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Valoração da prova e livre convicção do juiz

Valoração da prova e livre convicção do juiz

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Toda a atividade desenvolvida no processo busca trazer aos autos provas capazes de reconstituir o fato inquinado de criminoso, para criar, no espírito do julgador, uma clara certeza acerca dos acontecimentos.

I) INTRODUÇÃO/ A LIDE PENAL:

O fim a que se destina o processo penal é a resolução de uma lide de natureza penal, consistente no exercício pelo Estado do jus puniendi contra o infrator da norma de caráter penal. Sendo certo que a pretensão punitiva estatal surge quando da transfiguração do jus puniendi de abstrato (a elaboração legislativa) para concreto (a infração da norma por alguém), quer dizer que a partir desse momento tem o Estado o poder de exigir a subordinação do interesse do infrator ao seu próprio interesse.

Assim sendo, com o simples surgimento da pretensão punitiva por parte do Estado surge a lide penal, isto porque, ainda que o autor da conduta punível não queira resistir à pretensão estatal, deverá fazê-lo, pelo fato de amparar o Estado – como ampara – também o seu direito à liberdade.

E aqui fica claro, então, que a utilização pelo Estado do processo penal para resolução de uma lide de natureza penal nada mais é que uma auto-limitação ao seu direito de punir, posto que, para se desincumbir da referida atribuição, submete-se a regras pré-estabelecidas e que procuram, o máximo possível, igualar as duas partes em litígio, ou, antes, reduzir a sua drástica desigualdade.


II) SISTEMAS DE PROCESSO:

No processo penal moderno, como atualmente é praticado nos países ocidentais, este deixa de centrar-se na finalidade meramente punitiva para centrar-se, antes, na finalidade investigatória. O que se quer dizer é que, abandonado o sistema inquisitório, em que o órgão julgador cuidava também de obter a prova da responsabilidade do acusado (que consistia, a maior parte das vezes, na sua confissão) o que se pretende no sistema acusatório é submeter ao órgão julgador provas bastantes ao esclarecimento da verdade.

Evidentemente que no primeiro sistema a complexidade do ato decisório haveria de ser bem menor, na medida que a condenação fosse proferida com base na confissão do acusado. Problemas de consciência não os haveria de ter o julgador pela decisão em si, porque o seu veredito era baseado na contundência probatória do meio de prova "mais importante" – a confissão. Um dos motivos pelos quais se pôs em causa este sistema foi justamente a questão do controle da obtenção da prova – isto é, a confissão, exigida como prova plena para condenação, era o mais das vezes obtida por meio de coações morais e físicas.

O sistema adotado em Portugal é um sistema acusatório misto: isto quer dizer que os papéis de acusar, defender e de julgar estão entregues a agentes distintos, sendo que o Juiz que vai proferir a decisão é o mesmo que presidiu à produção das provas por ocasião da audiência.

Nesse sistema o que interessa é o esclarecimento da verdade material, e não aquela trazida formalmente aos autos pelas partes: vem daí o fato de o dito sistema ser informado pelo princípio da investigação, pelo qual a definição do material fático não pertence exclusivamente às partes, antes competindo ao Juiz ou Tribunal determinar de ofício a produção de provas que julgue necessárias ao esclarecimento da verdade (art. 340 do CPP português). E também pelo princípio da comunhão das provas, pelo qual a prova levada ao processo pode ser utilizada por qualquer dos intervenientes, seja o órgão julgador ou uma ou outra parte. Isto fica claro, por exemplo, da possibilidade de a parte ex adversa poder inquirir testemunha por ela não arrolada (art. 348, nºs 4 e 6 do CPP português) ou da necessidade da outra parte consentir no pedido de dispensa formulado pela parte que requereu a produção da prova testemunhal (art. 353, nº 3 do CPP português).

Repita-se que no processo penal como praticado hoje, o que importa não é a punição, em si, do argüido, mas o determinar se as provas produzidas na fase de julgamento ( na fase instrutória, no processo penal brasileiro) já agora são suficientes, no entender do órgão julgador, a acarretar uma condenação. Entretanto, para que haja condenação é necessário que se proceda à reconstituição histórica dos fatos, de molde a se perceber o que se passou na verdade e se a prática do ato ilícito pode ser atribuída ao argüido. Ou seja, é necessário se restabeleça, tanto quanto possível, a verdade dos fatos, para a solução justa do litígio, e sendo este o fim a que se destina o processo, é através da instrução que se busca a mais perfeita possível representação dessa verdade.


III) A VERDADE EM MATÉRIA DE PROCESSO:

Importa desde logo esclarecer o significado que tem, neste campo, o vocábulo verdade. Na definição de CAVALEIRO DE FERREIRA, verdade é "a correspondência do juízo formado com a realidade" [1]. Mas como a realidade nada mais é que a percepção que se tem dela, e sendo o juízo humano falível, ao adquirir-se esta percepção surge no espírito de quem a adquire uma certeza que por um lado pode ser "absoluta, objetiva" ou, por outro lado, "meramente subjetiva, uma simples convicção" [2], conforme se proceda a um juízo lógico (desde que baseado em premissas corretas) ou histórico (baseado na representação dos fatos).

A isto acrescenta CASTANHEIRA NEVES que a verdade que interessa ao direito só pode ser a que tem a ver com "a realidade de vida, com a acção humana, as circunstâncias do mundo humano" sendo ela, assim, uma verdade "histórico prática" e não a de um "juízo teorético" [3]. Neste passo acompanha MITTERMAIER para quem o objeto de estudo, no processo penal, é a verdade histórica [4] [5].

Por outro lado, é óbvio que a verdade é uma só; fala-se em verdade material e formal não mais do que querendo referir as limitações impostas ao órgão julgador na sua busca dos fatos. Assim, num sistema puramente acusatório, o Juiz ou Tribunal estaria adstrito à "verdade" trazida a discussão pelas partes, enquanto que no sistema misto, integrado pelo princípio da investigação, o órgão julgador tem poderes investigatórios muito mais amplos, com já ficou dito [6].

Portanto, ao proferir decisão, a certeza que se exige do julgador, e por ele possível de ser alcançada, depende de duas variáveis: a) da demonstração da realidade, o que se faz por meio das provas cuja produção foi permitida e cuja apreensão foi ordenada; e b) do processo meramente intelectivo de apreciação e valoração dessas provas [7].


IV) PROVAS

IV.I) Definição:

Prova pode ser entendida no âmbito do processo penal sob três significados distintos:

a)referindo-se à atividade probatória em si, como meio de demonstração de um fato que vai influir na convicção do julgador. Neste sentido a definição de TORNAGHI, "conjunto de atos praticados pelas partes, terceiros (testemunhas, peritos) e até pelo juiz, para averiguar a verdade e formar a convicção desse último (julgador)" [8]. No mesmo sentido AMARAL SANTOS, "é a soma dos fatos produtores de convicção dentro do processo" [9]. É o sentido a que se refere o Código Civil português quando diz, no art. 341, que "as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos".

b)Como resultado dessa atividade probatória, que é o sentido expresso no art. 127 do CPP português: "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da autoridade competente".

c)Como se referindo aos meios de prova, em si, que é o sentido dos arts. 79, n° 1 – "as provas são requeridas com os articulados" e 125 – "são admissíveis provas que não forem proibidas por lei".

IV.II) Objeto:

Objeto da prova são "os factos que devem ser provados, em princípio são todos os factos juridicamente relevantes no processo" [10]. Ou, no dizer de FREDERICO MARQUES, "a coisa, fato, acontecimento ou circunstância que deva ser demonstrada no processo" [11]. Trata-se, portanto, de tudo o que possa de alguma maneira influenciar na reconstituição do fato delituoso e na demonstração de circunstâncias pessoais do agente.

CAVALEIRO DE FERREIRA faz menção à natureza diversa dos fatos probandos, bem como a alguns critérios em referência aos quais se pode estabelecer uma classificação:

a) quanto à sua relevância, podem ser principais e acessórios, desde que sejam propriamente condicionantes da decisão a ser proferida ou se refiram simplesmente à eficácia probatória dos meios de prova (por exemplo, a idoneidade dos peritos, a falta de impedimento de uma testemunha);

b)quanto ao âmbito de sua verificação, podem se produzir interiormente e exteriormente, conforme digam respeito à vida psíquica do agente (pensamentos, motivos, intenção, erro) ou se verifiquem no mundo exterior;

c)quanto ao efeito jurídico que condicionam, podem ser constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado (ou da responsabilidade penal do agente), que acarretam diferentes soluções na questão relacionada ao ônus da prova, mesmo no sentido mais restrito que tal questão assume no âmbito do processo penal [12].

Importante notar que não se confundem as expressões objeto da prova e objeto de prova. A primeira expressão refere-se aos fatos ou circunstâncias diretamente relacionadas ao fato em apuração, ou mesmo aqueles com base nos quais se possa inferir a existência de fatos que sejam objeto da apuração, enquanto que a segunda expressão refere-se às coisas passíveis, em tese, de serem provadas (isto é, de serem objetos de prova): os fatos em si [13].

MALATESTA elenca como espécies de prova indireta a presunção e o indício. Define presunção como sendo "a afirmação da ligação ordinária de uma qualidade a um sujeito", seja este sujeito homem ou coisa [14], podendo ser absoluta (jures et de jure) ou relativa (juris tantum), conforme admita ou não prova em contrário.

Portanto, se se presume uma coisa, toma-se como verdadeiro um fato, independente de prova, funcionando o raciocínio da seguinte maneira: geralmente tal fato está ligado a tal outro por uma relação de causalidade, dependência ou outra qualquer (por exemplo, a paternidade do marido, na constância do casamento); logo, se aconteceu o primeiro fato, deve provavelmente ter acontecido também o segundo, o que se pode aceitar independente de prova. Continuando no exemplo: geralmente, na constância do casamento a mulher tem filhos do próprio marido. Portanto, se a mulher casada tem um filho, presume-se que seu marido seja o pai da criança.

indício, na definição expressa do Código de Processo Penal Brasileiro, é a "circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias" (art. 239).

De grande utilização no processo penal, onde nem sempre a prova direta é possível de obter-se dadas as circunstâncias do delito ou de sua prática, na prova indiciária deduz-se o desconhecido (o fato probando) do conhecido (o indício), à luz do princípio da causalidade [15]. Uma vez que tal raciocínio é falível, adverte CAVALEIRO DE FERREIRA que a prova indiciária é tanto mais frágil quanto mais numerosas forem as ilações intermediárias entre o indício e a conclusão, ou quanto menor for o número de fatos indiciantes sobre que se baseia a ilação [16].

IV.IV) Meios de Prova:

Relacionado ainda à questão da classificação das provas, servindo mesmo de critério para esta classificação, definem-se meios de prova como os meios materiais de que se lança mão para a demonstração da veracidade de determinado fato.

Assim, e com relação aos meios de prova utilizados para reproduzi-la, a prova pode ser pessoal ou real, conforme os meios usados sejam respectivamente pessoas ou coisas. A prova é pessoal quando resulta da atividade de uma pessoa, como são os depoimentos das testemunhas. A prova é real quando emana da observação ou da própria existência nos autos da coisa em si, como é o caso dos documentos ou dos instrumentos utilizados na prática do delito.

O Código de Processo Penal português distingue meios de prova dos meios de obtenção da prova, regulando ambas matérias respectivamente nos Títulos II e III do Livro III da Parte I. MARQUES DA SILVA diz referir-se a expressão meios de obtenção da prova à "actividade de recolha dos meios de prova", acrescentando que esta atividade pode, em princípio, ter lugar em qualquer fase processual [17].


V) AVALIAÇÃO DAS PROVAS:

O procedimento probatório tem duas fases, a de produção, propriamente, em que se produzem as provas admitidas [18] e a sua apreciação e avaliação, cabendo esta última fase exclusivamente ao órgão julgador que deverá proferir a decisão.

A maneira de avaliar a prova conheceu uma evolução ao longo do tempo, amoldando-se aos costumes e organização política e jurídica de cada povo em cada época de sua evolução histórica. Grosso modo, dois são os sistemas de avaliação: o sistema em que as provas são valoradas pela lei e aquel’outro em que o são pelo juiz ou tribunal.

V.I) Sistemas de Avaliação:

V.I.I) Sistema da Prova Legal:

Neste sistema as provas tinham seu valor fixado por lei, que não deixa ao julgador qualquer margem de liberdade na valoração. As provas a que não fosse atribuído um valor qualquer pela lei não poderiam ser consideradas na decisão (se admitidas) e as que podiam sê-lo, "era dito de antemão o que valiam" [19]. Ao Juiz ou tribunal não era permitido levar em conta provas que não estivessem nos autos (o que não está nos autos não está no mundo).

Para LESSONA o princípio teve origem no procedimento bárbaro, tendo sido reforçado por máximas de direito canônico, que procuravam reduzir ao máximo o arbítrio do julgador pela codificação de regras de experiência de há muito observadas e testadas, em busca da verdade real [20].

A doutrina, de uma maneira geral, se manifesta no sentido da validade do sistema, mas faz ressalva ao fato de as regras de valoração vincularem a decisão do órgão julgador, isto é, as regras lhe serem impostas. CAVALEIRO DE FERREIRA diz que o sistema partia de uma premissa correta: a prova para condenação teria de ser plena, não bastando para imposição da sanção uma prova semi-plena, "pois que tal prova não passaria de uma presunção, e por isso não corresponderia à certeza, à verdade real" [21].

Aprofundando a crítica acerca da inconveniência da vinculação do julgador, TORNAGHI refere mesmo como exemplo o fato de que "uma testemunha veraz, fidedigna, inteligente, convence-o (ao juiz) da culpabilidade do mais perverso dos criminosos, mas é testemunha insulada, e como vigora a regra legal de que testis unus, testis nullus, ele tem que absolver" [22]. CAVALEIRO DE FERREIRA acrescenta, citando PEREIRA E SOUZA (Primeiras Linhas, pp. 149 e ss.), que no regime das Ordenações do Reino "nunca fariam prova plena para a condenação uma só testemunha, ou pluralidade de testemunhas singulares que depusessem sobre fatos diferentes ou defeituosos" [23]. LESSONA por isto mesmo adverte do perigo de impor ao julgador um fato que lhe vá contra a consciência e a sua convicção, o que só deve ser consentido em casos excepcionais [24].

Em resumo, neste sistema as condições de admissibilidade estão abstratamente pré-estabelecidas, e aplicam-se a todas as hipóteses que apresentem aquelas características, independente de outras circunstâncias ou considerações.

V.I.II) Sistema da Livre Convicção:

No século XVIII foi o sistema da prova legal substiuído pelo da livre convicção, onde o juiz era livre para apreciar as provas produzidas. No campo das idéias pode-se dizer que a livre convicção refletia o empirisimo de LOCKE pela necessidade de produção de provas, contrapondo-se, assim, ao racionalismo cartesiano da prova legal.

No campo político, pode-se dizer ter representado uma retaliação dos legisladores franceses pós-revolucionários aos juízes profissionais, a quem eram hostis sobretudo porque estes últimos faziam parte do "antigo regime". Por este motivo, foi fomentada a participação de juízes populares nos julgamentos, a quem caberia decidir as questões de fato, ficando reservadas aos juízes funcionários a resolução das questões de direito. Como fossem leigos, a estes juízes populares não era exigido que conhecessem as regras legais de apreciação das provas, que assim passaram a não valer mais.

Na verdade, o sistema implantado em França pelo Decreto sobre o procedimento penal de 1791 ainda não era o da livre convicção, senão o da íntima convicção, pelo qual o jurado não precisava fundamentar sua decisão. Como a época era dominada pelo culto a uma "razão universal" – aqui empregada no sentido oposto ao de paixão – o convencimento, embora íntimo, era comum, porque fundamentado numa qualidade – a razão – atribuída igualitariamente a todos.

Neste sentido, SALAVERRIA reproduz citação de Duport, autor da referida legislação (que aparece em NOBILI [25]) que respondendo a Robespierre, para quem o deixar tudo ao convencimento do julgador era dar margem a arbitrariedades e despotismos, esclareceu que não haveria somente julgadores profissionais, mas também jurados, e que estes eram livres para julgar de acordo com seus conhecimentos pessoais e seu bom-senso [26].

EDUARDO CORREIA registra a introdução desse sistema em Portugal nas Reformas Judiciárias devidas à Revolução Liberal, no século XIX [27]. MARQUES DA SILVA nota que muito cedo o sistema passou a aplicar-se também aos juízes profissionais, entendendo-se que "a livre convicção do julgador dispensava a valoração feita da prova, pois o juiz julgava apenas de acordo com sua consciência" [28].

Já o sistema da livre convicção é uma terceira fase da evolução do sistema de valoração da provas, em que se passou a exigir a fundamentação da decisão como forma de controle. FIGUEIREDO DIAS fala em discricionariedade na apreciação da prova, em "liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada verdade material" [29], enquanto que CAVALEIRO DE FERREIRA fala em vinculação "aos princípios em que se consubstancia o direito probatório, e às normas de experiência, de lógica, regras incontestáveis de natureza científica, que se devem incluir no âmbito do direito probatório" [30]

De qualquer forma o que se exige é a fundamentação da decisão, como meio de convencimento das partes e do público, de maneira geral, e como forma de possibilitar o controle da decisão pelo órgão recursal.

De se notar que o regime anterior ao processo penal em Portugal não fazia menção expressa a este sistema. Sua utilização era respaldada pela integração de outras normas daquele diploma, notadamente a ausência de critérios legais de hierarquização do valor dos meios de prova [31], mas, principalmente, a aplicação analógica do art. 655 do Código de Processo Civil, conforme preconizado na jurisprudência da época.

No atual Código de Processo Penal português o princípio vem expressamente traduzido no art. 127, que estabelece que "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente".

V.II) Interpenetração dos Sistemas de Provas:

Nas legislações processuais contemporâneas o que se tem é o sistema da livre convicção, com algumas exceções, fixadas na lei, em que determinadas provas têm seu caráter pré-estabelecido. LESSONA já se referia a este fato dizendo ser "a regra o sistema de persuasão racional; a exceção, admitida somente quando a lei autoriza de modo expresso, é o sistema da prova positiva ou legal" [32]. No Código de Processo Penal português constituem exceção ao princípio da livre convicção as regras referentes ao valor probatório de documentos autênticos e autenticados (art. 169), ao caso julgado a propósito de pedido cível (art. 84), à confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344) e à prova pericial (art. 163). No processo penal brasileiro o princípio da livre apreciação da prova encontra-se consagrado no art. 157: "o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova".

FREDERICO MARQUES já se referia às exceções citadas como limitações à livre convicção do julgador. Estabelecia, ainda, um paralelo entre estas e as limitações à pesquisa da verdade real, referindo-se a provas cuja produção seja vedada por disposição legal ou mesmo constitucional [33]. Hoje não é mais passível de discussão que a relação entre a proibição de prova e a proibição de valoração é matéria bastante intrincada, a ocupar destaque na doutrina das proibições de prova [34].


VI) DECISÃO E FUNDAMENTAÇÃO:

Deixando-se deliberadamente de lado a discussão acerca da proibição da valoração de provas cuja produção seja proibida, partimos de um conjunto probatório pronto a ser utilizado pelo julgador, cuja eficácia para os fins do processo seja já incontroversa.

A partir daí se desenrola o processo de apreensão, avaliação e valoração da prova, de molde a criar no espírito do julgador a certeza que o há de levar à decisão, seja num ou noutro sentido. FIGUEIREDO DIAS assinalava a componente de personalidade que existe na convicção a ser formada, referindo-se à atividade cognitiva que se há de desenvolver, eivada de elementos "racionalmente não explicáveis" e mesmo componentes "puramente emocionais" [35].

De fato, o ato decisório decompõe-se em duas fases distintas: a primeira, a fase decisória propriamente dita, em que atuam as componentes psicológicas e instintivas referidas por FIGUEIREDO DIAS; a segunda, a fase de fundamentação, como forma de justificar a decisão tomada, em que estão presentes critérios de lógica na argumentação e demonstração da validade da decisão proferida [36].

Referindo-se a esta bipartição, SALAVERRIA oferece exemplo que vale a pena reproduzir: o juiz de primeira instância absolve Tício da acusação de ter matado Caio porque – segundo ele – um homem com aparência tão beatífica não pode fazer nada de mal; por sua vez, o juiz de apelação o condena, sob o argumento de que pessoas sem filhos são necessariamente egoístas e deles é de se esperar sempre o pior [37]. De fato, um dos dois proferiu decisão correta, porque ou Tício é inocente ou é culpado. Mas a justificação da decisão é, em ambos os casos, incorreta.

Com relação à primeira fase do processo decisório, trata-se de matéria afeta à Psicologia, a ser tratada possivelmente no mesmo domínio do estudo da criatividade. Dois são os componentes a serem aqui considerados: o perfil psicológico do julgador, que condiciona sua concentração na atividade de cognição e seleção do material que repute aproveitável para a atividade decisória e seu "estado de espírito" relativamente ao "conhecimento da verdade".

Do estudo do primeiro componente se ocupou ALTAVILLA, em seu "Psicologia Judiciária". No capítulo dedicado ao estudo do juiz como um dos atores no palco formado pelo desenrolar do processo penal [38] nota que, para o observador voltado para a averiguação dos motivos e das circunstâncias em que ocorreu um delito, a atividade de seleção de elementos que repute relevantes é inibitória quanto à percepção espontânea daqueles outros elementos que pareçam estranhos à sua indagação. E conclui que esta atividade é condicionada pelo temperamento da pessoa. ALTAVILLA traça um perfil psicológico do juiz criminal, identificando vários tipos distintos de personalidade que influenciam na atividade de percepção e seleção dos fatos. Dentre os perfis identificados preponderam o do tipo analítico, que tem uma compreensão do conjunto mas se deixa levar por detalhes que acabam por desviá-lo de uma síntese conclusiva, e o sintético, que tende a generalizar situações e a desprezar pontos essenciais em benefício de sua experiência, confundindo analogias com identidades.

Do estudo do segundo componente ocupou-se MALATESTA, no volume I de seu "A Lógica das Provas em Matéria Criminal" [39]. A respeito do convencimento do juiz, diz que este deve ser natural, "tal como surge da ação genuína das provas" e não artificial, produzido por razões "estranhas à sua intrínseca e própria natureza". Para ele estas razões estranhas, que perturbavam a naturalidade do convencimento, originavam-se do exame indireto daquelas: o fato de o juiz basear seu convencimento no exame das razões das partes, e não das provas em si, ou de ter de atribuir a uma prova valor prévia e legalmente estabelecido e, finalmente, razões surgidas "da própria alma do magistrado", em que sua vontade é influenciada por seu temperamento ou suas paixões.

Nota que a vontade pessoal do julgador pode fazê-lo afastar determinados detalhes e se fixar em outros, e que a força do temperamento, das paixões e inclinações podem facilmente conduzir a falsos juízos. Por fim, cita PLATÃO e concorda que, para se chegar à verdade, há de se expurgar o espírito de paixões [40].

Com relação à segunda fase do processo decisório, importa notar que a fundamentação é a justificação da decisão, quando o julgador a sustenta, lançando mão de elementos fáticos e jurídicos de molde a embasar a conclusão. Portanto, a justificação não é, como prega a concepção psicologista, uma mera descrição dos processos mentais que levaram o julgador a decidir de determinada maneira; é, antes, exercício de lógica jurídica [41].

A justificação presta-se a dúplice papel, quais sejam, o de convencer as partes e o público da justiça da decisão e possibilitar o controle do ato decisório, na instância ad quem, pela via recursal. Pode-se ainda acrescentar que, sendo o juiz detentor de um poder, num regime democrático deverá prestar contas do modo como dele se desincumbe, o que deverá fazer através da motivação de sua decisão. Não por outros motivos o nº 2 do art. 374 do Código de Processo Penal português exige a fundamentação da sentença como pressuposto de sua validade, não se confundindo esta com a simples enumeração dos meios de prova de que se utilizou o julgador para decidir.

Portanto, quando se diz que o princípio da livre convicção supõe a utilização de critérios lógicos e racionais de apreciação, de acordo com as regras de experiência etc. [42], o que se quer dizer é que a fundamentação da decisão é que deve ser lógica e racional, eis que o ato decisório, em si (os processos mentais que levaram à decisão), foge ao âmbito do direito e, portanto, não é passível de controle.


VII) LIMITAÇÕES À LIVRE CONVICÇÃO:

Acima se deixou claro que modernamente as legislações estabelecem como regra na questão da valoração da prova o sistema da livre convicção (o que pressupõe a motivação da decisão pelo julgador). Mas exceções existem, quando a própria lei pré-estabelece um valor a determinadas provas, desta forma obrigando o julgador.

Neste sentido, estas exceções podem ser classificadas, a princípio, como limitações ao livre convencimento do julgador, uma vez que o uso que na prática fará daquele dado probatório específico é-lhe impingido. O Código de Processso Penal português estabelece a presunção de validade dos documentos autênticos ou autenticados, da confissão sem reservas do argüido e da prova pericial. Dos dois últimos nos ocuparemos agora, vez que a presunção de validade de documentos autênticos ou autenticados não apresenta, a princípio, maiores dificuldades.

VII.I) Confissão do Argüido:

O art. 344 do Código de Processo Penal português estabelece dois regimes distintos no que diz respeito à confissão do argüido na Audiência de Julgamento:

a) a confissão integral e sem reservas, em delitos apenados com até três anos de prisão;

b) a confissão integral em crimes apenados com mais de três anos de prisão, a confissão não integral, ou com reservas, ou de molde a causar dúvidas quanto à veracidade dos fatos ou sanidade mental do acusado.

No primeiro caso, o n.º 2 do referido artigo do Código de Processo Penal determina se considerem como provados os fatos confessados, passando-se, de imediato, às alegações orais e determinação da sanção aplicável, no caso de condenação.

Pode-se dizer que, neste caso, está-se na presença de uma clara limitação ao sistema de livre convicção do juiz. Considere-se, no entanto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.10.95 [43]:

SUMÁRIO:

I. A confissão em processo penal pode revestir duas modalidades: a) a confissão integral e sem reservas e b) confissão parcial e com reservas.

II. Em qualquer das hipóteses, o tribunal mantém intacta a sua liberdade e, consequentemente, pode admitir ou não a confissão.

Longe de estar em desacordo com o dispositivo legal, o que o julgado estabelece é que, evidentemente, é lícito ao órgão julgador aferir dos requisitos formais do ato, seja no que diz respeito ao consentimento de vontade do argüido, seja de sua condições de higidez mental, e até mesmo aferir da veracidade da confissão: havendo motivos bastantes para duvidar da mesma, deve o órgão julgador determinar a produção de provas no interesse do esclarecimento da verdade, é o que estabelece a letra b do n.º 3 do art. 344 do CPP.

Logo, não se pode dizer que o art. 344 do Código de Processo Penal estabeleça uma limitação absoluta à livre convicção do julgador; antes, traça diretrizes, com base nas quais este terá parâmetros para valorar essa prova.

Interessante seria indagar até que ponto a referida disposição legal, que parece constituir tentativa de conciliação entre sistemas que admitem plenamente a confissão como prova bastante – como o anglo-americano (mais no sentido de negociação, bem entendido), e sistemas que não lhe emprestam esta amplitude probatória – como era o caso do anterior regime do Processo Penal português (art. 174 do Código de Processo Penal de 1929) ou do Processo Penal brasileiro (art. 197) [44] – não se presta também a elemento de política criminal.

O julgamento de delitos de menor gravidade - e, por isto mesmo, apenados mais brandamente - dispensaria a produção de provas, podendo- se partir para a suspensão da execução da pena de prisão (art. 50 do Código Penal português). Esta providência poderia implantar um regime de negociação entre acusação e defesa, que estaria ainda mais evidente se se estendesse o momento processual de decretação da suspensão condicional do processo até a Audiência de Julgamento, evitando-se, assim, a condenação [45].

A estas propostas se podem opor críticas no sentido de que o argüido poderia ser incentivado a assumir a culpa pela prática do delito (até mesmo para não se percorrer todos os trâmites processuais próprios da instrução criminal), desta maneira renunciando à garantia da ampla defesa. No entanto, deve-se ter em conta que a administração da justiça criminal torna-se hoje cada vez mais complexa pelo aumento incontrolado da criminalidade, tendência que se verifica por toda a parte.

VII.II) Prova Pericial:

O art. 166 do Código de Processo Penal fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. Quer dizer que a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do art. 165).

O posicionamento atual do Código de Processo Penal vem de posição defendida por FIGUEIREDO DIAS, para quem os dados de fato do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador – "que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer" – enquanto que o juízo científico expendido só é passível de crítica "igualmente material e científica". Exceções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar sua divergência [46].

É de se presumir não detenha o juiz conhecimentos técnicos suficientes para argumentar validamente no nível da fundamentação constante do parecer técnico. Mas, como homem, pode não estar convencido da conclusão do perito, ou, até mesmo estar convencido do contrário. Até que ponto é válido impor-se-lhe a conclusão técnica? Não é este, precisamente, o maior motivo de crítica ao sistema da prova legal, que norteia esta disposição referente à prova pericial como exceção ao princípio do livre convencimento?

A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de fato em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.

Negado valor ao laudo pericial por alguma dessas razões, as conseqüências são diferentes.

a)quanto à validade, deve-se aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais. Assim, por exemplo, se as partes foram notificadas do despacho que ordenou a prova (n.º 2 do art. 154), ou se os peritos prestaram o devido compromisso (n.º 1 do art. 156).

Também fica a cargo do julgador examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.05.95, no Recurso n.º 47783, confirmou decisão do Tribunal Colectivo Judicial da Comarca de Faro que negava validade a um exame pericial sobre impressões digitais dos argüidos colhidas no local do arrombamento, pondo em dúvida o local da colheita e a forma como os vestígios foram colhidos [47]:

SUMÁRIO:

A presunção a que alude o n.º 1 do art. 163 do Código de Processo Penal apenas se refere ao juízo técnico-científico e não propriamente aos factos em que o mesmo se apóia. Assim, a necessidade de fundamentar-se a divergência só se dará quando esta incide sobre o juízo pericial.

Da fundamentação do Acórdão sob exame:

"Poderá, ainda, acrescentar-se que o Tribunal recorrido, numa outra óptica, sequer chegou verdadeiramente a pôr em causa o juízo científico constante do exame, mas apenas o sítio e o modo como os vestígios foram colhidos, chamando sobretudo a atenção para o facto de que a inspeção foi feita em casa do ofendido, estando este ausente.

Portanto, sob este prisma, o Tribunal duvidou da forma como foram obtidas as impressões digitais dos argüidos, mas aí estava no campo da livre apreciação da prova, nos termos do art. 127.º, do Código de Processo Penal, o que está fora da sindicância deste Tribunal (neste sentido, o Acórdão deste Tribunal de 28-05-92, no processo 42.748).

Não há, portanto, que assacar à decisão recorrida qualquer nulidade ou erro notório na apreciação da prova, pelo que o recurso do MP não merece acolhimento."

Acerca da decisão podem-se fazer duas observações: a primeira é que a situação foi tratada pelo Supremo Tribunal de Justiça como divergência da matéria de fato, quando na verdade acreditamos se tratar de defeito no procedimento do exame, o que se haveria de resolver no âmbito das nulidades.

Ainda no domínio dos vícios de forma, a doutrina não parece levar em conta essa possibilidade, possivelmente porque tais defeitos sejam passíveis de correção. Mas que acontece se, por exemplo, o laudo pericial sobre que se funda a decisão não vier assinado, possivelmente por esquecimento, ou se vier rasurado? A solução passa, obrigatoriamente, pelo examinar se se trata de mera irregularidade ou de nulidade, e, neste último caso, se é sanável ou não.

A segunda observação que se pode fazer do Acórdão é que a conseqüência da divergência do Tribunal recorrido com o laudo pericial sub judice foi a sua não valoração, e conseqüente absolvição dos argüidos.

a)com relação à matéria de fato em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não foi posto em causa o juízo de caráter técnico-científico expendido pelos peritos. É a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163 do Código de Processo Penal, e a questão que ora se examina não é a da sua validade, mas a da ampliação do seu âmbito de aplicação.

b)quanto à conclusão em si, esta pode se cingir efetivamente ao âmbito da matéria posta a exame ou pode excedê-la. No primeiro caso, a conclusão obriga o julgador, que só pode dela divergir se fundamentar, nos mesmos moldes (ou seja, lançando mão das regras, conceitos e procedimentos afetos à matéria) a sua divergência. No segundo caso, a conclusão pode ser refutada por ele, por não se tratar de juízo técnico-científico.

Considere-se o exemplo de um homicídio em que o laudo constata que um determinado número de projéteis alojou-se num determinado órgão da vítima, causando hemorragia, e conclui dizendo que esta hemorragia foi a causa da morte. Esta conclusão é científica, é baseada nos conhecimentos de anatomia do legista, que considerou que o estrago causado pelo projétil naquele órgão foi de molde a torná-lo imprestável para a sua função. Mas a situação seria diferente se o perito concluísse que, pelo número de projéteis e locais de entrada e saída dos mesmos, não houve por parte do agente a intenção de matar.

Neste último caso a conclusão extrapola o domínio da técnica médica, o que vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, como no Acórdão de 03-07-96, no Recurso n.º 48.728 [48].

SUMÁRIO:

I-O juízo médico-legal sobre a intenção de matar não é um juízo técnico, científico ou artístico, nem juízo de técnica médica, mas apenas um juízo de probabilidade sobre essa intenção. II- Por isso, não lhe é aplicável o disposto no art. 163 do C. P. Penal.

Ainda, o Acórdão de 25-10-95, no Recurso n.º 47.028, em que o perito, após constatar a espécie de debilidade mental de que sofria o argüido, considerou-o como incluído no conceito de "perigosidade" [49]:

SUMÁRIO:

Aceitando o tribunal colectivo o juízo científico quanto à inimputabilidade do argüido tem, todavia, o poder de livre apreciação quanto aos elementos de facto que revelem a sua perigosidade.

Assim fundamenta o STJ o seu entendimento a respeito:

"O argüido é, portanto, um indivíduo com uma personalidade anormal, do tipo debilidade mental.

Formulado este juízo científico, do qual o Tribunal Colectivo não discordou, o senhor perito emitiu, por fim, este parecer:

‘Em nosso parecer é de prever que o examinando persista no comportamento anti-social que vem manifestando e que a falta de sentido crítico não deixa corrigir, o que permite a sua inclusão no conceito de perigosidade.’

(...)

O Tribunal Colectivo manteve intacto o juízo científico quanto à perturbação mental de que o argüido sofre e quanto à sua inimputabilidade.

Discordou do perito apenas quanto á perigosidade riminal.

É que, para a aplicação da medida de segurança não basta a declaração de inimputabilidade e a prática, pelo inimputável, de factos previstos como crime. É necessário que elementos de facto revelem a perigosidade.

Quanto a esses elementos de facto o Tribunal Colectivo tinha o poder de livre apreciação. Em resultado dessa livre apreciação chegou a esta conclusão de facto: o argüido ‘é considerado pessoa pacífica e não violenta’."

Vê-se que ambas decisões tratam a questão como divergência de fatos que embasam a conclusão a que chegou o laudo pericial, e não, como parece mais apropriado, como uma extrapolação do âmbito técnico científico do parecer.

Uma outra questão pode ser posta: dos fatos em que se fundamenta o parecer técnico pode haver discordância? Em se tratando de fatos, qual a forma de demonstrar esta discordância? No exemplo anteriormente citado, se fossem menos projéteis a hemorragia se teria verificado ou não? Se tal ou qual órgão não tivesse sido atingido, a hemorragia seria fatal ou não?

Veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-11-94, no Recurso n.º 47.275: [50]

SUMÁRIO:

I-

II-

III-

IV- Assim, concluindo-se no relatório pericial que o argüido tem uma imputabilidade diminuída por ser portador de um síndroma depressivo crônico, com impulsividade para se refugiar no uso excessivo de álcool, que potencia a sua tendência para actuar sem pensar, não pode o tribunal decidir que não existe tal imputabilidade diminuída, "por os pressupostos referidos serem comuns à generalidade dos cidadãos que, dia a dia, são julgados nos tribunais e, designadamente, os que têm hábitos alcoólicos."

O laudo pericial não acatado pelo tribunal recorrido dizia que a impulsividade do argüido para se refugiar no uso excessivo de álcool potencia a sua tendência para atuar sem pensar; o tribunal a quo considerou que o uso do álcool, neste caso, não autorizava a se falar em imputabilidade diminuída, pelos fundamentos constantes acima. Esta conclusão não foi aceita pelo órgão recursal.

Digamos que a questão se prendesse não à imputabilidade do argüido, mas ao uso de álcool: se se pudesse concluir, como o argüido bebe, sofre de distúrbio mental, e em virtude disto sua imputabilidade é diminuída. Ora, a divergência aí se prenderia ao uso da bebida. O argüido bebe ou não bebe em demasia? Como provar este fato? Através de prova testemunhal? E, neste caso, a prova testemunhal pode invalidar o laudo pericial (em que se realizaram eventuais medições do nível de álcool no sangue)?

Cremos só poder ser esta a hipótese de casos inequívocos de erro a que se refere FIGUEIREDO DIAS, em passagem citada anteriormente, porque se se tratasse de conclusão da perícia em si, isto quereria dizer ser lícito ao julgador discordar dela, sem conhecimento técnico para tanto (e sem poder realizar nova perícia sobre o mesmo objeto ou sobre os mesmos aspectos dos considerados na perícia de que discorda [51]) possibilidade, já se viu, negada pelo art. 163 do Código de Proceso penal.

Finalmente, com relação à técnica judicante no que diz respeito à valoração da prova pericial, em nome de uma sistematização da matéria pudessem possivelmente os tribunais se referir a divergência de fato e de mérito – para não dizer de direito – abarcando a primeira denominação tudo aquilo que não se referisse à conclusão técnico-científica ou artística a que chegou o perito.


VIII) CONCLUSÃO:

Todo o processo penal se desenrola com o objetivo único da decisão, do pronunciamento do estado-juiz, a pôr um fim à lide penal instaurada com o surgimento – pela infração à norma – do jus puniendi. Por isto mesmo é que toda a atividade desenvolvida pelos intervenientes no processo tem por finalidade trazer aos autos provas capazes de reconstituir historicamente o fato inquinado de criminoso, de tal maneira que seja possível criar, no espírito do julgador, uma clara certeza acerca dos acontecimentos.

Assim é que esta atividade instrutória há de ter regras rígidas de apreensão e controle das provas produzidas, no dúplice interesse da apuração dos fatos e também da garantia do direito de defesa de que goza o argüido. Esta rigidez possibilita uma garantia de que o órgão incumbido de proferir a decisão vai trabalhar a partir de premissas válidas, construindo sobre elas hipóteses o mais possível (ou tanto quanto possível) verdadeiras.

Por outro lado, acima aludiu-se, à guisa de comparação, à sistemática de produção de provas no sistema inquisitório de processo, onde, a rigor, não havia controle sobre a obtenção da prova que mais conviesse, a final, à decisão. Pode-se, então, fazer um paralelo entre sistemas de processo e sistemas de apreciação da prova:

a)no sistema inquisitório, em que, a rigor, a atividade de obtenção da prova conhecia menos limitações formais, o julgador proferia decisão tendo em conta valores pré-establecidos ao material probatório que tinha em mãos.

b)No sistema acusatório, em que a obtenção das provas segue regras rígidas para sua produção e apreensão, o julgador tem mais liberdade para valorar as provas de acordo com a sua consciência.

O acompanhar esta evolução de institutos de processo penal permite também acompanhar a evolução histórica em matéria de política criminal, porque se sabe que, em outras eras, o processo contra indivíduos acusados de subversão da ordem, seja a que título fosse, era um instrumento eficaz para sua eliminação. Hoje em dia, em que a simples persecução criminal contra um suspeito é passível de ser taxada de constrangimento, outra coisa não se pretende, ao menos oficialmente, que a apuração da verdade.

Portanto, sob este aspecto é que se há de considerar a prática da introdução, nas legislações processuais, de limitações ao livre convencimento do julgador na avaliação da prova: por um lado pode-se argumentar que estas representam resquício de uma sistemática já, por vários motivos, abandonada; por outro, não parece haver dúvida de que tal adoção se deve à necessidade de contenção do ato judicante em limites concretos, pré-estabelecidos, em nome da segurança do sistema.

Cremos que, se de antemão se sabe que o convencimento do julgador terá de respeitar a coisa julgada (em que interveio outro órgão judicante estatal), o valor probante dos documentos (em nome da presunção de veracidade e do princípio da fé pública), a confissão do argüido (em nome, até mesmo, de uma política de racionalização da administração da justiça criminal, pela agilização do julgamento dos delitos mais leves) e a prova pericial (pela presunção inequívoca de que se reveste o parecer do especialista), mais fácil se torna, pelo público, a aceitação da desincumbência da atividade de prestação jurisdicional pelos órgãos competentes do Estado.


BIBLIOGRAFIA

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SANTOS, Moacyr Amaral – Prova Judiciária no Cível e Comercial

SILVA, Germano Marques - Curso de Processo Penal- Ed. Verbo, Lisboa, 1993


NOTAS

1Curso de Processo Penal, vol. I, p.204

2 op. e loc. cit.

3 Sumários de Processo Criminal

4 Tratado da Prova em Matéria Criminal

5 De fato, em processo penal se trabalha não com conceitos, mas com fatos concretos. Trata-se, a final, da reconstituição de um fato inquinado de criminoso que é atribuído ao argüido, tanto quanto este fato se tenha passado na verdade.

6Mas a verdade cuja busca a lei processual impõe não é uma verdade absoluta, é antes condicionada pelas limitações legais aos meios de prova – e de sua obtenção - admitidos aos autos.

7 A partir daí o que acontece é que, chegando a uma conclusão, deve o julgador justificá-la devidamente, de molde a lhe conferir validade jurídica.

8 Curso de Processo Penal, vol. I, p.

9 Prova Judiciária no Cível e Comercial

10 CAVALEIRO DE FERREIRA, op. cit., p. 205.

11 Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, p.

12 No processo penal a questão do ônus da prova é resolvida, em última análise, pela aplicação do princípio indubio pro reo e por isto tem ebm menos implicações processuais.

13 Excetua-se aqui, não em termos de definição, mas de sua desnecessidade no processo, a prova dos fatos notórios (como uma calamidade pública ocorrida em tal ano).

14 Op. cit. p. 210.

15 MALATESTA, Op. Cit., p. 213.

16 Op. cit., p. 208.

17 Curso de Processo Penal, vol. II, p.

18 O que cabe às partes mas também, sob o sistema processual misto integrado pelo princípio da investigação, ao órgão julgador.

19 TORNAGHI, op. cit., p. 278.

20 Teoria General de la Prueba en Derecho Civil, p. 356.

21 Op. cit., p. 261.

22 Op. cit., p. 278.

23 Op. cit., p. 261.

24 Em tradução livre (op. cit., p. 357): "impor ao juiz um convencimento que não corresponde a sua consciência, e advirta-se, não a uma consciência que julga por impressão, mas pela razão vista e por motivos lógicos, é coisa estranha e que só deve consentir-se em casos excepcionais, por gravíssimos motivos de consciência, para não reduzi-lo à condição de autômato nem fazer normal o fato de que o Magistrado esteja convencido como juiz e não esteja como homem, ou esteja como homem e não esteja como juiz."

25 Il Principio del Libero Convencimento del Giudice, Milão, 1974.

26 Valoración de la Prueba, Motivación y Contról en el Processo Penal, p. 84.

27 RDES 14, p. 29.

28 Op. cit., p. 109.

29 Direito Processual Penal, vol. I, pp. 202/203

30 op. cit., pp. 211/212.

31 FIGUEIREDO DIAS, op. cit., p. 202.

32 Op. cit., p. 355.

33 Op. cit., p. 271/274.

34 Sobre o tema, especialmente no processo penal português, veja-se COSTA ANDRADE, "Sobre as Proibições de Prova em Processo Penasl".

35 Op. cit., pp. 204/205.

36 Neste sentido, de bipartição do ato decisório, veja-se MALATESTA (A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pp. 45 e ss.); PERELMAN (Ética e Direito, pp. 559 e ss.); SALAVERRIA (Valoración de la Prueba, Motivación e Contról en Proceso Penal, pp. 144 e ss.)

37 op. cit., p. 172.

38 Psicologia Judiciária, vol IV. Pp. 126 e ss.

39 Pp. 21 e ss.

40 São as seguintes as palavras de MALATESTA: "Que as disposições do nosso espírito, pois, possam influir sobre o convencimento, conduzindo a inteligência até o erro, surgirá claro quando se pensa que é a vontade que determina a atenção, fixação maior do pensamento numa consideração mis que em outra; é a vontade que, excluindo sem exame um argumento, pode firmar o pensamento sobre um argumento contrário; quando se pense, finalmente, que a vontade é exposta aos ventos de nossas paixões. A força do nosso temperamento, dos nosso hábitos, das nossas inclinações e prevenções, pode facilmente arrastar-nos a falsos juízos (op. cit., pág. 53).

41 Neste sentido PERELMANN (op. cit. Pp 559 e ss.); SALAVERRIA (op. citi., pp. 147 e ss).

42 FIGUEIREDO DIAS, op. cit., pp. 202/203.

43 BMJ 410/591.

44 Dispõe o art. 197 do CPP brasileiro: "O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com a demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe qualquer compatibilidade ou concordância".

45 Trata-se de matéria suscetível de gerar muita controvérsia. A respeito da adoção da suspensão provisória, veja-se Acórdão do TC nº 07/87, in DR, I série, n.º 33, de 09/02/97.

46 Op. cit., p. 209; no mesmo sentido seus comentários ao Acórdão do STJ de 01/07/70, in RDES XVII, 1970.

47 "Acórdãos do STJ", II-189/190.

48 "Acórdãos do STJ", II-214/215.

49 "Acórdãos do STJ", III-211/212.

50 "Acórdãos do STJ", III-250/254.

51 SIMAS SANTOS e Outros, "Código de Processo Penal Anotado", p. 628.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Getúlio Marcos Pereira. Valoração da prova e livre convicção do juiz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 401, 12 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5583. Acesso em: 18 abr. 2024.