem que esse fato destrua a posse; e, por outro lado, na maioria das vezes é impossível a prova do animus, visto se tratar de elemento subjetivo, que está na esfera interior do indivíduo.

O corpus, para Jhering, "consiste no estado normal externo da coisa, sob que se cumpre o destino econômico de servir aos homens, vale dizer, a exterioridade da propriedade, podendo ser ou não a detenção, conforme a natureza das coisas". Ou ainda, nas palavras de Caio Mário, "é a relação exterior que há normalmente entre o proprietário e a coisa, ou a aparência da propriedade".

Já em relação ao animus, Jhering o define como a "vontade de se tornar visível como proprietário", não há a intenção de dono, mas tão somente vontade de proceder como procede habitualmente o dono, que seria a affectio tenendi . Não é, portanto, necessária a prova da intenção do possuidor, a idéia do animus já estaria contida na idéia de corpus, e seria observável quando o possuidor desse à coisa sua devida destinação econômica. De outra forma, segundo os objetivistas, estaria prejudicada a posse do incapaz.

Vale ressaltar, que Jhering não nega a influência da vontade na posse, entretanto, afirma que a vontade exerce na posse a mesma função que exerce em qualquer outra relação jurídica.

Alem disso, segundo Jhering, mesmo havendo o corpus e a affectio tenendi, um dispositivo legal pode, de forma excepcional, negar a existência de posse numa dada hipótese, caso em que existiria mera detenção.

A diferença substancial entre teoria subjetiva e teoria objetiva está no fato de que, para a teoria subjetiva, corpus mais affectio tenendi geram apenas detenção, devido à ausência do animus domini; e, para a teoria objetiva, corpus mais affectio tenendi são suficientes para gerar a posse, que somente se desclassificaria para detenção na existência de um imperativo legal que assim determinasse.

O próprio Jhering, com o fim de esclarecer o sentido e o alcance das orientações subjetivista e objetivista, apresenta as seguintes fórmulas possessórias:

Teoria Subjetiva:

X = a + c +α;

Y = a + c.

Teoria Objetiva:

X = a + c;

Y = a + c – n.

Legenda:

x = posse;

y = detenção;

a = animus, que deve existir mesmo no detentor, para que a situação tenha relevância jurídica;

c = corpus;

α = o plus de vontade que a teoria subjetiva requer para elevar a detenção à posse;

n = o fator legal que, segundo a teoria objetiva, conduz a posse à mera detenção.

Jhering vai mais longe e chega a afirmar que a noção de posse na teoria subjetiva está completamente errada, e que se os Romanos se houvessem orientado por ela teriam admitido a posse sobre os escravos e sobre os filhos-família, bem como teriam reconhecido ao criminoso a posse sobre o homem livre que aprisionou com o objetivo de lhe extorquir um resgate, por se achar ele incontestavelmente em seu poder.

Os Romanos não agiram dessa forma, segundo Jhering, exatamente porque sabiam que não se pode ser proprietário de filhos ou de homens livres, e onde não há propriedade não poderia haver posse, já que esta é uma exteriorização daquela.

Jhering enxerga, ainda, na teoria da custódia, uma contradição dentro da teoria de Savigny sobre a apreensão, pois ora a presença seria necessária para a aquisição da posse, ora não; quer a segurança do poder físico baste, quer não, podendo-se refutar Savigny com o próprio Savigny.

Serpa Lopes também critica a teoria de Savigny nesse ponto, porque esta teoria não justifica satisfatoriamente a persistência ou manutenção da posse de um proprietário que se afasta do seu objeto, sendo que a única explicação aceitável seria a finalidade econômica da coisa, alçada à condição de elemento essencial da posse, como propõe Jhering. O importante, como salienta Sílvio Venosa, é fixar o destino econômico da coisa.

Para exemplificar a importância do conceito de finalidade econômica para a caracterização da posse, Caio Mário visualiza as seguintes situações: um homem que deixa um livro num terreno baldio não tem sua posse, pois ali o livro não preenche sua finalidade econômica; mas aquele que manda despejar adubo num campo destinado à cultura tem a posse do adubo, porque ali a coisa cumprirá o seu destino, embora não haja o poder físico.

O próprio Jhering, com o intuito de evidenciar a excelência do critério da destinação econômica e a facilidade que atribui ao conveniente reconhecimento da posse no plano prático, exemplifica:

"suponhamos dois objetos que se acham reunidos no mesmo lugar, uns pássaros seguros por um laço no bosque, ou, num solar em construção, os materiais, e ao lado uma cigarreira com cigarros; o mais ignorante dos homens sabe que será culpado de um furto se tirar os pássaros ou alguns materiais, mas nada tem a temer se tirar os cigarros; qual a razão desse modo diferente de proceder? Com relação à cigarreira, cada qual dirá: perdeu-se; deu-se isso contra a vontade do proprietário, e torna-se a pô-lo em relação com a coisa, dizendo-se-lhe que foi encontrada; com relação aos pássaros e aos materiais, sabe-se que a posição em que se acham tem sua causa em uma disposição tomada pelo proprietário; estas coisas não poderão ser encontradas, porque não estão perdidas: seriam roubadas".

Em razão da restrição do papel da vontade na constituição da posse, a teoria de Jhering foi denominada de teoria objetiva, em contraposição à teoria subjetiva de Savigny. Como bem salienta Sílvio Venosa, um ponto ficou definitivamente claro na doutrina da posse após Jhering, a distinção entre posse e detenção não pode depender exclusivamente da vontade do sujeito.

O objetivismo de Jhering, que dispensa a intenção de ser dono para a configuração da posse, tem grande repercussão prática, pois dessa forma estariam caracterizados como possuidores os locatários, os depositários, os comodatários, os credores pignoratícios e etc., permitindo-lhes a utilização das ações possessórias, o que não era possível pela teoria de Savigny. Essa questão prática faz com que os doutrinadores, a exemplo de caio Mário, considerem a teoria objetiva mais conveniente e satisfatória.

Outra grande crítica que se faz à teoria subjetiva é pelo fato de não explicar de forma suficiente as chamadas posses anômalas, como a posse do credor pignoratício. Segundo Savigny, nesses casos haveria posse derivada, pois o ius possessionis seria transmitido pelo possuidor. Quem tem o animus domini e a proteção possessória transferiria a posse nessas situações.

Pontes de Miranda ressalta a artificialidade desse raciocínio, alegando que por esse pensamento poderia também ocorrer a transferência da posse ao detentor, não apenas aos casos de posse anômala. Alega, ainda, que a teoria subjetiva resolve apenas a questão de não ser suscetível de posse a coisa fora do comércio e a questão de não serem possuidoras as pessoas sujeitas ao poder de outrem.

Saleilles também critica a posse derivada idealizada por Savigny. Segundo o autor, a explicação de Savigny sobre a posse derivada só seria cabível se o direito romano houvesse reconhecido que o possuidor podia alienar livremente sua posse, mas em Roma a atribuição da posse não podia ser matéria de contrato, sendo que esta dependia de circunstâncias de fato expressamente reconhecidas e determinadas pela lei, independente da vontade em contrário das partes.

Orlando Gomes também ressalta outro ponto fraco da teoria subjetiva, que seria o fato de não comportar rigorosamente o desdobramento da relação possessória, permitindo a coexistência de posse direta e indireta, pois não admite a posse por outrem.

Menezes Cordeiro também faz uma série de críticas ao animus subjetivo, que segunto ele levanta uma série de dificuldades. A primeira dificuldade estaria ligada ao sentido da volição. Não seria correta a identificação do elemento subjetivo com o animus domini, pois, segundo esse autor, hoje se entende pela possibilidade de haver posse nos direitos reais menores. Também o animus possidendi e o animus sibi habendi deixariam, segundo ele, na penumbra os limites da posse, sendo que naquele caso se possibilitaria a posse dos direitos pessoais de gozo. Exatamente por não haver qualquer acordo sobre o sentido do animus subjetivo ele não poderia se erigido a elemento essencial da posse.

O referido autor português lembra ainda que ao momento histórico em que Savigny desenvolveu sua teoria subjetiva, no qual não havia leis modernas sobre posse, mas apenas o Corpus Iuris Civilis, sendo que o próprio Savigny era contrário às codificações. Nesse contexto, faltavam critérios explícitos para a distinção entre posse e detenção, por isso o apelo à vontade humana. Modernamente, segundo o autor, nenhum legislador abdica da prerrogativa de prescrever ou vedar a existência da posse numa determinada situação fática, ou seja, as legislações atuais, independentemente da opção pela teoria subjetiva ou não, contêm o fator "n" da fórmula objetiva desenvolvida por Jhering.

Ao justificar suas críticas à teoria subjetiva, Jhering bombardeia:

"a meu ver Savigny não fez justiça nem ao direito romano, nem à importância prática da posse porque, de um lado, as idéias preconcebidas que tinha impediam-no deter a imparcialidade necessária para reconhecer exatamente o direito romano, e porque, por outro lado, quando empreendeu seu trabalho, estava desprovido de toda noção relativa à prática, defeito que devia ser duplamente perniciosa, sobretudo na teoria da posse, que não pode ser compreendida sem a prática".

Expostas as críticas à teoria subjetiva, é forçoso admitir que elas ocorrem devido à tentativa de se aplicar a teoria subjetiva à conceituação de posse tal como existe modernamente. Entretanto, como bem salientam Serpa Lopes e Moreira Alves, é um erro a tentativa de aplicação da teoria de Savigny nessas circunstâncias, pois o objetivo de Savigny foi reconstruir a posse tal como existia no direito romano, e não se destinava a fins práticos.

Ademais, como bem observa o professor Arruda Alvim, "em muitos pontos fundamentais das disciplinas existentes sobre a posse há, como parece que diferentemente seria impossível, convergência dos diversos sistemas". Existem aspectos que são pacíficos sobre a posse, independentemente de se adotar a teoria subjetiva ou objetiva da posse.

Alguns desses pontos de convergência entre as duas teorias são, por exemplo, em relação aos efeitos da posse: 1º) a posse pode ser defendida pelos interditos; 2º) a posse prolongada durante certo tempo, conduz à aquisição do direito, quando observadas as regras da prescrição aquisitiva; 3º) o possuidor de boa fé tem direito aos frutos; 4º) o possuidor de má fé não tem direito aos frutos (mas tem direito às despesas feitas para colhê-los).


5. A ORIENTAÇÃO SEGUIDA PELO ORDENAMENTO BRASILEIRO SOBRE POSSE.

O art. 1.196, do Código Civil de 2002 manteve a orientação do Código Civil de 1916, art. 485, ao conceituar como possuidor "todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade".

Já no art. 1.198, o Código Civil de 2002 mantém a idéia do art. 487, do Código Civil de 1916, ao negar o status de possuidor àquele que, achando-se em relação de dependência com outra pessoa, conserva a coisa em nome deste. Entretanto, o Código de 2002 é expresso em usar para tal hipótese o termo "detenção".

Ambos os Códigos deixaram de conceituar diretamente a posse, mas forneceram, através do conceito de possuidor, todos os elementos essenciais à caracterização da posse, tarefa que ficou a cargo da doutrina.

O Código Civil de 1916 foi um dos primeiros no mundo a romper com a teoria subjetiva, dominante entre os civilistas anteriores, filiando-se a teoria objetiva da posse, já adotando a idéia de posse que hoje figura no Código de 2002. Isso resta expresso também na exposição de motivos do Código de 1916.

A posse, em nosso sistema jurídico, portanto, não exige o animus domini, ou intenção de ser dono, e também não exige o poder físico sobre a coisa. Prioriza-se a utilização econômica da coisa, sendo a posse a exteriorização do domínio.

Por esse método objetivista, pode-se distinguir mais facilmente e seguramente posse e detenção, permitindo-se, inclusive, que um maior número de situações seja enquadrada como posse do que seria possível pela teoria subjetiva.

A conseqüência mais importante dessa orientação seguida pelo ordenamento pátrio a respeito da posse é a concessão das ações possessórias, previstas no Código de Processo Civil, a princípio em todas as hipóteses em que se configurem o corpus e a affectio tenendi, independentemente do animus domini, como no exemplo clássico do locatário, e ainda nos casos do usufrutuário, comodatário, depositário, transportador, administrador, testamenteiro e etc.

Entretanto, como bem adverte Sílvio Venosa, embora o nosso Código Civil tenha adotado a teoria objetiva como regra geral, enfocando a posse como postulado da proteção da propriedade, nosso ordenamento sobre posse não repousa exclusivamente sobre a teoria de Jhering, foram feitas algumas concessões à teoria subjetiva.

Nos artigos referentes à usucapião, o Código Civil de 2002, à semelhança do Código de 1916, estabelece um ponto de contato, uma interferência entre teoria objetiva e teoria subjetiva, que pode ser notado, por exemplo, no art. 1.238.

Art. 1.238. "Aquele que, por 15 (quinze) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis". (grifo nosso)

Como resta claro da análise do artigo citado retro, no caso de usucapião o nosso ordenamento, fazendo uma exceção à teoria objetiva, exige a intenção de possuir a coisa como dono para que haja a aquisição, tornando-se necessário o exame do animus do possuidor no caso concreto.

Em geral, o instituto da usucapião no nosso ordenamento envolve a noção do animus domini do possuidor, tal como definia Savigny, não bastando a affectio tenendi, sendo esta uma importante concessão feita pelo nosso ordenamento à teoria subjetiva, da qual o legislador do Código de 2002 não conseguiu desvincular-se.

Segundo Maria Helena Diniz, o animus domini é o elemento psíquico da usucapião, e o objetivo da análise desse elemento seria exatamente evitar a possibilidade de usucapião pelos fâmulos da posse.

A expressão "possuir como sua" ou "possuir como seu" constam ainda nos artigos 1.239, 1.240 e 1.260, do Código Civil de 2002, todos sobre usucapião, sendo que este último artigo trata da usucapião de móveis.

Vale ressaltar que o Código Civil de 2002 restringiu a influência do pensamento de Savigny em matéria de posse no nosso ordenamento jurídico. O Código Civil de 1916 fazia concessões à teoria subjetiva, ao tratar da aquisição e da perda da posse, que o novo Código não faz mais.

O art. 493, do Código Civil de 1916, estabelecia:

Art. 493. "Adquire-se a posse:

I – pela apreensão da coisa, ou pelo exercício do direito;

II – pelo fato de se dispor da coisa, ou do direito;

III – por qualquer dos modos de aquisição em geral".

O citado art. 493 enumerava hipóteses de aquisição da posse, demonstrando uma influência da doutrina de Savigny ao expressar sua idéia de corpus como apreensão física ou possibilidade de disposição da coisa, enquanto, de acordo com a teoria objetiva, deveria-se priorizar a destinação econômica da coisa.

Já o art. 520, do Código de 1916, determinava:

Art. 520. "Perde-se a posse das coisas:

I – Pelo abandono;

II – pela tradição;

III – pela perda, ou destruição delas, ou por serem postas fora do comércio;

IV – pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido, ou reintegrado em tempo competente;

V – pelo constituto possessório".

O referido art. 520 enumerava as hipóteses de perda da posse, levando em consideração a ausência de um elemento estrutural ou dos dois elementos - corpus e animus, voltando a demonstrar a influência do entendimento de Savigny sobre esses elementos. Os casos dos incisos I e II seriam de perda da posse pela ausência de corpus e animus; nos incisos III e IV haveria perda pa posse por ausência do corpus; e, finalmente, no inciso V, por perda do animus.

Inclusive, o caso em que fica mais nítida a influência de Savigny é o caso do inciso V. No constituto possessório, aquele que detém a posse direta não é mais proprietário da coisa, possuindo-a em nome de outrem. Considerar a perda da posse nesse caso é privilegiar o elemento animus, o que é incompatível com a teoria de Jhering.

Os arts. 493 e 520, do Código de 1916, foram muito criticados exatamente porque se o próprio Código definia implicitamente a posse no art. 485 como exteriorização da propriedade, de acordo com a doutrina de Jhering, sendo que a enumeração de hipóteses de aquisição e perda da posse era supérflua, a aquisição ou perda seriam notadas pelo próprio exercício de poderes inerentes ao domínio.

Segundo o próprio Jhering, a aquisição e a perda da posse devem reger-se pela seguinte regra: "O modo pelo qual o proprietário exerce de fato sua propriedade deve ser o critério da existência da posse".

O Código Civil de 2002 mudou esse panorama do Código de 1916 ao estabelecer:

Art. 1.204. "Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade".

E, ainda:

Art. 1.223. "Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196".

Como dito anteriormente, no art. 1.196, o Código de 2002 mantém a noção, que já estava presente no art. 485 do Código de 1916, de posse como exercício de poderes inerentes à propriedade, que está de acordo com a doutrina objetiva, que descreve a posse como exteriorização da propriedade.

Dessa forma, os novos arts. 1.204 e 1.223, do Código de 2002, estão em sintonia com esse conceito objetivo de posse, diminuindo a influência do pensamento de Savigny sobre a posse no nosso ordenamento ao se desligarem das suas idéias de corpus e animus ao dispor da aquisição e perda da posse.

Os referidos artigos do Código de 2002 também mostram estreita semelhança com os artigos correspondentes no BGB sobre a matéria. Isso ocorre porque o novo Código pátrio adotou um sistema mais flexível e de maior mobilidade, do qual o BGB é a maior referência. Nesse sistema aberto, as regras mais genéricas, como as cláusulas gerais, assumem o lugar das enumerações casuísticas, o que confere maior liberdade para o aplicador do direito ao julgar o caso concreto.

A atual redação que o Código de 2002 deu aos artigos referentes à aquisição e à perda da posse estão ainda em sintonia com a redação original pretendida por Beviláqua quando do Projeto que deu origem ao Código de 1916. Na redação pretendida por Clóvis, posteriormente alterada pelo Congresso devido à influência do Código de Seabra, de 1867, também não havia qualquer enumeração de hipóteses de aquisição e perda da posse.

Ainda assim, mesmo sofrendo influências da teoria subjetiva, como pondera Orlando Gomes, o nosso Código Civil já era, em 1916, a construção legislativa que mais se aproximava do pensamento de Jhering, tendo o Código de 2002 mantido o mesmo posicionamento.

Essa aderência tão exacerbada à doutrina objetiva da posse foi possível porque o direito anterior ao Código de 1916 era omisso quanto à natureza e o conceito da posse, simplesmente aplicando-se o direito romano, o que resultava na falta de uma construção sistemática a respeito de um conjunto ordenado de preceitos legais nacionais sobre o tema.

Contudo, é importante frisar que, como ressalta o mesmo autor, a interferência da teoria subjetiva no nosso Código Civil não deve ser considerada tecnicamente como incoerência, pois o Código não é obra teórica, na qual o autor deve guardar absoluta fidelidade à doutrina que adotou.

O legislador não é um jurista, que é o cientista do direito, devendo ser coerente à filosofia a que se filiou sob pena da sua obra ter valor científico duvidoso. Segundo Maria Helena Diniz, "a coerência lógica não é requisito essencial do direito, mas do sistema jurídico, logo a incompatibilidade entre normas é um fato".


6. O POSICIONAMENTO DA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA SOBRE O CONCEITO DE POSSE.

No âmbito internacional, as legislações divergem quanto à adoção da teoria subjetiva ou teoria objetiva em relação ao conceito de posse e seus elementos essenciais. Isso se nota devido à maior ou menor importância que essas legislações conferem ao elemento subjetivo, animus, na caracterização da posse.

Países que sofreram grande influência do direito romano, como França, Portugal, Itália, Espanha e Argentina, tendem a aderir a teoria subjetiva na definição e caracterização da posse. Já países como Alemanha, Suiça, China, México e Peru, por receberem também grande influência do direito canônico e do BGB alemão, optam pela teoria objetiva do conceito da posse.

Entretanto, é importante frisar que se trata apenas de uma influência predominante e não exclusiva, encontrando-se, também na legislação estrangeira, fortes pontos de convergência entre as duas teorias, sendo que importantes concessões foram feitas à teoria oposta a que foi adotada em cada ordenamento.

É forçoso admitir que nos países que conceituam a posse segundo a teoria de Savigny as concessões à doutrina oposta são maiores, inclusive havendo uma tendência a conceder os interditos possessórios a pessoas que rigorosamente, segundo a teoria subjetiva, seriam meras detentoras sem direito à referida proteção. Tudo isso ocorre por motivos práticos, sendo essa saída a que mais se adeqüa às exigências sociais.

6.1. FRANÇA.

O Código Francês, inspirado pelo direito romano, foi um marco em matéria de codificação, resgatando esta tradição historicamente abandonada no regime feudal. Devido a sua clareza dogmática e seu caráter prático teve grande influência nas codificações do século XIX.

O referido ordenamento não trata da posse como instituto autônomo, como ressalta Moreira Alves, a posse está incluída nesse código no título referente às prescrições, como causa da prescrição aquisitiva. O art. 2.228 contém a definição de posse:

Art. 2.228. "A posse é a detenção ou a fruição de uma coisa ou de um direito, que tenhamos ou exerçamos por nós próprios ou através de outrem que a tenha ou a exerça em nosso nome".

Quanto ao conceito de posse e seus elementos essenciais, vigora na França a teoria subjetiva, que exige, para sua configuração, a existência do elemento animus domini. Isso ocorre em respeito a uma tradição anterior ao próprio código e pela influência do pensamento de Pothier.

Dessa forma, na ausência do animus domini não há propriamente posse, mesmo nos casos em que se detém a coisa por interesse próprio e com base num direito, como na locação, por exemplo.

Entretanto, no direito francês, ao contrário do que se possa imaginar, essas situações não se encontram desamparadas, pois são protegidas contra o esbulho violento, só que com fundamento na reparação de fato ilícito contrário à paz pública, não na posse. Há o que Menezes Cordeiro denomina de "prática objetivista dos tribunais franceses", pois a jurisprudência é pouco propícia ao animus domini, valorizando os atos materiais.

Quanto ao problema da prova do animus, que é uma das principais razões de crítica à teoria subjetiva, o ordenamento francês adotou um sistema de presunções que veio a solucionar o impasse. Os arts. 2.230, 2.231 e 2.234, do Código Civil Francês, estabelecem que:

Art. 2.230. "Presume-se sempre que alguém possui por si, e a título de proprietário, enquanto não se provar que começou a possuir por outrem".

Art. 2.231. "Quando se começou a possuir para outrem, sempre se presume possuir com o mesmo título, se não há prova em contrário".

Art. 2.234. "O possuidor atual, que prova ter possuído anteriormente, se presume haver possuído no período intermediário, salvo prova contrária".

O próprio Jhering, ao comentar os referidos artigos, considerou-os como salvadores da teoria subjetiva, visto que eliminam as dificuldades de ordem prática sobre o assunto, acrescentando, ainda, que esse sistema de presunções fornece solução perfeitamente satisfatória para a prova da posse, devendo ser seguido por todas as legislações que adotassem a orientação subjetiva.

6.2. ITÁLIA.

Tanto na elaboração do Código Civil Italiano de 1865, quanto na do de 1942, já era possível a contraposição entre as duas teorias, não havendo mais o domínio absoluto na doutrina da teoria subjetiva. Já se conhecia, à época, a teoria de Jhering. Mas, mesmo assim, os referidos Códigos fizeram opção pela teoria de Savigny no que se refere à conceituação de posse e sues elementos essenciais.

Prevaleceu, para o legislador italiano, o entendimento que a teoria objetiva não eliminava as dificuldades da teoria subjetiva além de lhes acrescentar outras muito graves, como, por exemplo, no caso do proprietário de casa que explode em virtude de bomba ali colocada por outrem. Segundo a teoria objetiva, o proprietário seria possuidor da bomba porque essa se encontrava sob sua esfera de poder, o que seria impossível para a teoria subjetiva pela ausência do animus.

O legislador italiano, ao contrário do legislador francês e do legislador alemão, afastou-se da regra cautelar pela qual a lei não deve estabelecer definições, papel este que caberia a doutrina. O art. 1.140 do atual codice dispõe:

"A posse é o poder sobre a coisa que se manifesta na atividade correspondente ao exercício da propriedade ou de outra direito real".

No Código Civil Italiano não se estabelece expressamente o elemento animus, mas este fica implícito na referência que se faz à atividade correspondente ao exercício do direito. Adota-se, também no direito italiano (art. 1.141, do Código Civil atual), a mesma presunção que se observa no direito francês de que a pessoa possui por si e a título de proprietário até que se prove que começou a possuir em nome de outrem.

Entretanto, também no direito italiano a proteção possessória tem sido alargada a hipóteses que segundo a teoria subjetiva seriam mera detenção, como no caso de locatários, comodatários, arrendatários e etc, devido a circunstância de exercerem a posse em interesse próprio e com base num direito.

6.3. PORTUGAL.

O Código Civil Português, de 1966, que trata da posse nos arts. 1.251 a 1.301, com grande influência que sofreu do Código Italiano, estabelece, no seu art. 1.251:

Art. 1.251. "Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real".

O artigo citado não expressa a necessidade do animus domini para a qualificação da posse, mas há no país toda uma tradição subjetivista por parte da doutrina e da jurisprudência, que só recentemente vem sendo questionada, de afirmar que este animus estaria implícito na tal atuação "correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real", a qual se refere o artigo.

Ao se manifestar sobre a influência do Código italiano no Código português, Menezes Cordeiro afirma que "Embora Claro, o Código de 1966, no tocante a posse, descaracterizou o instituto, mercê duma transposição incompleta de elementos italianos... Em diversos pontos, ele consagrou esquemas menos avançados, com quebra, por vezes, da própria tradição jurídica nacional".

Entretanto, a proteção possessória tem um campo menos amplo do que tem ainda em outros países que adotaram a teoria subjetiva. Por disposições esparsas o legislador veio conferir a proteção expressamente ao arrendatário, ao parceiro pensador, ao comodatário e ao depositário, não havendo fora os casos expressos possibilidade de utilização dos interditos.

6.4. ESPANHA.

O Código Espanhol também levou em consideração, na fase de elaboração, os debates entre as duas teorias, que já existiam à época, optando, contudo, pela teoria subjetiva.

O art. 430, do Código Civil Espanhol, dispõe:

Art. 430. "A posse natural é a detenção de uma coisa, ou o gozo de um direito. A posse civil é esta mesma detenção ou gozo, unidos à intenção de considerar a coisa ou direito como próprios".

O legislador espanhol, a exemplo do que ocorre no direito italiano, conceitua expressamente a posse no referido art. 430, deixando clara a exigência do animus domini para a sua configuração. Na ausência desse aninus tem-se detenção, de acordo com o que prega a teoria subjetiva.

Entretanto, a doutrina e a jurisprudência espanholas estendem a proteção possessória àqueles que retém a coisa com interesse próprio e com base num direito, como os locatários, arrendatários, comodatários e etc.

6.5. ARGENTINA.

Na elaboração do Código Civil Argentino também já houve contraposição entre as duas teorias em debates, anteriormente à promulgação, para que se optasse pelo que considerariam a melhor tendência a ser adotada no Código, que foi a teoria subjetiva.

Dispõe o art 2.351, do Código Civil Argentino:

Art. 2.351. "Habrá posesión de las cosas, cuando alguna persona, por sí o por otro, tenga una cosa bajo su poder, con intención de someterla al ejercicio de un derecho de propriedad".

Fica expresso no referido artigo a necessidade da presença do elemento psíquico, que comprova a opção pela teoria subjetiva quanto ao conceito de posse. O direito argentino adota ainda, meios de prova do animus mais simples do que os do direito francês.

Há também no direito argentino, contudo, essa já citada tendência dos países que adotam a teoria subjetiva em alargar o campo das ações possessórias para abranger casos em que, pela doutrina subjetiva, haveria mera detenção.

6.6. ALEMANHA.

O BGB alemão trata da posse nos §§ 854 a 872, ao abrir o Livro III, referente ao Direito das Coisas. Ao contrário do Código francês, o BGB evitou uma conceituação de posse, estabelecendo, em seu § 854:

"A posse de uma coisa é adquirida através da obtenção do poder de fato sobre ela.

É suficiente, para a aquisição, o acordo do anterior possuidor e do adquirente, quando este esteja em condições de exercer o poder sobre a coisa".

Assim, nota-se a influência de Jhering para a adoção de uma idéia de posse como exteriorização da propriedade, sem referência a qualquer referência à vontade.

Conseqüência principal dessa opção do direito alemão é que para a configuração da posse é suficiente a affectio tenendi, estando automaticamente incluídos na proteção possessória aqueles que detêm em interesse próprio com fundamento num direito, como no caso dos locatários e etc.

Essa visão objetiva de posse sem dúvida simplificou o instituto e tornou a proteção da posse mais justa por ampliar o rol de pessoal que poderiam utilizá-los para proteger um interesse próprio legítimo. Por esses fatores a doutrina objetivista teve tanta repercussão nas legislações modernas, sendo adotada também nos Códigos Civis da Suíça, Turquia, Grécia, Brasil, México, Japão e etc. Está presente também nos projetos de codificação civil da Argentina e da Colômbia.

Entretanto, segundo Moreira Alves, não é pacífica, na doutrina germânica, a absoluta prescindibilidade da vontade no que diz respeito à posse, havendo autores que sustentam a necessidade da existência do besitzwille (vontade possessória).

6.7. SUÍÇA.

O Código Civil Suíço recebeu significativos elogios de juristas franceses e alemães, pela independência e autenticidade com que se aproveitou da experiência legislativa destes dois países, pela sua lógica na distribuição das matérias e pela linguagem sóbria e direta.

A respeito da posse, o referido código, em seu art. 919, dispõe:

Art. 919. "Aquele que tem sobre a coisa um poder efetivo tem a posse. (...)"

Resta clara, da análise do referido artigo, que para que se configure a posse não é necessária a configuração do animus domini, sendo que o dispositivo legal não faz qualquer referência à vontade para a conceituação do possuidor e, indiretamente, da posse.

Também no direito suíço prepondera a doutrina objetivista, o que vem a permitir que neste país seja considerado possuidor aquele que detém a coisa apenas com a affectio tenendi, de forma semelhante ao que acontece no direito alemão.


9. CONCLUSÃO.

A teoria de Savigny, de incontestável valor histórico, é a que conceitua a posse como a possibilidade de dispor fisicamente da coisa com a intenção de dono, e de defendê-la contra as agressões de terceiros. Nesse conceito, fica clara a estruturação da posse pelo corpus, que seria o poder físico sobre a coisa, e o animus, que seria a intenção de dono.

Entretanto, essa conceituação suscitava inconvenientes de ordem prática, como a restrição do campo de utilização dos interditos possessórios, que não supriam a necessidade atual da sociedade de caracterização e proteção da posse, e por isso essa teoria foi muito criticada, vindo, depois de décadas de preponderância absoluta na doutrina, a perder sua força.

Em nosso ordenamento jurídico, desde o Código Civil de 1916, não se exige o animus domini, ou intenção de ser dono, e também não exige o poder físico sobre a coisa para que se configure a posse. Prioriza-se a utilização econômica da coisa, tendo-se a posse como a exteriorização do domínio, conforme a teoria objetiva.

No panorama internacional, é forçoso admitir que mesmo aqueles países que pretenderam aderir à teoria subjetiva foram obrigados, devido à supremacia das necessidades sociais, a conceder a proteção possessória a sujeitos que tecnicamente, segundo a referida teoria, seriam meros detentores não merecedores de tal proteção, motivo pelo qual se pode afirmar que houve uma descaracterização da teoria de Savigny para que pudesse ser usada na prática moderna.

Entretanto, a própria teoria objetiva não conseguiu suprir de forma absoluta os ordenamentos que a adotaram para conceituação da posse e sua existência, sendo que esses ordenamentos também acabaram por adotar a teoria subjetiva em algum ponto. No ordenamento pátrio, por exemplo, há ainda grande influência da teoria subjetiva nas disposições referentes à usucapião. A nossa legislação exige expressamente, conforme visto no presente trabalho, a existência do animus domini para que se possa usucapir.

A interferência da teoria subjetiva no nosso Código Civil não é precisamente uma incoerência, visto que o Código não é obra teórica, que deva fidelidade a uma única doutrina. E, acima de tudo, não compromete o seu valor, tendo em vista que o objetivo das codificações é de ordem prática, suprir as exigências sociais, sendo que essa intersecção entre teoria subjetiva e objetiva se mostra dentro desse panorama.

São exatamente essas concessões subjetivistas assumidas pelas legislações modernas, bem como o valor histórico da teoria de Savigny, que mantêm o interesse na análise da referida teoria sobre a posse, independentemente de todas as críticas que têm sido dirigidas a essa teoria.

Ademais, vale ressaltar que as críticas à teoria subjetiva, em regra, são conseqüência da tentativa de se aplicar tal teoria à posse no contexto economico-social atual, o que consiste em um grande equívoco histórico, pois o objetivo de Savigny foi reconstruir a posse tal como existia no direito romano, e não se destinava a fins práticos.

Diante desses fatos, vale ressaltar o entendimento de Menezes Cordeiro, para quem a dicotomia Savigny/Jhering, tem o sentido dos dilemas permanentes que, esgotando a realidade do espaço humano, acabam sempre por surgir, como igualmente ocorre, por exemplo, com as dicotomias coletivo/individual, exterior/interior, Platão/Aristóteles ou Hegel/Kant. Tanto o discurso de Savigny quanto o de Jhering sobre conceituação de posse não podem ser hoje subscritos em sua literalidade, o que acaba por determinar a adoção, no plano dogmático, de uma das teorias, com concessões em determinados pontos para a teoria rival.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Teoria subjetiva da posse. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 320, 23 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5277. Acesso em: 23 abr. 2024.