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A inconstitucionalidade da responsabilidade orgânica dos partidos políticos

A inconstitucionalidade da responsabilidade orgânica dos partidos políticos

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O sistema de responsabilização dos partidos políticos por órgãos é inconstitucional, por violar o caráter nacional e a unidade da personalidade jurídica das agremiações partidárias.

De acordo com o art. 17, I, da Constituição Federal, é “livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: I - caráter nacional.”.

Como se depreende da simples leitura do texto constitucional, no Brasil não podem existir partidos políticos estaduais ou municipais, já que, das agremiações partidárias, exige-se a abrangência nacional.

A fim de garantir essa diretriz constitucional, dispõe o art. 7º, § 1º, da Lei nº 9.096/1995, na redação dada pela Lei nº 13.165/2015, que só “é admitido o registro do estatuto de partido político que tenha caráter nacional, considerando-se como tal aquele que comprove, no período de dois anos, o apoiamento de eleitores não filiados a partido político, correspondente a, pelo menos, 0,5% (cinco décimos por cento) dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco e os nulos, distribuídos por um terço, ou mais, dos Estados, com um mínimo de 0,1% (um décimo por cento) do eleitorado que haja votado em cada um dele.s”.

Verifica-se, pois, que os partidos políticos já precisam nascer nacionais.

A Constituição também consagra a unidade da personalidade jurídica dos partidos políticos, ao estatuir, no § 2º do já citado art. 17, que estes, “após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral.”.

Mesmo sem sequer perscrutar a legislação civil a que se refere o citado dispositivo constitucional, já é possível constatar que a Lei Fundamental atribui a cada partido político uma única personalidade jurídica. Por outros termos, cada partido político é uma só pessoa jurídica na ordem civil. 

Ao analisar a legislação infraconstitucional, essa constatação resta ainda mais cristalina. Com efeito, o art. 44, V, do Código Civil assenta que são “pessoas jurídicas de direito privado: (...) V – os partidos políticos”, os quais “serão organizados e funcionarão conforme o disposto em lei específica” (§ 3º).

Por seu turno, reza o art. 45 do mesmo diploma que “começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo”.

Já o art. 1º da Lei nº 9.096/1995 - que é a lei específica à qual faz remissão o estatuto civil - estatui que o “partido político, pessoa jurídica de direito privado, destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal”.

Por fim, segundo o art. 7º da lei referida, o “partido político, após adquirir personalidade jurídica na forma da lei civil, registra seu estatuto no Tribunal Superior Eleitoral”.

Assim, quer diante do art. 17, § 1º, da Constituição Federal, quer em face dos arts. 44, V, e 45 do Código Civil e dos arts. 1º e 7º da Lei nº 9.096/1995, não subsiste qualquer dúvida de que um partido político consubstancia uma única pessoa jurídica de direito privado.

Estabelecida essa premissa, deve-se reconhecer também outra, segundo a qual, na distinção entre as pessoas jurídicas e seus órgãos, o direito imita a vida. É que as pessoas jurídicas são como as pessoas naturais, as quais, muito embora tenham vários órgãos (cabeça, braços, pernas, mãos etc.), constituem uma única e indivisível personalidade. Por isso é que não se pode falar na responsabilização exclusiva do órgão, porque uma tal pena sempre atingiria também o todo que é a pessoa natural. De fato, se a mão direita comete um homicídio, não seria naturalmente admissível que apenas esse órgão fosse levado ao cárcere. Por isso, a responsabilidade é da pessoa, jamais do órgão.

Essa mesma lógica natural foi transplantada para o mundo jurídico, de modo que, nos mais diversos ramos do direito, como o civil, o administrativo, o tributário e o trabalhista, não se fala em responsabilidade dos órgãos, mas, sim, das pessoas jurídicas.

Ocorre que a lógica sempre foi antitética à política, que, pela sua estreita relação com o direito partidário, acabou por contaminá-lo com a sua ilogicidade.

Assim é que, no largo espectro do direito partidário, estabeleceu-se a responsabilidade dos órgãos no lugar da responsabilidade da pessoa jurídica.

Metaforicamente, pode-se dizer que a degeneração política do direito galgou tão elevado nível de irracionalidade que agora é possível condenar a mão homicida e absolver a pessoa de que ela faz parte. Condena-se o órgão, absolve-se a pessoa, eis a máxima do direito partidário dada pela política.

Para comprovar o surrealismo, que parece despercebido da comunidade jurídica, confiram-se os preceptivos legais a seguir transcritos:

Art. 28, § 3º, da Lei nº 9.096/1995, incluído pela Lei nº 9.693/1998: “O partido político, em nível nacional, não sofrerá a suspensão das cotas do Fundo Partidário, nem qualquer outra punição como consequência de atos praticados por órgãos regionais ou municipais”;

Art. 28, § 4º, da Lei nº 9.096/1995, incluído pela Lei nº 12.034/2008: “Despesas realizadas por órgãos partidários municipais ou estaduais ou por candidatos majoritários nas respectivas circunscrições devem ser assumidas e pagas exclusivamente pela esfera partidária correspondente, salvo acordo expresso com órgão de outra esfera partidária”;

Art. 28, § 5º, da Lei nº 9.096/1995, incluído pela Lei nº 12.034/2008: “Em caso de não pagamento, as despesas não poderão ser cobradas judicialmente dos órgãos superiores dos partidos políticos, recaindo eventual penhora exclusivamente sobre o órgão partidário que contraiu a dívida executada”;  

Art. 28, § 6º, da Lei nº 9.096/1995, incluído pela Lei nº 12.034/2008: “O disposto no inciso III do caput {O Tribunal Superior Eleitoral, após trânsito em julgado de decisão, determina o cancelamento do registro civil e do estatuto do partido contra o qual fique provado: (...) III - não ter prestado, nos termos desta Lei, as devidas contas à Justiça Eleitoral} refere-se apenas aos órgãos nacionais dos partidos políticos que deixarem de prestar contas ao Tribunal Superior Eleitoral, não ocorrendo o cancelamento do registro civil e do estatuto do partido quando a omissão for dos órgãos partidários regionais ou municipais”;

Art. 37, caput e § 2º, da Lei nº 9.096/1997, com a redação dada pela Lei nº 13.156/2013: “A sanção a que se refere o caput {A desaprovação das contas do partido implicará exclusivamente a sanção de devolução da importância apontada como irregular, acrescida de multa de até 20% (vinte por cento)} será aplicada exclusivamente à esfera partidária responsável pela irregularidade, não suspendendo o registro ou a anotação de seus órgãos de direção partidária nem tornando devedores ou inadimplentes os respectivos responsáveis partidários”;

Art. 29, §§ 3º e 4º, da Lei nº 9.504/1997, incluídos pela Lei nº 12.034/2008: “§ 3º Eventuais débitos de campanha não quitados até a data de apresentação da prestação de contas poderão ser assumidos pelo partido político, por decisão do seu órgão nacional de direção partidária. § 4º No caso do disposto no § 3º, o órgão partidário da respectiva circunscrição eleitoral passará a responder por todas as dívidas solidariamente com o candidato, hipótese em que a existência do débito não poderá ser considerada como causa para a rejeição das contas”;  

Art. 31, IV, da Lei nº 9.504/1997, com redação dada pela Lei nº 12.891/2013: “Se, ao final da campanha, ocorrer sobra de recursos financeiros, esta deve ser declarada na prestação de contas e, após julgados todos os recursos, transferida ao partido, obedecendo aos seguintes critérios: I - no caso de candidato a Prefeito, Vice-Prefeito e Vereador, esses recursos deverão ser transferidos para o órgão diretivo municipal do partido na cidade onde ocorreu a eleição, o qual será responsável exclusivo pela identificação desses recursos, sua utilização, contabilização e respectiva prestação de contas perante o juízo eleitoral correspondente; II - no caso de candidato a Governador, Vice-Governador, Senador, Deputado Federal e Deputado Estadual ou Distrital, esses recursos deverão ser transferidos para o órgão diretivo regional do partido no Estado onde ocorreu a eleição ou no Distrito Federal, se for o caso, o qual será responsável exclusivo pela identificação desses recursos, sua utilização, contabilização e respectiva prestação de contas perante o Tribunal Regional Eleitoral correspondente; III - no caso de candidato a Presidente e Vice-Presidente da República, esses recursos deverão ser transferidos para o órgão diretivo nacional do partido, o qual será responsável exclusivo pela identificação desses recursos, sua utilização, contabilização e respectiva prestação de contas perante o Tribunal Superior Eleitoral; IV - o órgão diretivo nacional do partido não poderá ser responsabilizado nem penalizado pelo descumprimento do disposto neste artigo por parte dos órgãos diretivos municipais e regionais”;

Art. 854, § 9º, do novo Código de Processo Civil: “Quando se tratar de execução contra partido político, o juiz, a requerimento do exequente, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido por autoridade supervisora do sistema bancário, que tornem indisponíveis ativos financeiros somente em nome do órgão partidário que tenha contraído a dívida executada ou que tenha dado causa à violação de direito ou ao dano, ao qual cabe exclusivamente a responsabilidade pelos atos praticados, na forma da lei”.

O objetivo de todas essas normas é inquestionavelmente um: consagrar a mais irrestrita irresponsabilidade dos partidos políticos, especialmente nos âmbitos civil, trabalhista, tributário e eleitoral.

Isso porque é consabido que os órgãos partidários inferiores – estaduais e municipais – são aqueles que estabelecem o maior número de relações jurídicas e, ao contrário dos órgãos superiores, dispõem de parquíssimos recursos financeiros, já que o açambarque do Fundo Partidário compete aos caciques dos órgãos partidários nacionais.

Disso tudo resulta que, em face da inexorável frustração de eventual ação executiva proposta contra órgãos partidários inferiores, as multas que lhes sejam aplicadas pela Justiça Eleitoral serão inócuas; seus empregados jamais sairão satisfeitos na cobrança judicial dos seus créditos; o Fisco certamente não logrará êxito na cobrança das suas contribuições previdenciárias; as vítimas de atos ilícitos causadores de danos morais e materiais decerto não receberão a devida e justa indenização.

E tudo isso porque, segundo a (i)lógica do direito partidário, a pessoa não responde pelos atos dos seus órgãos.

É desnecessário maior esforço epistêmico para concluir que todas essas normas, além de outras de mesmo jaez virtualmente existentes ou que venham a ser ainda criadas, não resistem ao mais comezinho teste de constitucionalidade.

E não só por violarem explicitamente o caráter nacional dos partidos políticos, previsto no art. 17, I, da Constituição Federal, ou a unidade da personalidade jurídica partidária estampada no § 2º desse mesmo dispositivo constitucional, como também por colidirem violentamente com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que sabidamente não amparam a teratologia, o irracionalismo e a ilogicidade.

Com efeito, esse conjunto de normas jurídicas divide os partidos políticos em três esferas distintas, autônomas e incomunicáveis, municipalizando-os e estadualizando-os, ainda que o faça utilitaristamente, ou seja, apenas para garantir a sua irresponsabilidade. Há, pois, inequívoco atentado contra o caráter nacional dos partidos políticos, bem como à sua unidade.

Curiosamente, os órgãos partidários inferiores não dispõem da mesma independência quando o assunto é o seu controle pelos órgãos superiores. Veja-se, ilustrativamente, o disposto no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.504/1997, segundo o qual, se “a convenção partidária de nível inferior se opuser, na deliberação sobre coligações, às diretrizes legitimamente estabelecidas pelo órgão de direção nacional, nos termos do respectivo estatuto, poderá esse órgão anular a deliberação e os atos dela decorrentes”.

Mantêm-se, assim, o caráter nacional e a unidade dos partidos políticos em matéria de controle vertical realizado do topo sobre a base, mas negam-se os mesmos postulados quando o assunto é a assunção de responsabilidade no sentido inverso.

Em uma frase, entrem os bônus, danem-se os ônus.


Autor

  • Edvanilson de Araújo Lima

    Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia, com início do curso na Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Público. Foi Professor de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Eleitoral da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina-PE (Facape). Foi professor de Direito Penal e Filosofia Jurídica e Geral da Faculdade Maurício de Nassau em Petrolina-PE. Ex-servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás e do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Edvanilson de Araújo. A inconstitucionalidade da responsabilidade orgânica dos partidos políticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5030, 9 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54001. Acesso em: 19 abr. 2024.