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Da periclitação da vida e da saúde.

Uma análise do capítulo III do Código Penal brasileiro

Da periclitação da vida e da saúde. Uma análise do capítulo III do Código Penal brasileiro

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Estudam-se as distinções que devem ser observadas, por exemplo, entre os crimes de perigo de contágio venéreo e perigo de contágio de moléstia grave, ou entre os crimes de abandono de incapaz e o de abandono de recém-nascido.

INTRODUÇÃO

Este trabalho trata dos crimes de perigo, aos quais o legislador dedicou o Capítulo III do Código Penal, chamado Da Periclitação da Vida e da Saúde. É mister, antes de se aprofundar na análise dos tipos penais que compõem o capítulo em estudo, uma breve diferenciação dos crimes de perigo daqueles delitos encontrados nos capítulos anteriores e subsequentes do mesmo documento normativo; os chamados delitos de dano ou lesão. Acerca do assunto, argumenta Rogério Greco:

Os chamados delitos de dano são aqueles em que se exige, para sua configuração, a efetiva lesão ou dano ao bem juridicamente protegido pelo tipo penal. Ao contrário, os delitos reconhecidos como de perigo não exigem a produção efetiva de dano, mas, sim, a prática de um comportamento típico que produza um perigo de lesão ao bem juridicamente protegido, vale dizer, uma probabilidade de dano. O perigo seria, assim, entendido como probabilidade de lesão a um bem jurídico-penal (GRECO, 2016 p. 195).

Evidencia-se que, ao criar uma figura típica para o crime de perigo, o legislador busca evitar a conduta tipificada nos delitos de lesão ou dano. A título de exemplo, pode-se dizer que a tipificação presente no artigo 131 do Código Penal – perigo de contágio de moléstia grave – busca evitar o resultado morte, logo, um delito de lesão. O crime de perigo estaria, portanto, “um degrau antes” do crime de dano.

Os crimes de perigo diferenciam-se ainda em abstratos e concretos, como elenca Rogério Greco (2016) em remetendo-se ao estudo de lgnácio Verdugo Gómez de la Torre, Lecciones de derecho penal – Parte general:

É importante distinguir os delitos de perigo concreto dos de perigo abstrato. Estes constituem um grau prévio a respeito dos delitos de perigo concreto. O legislador castiga aqui a perigosidade da conduta em si mesma. Por exemplo, é um delito de perigo abstrato conduzir um veículo a motor sob a influência de bebidas alcoólicas, drogas tóxicas ou estupefaciantes (art. 379, CP). A consumação de um delito de perigo concreto requer a comprovação, por parte do juiz, da proximidade do perigo ao bem jurídico e da capacidade lesiva do risco. Por esta razão, estes delitos são sempre de resultado. Os delitos de perigo abstrato são, ao contrário, delitos de mera atividade; se consumam com a realização da conduta supostamente perigosa, por isso, o juiz não tem que valorar se o estado de embriaguez do condutor trouxe ou não concreto perigo à vida de tal ou qual transeunte para entender consumado o tipo (GÓMEZ DE LA TORRE, 1999 apud GRECO, 2016 p. 196).

Quanto à consumação dos crimes de perigo, Greco (2016) elenca:

Assim, nos crimes de perigo abstrato, sua consumação ocorre no momento em que o agente pratica, ou se abstém de praticar, a conduta proibida ou imposta no tipo penal, presumidamente perigosa. Ao contrário, nos crimes de perigo concreto, além da necessária comprovação da conduta por parte do agente, deverá ser afirmado que, no caso concreto, aquele comportamento - positivo ou negativo - trouxe, efetivamente, perigo de dano a um bem juridicamente protegido (GRECO, 2016 p. 200).

Passemos agora à análise dos crimes tipificados no capítulo em estudo, quais sejam do perigo de contágio venério, do perigo de contágio de moléstia grave, do perigo para a vida ou saúde de outrem, do abandono de incapaz, da exposição ou abandono de recém-nascido, da omissão de socorro e do condicionamento médico-hospitalar emergencial, e dos maus-tratos.


DO PERIGO DE CONTÁGIO VENÉREO

No início do século XX, o sistema liberal entrou em decadência: empresas quebraram e inúmeros empregados foram demitidos. Dado que a mão-de-obra era, em sua maioria, masculina, houve um consequente aumento na busca pelos bordéis em meio à crise econômico-social. No tangente ao direito penal, o legislador, ao notar o inoportuno aumento no número de bordéis e o resultante recrudescimento das doenças sexualmente transmissíveis, decidiu agir, tipificando a conduta no Capítulo III do Código Penal de 1941: “Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: Pena – detenção, de três meses a um ano ou multa”.

Torna-se visível com o caput do artigo que a natureza do tipo delituoso é de perigo e não de dano, dado que o núcleo “expor” não compele o agressor a contaminar a vítima para que o crime se consume. A mera exposição ao contágio já configura o crime previsto no artigo 130 do Código Penal. Acerca do assunto, Rogério Greco ensina que “basta que a vítima tenha sido exposta ao perigo de contágio, mediante a prática de relações sexuais ou qualquer ato de libidinagem, de moléstia venérea de que o agente sabia, ou pelo menos devia saber estar contaminado, para que se caracterize a infração penal em exame” (GRECO, 2016, p. 204).

Quanto ao sujeito ativo, este pode ser qualquer pessoa, desde que esteja contaminada pela doença sexualmente transmissível. Já o sujeito passivo, pode ser também qualquer pessoa, contanto que não esteja contaminada pela doença a ser transmitida.

Acerca do objeto material, Rogério Greco afirma: “Objeto material do crime de perigo de contágio venéreo é a pessoa com quem o sujeito ativo mantém relação sexual ou pratica qualquer ato libidinoso, podendo ser, como já o dissemos, o homem ou a mulher” (GRECO, 2016, p. 205). O bem jurídico protegido, por sua vez, é a vida e a saúde conforme é informado no Capítulo III, Título I do Código Penal.

Quanto ao tipo subjetivo, o crime é punível somente a título de dolo, visto que traz no próprio tipo penal a expressão “de que sabe ou deve saber que está contaminado”, admitindo somente o dolo eventual ou direto. Destarte, alega Rogério Greco: “o delito previsto no caput do art. 130 do Código Penal somente pode ser praticado, segundo nossa posição, a título de dolo, não se permitindo a responsabilidade penal a título de culpa, frisando-se, ainda, a sua natureza jurídica de crime de perigo concreto” (GRECO, 2016, p. 208).

O tipo presente no artigo 130 do Código Penal admite também a tentativa, por se tratar de um crime plurissubsistente, onde a conduta poderá ser fracionada em várias etapas. Como exemplo, Rogério Greco cita:

Imagine-se a hipótese, mesmo que de laboratório, em que alguém, sabendo-se portador de uma doença venérea, vá até um bordel com a finalidade de manter relação sexual com uma prostituta. Quando está no quarto, já despido, ao deitar-se na cama com a vítima, ainda não iniciado o ato, uma colega de "profissão" da prostituta ingressa no quarto e impede a prática do ato sexual, revelando que o agente está contaminado por uma moléstia venérea (GRECO, 2016, p. 208).

Percebe-se ainda a qualificação do crime de perigo de contágio venéreo, previsto no parágrafo primeiro do artigo 130: caso houver dolo direto, a intenção do agente de transmitir a moléstia, a pena é de 1 a 4 anos, e multa. Nota-se que a multa é aplicada cumulativamente à pena privativa de liberdade, demonstrando que, para o legislador penal, a intenção de causar dano é punida com maior severidade.


DO PERIGO DE CONTÁGIO DE MOLÉSTIA GRAVE

O crime de perigo de contágio de moléstia grave está previsto no artigo 131 do Código Penal, no Capítulo III da Parte Especial, nos crimes de periclitação da vida e da saúde. Para Cleber Masson:

Moléstia grave é qualquer enfermidade que acarreta séria perturbação da saúde. É irrelevante seja incurável ou não, mas precisa ser transmissível, é dizer, contagiosa. A moléstia venérea, se grave, pode enquadrar-se no crime em análise, desde que o perigo de contágio não ocorra em razão de relação sexual ou de ato libidinoso, pois em tal hipótese incide o delito previsto no art. 130 do Código Penal (MASSON), 2016 p. 147).

O delito de perigo de contágio de moléstia grave não prevê uma conduta específica do autor, tratando assim de um delito de ação livre, diferentemente do artigo 130 do Código Penal (perigo de contágio venéreo) que exige uma ação específica para a transmissão, por meio do ato sexual ou o libidinoso. O mesmo corre em relação ao contágio de outros tipos de doenças, não sendo apenas doenças venéreas, como previsto no artigo 130, bastando apenas que a doença seja de natureza grave.

Em relação aos sujeitos do crime, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito em questão, desde que esteja contaminado com a doença grave a ser potencialmente transmitida. Em relação ao sujeito passivo, o ofendido, neste caso será qualquer pessoa, desde que já não esteja adoecida pela enfermidade a cujo perigo de contágio foi exposta.

A conduta praticada pelo agente deve ser dolosa, isto é, além de ele ter o conhecimento da doença, do seu estado de saúde, o autor dever ter a intenção de transmitir a doença a terceiro, pretendendo então o contágio. A também que se praticar o ato capaz de proporcionar a transmissão da doença ou moléstia grave.  

O crime de previsto no artigo 131 do Código Penal se dá com a prática do ato capaz de expor a vítima a contágio de doença grave, com a intenção da efetiva contaminação, ainda que seja prescindível ocorrência desta. Desse modo, ocorrendo à consumação, a tentativa é inadmissível quando o ato com que se pretende o contágio é único, se houver vários atos a tentativa será possível.

Consuma-se o delito com a prática dos atos destinados à transmissão da moléstia grave, independentemente do fato de ter sido a vítima contaminada ou não. Sendo um crime de natureza formal, o legislador se contenta com a prática da conduta do núcleo do tipo, ou seja, a prática dos atos tendentes à transmissão da moléstia grave que, se efetivamente vier a ocorrer, será considerada mero exaurimento do crime, sendo de observância obrigatória no momento da aplicação da pena-base, quando da análise das circunstâncias judiciais, especificamente no que diz respeito às consequências do crime (GREGO, 2016, p. 220).

Sendo assim, se o contágio for concretizado o crime deixará de ser de perigo e será de lesão corporal, amoldando-se, conforme a gravidade das consequências, às hipóteses dos §§ 1.º a 2.º do artigo 129 do Código Penal, pois já contendo estes o dolo da ofensa, logrando êxito o agente em realizá-la, então foram satisfeitas todas as elementares das lesões corporais dolosas.

O crime de contágio de moléstia grave é de ação penal pública incondicionada cujo exercício não se subordina a qualquer requisito. Não dependendo, portanto, de prévia manifestação de qualquer pessoa para ser iniciada, sendo irrelevante a manifestação do ofendido. É possível, em virtude do artigo 89 da Lei nº 9.099/95, a suspensão condicional do processo, já que a pena mínima não é superior a 01 ano.


DO PERIGO PARA A VIDA OU SAÚDE DE OUTREM

O artigo 132 do Código Penal tem por objetividade jurídica a vida e a saúde da pessoa humana. Informa o texto:

Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998)

O referido artigo tem por núcleo o verbo expor, que, semanticamente, indica colocar determinada coisa ou pessoa diante de outra coisa, pessoa ou situação. No tipo legal em análise, trata-se de expor alguém a perigo. Como constante na Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal, “trata-se de um crime de caráter eminentemente subsidiário. Não o informa o animus necandi ou o animus laedendi, mas apenas a consciência e vontade de expor a vítima a grave perigo.”

Este delito admite qualquer meio de execução, sendo, portanto, um crime de ação livre, cabível também a modalidade omissiva, como no caso de empresário que não disponibiliza equipamentos de proteção individual (EPI) a seus empregados, expondo-os aos perigos da atividade laboral. Ressalte-se que a tentativa só é possível na modalidade comissiva. (MASSON, 2016, p. 151).

Segundo Mirabete (2015, p. 882):

Trata-se de crime de perigo concreto, exigindo-se a demonstração de ter a vida ou a saúde da vítima sofrido um risco direto e iminente, a pessoa ou pessoas determinadas, não bastando, pois, simples conjeturas ou possibilidades indiretas ou remotas de dano. Inexiste o crime quando o perigo é inerente à prestação de contrato de trabalho (piloto de prova, operário de fábrica de explosivos, médicos e enfermeiros etc.) ou quando o agente tem o dever legal de suportar o perigo (policiais, bombeiros etc.).

A esse entendimento, soma Masson (2016, p. 151) o pressuposto de que além de ser concreto, o perigo deve ser direto, isto é, deve ser dirigido a determinada pessoa ou grupo de pessoas determinado. Ausente tal pressuposto, tratar-se-á do crime de perigo comum (arts. 205 a 259 do Código Penal), caso em que o agente busca atingir número indeterminado de pessoas.

O elemento subjetivo do crime de perigo para a vida ou saúde de outrem é o dolo direto e eventual, não admitindo, portanto, a modalidade culposa. O agente quer ou assume o risco de expor a vida ou saúde de terceiro a uma situação de perigo concreto. O crime se consuma no momento em que o perigo se efetiva, ou seja, quando a situação periclitante para a vítima ocorre. É irrelevante o consentimento do ofendido, uma vez que o bem jurídico penalmente tutelado é indisponível.

Pela Lei 9.099/1995, o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem ingressou no rol das infrações de menor potencial ofensivo, admitindo a transação penal, se se verificarem os requisitos legais. Há um caso, porém, em que se vislumbra o aumento de pena de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), que é o de perigo à segurança viária. Tal possibilidade de aumento de pena foi admitida pela Lei 9.777/1998, que inseriu um parágrafo único ao artigo 132. De acordo com Mirabete (2015, p. 886), “teve o legislador em vista, principalmente, o transporte de trabalhadores rurais (boias-frias), que são submetidos ao traslado para fazendas em caminhões e outros veículos sem os cuidados indispensáveis para evitar acidentes.”

Há que se registrar ainda o afastamento do artigo 132 do Código Penal quando a conduta praticada pelo agente encontrar correspondência com o artigo 99 da Lei 10.741/2003, que institui o Estatuto do Idoso. Ex lege:

Art. 99. Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado:

Pena – detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano e multa.

§ 1o Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

§ 2o Se resulta a morte:

Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.

O aparente conflito das duas normas é resolvido pelo princípio da especialidade. Este princípio determina que haverá a prevalência da norma especial sobre a geral, evitando o bis in idem.


DO ABANDONO DE INCAPAZ

A princípio, em um contexto histórico, as civilizações antigas limitavam-se apenas a criminalizar o abandono de crianças. O direito canônico foi um dos primeiros a constituir o objeto de tutela penal relativo ao abandono de todo o incapaz de valer-se de si mesmo. No atual Código Penal brasileiro, o crime de abandonar incapaz e o crime de exposição ou abandono de recém-nascido (CP, art. 134) foram previstos em tipos autônomos.

O abandono de incapaz é uma conduta típica, prevista no art. 133 do Código Penal, com pena de detenção de seis meses a três anos. O tipo é descrito como abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono.

O caput define a modalidade simples do abandono de incapaz. Cuida-se de crime de médio potencial ofensivo, pois sua pena mínima autoriza a suspensão condicional do processo, se estiverem presentes os demais requisitos objetivos e subjetivos indicados pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.

Os §§ 1.º e 2.º elencam qualificadoras, em virtude da superveniência de um resultado agravador: lesão corporal grave ou morte. Na primeira espécie – abandono de incapaz qualificado pela lesão corporal grave –, e somente nela, também é possível a suspensão condicional do processo.

Finalmente, o § 3.º elenca causas de aumento da pena (MASSON, 2016, p. 155)

Esse tipo tem como objeto jurídico a defesa da vida e da saúde, ou seja, é o interesse relativo à segurança do indivíduo, que, por si, não se pode defender ou proteger, preservando sua incolumidade física. O sujeito ativo é aquele que tenha sob seu cuidado, guarda, vigilância, ou autoridade pessoa incapaz. O sujeito passivo de tal crime é qualquer pessoa que se encontre sob cuidado, guarda, vigilância, ou autoridade sendo ela incapaz de defender-se dos riscos do abandono. No que se refere ao elemento subjetivo, é certo que deverá haver o animus necandi, o dolo, podendo ser tanto direto, quanto eventual, não há a previsão culposa no crime em questão.

Trata-se de um crime instantâneo e de efeitos permanentes que se consuma com o abandono do incapaz, desde que haja perigo concreto para a vida ou a saúde da vítima. De acordo com Fernando Capez (2015), a tentativa é admitida nos crimes de perigo, desde que realizado na modalidade comissiva.

Para o crime em questão, o código penal determina apenas duas majorantes da pena, a primeira está prevista no § 1° e ocorre se do abandono resultar lesão corporal de natureza grave, sendo penalizado com reclusão de 1 a 5 anos. Já a segunda hipótese, se encontra no § 2° e  ocorre se o resultado for a morte, sendo penalizada com reclusão de 4 a 12 anos.

O código penal traz ainda, três causas de aumento de pena, sendo esses aumentos em um terço. A primeira causa de aumento ocorre se houver o abandono de incapaz em local ermo, ou, solitário, não frequentado habitualmente e não acidentalmente, solitário. Também haverá causa de aumento se o agente é ascendente, descendente, cônjuge, irmão, tutor, ou curador da vítima. Por fim, a última causa de aumento de pena ocorre se a vítima for maior do que 60 anos, acrescentado pela lei 10.741/2003

Art. 98. Abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa.


DA EXPOSIÇÃO OU ABANDONO DE RECÉM-NASCIDO

O Código Penal brasileiro, em seu artigo 134, traz uma espécie especial de abandono de incapaz, dada a inegável prepotência e incapacidade do recém-nascido. Dessa forma, se pune quem expõem ou abandona o recém-nascido para ocultar a desonra própria. Para Cleber Masson:

Esse delito representa, em verdade, uma figura privilegiada do abandono de incapaz (CP, art. 133) cometido por motivo de honra. Nada obstante estejam definidos por tipos penais autônomos, é razoável dizer que o abandono de incapaz é o crime fundamental, do qual deriva o tipo da exposição ou abandono de recém-nascido (MASSON, 2016, p. 160)

Expor ou abandonar são verbos interpretados com sentidos idênticos no direito penal, não fazendo uma distinção entre si, sendo assim no art. 133 só se fala em abandonar e enquanto no art. 134 expor e abandonar. Se fossem distintos o Código estaria deixando impune a exposição de recém-nascido impune, honoris causa, porém isso não acontece.

Diferentemente do que ocorre com o incapaz, como mencionado pelo art. 133 do Código Penal, no art. 134 a lei exige a qualidade de recém-nascido, ou seja, aquele que acabou de nascer, vale dizer, o neonato, bem como aquele que possui poucas horas ou mesmo alguns dias de vida. Não se pode conceber como recém-nascido aquele que, com alguns meses de vida, é abandonado pela mãe, que tinha por finalidade ocultar desonra própria. Nesse caso, acreditamos, o delito será aquele previsto no art. 133 do Código Penal, isto é, abandono de incapaz, mesmo que a mãe atue com essa finalidade especial, uma vez que todos os elementos da figura típica devem estar presentes no momento da aferição da tipicidade do comportamento praticado pelo agente (GRECO, 2016, p. 244).

Os bens juridicamente protegidos pelo art. 134 são a vida e a saúde do recém-nascido, com poucas horas ou até mesmo alguns dias de vida. Quando o recém-nascido já tem alguns meses de vida e a mãe pratica essa conduta para que sua honra não seja maculada, o delito praticado será o do art. 133 do Código Penal.

Sujeito ativo sempre será a mãe, pois é a única em que a desonra cai. Sujeito passivo recém-nascido. Consuma-se quando a exposição ou o abandono resultar em perigo concentro para a vida ou para a saúde do recém-nascido. A tentativa é admissível. O dolo é o elemento característico subjetivo e não se admite a modalidade culposa, por ausência de previsão legal. Pode ser praticado comissiva ou omissivamente.

As modalidades qualificadoras deste delito somente podem ser imputadas a título de culpa, ou seja, tratam-se de crimes preterdolosos, § 1° se do fato resultar lesão corporal de natureza grave, pena- detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Já no § 2° se resulta a morte, pena- de 2 (dois) a 6 (seis) anos.


DA OMISSÃO DE SOCORRO E DO CONDICIONAMENTO MÉDICO-HOSPITALAR EMERGENCIAL

Quando trata da omissão de socorro em seu Curso de Direito Penal, Rogério Greco atenta para o fato de que a vida em sociedade nos impõe deveres de solidariedade de uns para com os outros. “Existe um dever maior, necessário não somente ao convívio social, mas à manutenção da própria sociedade em si, que é o dever de solidariedade” (GRECO, 2016, p. 249). Sendo a solidariedade um valor social dos mais caros, o legislador houve por bem responsabilizar criminalmente a inação em socorrer ao semelhante. Ex lege:

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

A omissão de socorro configura um crime omissivo próprio, uma vez que a omissão vem narrada expressamente pelo tipo penal. Os crimes omissivos impróprios, ao contrário dos próprios, não se encontram tipificados expressamente pela lei, mas são previstos quando verificadas as situações indicadas no artigo 13, parágrafo 2º, alíneas a, b e c, do Código Penal.

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

O crime de omissão de socorro comporta duas condutas típicas. A primeira delas é deixar de prestar assistência ao ofendido, um crime omissivo puro. Tal omissão, contudo, só é punida dentro das capacidades do agente, isto é, pune-se a omissão naquilo que era possível ser feito e não foi, não se exige, portanto, a prática de atos para os quais o agente não está habilitado. A segunda conduta típica é não pedir socorro da autoridade pública. Uma vez verificada a impossibilidade de prestar socorro, exige-se o acionamento das autoridades competentes, não o fazer é penalmente punível e também configura omissão de socorro.

Neste crime, o dolo consiste na vontade de não prestar socorro ou não pedir auxílio, cônscio do perigo para a vítima. Se o agente não tem consciência do perigo, afastado está o dolo e não há falar em punibilidade, uma vez que inexiste a forma culposa (MIRABETE, 2015, p. 900).

São cabíveis formas qualificadas do crime de omissão de socorro, caso em que ocorra lesão corporal grave ou morte da vítima. Para a aplicação das causas de aumento de pena, deve restar provado que o omisso poderia ter evitado a lesão ou a morte da vítima.

Não configura o crime de omissão de socorro descrito no artigo 132 do Código Penal:

Quando o omitente tinha o dever jurídico de cuidar da vítima (art. 13, § 2º), poderá outro crime (homicídio, lesões corporais, abandono de incapaz etc.). A omissão de socorro pode ser, não crime autônomo, mas causa de agravamento de pena nos crimes de homicídio culposo e lesões corporais culposas que não sejam configuradas como crime de trânsito. Se a vítima é pessoa idosa (com idade igual ou superior a 60 anos), o crime é descrito no art. 97 da Lei nº 10.741, de 1º-10-2013 (Estatuto do Idoso), para o qual se preveem penas de seis meses a um ano de detenção e multa. A pena é aumentada de metade se resulta lesão corporal grave e triplicada, se resulta morte (parágrafo único).

A omissão de socorro praticada pelo motorista em caso de crime ou acidente de trânsito está agora submetida a tipos especiais previstos na Lei nº 9.503, de 23-9-97 (CTB) [...]

Tratando-se de omissão no atendimento médico-hospitalar por condicionamento de sua prestação a uma garantia de dívida ou ao preenchimento de formulários, configura-se tipo específico, previsto no art. 135-A, inserido pela Lei nº 12.653, de 28-5-2012 (MIRABETE, 2015, p. 902).

O dispositivo a que alude Mirabete (art. 135-A, CP) trata de um crime próprio, uma vez que somente pode ser praticado por quem esteja na posição condicionar o atendimento emergencial médico-hospitalar a garantia ou preenchimento de formulário. Podem figurar como sujeitos ativos da conduta descrita no tipo penal sócios dos estabelecimentos médico-hospitalares, administradores, gestores, médicos, enfermeiros, atendentes, empregados administrativos de hospital etc. Na outra ponta, figura como sujeito passivo a pessoa que necessita de atendimento emergencial nos estabelecimentos médico-hospitalares, mesmo que a exigência de garantia ou preenchimento de formulário seja feita a terceiro, como parente ou pessoa que prestou auxílio (MIRABETE, 2015, p. 903).

Greco (2016), salienta que a prática tipificada penalmente no artigo 135-A do Código Penal já era proibida pela Resolução Normativa nº 44, de 24 de julho de 2003, da Agência Nacional de Saúde e vedadas pela lei (Código Civil e Código de Defesa do Consumidor) e conclui:

que as determinações contidas nos diplomas citados (Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Resolução Normativa) não eram fortes o suficiente a fim de inibir o comportamento por elas proibido, entendeu por bem o legislador fazer editar a Lei nº 12.653, de 28 de maio de 2012, criando uma nova figura típica e encerrando, com isso, também, uma discussão já existente,  quando parte de nossos doutrinadores se posicionava pela possibilidade de configuração do delito de extorsão indireta, tipificado no art. 160 do Código Penal, ou ainda pelo delito de omissão de socorro, previsto no art. 135 do mesmo diploma repressivo (GRECO, 2016, p. 274).

Uma vez tipificada a conduta, pelas razões que aponta Greco, criou-se um crime de perigo concreto, que se consuma com a exigência de garantia ou do preenchimento de formulário (mesmo que a vítima venha a ser atendida posteriormente, a simples exigência consuma o crime). A pena é aumentada até o dobro, se da negativa de atendimento resultar lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resultar em morte (hipóteses preterdolosas).


DOS MAUS-TRATOS

Eis o tipo penal:

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.  

Segundo Masson (2016, p. 182), embora apresente um só verbo como núcleo do tipo penal, o crime de maus-tratos por um tipo misto alternativo – crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. Dessa forma, o agente pode consumar o crime com uma única conduta (privando alguém dos cuidados necessários, por exemplo) ou através de condutas variadas (privando a vítima de alimentação e sujeitando-a a trabalho excessivo). Em todo caso, porém, haverá um único crime, se as condutas forem praticadas no mesmo contexto fático.

O crime de maus-tratos é um crime próprio, pois para que seja configurado o tipo penal há que existir uma vinculação especial entre o autor e a vítima; esta deve estar sob autoridade, guarda ou vigilância do agente, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Dessa forma, o sujeito passivo do crime de maus-tratos não pode ser qualquer pessoa, mas somente aquela que se encontrar nas condições específicas de estar sob autoridade, guarda ou vigilância do agente (MASSON, 2016, p. 184).

Em se tratando de pessoa idosa, há um tipo penal específico, tipificado pelo artigo 99 da Lei nº 10.741/2003, que instituiu o Estatuto do Idoso. A lei, buscando uma proteção especial ao idoso, trouxe um tipo penal mais abrangente, considerando como maus-tratos também a exposição a perigo da saúde psíquica do idoso (MASSON, 2016, p. 186).

O crime de maus-tratos tem por elemento subjetivo o dolo de perigo (direto ou eventual), não sendo admitida a modalidade culposa. Consuma-se o crime no momento em que a vítima sofre o perigo, sendo crime permanente nas hipóteses de privação de alimentos e cuidados e crime instantâneo nas demais hipóteses. É possível a forma tentada nos maus-tratos por comissão e admite qualificadoras se do fato resultar lesão grave ou morte (qualificadoras preterdolosas). Em sendo a vítima menor de 14 anos, a pena é aumentada em um terço. Em sendo a vítima maior de sessenta anos, a conduta se amolda ao tipo trazido pelo Estatuto do Idoso, ao qual aludimos acima.

Cleber Masson (2016) aborda importante distinção que deve ser feita entre os crimes de maus-tratos e o de tortura:

Caracteriza-se o crime de tortura, equiparado a hediondo, quando alguém, que se encontra sob a guarda, poder ou autoridade do agente, é submetido, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (Lei 9.455/1997, art. 1º, inc. II). A pena, nesse caso, é de reclusão de dois a oito anos (MASSON, 2016, p. 188).

Aponta o referido doutrinador para o fato de que distinção entre os crimes de tortura e de maus-tratos deve ser feita no caso concreto. A configuração da tortura depende de intenso sofrimento físico ou mental. A configuração do maus-tratos depende da mera exposição a perigo da vida ou da saúde. Outra distinção cabível é acerca do dolo: nos maus-tratos há dolo de perigo, enquanto na tortura há dolo de dano. A diferenciação se baseia, portanto, no elemento subjetivo.


CONCLUSÃO

 O estudo do Capítulo III do Código Penal se mostra relevante, por conter minudências que exigem do operador do direito uma atenção mais detida, como nas necessárias distinções que devem ser observadas, por exemplo, entre os crimes de perigo de contágio venéreo e perigo de contágio de moléstia grave, ou entre os crimes de abandono de incapaz e o de abandono de recém-nascido. Este trabalho também propicia, embora não seja seu foco de estudo, uma análise de leis penais extravagantes, sobretudo da Lei 10.741/2003, que institui o Estatuto do Idoso. 


REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 12. Ed. São Paulo (SP) Saraiva, 2012.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial. Volume 2. 13. Ed. Niterói, RJ: Impetus, 2016.

MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: Parte Especial. Volume 2. 9. Ed. São Paulo: Método, 2016.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 9. Ed. São Paulo: Atlas, 2015.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NETO, Tarcísio Raimundo Benfica. Da periclitação da vida e da saúde. Uma análise do capítulo III do Código Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4922, 22 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54316. Acesso em: 19 abr. 2024.