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A constitucionalidade do tabelamento de preços de medicamentos no Direito brasileiro

A constitucionalidade do tabelamento de preços de medicamentos no Direito brasileiro

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A monografia buscará demonstrar se os princípios e normas constitucionais permitem o tabelamento do preço de medicamentos e se é possível a ingerência estatal na atividade privada de laboratórios farmacêuticos.

"Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar..."

Luis Fernando Veríssimo

SUMÁRIO:LISTA DE SIGLAS; RESUMO ; 1 INTRODUÇÃO; 2.HISTÓRICO; 3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E SISTEMAS ECONÔMICOS, 3.1Princípios constitucionais atinentes à ordem econômica, 3.1.1 Livre Iniciativa, 3.1.2 Livre Concorrência, 3.2 Sistemas Econômicos; 4 FIXAÇÃO DE PREÇOS. , 4.1 Fixação de preços na exploração de atividade econômica, 4.2 Tabelamento de preços de medicamentos pelo governo brasileiro; 5 DISCUSSÃO ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA, 5.1 Inconstitucionalidade do Tabelamento de Preços, 5.2 Constitucionalidade do Tabelamento de Preços; 6 CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS


LISTA DE SIGLAS

ADIn- Ação Direta de Inconstitucionalidade

ANVISA- Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CF/88- Constituição Federal Brasileira de 1988

CMED- Câmara Reguladora do Mercado de Medicamentos

COFAP- Comissão Federal de Abastecimento e Preços

IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPCA- Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo

MP- Medida Provisória

SUNAB- Superintendência Nacional do Abastecimento

SUS - Sistema Único de Saúde


RESUMO

O presente trabalho monográfico versa acerca da constitucionalidade do tabelamento de preços de medicamentos no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, a fim de proceder à completa e satisfatória análise do tema, buscou-se apurar o histórico nacional da intervenção estatal no domínio econômico, já que a referida fixação constitui-se em uma modalidade desta, bem como do seu tratamento no Direito pátrio. Ademais, analisou-se a estruturação principiológica atinente à ordem econômica na Constituição Federal de 1988, ora em vigência, enfatizando-se a relevância dos princípios dentro de um sistema jurídico, com destaque para a liberdade de iniciativa e para a livre concorrência, haja vista a imprescindibilidade à sua atenção no trato do assunto. Nesse aspecto, constatou-se que estas se vinculam, não devendo ser consideradas isoladamente, e sim de acordo com o seu valor social, de forma que o seu exercício garanta o respeito à dignidade da pessoa humana, bem assim promova justiça social, elementos estes devidamente relacionados ao foco da pesquisa. Delinearam-se os principais traços dos tipos de sistemas econômicos que se encontram no mundo, acentuando o característico do Estado brasileiro (misto), com vistas a melhor compreender as suas especialidades e sua compatibilidade com a implementação, pelo Poder Público, de um tabelamento de preços de medicamentos. Elencaram-se, ainda, as conceituações de preço, intervenção, fiscalização, dentre outros, visto serem fundamentais no estudo do assunto. Demais, teceram-se comentários a respeito das formas de fixação de preços no país (pelo Estado ou pelos particulares), com destaque para os de remédios, sublinhando-se o caráter excepcional dessa medida. Referiram-se as bases constitucionais para ingerência estatal na seara econômica, bem assim os do tabelamento, tendo sido reproduzidas as opiniões dos mais diversos juristas a respeito da inconstitucionalidade e da constitucionalidade deste instrumento. Para tanto, foram utilizados estudos na Doutrina, na Jurisprudência e em casos práticos de tabelamento de preço de remédios. Ao final do trabalho, concluiu-se pela constitucionalidade da medida, objetivo este estipulado no início da pesquisa.

Palavras-chave e expressões: tabelamento – medicamentos – Constituição Federal de 1988 – justiça social – dignidade da pessoa humana


1 INTRODUÇÃO

As atividades de cunho econômico nascem e se desenvolvem por conta de suas próprias leis, em decorrência da livre empresa, da liberdade de concorrência, bem como do livre jogo dos mercados.

Porém, essa ordenação pode ser abalada ou, em casos mais severos, extinta, em função de anormalidades que caracterizam a concentração do poderio econômico nas mãos de um, ou de poucos. Isso acaba com toda e qualquer iniciativa, constrange a concorrência, promove a dominação do mercado e, conseqüentemente, desestimula a produção, a pesquisa e o aperfeiçoamento.

Face à essas deformações, o Estado se vê obrigado a intervir no domínio econômico para proteger os valores da livre empresa, da livre concorrência e do livre embate dos mercados, assim como para manter a compatibilização da liberdade de iniciativa e do lucro, com o interesse social, visando, primordialmente, promover justiça social e garantir o respeito à dignidade da pessoa humana.

Assim, para que o Estado possa atingir os citados objetivos, resta necessário que se utilize dos meios mais apropriados e pertinentes ao caso concreto, dentre os quais se inclui o tabelamento de preços.

Nesse sentido, atualmente, constata-se que é prática comum aos poderes instituídos e competentes, no Brasil, a fixação de preços de medicamentos, entre os vários produtos que sofrem esse tipo de limitação. Isso pode ser constatado pela leitura da Medida Provisória nº 123, recentemente publicada (26.06.2003), a qual versa acerca das regras atinentes ao setor farmacêutico, com o intuito de proporcionar o acesso a remédios para toda a população, por intermédio de incentivos à oferta desse bem e à competição nessa seara. Essa legislação se aplica a todas as empresas produtoras de medicamentos, tenham elas caráter público ou privado.

Porém, essa espécie de procedimento gera discussões de cunho jurídico, no que tange à possibilidade do Estado interferir na esfera particular dos laboratórios farmacêuticos, suprimindo-lhes o direito ao estabelecimento do preço que parece mais adequado a estes, fazendo-lhes, assim, as vezes. Desta forma, questiona-se se há respaldo na ordem econômica constitucional pátria autorizando o Poder Público a se valer dessa medida, o que, neste caso, caracterizaria o mero cumprimento de um dever estatal, ou se está diante da prática de atos arbitrários e ilegítimos por parte do Estado, bem como inconstitucionais perante o ordenamento jurídico brasileiro. E é justamente sobre isso que a presente monografia irá versar, buscando demonstrar se os princípios e normas constantes na CF/88, permitem o tabelamento do preço de medicamentos e, conseqüentemente, de outras mercadorias, pelo Estado e se é, ademais, possível a ingerência estatal na atividade privada de laboratórios farmacêuticos, bem como de outros setores da economia.


2 HISTÓRICO

Para que se possa proceder à satisfatória e adequada análise da viabilidade ou não do Estado brasileiro proceder ao tabelamento de preço de medicamentos e, via de conseqüência, de outros bens de consumo popular, é interessante promover, primeiramente, o estudo a respeito do histórico do tratamento da intervenção estatal no domínio econômico no Direito pátrio, já que o referido tabelamento constitui-se em uma modalidade desta, como se verá ao longo do trabalho, bem assim o trato da figura específica do tabelamento, a fim de se perceberem as alterações ocorridas ao longo das décadas relativamente ao acolhimento dessas figuras pelo sistema jurídico nacional, aliada à elevação de sua importância neste e na ordem econômica.

Na história do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição que se caracterizou como pioneira a estabelecer princípios e normas relativos ao sistema econômico foi a de 1934, grandemente influenciada pela Constituição alemã de Weimar. Contudo, à época, verificava-se uma atuação estatal demasiadamente fraca no domínio econômico, a qual foi se fortalecendo aos poucos, grandemente influenciada pelas fortes crises econômicas mundiais, que acabavam por evidenciar, claramente, a crescente necessidade de uma atuação do Estado mais incisiva e ampla.

Sucessivamente, na Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, buscou-se o desenvolvimento de uma economia corporativista, em que a economia de produção deveria ser sistematizada de modo a serem criadas corporações assistidas e protegidas pelo Estado. Ademais, eram consideradas órgãos estatais, exercendo funções delegadas pelo Poder Público.

A CF/88, ora vigente, estabeleceu as diretrizes do sistema econômico brasileiro no rol dos arts. 170 a 192, divididos em quatro capítulos, quais sejam: o primeiro trata dos princípios da atividade econômica – alguns dos quais serão objeto de análise no presente trabalho visto possuírem ligação direta com o tema escolhido, já que o tabelamento de preço de remédios, como dito inicialmente, representa uma forma de intervenção do Estado na economia e, destarte, resta imprescindível que, ao proceder a essa medida, o Poder Público faça-o com atenção ao que postulam os preceitos acolhidos pelo ordenamento jurídico pátrio. O segundo sobre política urbana; um terceiro que versa acerca de política agrária e fundiária, assim como reforma agrária e, finalmente, um quarto capítulo dedicado ao tratamento do sistema financeiro nacional.

Tratando-se, em especial, do tabelamento de preços, criou-se, em 1942, a Coordenação de Mobilização Econômica, em meio ao estado de guerra. Aqui, é importante destacar a diferenciação conceitual a que costuma proceder grande parcela da Doutrina e da Jurisprudência referentemente às definições de "tabelamento", "congelamento" e "controle", haja vista que todos concernem à temática de preços, todavia, possuindo características próprias. Em linhas gerais, afirma-se que o tabelamento consiste na estipulação de preços máximos, ao passo em que o controle prima pela harmonização entre a evolução nos preços e a alteração nos custos, e o congelamento, por seu turno, busca a mantença dos preços que vinham sendo cobrados. Destaque-se que maiores comentários quanto a essas distinções serão realizados adiante, no capítulo atinente à fixação de preços pelo Estado quando da exploração de atividade econômica (vide ítem 4.1).

Posteriormente, expediu-se, em 28.12.1942, o Decreto-Lei 4.750, por meio do qual todas as utilidades e recursos existentes no país foram movimentados a serviço do Estado, independentemente de sua origem, caráter, propriedade ou vínculo de subordinação, sendo que incumbia ao Presidente da República designar o Coordenador da Mobilização Econômica, o qual se submetia aos seus comandos. A este, cabiam as prerrogativas de coordenação da mobilização, imprescindível para, dentre outros fins, fixar os preços máximos, mínimos e básicos, ou os seus limites, pelos quais os produtos deveriam ser expostos à venda ou os serviços deveriam ser cobrados. Previa a alienação ou o fornecimento em bases diversas dos preços fixados, dispunha a respeito das condições de transferência dos bens, fixava ou estabelecia os limites quanto ao montante de qualquer objeto a ser vendido, fornecido ou distribuído ao público consumidor, assim como dos serviços a serem prestados. Ademais, poderia requisitar mercadorias e serviços, distribuindo as primeiras pelo custo de consumo ou mantendo-as consigo para constituição de estoques, bem assim tendo competência para efetuar a aquisição, empréstimo ou locação de materiais ou equipamentos indispensáveis à instalação de novas fábricas ou a manutenção e/ou expansão das já existentes.

As funções do Coordenador da Mobilização Econômica espraiavam-se em vários outros campos, porém, poderiam ser justificados, tão somente, face à circunstância de guerra e ao Decreto-Lei 10.358 (31.08.1942), o qual determinara a supressão da vigência de uma série de disposições constitucionais.

Uma vez terminado o estado de guerra e, via de conseqüência, as atividades exercidas pela Coordenação de Mobilização Econômica, bem como tendo em vista a exigência de continuidade do controle de preços, o governo acabou por baixar o Decreto-Lei 9.125 (04.04.46), o qual versava, especificamente, sobre o controle de preços, criando os órgãos encarregados de evitar o encarecimento da vida. Também criou a Comissão Central de Preços, subordinada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, o qual era um órgão colegiado que buscava, dentre outros fins, impedir o aumento do custo de vida no país e providenciar a baixa nos preços.

Ulteriormente, a Constituição Federal de 1946, segundo dispõe Eduardo Espíndola, na obra de Alberto Venâncio Filho, teve a atenção de primar pelo interesse público sobre o particular, permitido, sempre que necessário, que o Estado interferisse na seara econômica: "(...) Fê-lo, todavia, com circunspeção, resguardando os justos interesses privados por ela garantidos, e de maneira a evitar que se adotasse uma providência de caráter geral que, em vez de acautelar a ordem econômica e social, tivesse como resultado prático subvertê-la, instigando a fraude e dando ensejo ao desenvolvimento do denominado câmbio negro". (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 229/230).

A exigência de um controle mais efetivo por parte do Estado foi recepcionada no Direito Positivo, por intermédio da Lei 1.522 (26.12.1951), a qual permitiu que o Poder Público interviesse na esfera econômica com o fito de garantir a livre repartição das mercadorias indispensáveis ao uso popular. Seu art. 1º licenciava o Poder Executivo, na forma do art. 146 da Constituição, a interferir no domínio econômico para promover o referido ato, sempre que houvesse carência de tais produtos, assim como para assegurar o suprimento das cousas imprescindíveis às atividades agropastoris e industriais no país, sendo que o inciso segundo previa que a ingerência se daria valendo-se da fixação de preços.

A fim de executar as disposições da lei, previu-se nas suas disposições a constituição da Comissão Federal de Abastecimento e Preços (COFAP), vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, formada por um presidente e treze membros, representantes do comércio, indústria, lavoura, pecuária, imprensa, Forças Armadas, cooperativas de produtores e de consumo, economistas, dos Ministérios da Fazenda, Agricultura, Viação e Obras Públicas, do Banco do Brasil e da Prefeitura do Distrito Federal.

Havia também previsão para instalação, na função de órgãos auxiliares da COFAP, de Comissões de Abastecimento e Preços nas capitais dos Estados e dos extintos Territórios (COAP), e nos Municípios (COMAP).

Relativamente aos preços dos gêneros e bens, cuja produção e posterior venda fossem reguladas por autarquias, órgãos federais ou estaduais, só após autorização da COFAP poderiam vigorar os aumentos nos preços, ao passo em que as elevações nas tarifas dos serviços de utilidade pública exploradas por concessão, autorização ou permissão, pela União, Estado, Município ou entidade autárquica, restariam condicionadas à aprovação do mencionado órgão, quando o serviço fosse federal ou interestadual; da COAP, quando fosse estadual ou intermunicipal; e da COMAP quando fosse municipal ou local.

A legislação atinente à intervenção estatal no domínio econômico, garantidora da livre distribuição de bens e serviços necessários ao consumo da população, sofreu alterações pela Lei Delegada nº 04 (26.09.1962). Além dela, o Decreto-Lei nº 09 (27.08.1962), o qual delegou ao Poder Executivo poderes para prorrogar e modificar as leis em vigor, previa que a legislação delegada não poderia ampliar os poderes intervencionistas, tampouco extrapolar as disposições dos projetos 890 (1959), 3.652 (1961), 3.916 e 4.186 (1962), que se encontravam em tramitação na Câmara dos Deputados. As inovações trazidas pela Lei nº 04, segundo dispõe Alberto Venâncio Filho (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 238), manteve-se nos termos da Lei nº 1.522, com alguns pequenos acréscimos, especialmente no que concerne à fixação de preços. Urge destacar que aquela lei também suprimiu a cláusula modal desta, que vinculava a ingerência estatal à falta de produtos e/ou serviços. Referentemente ao tabelamento de preços, os órgãos executórios da lei receberam autorização para tabelar os preços máximos de mercadorias e serviços essenciais em relação aos revendedores, bem assim estabelecer condições de venda de objetos ou serviços, procurando impedir lucros em excesso, inclusive diversões públicas populares.

No que respeita ao funcionamento do processo de intervenção, conforme dispunha a Lei Delegada nº 04, competia à União deliberar acerca das condições, bem como oportunidades, quanto à utilização dos poderes outorgados pela lei, sendo, os Estados, responsáveis pela executoriedade das regras baixadas, juntamente com a fiscalização de seu fiel cumprimento, sem prejuízo das iguais prerrogativas fiscalizadoras concernentes à União.

Promulgou-se, ademais, a Lei Delegada nº 05 (26.09.1962), a qual, por sua vez, instituiu a Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB), competente para, além de aplicar a legislação atinente à intervenção no domínio econômico, a fim de garantir a livre repartição de produtos e serviços essenciais, exercer as atribuições que ora se arrolam: elaborar e dar impulso à execução do plano nacional de abastecimento dos produtos imprescindíveis à população, o qual serviria, também, de instrumento à política de crédito e fomento produtivo; desenvolver programas de expansão e operação da rede nacional de armazéns, silos e armazéns-frigoríficos; fixar quotas de exportação e importação de bens necessários ao consumo popular; favorecer a melhoria dos níveis consumistas e dos padrões de nutrição do povo; projetar e executar o plano nacional e os de assistência alimentar; e fiscalizar a implementação das medidas constantes nos planos e programas que, por ventura, viesse a elaborar. Importa destacar que o Decreto 52.151 (25.06.1963) aprovou as regras para elaboração de parecerias entre a União e os Estados no que respeita à aplicação da legislação intervencionista na seara econômica.

A partir de 1965, tentou-se criar um sistema de manutenção da estabilidade de preços, mediante concessão de estímulos fiscais e creditícios às empresas industriais e comerciais que aderissem aos compromissos de absorverem, dentro dos parâmetros pré-fixados, eventuais aumentos de custos, por meio de elevação na produtividade, diminuição na margem de lucros e uso das benesses ofertadas pelos referidos estímulos. Essa questão foi regulada, inicialmente, pela Portaria Interministerial nº 71 (23.02.1965), tendo advindo, ulteriormente, a Lei nº 4.663 (03.06.1965), a qual instituiu estímulos ao aumento na produção e à contenção de preços, lei, esta, que foi regulamentada pelo Decreto nº 56.967 (11.10.1965).

Relativamente ao trato do tabelamento de preço de remédios, foco da presente monografia, fora criada a Câmara de Medicamentos, vinculada à Agência Nacional de Vigliância Sanitária (ANVISA), pela Lei Ordinária nº 10.213 (27.03.2001). Era composta pelo Ministro da Saúde, o qual, destaque-se, presidia-a, pelo Ministro Chefe da Casa Civil, pelo Ministro da Justiça e pelo Ministro da Fazenda, cabendo à entidade dispor acerca do preço daqueles produtos.

Posteriormente, publicou-se a Medida Provisória nº 123 (26.06.2003), a qual, além de respeitar sobre a regulamentação do setor farmacêutico, extinguiu a mencionada instituição, cujas competências e atribuições restaram absorvidas pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão novo criado para deliberar sobre a fixação e ajuste de preços de remédios, dentre outras finalidades. Sua instituição, atribuições e funcionamento são regulados pelo Decreto nº 4.766 (26.06.2003). Contudo, este documento legislativo, suas disposições, assim como as prerrogativas do citado ente, serão detalhadamente analisadas ao longo da pesquisa, como se verá adiante.

Proceder-se-á, no capítulo seguinte, à apreciação dos princípios consagrados pelo Direito brasileiro relativos à ordem econômica, visto que fundamental é o seu respeito em qualquer providência encetada pelo Estado quando da interferência nos esteios da economia, o que, certamente, aplica-se ao tabelamento de preço de medicamentos, de forma a manter a harmonia do ordenamento jurídico e econômico nacional.


3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E SISTEMAS ECONÔMICOS

3.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ATINENTES À ATIVIDADE ECONÔMICA

Fundamental é, ao se iniciar o estudo jurídico da possibilidade do Estado tabelar ou não o preço de medicamentos e, assim, de outras mercadorias de uso do povo, a análise da estrutura axiológica presente no ordenamento jurídico brasileiro e, em especial, na CF/88, já que os princípios constituem o alicerce do Direito, seja para criação das normas, sua interpretação ou, em última escala, implementação. São, desse modo, o primeiro fator de orientação a ser seguido em qualquer medida encetada pelo Estado, para que se possa garantir a harmonia de todo o sistema. De forma contrária não poderia ser quando da intervenção no domínio econômico e do tabelamento de preços.

Tratando da existência e importância dos princípios dentro de um ordenamento jurídico, Eros Roberto Grau (GRAU, 2002, p. 81), afirma que, mesmo que muitos não se encontrem expressos em documentos legislativos e até mesmo na própria CF/88, não há como negar a sua vivência na referida estrutura, bem assim sua relevância no processo de aplicação do Direito. Isso porque o todo normativo não se compõe só por regras, mas também por princípios jurídicos.

Jerzy Wróblewski, citado por Eros Roberto Grau, tece uma conceituação de "princípio", ressaltando a importância deste dentro de um arcabouço normativo: "(...) como regras, palavras (noms) ou construções que servem de base ao direito como fontes de sua criação, aplicação ou interpretação." (GRAU, 2002, p. 84).

Urge salientar as ponderações de outros autores, mencionados por aquele, com o objetivo de deixar clara a imprescindibilidade de respeito aos princípios em qualquer medida executada pelo Estado, o que inclui a intervenção na economia mediante tabelamento de preços, para que não se constate desvirtuamento dos fitos almejados pela CF/88:

A respeito deles, observa Celso Antonio Bandeira de Mello (...): "3. Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. (GRAU, 2002, p. 86/87).

O autor ainda enfatiza: "Afirma Geraldo Ataliba (...): ‘Mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionada pelos princípios. Eles se harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna ao sistema’." (GRAU, 2002, p. 87).

A importância dos princípios em um sistema jurídico encontra fulcro no fato que o Direito não é um simples amontoado de normas. É, acima de tudo, um sistema e, pois, dotado de unidade e coerência, que se dá pela existência dos referidos preceitos. Dessa maneira, é que a interpretação das disposições constitucionais deve ser feita em concordância com a força existente em cada um dos princípios, o que, indiscutivelmente, deve ocorrer ao se analisar as regras relativas à ingerência do Estado na economia, cuja uma das manifestações é o tabelamento de preço de medicamentos. Relativamente a isso, Jorge Miranda, lembrado na obra de Eros Roberto Grau, assevera:

Jorge Miranda (...): "A acção imediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão a coerência geral do sistema. E, assim, o sentido exacto dos preceitos constitucionais tem de ser encontrado na conjugação com os princípios e a integração há de ser feita de tal sorte que se tornem explícitas ou explicáveis as normas que o legislador constituinte não quis ou não pôde exprimir cabalmente". A dominação da interpretação jurídica (interpretação em sentido estrito) pelos princípios é marca que informa, de modo indelével, a distinção que a aparta da compreensão (...) (GRAU, 2002, p. 200).

Quanto à relevância dos princípios na sistematização das normas mestras de condução dos atos humanos em uma coletividade, destaca-se o comentário do professor Celso Ribeiro Bastos: "A doutrina em geral tem reconhecido esse papel saliente e preponderante dos princípios na ordem jurídica, vislumbrando neles mais do que meras normas, justamente por se irradiarem sobre o todo normativo, ao contrário do que ocorre com os meros preceitos ou regras, que se exaurem no comando que expedem" (BASTOS, 1999, p. 452).

É imprescindível, ao se analisar a constitucionalidade ou não do tabelamento de preços de remédios pelo Estado, que se proceda à prévia análise do conjunto principiológico constante na CF/88, a fim de se verificar quais são as diretrizes por ela estabelecidas, na medida em que os citados preceitos se caracterizam como tal, de forma a concluir se a referida medida intervencionista está em conformidade com os dispositivos constitucionais, bem como objetivos.

A Constituição Federal brasileira promulgada em 05.10.1988, ora vigente, sustenta o ordenamento econômico na livre iniciativa, bem como na propriedade privada e na livre concorrência, dentre outros princípios fundamentais, segundo redação de seu art. 170 caput e incisos, o qual se reproduz, não sendo o único a elencá-los, como se verá adiante:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.

Reproduz-se, ademais, a redação dos arts. 1º e 3º, com seus respectivos incisos:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

No que respeita à ordenação econômica constitucional, com a qual, destaque-se, relaciona-se, diretamente, a ingerência estatal por meio do

tabelamento de preços de medicamentos, pode-se destacar os seguintes princípios:

a) dignidade da pessoa humana: considerada como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), bem como um dos fitos a serem alcançados pelo ordenamento econômico (art. 170 caput);

b) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa: também eleitos como alicerces da República Brasileira (art. 1º, IV) e da ordenação econômica (art. 170 caput);

c) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária: sendo um objetivo basilar da República Federativa (art. 3º, I);

d) garantir o desenvolvimento nacional: também colocado no status de finalidade da presente Federação (art. 3º, II);

e) erradicação da pobreza e da marginalização, aliada à redução das desigualdades sociais e regionais: outro fim da República (art. 3º, III), sendo este, ainda, um princípio da disciplina econômica (art. 170, VII);

f) liberdade de associação profissional ou sindical: art. 8º;

g) garantia do direito de greve: art. 9º;

h) ditames da justiça social: aos quais se submete a ordem econômica (art. 170 caput);

i) soberania nacional, propriedade e função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte: todos princípios enunciados no art. 170;

j) integração do mercado interno ao patrimônio nacional: em conformidade com a disposição do art. 219.

Alguns constituem-se mais como objetivos, propriamente ditos, como o da "redução das desigualdades regionais e pessoais" e a "busca do pleno emprego". Não obstante o retro afirmado, todos, indubitavelmente, podem ser aceitos como princípios ante o fato de serem preceitos condicionantes da atividade econômica, em todas as suas modalidades, bem como de qualquer ato que lhe diga respeito (à atividade econômica), como é o caso do tabelamento de preço de medicamentos. A CF/88 dispõe, ainda, que a ordem econômica funda-se na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Desta feita, consagra uma economia de mercado com uma ordem econômica que prioriza os valores do trabalho humano sobre todos os demais. Essa importância objetiva delinear o caminho a ser seguido pelo Estado quando promover a eventuais intervenções na economia (tabelando preços, por exemplo), para que se façam valer os valores essenciais do trabalho, os quais, conjuntamente com a iniciativa privada, representam não somente o fundamento da ordem econômica, mas da própria República Federativa Brasileira (art. 1º, IV).

Além disso, é categórica ao submeter a ordem econômica aos ditames da mencionada justiça, a fim de se assegurar existência digna a todos, indistintamente, atribuindo-lhe conteúdo preciso. Nesse viés, é que se vislumbram alguns princípios vinculados àquela ordem, tais como: defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e pessoais, busca do pleno emprego, dentre outros, já expostos.

Dispondo sobre os princípios mencionados e, em especial os insculpidos no art. 170 da CF/88, e sua relação com a ingerência estatal na economia, o Ministro Moreira Alves assim se posicionou: "As matérias arroladas nos vários incisos do art. 170, como observou Alberto Venâncio Filho, a respeito de preceito similar na Constituição de 1946, constitui, na verdade, o roteiro que deve orientar toda a legislação do Estado no domínio econômico (...)" (ALVES, 1993, p. 42) – o que abrange, conseqüentemente, a figura do tabelamento de preço de medicamentos - E segue asseverando: "(...) sob o ângulo de atividade econômica, a ela se aplicam os princípios gerais da atividade econômica que se encontram nos artigos 170 a 180 que integram o capítulo I do Título VII concernente à Ordem Econômica e Financeira, salvo aqueles que são incompatíveis com os decorrentes da ordem social (...)" (ALVES, 1993, p. 48).

Nesse contexto, insere-se o comentário de Nelson Schiesari:

Como se vê, cuida-se de princípios programáticos, aos quais se deve amoldar toda a legislação correspondente. de seu exame combinado há de concluir-se que as metas na ordem econômico-social do Estado brasileiro, e proclamadas na Magna Carta, são o desenvolvimento nacional e a justiça social, para cuja consecução os instrumentos principais são, em razoável combinação, a livre empresa de um lado e a intervenção controladora ou a gestão direta pelo Estado, de outro lado, como elementos supletivos da iniciativa privada. Vale dizer que o Estado estimulará sempre a iniciativa dos particulares no campo das atividades de produção econômica como norma geral; como exceção, porém, intervirá no processo econômico, ou para fiscalizar e controlar essa atividade, ou mesmo para substituir-se ao particular, se assim for entendido de interesse público (SCHIESARI, 1982, p. 247).

Importa acentuar as ponderações de Fábio Konder Comparato, citado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no que concerne à busca que o Estado deve empreender para que os princípios referentes à ordem econômica e social harmonizem-se de tal forma que se atinjam os fins maiores almejados pela CF/88, quais sejam, preservação da dignidade da pessoa humana e promoção de justiça social, exigência esta que não pode de forma alguma dispor o Estado quando poceder a eventuais tabelamentos de preços de medicamentos, já que, por meio deste, acaba por interferir não só na sistematização econômica, como na social:

A Constituição, com efeito, declara que a ordem econômica deve assentar-se, conjuntamente, na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano. E assinala que o objetivo global e último dessa ordenação consiste em "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170, caput). É em função desse objetivo último de realização da justiça social que devem ser compreendidos e harmonizados os demais princípios expressos no art. 170, a par da livre concorrência, a saber, especificamente, a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (PERTENCE, 1993, p. 81).

Agora, proceder-se-á à análise mais atenta e minuciosa dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, visto serem, dentre todos os até o momento elencados, os que possuem, pela sua própria essência e natureza, como se verá a seguir, maior ligação com a medida de intervenção estatal na economia representada pelo tabelamento de preço de medicamentos, sendo, assim, de maior relevância ao objeto de estudo do presente trabalho.

3.1.1 Livre Iniciativa

Um princípio a ser enfatizado no estudo da intervenção do Estado no domínio econômico manifestada pelo tabelamento de preço de remédios, haja vista sua suma importância neste contexto, é o da livre iniciativa, já anunciado anteriormente. Ele confere às pessoas a liberdade – já que é um desdobramento desta - de escolha da atividade econômica que melhor atenda aos seus anseios. Isso é garantido pelo art. 170, na medida em que assegura a liberdade de iniciativa como um dos esteios da ordem econômica, tornando possível a cada pessoa, individualmente considerada, o desenvolvimento livre do ofício escolhido. Porém, a mencionada liberdade só será legítima na exata proporção em que exercida no interesse da justiça social e, ilegítima, quando seu uso buscar, exclusivamente, puro lucro e realização pessoal do empresário. Logo, sempre que laboratórios farmacêuticos facilitam o acesso a seus produtos para o povo, está-se diante de uma situação de legitimidade, perfeitamente consagrada pelo ordenamento jurídico pátrio. Porém, quando o interesse daqueles é simplesmente a busca por lucros exagerados por parte de seus proprietários, que pode ocorrer pelo estabelecimento de valores muito altos nos preços de certos remédios, evidencia-se um procedimento revestido de caráter completamente ilegal e, ademais, contrário aos objetivos do sistema.

Uma vez que a livre iniciativa consiste em um desdobramento da liberdade, é relevante a consideração do jurista Eros Roberto Grau a respeito desta:

Considerada desde a perspectiva substancial, tanto como resistência ao poder, quanto como reivindicação por melhores condições de vida (liberdade individual e liberdade social e econômica), descrevo a liberdade como a sensibilidade e acessibilidade a alternativas de conduta e resultado. Pois não se pode entender como livre aquele que nem ao menos sabe de sua possibilidade de reivindicar alternativas de conduta e de comportamento - aí a sensibilidade; e não se pode chamar livre, também, aquele ao qual tal acesso é sonegado – aí a acessibilidade. (GRAU, 2002, p. 243).

O jurista ainda ressalta que o diferencial que se vislumbra, hodiernamente, no que tange ao trato da liberdade, é o seu substrato jurídico. Com isso, quer dizer que ela, em suas mais diversas expressões, condiciona-se ao reconhecimento pelo ordenamento jurídico e pela sistematização positivada. Dessa maneira, quem define a sua silhueta é a ordenação jurídica e, neste sentido, referentemente ao Brasil, a CF/88 eleva-a ao patamar de fundamento da República Federativa e da ordem econômica.

Há que se frisar que a Administração Pública não tem autorização para concentrar em suas mãos a titularidade de outorga a particulares do direito ao desenvolvimento de atividades com substrato econômico, tampouco a de fixar a quantidade produzida ou comercializada por empresários que, casualmente, intencionem realizar. Isso devido à redação das disposições constitucionais, no sentido de que a escolha do trabalho a ser desenvolvido, assim como o montante a ser constituído e, futuramente, posto em comércio, devem advir de resolução livre dos agentes econômicos. Destarte, em sendo interessante a determinado profissional, devidamente habilitado, desempenhar a atividade farmacêutica, seja de pesquisa, produção e/ou venda de medicamentos, o Estado não pode impedir-lhe, salvo se verificada alguma irregularidade. Também, a priori, não cabe a este definir o montante da mercadoria a ser produzida, cabendo esta decisão apenas aos laboratórios competentes. O mencionado direito é consagrado no texto da CF/88.

Ademais, conforme enfatiza o professor Eros Roberto Grau, sobre a relevância social deste princípio: "Isso significa que a livre iniciativa não é tomada, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso" (grifo nosso), (GRAU, 2002, p. 242). Isso porquanto a República Federativa do Brasil, conquanto reconheça e, mais do que isso, garanta a livre empresa, condiciona o seu exercício, assim como das atividades econômicas, ao bem-estar coletivo. Desta forma, se determinado (ou determinados) laboratório farmacêutico se vale dessa liberdade de iniciativa para buscar apenas a satisfação pessoal de seus proprietários, prevalecendo, assim, o interesse meramente particular sobre o público, não se constata o exercício desse princípio com seu valor social, de promoção do bem da coletividade. Buscando impedir essa situação é que o Estado, não raras vezes, como se têm evidenciado no histórico brasileiro, intervém na economia tabelando o preço de medicamentos produzidos por várias dessas empresas, o que será adequadamente discutido no capítulo seguinte (vide item 4.2).

Além disso, pondera, o autor acima, que a livre iniciativa é um termo com significação bastante ampla, contudo, na forma como foi inserida nas disposições constitucionais, leva à aparente e limitada significação de liberdade econômica ou de iniciativa econômica (GRAU, 2002, p. 243), todavia, face à consagração deste princípio como alicerce da Federação Brasileira e da disciplina econômica (art. 1º, IV), assevera que ela não pode ser considerada, simploriamente, com os sentidos retro ventilados, em decorrência da relevância que possui dentro da sociedade (GRAU, 2002, p. 244).

Relativamente à sua feição de liberdade de iniciativa econômica, cujo titular é a empresa, esta abrange a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e liberdade contratual, sendo prevista no art. 170 caput e parágrafo único da CF/88, como uma das escoras da sistematização econômica. Dentre os vários setores em que se pode exercer essa liberdade de empreendimento e de produção de bens, insere-se o farmacêutico e/ou de medicamentos. Sobre o princípio da livre empresa, tece comentários o professor Celso Ribeiro Bastos: "(...) É o regime, pois, da livre empresa, pelo qual a cada um é dado lançar-se na atividade empresarial por sua conta e risco. As leis que presidem a esta atividade são as de mercado." (BASTOS, 1999, p. 450). Adicione-se a Doutrina de Eros Roberto Grau:

Insisto em que a liberdade de iniciativa econômica não se identifica apenas com a liberdade de empresa. Pois é certo que ela abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas, e – como averba Antonio Souza Franco (...) – "as empresas são apenas as formas de organização com característica substancial e formal (jurídica) de índole capitalista". Assim, entre as formas de iniciativa econômica encontramos, além da iniciativa privada, a iniciativa cooperativa (art. 5º, XVIII e, também, art. 174, §§ 3º e 4º), a iniciativa autogestionária e a iniciativa pública (arts. 173, 177 e 192, II). Quanto à iniciativa pública, observa Antonio Souza Franco, reportando-se ao art. 61 da Constituição de Portugal, para dizer que ele "não fala em iniciativa pública, e com razão: pois a iniciativa do Estado e de entidades públicas não poderia caber em nenhuma forma de direitos do homem ou direitos fundamentais" (GRAU, 2002, p. 245).

Dois aspectos devem ser neste passo considerados. O primeiro respeita ao fato de que a referência, sempre reiterada, à liberdade de iniciativa econômica como direito fundamental apenas se justifica quando da expressão – "direito fundamental" – lançamos mão para mencioná-la como direito constitucionalmente assegurado. O texto constitucional não a consagra como tal, isto é, como direito fundamental. Ademais, a liberdade de iniciativa econômica é liberdade mundana, positivada pela ordem jurídica. O segundo, à circunstância de que não há limitação ao direito de liberdade econômica (liberdade de iniciativa econômica), mas, tão somente, à liberdade econômica. Isso porque o regime de liberdade de iniciativa econômica é aquele definido pela ordem jurídica. Vale dizer: o direito de liberdade econômica só tem existência no contexto da ordem jurídica, tal como o definiu a ordem jurídica. Por certo que, na comparação entre ordens jurídicas distintas, poder-se-á afirmar que nesta, em relação àquela, a liberdade de iniciativa econômica é mais - ou menos – dilatada, em decorrência de ser menos ou mais limitada. Não, porém, que o direito de liberdade econômica aqui ou ali seja limitado, neste ou naquele grau. O direito de liberdade econômica é direito integral nos quadrantes da ordem jurídica positiva que o contempla (GRAU, 2002, p. 246/247).

E, destaca que, acima de tudo, a liberdade de iniciativa econômica representa a garantia da legalidade, compreendida como a não submissão a qualquer restrição oriunda do Estado, a não ser que se tenha desenrolado o devido procedimento legislativo, ou seja, em virtude de lei. Em outras palavras: se não houver proibição legal quanto ao exercício do ofício escolhido, o Estado não pode arbitrária e injustificadamente, impedi-lo. No Brasil, em princípio, não há qualquer vedação de medicamentos.

Sem demora, ressalta-se que, conforme anteriormente exposto, a livre concorrência possui outros sentidos, como a manifestação do trabalho humano, decorrente da valorização do laboro livre. Em conseqüência disso, é que a CF/88 elege o valor social da livre iniciativa como uma das bases da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV), e não o seu cunho meramente individualista, visto que não é isto que ela busca com a consagração do referido princípio, do contrário, repudia qualquer ato que afronte ou despreze o interesse público, a fim de privilegiar o privado. E, demais, coloca-o ao lado do trabalho humano (art. 170 caput), sublinhando a importância conjunta de ambos, para que este seja valorizado. Desse modo, é que a estipulação de preços exorbitantes de medicamentos por laboratórios vai de encontro a este objetivo constitucional, uma vez que tão somente quem os dirige é que se beneficia e não a população como um todo. Do oposto, esta acaba por ter o acesso a esse bem imprescindível ao bem-estar e à vida saudável dificultado, quando não impedido, na hipótese do valor do remédio ser incompatível com o seu rendimento salarial. É esse desvio de finalidade que o Estado procura consertar com o tabelamento de preços desse produto (vide item 4.1). Nesse viés, insere-se o ensino de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, lembrado por Eros Roberto Grau em seu livro:

A propósito, as ponderações de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (...): "Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se constrói, ao mesmo tempo sua conditio per quam e conditio sine qua non, os fatores sem os quais a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável. Particularmente a afirmação da livre iniciativa, que mais de perto nos interessa neste passo, ao ser estabelecida como fundamento, aponta para uma ordem econômica reconhecida então como contingente. Afirmar a livre iniciativa como base é reconhecer na liberdade um dos fatores estruturais da ordem, é afirmar a autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando a sua intrínseca contingência e fragilidade; é preferir, assim, uma ordem aberta ao fracasso a uma ‘estabilidade’ supostamente certa e eficiente. Afirma-se, pois, que a estrutura da ordem está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e não na atividade do Estado. Isso não significa, porém, uma ordem do ‘laissez faire’ (não-interferência do governo na vida econômica), posto que a livre iniciativa se conjuga com a valorização do trabalho humano. Mas, a liberdade, como fundamento, pertence a ambos. Na iniciativa, em termos de liberdade negativa, da ausência de impedimentos e da expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade positiva, de participação sem alienações na construção da riqueza econômica. Não há, pois, propriamente, um sentido absoluto e ilimitado na livre iniciativa, que por isso não a exclui a atividade normativa e reguladora do Estado. Mas há ilimitação no sentido de principiar a atividade econômica, de espontaneidade humana na produção de algo novo, de começar algo que não estava antes. Esta espontaneidade, base da produção da riqueza, é o fator estrutural que não pode ser negado pelo Estado. Se, ao fazê-lo, o Estado a bloqueia e impede, não está intervindo, no sentido de normar e regular, mas está dirigindo e, com isso, substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado" (GRAU, 2002, p. 248/249).

Ainda, dispondo sobre o caráter social da livre iniciativa, assim como acerca de sua relevância, está o Ministro Moreira Alves:

Embora a atual Constituição tenha, em face da Constituição de 1967 e da emenda Constitucional nº 1/69, dado maior ênfase à livre iniciativa, uma vez que, ao invés de considerá-la como estas (arts. 157, I, e 160, I, respectivamente) um dos princípios gerais da ordem econômica, passou a tê-la como um dos fundamentos dessa mesma ordem econômica, e colocou expressamente entre aqueles princípios o da livre concorrência que a ela está estreitamente ligado, não é menos certo que tenha dado maior ênfase às suas limitações em favor da justiça social, tanto assim que, no artigo 1º, ao declarar que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, coloca entre os fundamentos deste, no inciso IV, não a livre iniciativa da economia liberal clássica, mas os valores sociais da livre iniciativa (...) (ALVES, 1993, p. 51).

Corroborando a opinião dos juristas acima elencados, está o doutrinador Hely Lopes Meirelles, acentuando o caráter social do qual deve se revestir a livre iniciativa, no exercício de qualquer ofício de cunho econômico, dentre o qual se inclui a produção e oferta de medicamentos:

No domínio econômico – conjunto de bens e riquezas a serviço de atividades lucrativas - a Constituição assegura a liberdade de iniciativa, mas, no interesse do desenvolvimento nacional e da justiça social, impõe a valorização do trabalho, a harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção e a expansão das oportunidades de emprego produtivo (art. 170), admitindo que a União intervenha nesse domínio para reprimir o abuso do poder econômico (MEIRELLES, 2002, p. 509).

Não há como se admitir, hoje, a supressão da livre iniciativa na seara econômica, pois ela é imprescindível ao ser humano para que este possa se expressar e ter sua dignidade respeitada, já que cabe somente a ele traçar os caminhos de sua vida e de seu destino. Esse princípio viabiliza que cada qual faça suas escolhas de forma livre e deliberada e, por meio das atividades eleitas, exteriorize suas capacidades, potencialidades e qualidades. Nesse contexto, insere-se a ocupação econômica das pessoas, cuja uma das manifestações é a produção e posterior venda de medicamentos, logo, o citado princípio liga-se, necessariamente, a esta atividade e a qualquer ato que lhe respeite.

Em conformidade com o anteriormente exposto, promover-se-á, na seqüência, o estudo separado e detalhado do princípio da livre concorrência, ressaltando-se, além da sua importância dentro do ordenamento jurídico pátrio, a sua relevante e direta relação com o tabelamento de preço de medicamentos.

3.1.2 Livre Concorrência

É precípuo, ademais, na discussão da possibilidade ou não do Estado intervir na seara econômica tabelando o preço de remédios, pontuar o princípio da livre concorrência. Este estimula a competição aberta, previsto no art. 170 da CF/88, como uma orientação a ser obrigatoriamente seguida na estruturação do ordenamento econômico pátrio e, conseqüentemente, sempre que o Estado proceder a tais intervenções. É admitido como uma exteriorização da livre iniciativa, garantida pelo mesmo documento legal, em seu art. 173, §4º:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

(...).

§ 4º. A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

A redação prevê que será reprimido o exacerbamento de poderio econômico voltado à dominação de mercados, supressão de concorrentes e aumento desregulado de lucros, buscando, assim, aniquilar ou, pelo menos, atenuar, a tendência de concentração de capital e bens de produção. Isso se verifica quando empresas ligadas ao setor farmacêutico estabelecem valores muito altos na venda de seus produtos e acabam, desse modo, incorrendo em uma ou mais das situações retro expostas. Entretanto, na medida em que o Estado implementa o tabelamento de preços da referida mercadoria, promove a redução dessa prática maléfica, bem como de seus efeitos prejudiciais ao bem-estar coletivo.

Evidencia-se que os dois dispositivos (livre iniciativa e livre concorrência) se complementam, em um mesmo fim. Na definição do professor Celso Ribeiro Bastos: "Assim, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência dos seus rivais". (BASTOS, 1999, p. 459) – disputa esta que se faz presente no setor de produção e venda de remédios, como não poderia deixar de ser.

Todavia, é fundamental ressaltar que os dois princípios não se confundem, como lembrado por Miguel Reale, no estudo promovido por Eros Roberto Grau:

Ora, livre iniciativa e livre concorrência são conceitos complementares, mas essencialmente distintos. A primeira não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170. Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, significando o ‘princípio econômico´ segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de autoridade, mas sim do livre jogo das forças em disputa de clientela na economia de mercado (grifo nosso), (GRAU, 2002, p. 224).

Tecendo minúcias com referência à livre concorrência, encontra-se Tércio Sampaio Ferraz Júnior, na obra de Eros Roberto Grau:

Mais uma vez recorro à exposição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (...): A livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre os outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preços. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada (grifo nosso). (GRAU, 2002, p. 252).

Um dos mais interessantes pontos a se destacar quando da abordagem do princípio da livre concorrência concerne às diversas formas de manifestação que ele pode vir a ter, como no preço de mercadorias e serviços, na qualidade destes, dentre outros exemplos. Isso é o que conduz à atividade concorrencial e de cunho competitivo dos mais variados agentes, os quais acabam por oferecer aos compradores produtos assemelhados, o que, por sua vez, proporciona a otimização de recursos econômicos e preços acessíveis, na exata proporção em que, por meio da concorrência recíproca previne-se o desenvolvimento de lucros excessivos e contrários à ordem instaurada, bem como eventuais abusos que possam ser cometidos referentemente ao poderio econômico. No setor de medicamentos ocorre essa situação de normalidade e legalidade, nas hipóteses em que nenhum laboratório extrapola sua liberdade na fixação do preço dos produtos e, dessa maneira, facilita o acesso a estes para toda a população, promovendo, pois, o bem-estar de todos e não só do fabricante.

Em função do exposto é que a CF/88 determina que, com a utilização dos instrumentos normativos competentes, o Estado aplique as sanções cabíveis e adequadas às pessoas que, por intermédio das atividades econômicas exercidas, acabem por desvirtuar os objetivos da livre concorrência, bem como tentem reduzi-la ou aniquilá-la, e que acabam por se constituir em formas de dominação ilegal de mercado, verificadas pelas tentativas dos agentes econômicos em se esquivar dos ditames da livre concorrência, garantindo para si uma parcela do mercado ou, em alguns casos, a sua integralidade. Isso é vislumbrado quando empresas, geralmente privadas, produtoras de medicamentos cobram valores muito altos para vender seus produtos, obtendo lucros excessivos e impedindo que a coletividade como um todo possa adquirir este bem que é necessário a todos, segregando a oferta de seus remédios apenas àqueles que podem arcar com elevados valores (preços), quando da sua aquisição.

A livre concorrência é fundamental em um Estado Democrático de Direito porquanto assegura a todas as pessoas da coletividade, enquanto consumidores em potencial, o direito de adquirir produtos e serviços a qualidade e preço justos. Por isso que se falou ser este princípio tão relevante no que respeita à fixação de preço de medicamentos por seus produtores, já que quem necessita desta coisa deve poder ter a possibilidade de pesquisar o preço que mais lhe interessa, adquirindo um produto de qualidade e, principalmente, pagando apenas o valor devido. Como lembra Celso Ribeiro Bastos: "E, de outra parte, para quem se lança à atividade econômica, é uma forma de obter a recompensa pela sua maior capacidade, pela sua maior dedicação, pelo seu empenho maior, prosperando, conseqüentemente, mais do que seus concorrentes". Desta forma, percebe-se que quem aufere vantagens não é somente os que necessitam de remédios, mas também as empresas que os produzem e os oferecem.

É precípuo destacar a importância da relação existente entre o princípio da livre concorrência e os preços, visto que a presente monografia aborda uma questão atinente a este (fixação de preço de medicamentos). Quanto a isso, insere-se a doutrina de J. Petrelli Gastaldi: "Os preços são diretamente afetados pela amplitude da livre concorrência nos mercados" (GASTALDI, 1995, p. 210). Essa afirmação consubstancia-se no fato de que os preços não são fatores determinados, e sim um resultado do estabelecido, de forma livre, entre as partes como o equivalente no ato da troca.

Neste sentido, quanto mais próxima da perfeição for a livre concorrência em um mercado, maior será a abundância de mercadorias e menor será o preço, visto que, se a oferta for escassa, apenas adquirirão a rara cousa exposta à venda aqueles que, efetivamente, necessitem dela. É o que acontece quando poucos laboratórios colocam no mercado determinado medicamento. Porém, uma vez aumentada a oferta desse mesmo produto, o seu valor tende ao declínio, face ao aumento no volume de aquisições. Esta fórmula é a ideal, pois permite que todos tenham acesso ao bem, pela viabilidade de arcar com o seu custo, já que razoável.

Logo, ante o acima exposto, pode-se afirmar que o caráter normativo da atuação estatal quando de sua intervenção no domínio econômico tabelando o preço de remédios não pode se desenvolver de forma a aniquilar a liberdade econômica. O que o Estado deve ter sempre como norte no exercício de suas funções é reprimir eventuais condutas que venham a desvirtuar os objetivos estatuídos pela CF/88, bem como por leis infraconstitucionais, no momento em que foram elaboradas as suas disposições.

Especificamente quanto à fixação de preços, seja de remédios ou de qualquer outro bem de uso do povo, muitas vezes imprescindível para evitar abusos de grupos econômicos e outras alterações danosas nos esteios da economia, destaca-se o comentário do professor Gastaldi relativamente à necessidade de observância dos princípios, quando da implementação da referida medida, pelo Estado: "(...) deverá, sempre, obedecer aos princípios técnico-científicos, sem os quais as medidas, objetivando a fixação de preços e a defesa do consumidor, transformem-se em fonte de desajustamento ainda mais acentuados, com inevitável incentivo às fraudes, aos mercados clandestinos e aos crimes contra a economia popular" (GASTALDI, 1995, p. 216).

Além disso, também é tarefa estatal assegurar a eficácia dos princípios açambarcados pela CF/88, obrigação esta pela qual o Poder Público deve primar sempre que proceder ao tabelamento de preço de medicamentos.

Feitas essas considerações, a partir do item vindouro, proceder-se-á à análise dos diversos sistemas econômicos existentes, com enfoque especial ao peculiar do Estado brasileiro, de forma a verificar se este, pelas suas características, abre possibilidade ao Poder Público para intervir na atividade privada, como ocorre quando tabela o preço de medicamentos, tomando, assim, o lugar dos laboratórios pertinentes; ou, de forma diversa, se há liberdade plena e ilimitada aos particulares para estipularem os valores que mais lhe interessem e beneficiem; ou, ainda, em uma última hipótese, se o Estado é o único competente para proceder a essa regulamentação, não deixando margem alguma de liberdade para o setor privado relativamente à questão do estabelecimento de preço de medicamentos e de outras mercadorias imprescindíveis ao consumo popular.

3.2 SISTEMAS ECONÔMICOS

É relevante proceder à análise das diversas modalidades de sistemas econômicos, com enfoque no característico do Estado brasileiro, a fim de se evidenciar se há viabilidade para intervenção deste na atividade econômica de particulares, o que, ressalte-se, ocorre sempre que o Poder Público tabela o preço de remédios, o que, via de conseqüência, contribui para melhor apreciação da constitucionalidade desta medida, lembre-se, tema da presente monografia.

Primeiramente, faz-se necessário definir "sistema econômico" e "modelo econômico":

Sistema econômico como conjunto coerente de instituições jurídicas e sociais, de conformidade com as quais se realiza o modelo de produção e a forma de repartição do produto econômico em uma determinada sociedade. Modelo econômico como configuração peculiar assumida pela ordem econômica (mundo do ser), afetada por determinado regime econômico (GRAU, 2002, p. 234).

Morris Bornstein, citado por José Paschoal Rossetti, em sua obra, arrisca outra definição de "sistema econômico":

Sistemas econômicos são arranjos historicamente constituídos, a partir dos quais os agentes econômicos são levados a empregar recursos e interagir via produção, distribuição e uso dos produtos gerados, dentro de mecanismos institucionais de controle e de disciplina, que envolvem desde o emprego dos fatores produtivos até as formas de atuação, as funções e os limites de cada um dos agentes (ROSSETTI, 2002, p. 158).

Da definição supra, Rossetti infere os principais elementos constituidores dos sistemas econômicos, quais sejam:

a) estoque de fatores de produção: o qual constitui o alicerce da atividade econômica, sendo formado pelas reservas naturais, recursos humanos, capital e capacidades tecnológica e empresarial, sem os quais não há viabilidade de desenvolvimento de qualquer atividade de cunho econômico. Adicione-se a lição do referido doutrinador: "Os estoques desses elementos condicionam a existência e as dimensões do aparelho de produção. Suas qualificações e as formas com que são combinados condicionam a eficiência. E de decisões sobre as alternativas de geração de produtos finais decorrem os padrões de eficácia do sistema como um todo" (ROSSETTI, 2002, p. 158);

b) quadro de agentes econômicos interativos: estruturado pelas unidades familiares, empresas e governo, os quais tomam as decisões referentes às formas de emprego, destinação dos recursos, composição dos produtos gerados, atuando em conformidade com o amontoado institucional que dá base e contorno às suas ações;

c) complexo de instituições: jurídicas, sociais e políticas, é o responsável pela definição das interações estabelecidas entre os agentes econômicos. Sobre este item, destaca-se o comentário de Rossetti:

Nenhum sistema econômico é possível sem que um conjunto de normas jurídicas discipline os deveres e as obrigações dos detentores dos recursos e das unidades que os empregarão. Também não há como prescindir de um conjunto de instituições políticas, que definam as esferas de competência de cada agente, e de instituições sociais, que estabeleçam valores de referência e regras de conduta (ROSSETTI, 2002, p. 158).

Ainda, quanto aos sistemas econômicos, também denominados "ordenamentos institucionais", compreendidos como os modos de organização da atividade econômica, pode-se afirmar que há três modalidades, cujos caracteres e princípios decorrem de um longo processo evolutivo, o qual continua a se desenrolar:

a) economia de mercado: o trâmite econômico se dá por meio da liberdade de empreendimento e da manifestação livre das "forças de mercado", com a mínima ingerência estatal. As suas bases são a racionalidade do homem econômico, as virtudes do individualismo, o automatismo das referidas forças e os ajustamentos pela livre e perfeita concorrência. Neste modelo, os agentes econômicos têm ampla liberdade relativamente à atividade a ser realizada, assim como aos bens produzidos e à sua ulterior destinação, prevalecendo as forças de competição. A propriedade dos meios produtivos é privada, individual ou societária, sendo que cada agente prima pelo alcance das máximas vantagens particulares (interesse próprio), o que constitui a "mola propulsora" do sistema. As decisões são emanadas pelo próprio mercado;

b) economia de comando central: aqui, não há espaço para as "forças do mercado livre", ao contrário, os agentes se submetem a ordens expressas, advindas de comandos centralizados autoritários ou de centrais de planificação, os quais dispõem a respeito dos bens e serviços a serem desenvolvidos, juntamente com a divisão do produto. Quanto aos atos, enfatiza Rossetti: "(...) resultam de decisões de um organismo central que exerce autoridade de comando e controla a economia como um todo" (ROSSETTI, 2002, p. 195). A propriedade dos meios de produção, neste caso, é coletiva ou socializada, restando a figura da competição substituída pelo solidarismo e pela cooperação, de forma a alcançar o bem-comum. A tomada de decisões se procede nas centrais de planificação;

c) sistemas mistos: nestes, constata-se coexistência entre as "forças de mercado" e determinados mecanismos controladores e reguladores, centrados nas mãos de autoridades públicas. Há algumas limitações à total liberdade, sendo as opções sociais, ora resultantes de estímulos do mercado, ora de imposições de órgãos de comando. Uma parcela da produção é apropriada pelo Poder Público, que a redistribui, segundo uma escala de prioridades politicamente construída. Verifica-se a existência harmônica entre as formas de propriedade dos meios produtivos, ocorrendo preponderância do interesse social sobre o privado e, referentemente ao processo decisório, este se desenrola no mercado, sob o poderio regulador da autoridade pública.

Considerando que o presente trabalho refere-se à possibilidade (ou não) de tabelamento de preço de medicamentos, resta imprescindível focar o sistema econômico brasileiro, com vistas a constatar se este abre margem para que o Estado implemente a referida medida, indo, assim, ao encontro dos postulados da ordem econômica e social, ou se ela representa um mero ato de arbitrariedade por parte da Administração Pública, revestido, pois, de total ilegalidade e inconstitucionalidade.

O Brasil, por seu turno, caracteriza-se como um sistema misto, possuindo, destarte, os traços supra-expostos. Assim, constata-se a grande importância dos princípios da liberdade iniciativa e da livre concorrência no que tange ao processo econômico, especialmente no que respeita à possibilidade dos agentes, deliberadamente, elegerem a atividade que mais lhe interessa, assim como o montante a ser produzido e a posterior distribuição ao mercado. Ademais, como cada pessoa busca auferir a maior quantidade de vantagens possível em razão do ofício exercido, é que se promove competição entre os agentes, o que, conseqüentemente, leva à maior variedade de produtos para os consumidores, bem como maior qualidade nos objetos produzidos e escolha do melhor (e menor) preço, conforme lembra J. Petrelli Gastaldi: "o preço que alcança uma mercadoria é menor à medida que aumenta a quantidade dela oferecida no mercado" (GASTALDI, 1995, p. 210/211). Isso acontece no setor de medicamentos, na exata proporção em que os consumidores têm mais opções de produtos de qualidade, podendo, ainda, adquirir aquele cujo preço melhor lhe aprouver.

Todavia, importa ressaltar que essa liberdade dos agentes econômicos não é total e irrestrita. Diversamente, verifica-se considerável interferência do Estado nos assuntos econômicos, o qual se faz presente, dentre as várias situações possíveis, nos casos em que haja desregulação da economia, seja pela supressão da concorrência, pelo aumento indiscriminado de lucros ou dominação do mercado. Aqui, resta imprescindível a atuação estatal, no sentido de implementar as medidas necessárias à regulação da economia, de forma que não exista viabilidade para instalação de nenhuma das citadas anormalidades, já que é seu dever primar pelo bom e harmônico andamento do processo econômico. É isto que ocorre quando ele implementa o tabelamento de preços de medicamentos, como se verá no capítulo que segue (vide item 4.1).

Logo, percebe-se a coexistência entre as liberdades de mercado e instrumentos públicos que as controlam, uma vez que se busca, sempre, a primazia do interesse público sobre o particular.

Feitas essas considerações, vê-se que o sistema econômico agasalhado pelo Estado brasileiro reconhece a possibilidade do Poder Público tabelar o preço de diversos medicamentos e, destarte, intervir no domínio econômico, já que esta representa uma medida de manutenção da harmonia das relações econômicas e de garantia do exercício das liberdades individuais (com ênfase à livre concorrência e livre iniciativa), na busca pelo atendimento dos anseios e das necessidades coletivas.

Apesar de terem sido já traçados alguns dos objetivos do Estado brasileiro ao atuar na economia, é interessante, de maneira a firmar a sua relevância, abordar mais detidamente este assunto, já que é da atuação estatal nesta seara de que trata o tabelamento de preços, objeto de estudo nesta monografia.

Conceituando e destacando a importância da figura do Estado na economia, asseveram Harold C. Edey e Alan T. Peacock, na obra do professor José Paschoal Rossetti:

Um agente coletivo que contrata diretamente o trabalho de unidades familiares e que adquire uma parcela da produção das empresas para proporcionar bens e serviços úteis à sociedade como um todo. Trata-se, pois, de um centro de produção de bens e serviços coletivos. Suas receitas resultam de retiradas compulsórias do poder aquisitivo das unidades familiares e das empresas, feitas por meio do sistema tributário; e a maior parte de suas despesas se caracteriza por pagamentos efetuados aos agentes envolvidos no fornecimento dos bens e serviços à sociedade (ROSSETTI, 2002, p. 166).

O Estado brasileiro, além de interagir com os demais agentes econômicos, é, na definição de Rossetti: "(...) um centro de geração, execução e julgamento de regras básicas para a sociedade como um todo" (ROSSETTI, 2002, p. 166). Dentre as várias normas que ele pode expedir, inclui-se a imposição a laboratórios do valor a ser cobrado pela venda de medicamentos.

Pontuados os fundamentos deste capítulo, encetar-se-á a apreciação da intervenção do Estado no domínio econômico, bem como de demais conceitos que a ele se vinculam, imprescindível ao bom desenrolar do estudo do tema eleito, visto que, como já referido, o tabelamento de preço de medicamentos constitui-se em uma das modalidades daquela. Por isso a importância de sua análise.


4 FIXAÇÃO DE PREÇOS

4.1 FIXAÇÃO DE PREÇOS NA EXPLORAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA

Na análise da constitucionalidade do Poder Público implementar o tabelamento de preço de medicamentos, é de fundamental importância promover, preliminarmente, o estudo do que se entende, atualmente, por "intervenção do Estado no domínio econômico", já que a citada medida é uma forma desta, assim como de suas especificidades e dos fatores que a ela se ligam, para então, em um segundo momento, proceder-se ao enfoque específico do tabelamento de preços daquele produto.

Considerando que a monografia versa sobre a questão específica da intervenção do Estado no domínio econômico por intermédio do tabelamento de preços de remédios, é fundamental destacar o que se tem como definição de preço: "Preço. 1. Custo unitário de alguma coisa posta à venda. 2. valor. 3. Prestação pecuniária a cargo do comprador, no contrato de compra e venda. 4. Compensação, recompensa, prêmio. 5. Castigo, punição. 6. importância, merecimento, valia. 7. Perfeição, quilate, excelência." (FERREIRA, 1986, p. 1380).

PREÇO. Do latim pretium, entende-se o valor ou a avaliação pecuniária atribuída a uma coisa, isto é, o valor dela determinado por uma soma em dinheiro. Geralmente, preço e custo são tidos como equivalentes. Mas, em regra, o custo significa o preço de produção ou o valor monetário por que a coisa foi adquirida. Possui, assim, sentido mais estrito, porquanto preço entende-se toda avaliação monetária ou todo valor pecuniário, atribuído à coisa, sem alteração ou custo originário ou preço de custo. Representa a soma em dinheiro, em que se determina o valor da coisa para que sirva de base à operação de que será objeto. É assim que, nas vendas, é a quantia ou a soma pecuniária a ser paga pelo comprador. Nas locações, é também a soma em dinheiro a ser paga pelo locatário. Designa, sempre, um valor expresso em dinheiro. E, relativamente às mercadorias, entende-se em sentido equivalente à cotação. (SILVA, 1999, p. 628).

J. Petrelli Gastaldi, assim define-o: "Preço é quantidade de dinheiro pela qual uma mercadoria é vendida. Representa uma relação de troca das mercadorias permutadas, relação essa expressa em moeda" (GASTALDI, 1995, p. 208).

O autor, em sua obra, cita o comentário de Luiz Souza Gomes: "Estabelecido o desejo de adquirir-se uma utilidade (bens ou serviços), surge um elemento quantitativo expresso pelo ‘preço’, que nos diz quantas peças de moeda ou fração desta devemos dar em troca" (GASTALDI, 1995, p. 208).

Há, ainda, os que compreendem "preço" como a recompensa em pecúnia por um bem ou serviço prestado, o qual se compra ou se utiliza; e os que o consideram a relação numérica estabelecida entre a moeda e o valor subjetivo da coisa ou serviço.

Na economia brasileira atual há diversas modalidades de preços e, para melhor compreendê-las, configura-se pertinente a classificação do professor Hely Lopes Meirelles, destacada na obra de Toshio Mukai: "Os preços privados são próprios e característicos da livre empresa; os semiprivados resultam da conjunção dos interesses públicos e privados; e os preços públicos são as tarifas, fixadas exclusivamente pelo Poder Público para os bens e serviços próprios ou delegados" (MUKAI, 1999, p. 117). No que tange ao preço de medicamentos, em princípio, há liberdade para os laboratórios que os fabricam estabelecerem-no, já que privados, salvo a hipótese em que o Estado tenha determinado os valores a serem cobrados, por conta de um tabelamento. Porém, este constitui-se em uma situação de excepcionalidade, sendo a regra a liberdade de escolha da empresa.

Nesse viés, é admissível a fixação, assim como o controle de preços privados atinentes aos bens e serviços essenciais ao consumo e uso popular, dentre os quais se incluem os remédios, sendo a União, privativamente, competente para proceder a eventuais tabelamentos, visto que estes representam um modo de intervenção estatal no domínio econômico e tal prerrogativa é assegurada apenas àquele ente federado. Cabe à União criar a legislação referente à matéria, bem como organizar os mecanismos disciplinadores da ação econômica. Quanto aos Estados e Municípios, só incumbem-lhes as atribuições de polícia administrativa, de condicionamento do uso da propriedade ao bem-estar social e de ordenação das atividades econômicas, nos lindes das normas federais. Estes entes apenas poderão proceder à intervenção na esfera comercial quando houver delegação pelo Governo Federal, o qual é o detentor do poder nessa área.

Uma vez verificada a situação supra-mencionada (pelo tabelamento de preço de medicamentos), está-se diante de um mecanismo de intervenção estatal. Contudo, antes de delinear pormenores a seu respeito, resta necessário conceituá-la, juridicamente, para que melhor se possa compreendê-la. O termo "intervenção", dentro do contexto do presente trabalho (materializada pelo tabelamento de preços de remédios), pode ser entendido como o momento ou lapso temporal em que o Estado exerce suas atribuições além da órbita pública, interferindo no setor privado. É o que acontece quando ele interfere na atividade de laboratórios farmacêuticos. Corroborando esta afirmação, está o ensinamento do professor Eros Roberto Grau, que ora se transcreve: "A intervenção, pois, na medida em que o vocábulo expressa, na sua conotação mais vigorosa, precisamente, atuação em área de outrem. (...) Intervenção indica, em sentido forte (isto é, na sua conotação mais vigorosa), no caso, atuação estatal em área de titularidade do setor privado." (GRAU, 2002, p. 130/131). Relativamente ao controle de preços, esta atuação ocorre na esfera do mercado, ou dos particulares, já que, via de regra, são os que estabelecem os valores das mercadorias postas a disposição da população para consumo, tal como os mais variados remédios. Aqui, o Estado se faz presente em uma área em relação à qual, via de regra, deve restar inerte, deixando que as empresas fabricantes deste bem definam o valor a ser cobrado por ocasião de sua venda.

A professora Lúcia Valle Figueiredo tece um comentário concernente à intervenção: "Intervir é interferir, intrometer-se. A intromissão será devida ou indevida, dependendo do respeito ou desrespeito às balizas constitucionais" (FIGUEIREDO, 2000, p. 81).

Destaca-se, também, a Doutrina de Hely Lopes Meirelles:

Para o uso e gozo dos bens e riquezas particulares o poder Público impõe normas e limites e, quando o interesse público o exige, através de atos de império a satisfazer as exigências coletivas e a reprimir a conduta anti-social da iniciativa particular (...) Na ordem econômica o Estado atua para coibir os excessos da iniciativa privada e evitar que desatenda às suas finalidades, ou para realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, fazendo-o através da repressão ao abuso do poder econômico, do controle dos mercados e do tabelamento de preços (MEIRELLES, 2002, p. 507/508).

No que respeita à possibilidade do Estado interferir na esfera da economia, pronunciou-se o Ministro Celso de Mello:

Reveste-se de legitimidade, pois, a intervenção, ainda que excepcional, do Estado no domínio econômico. A atuação normativa do Poder Público, que se destina a coibir, com fundamento na prevalência do interesse social, situações caracterizadoras do abuso do poder econômico, justifica-se ante a própria competência constitucionalmente reconhecida ao Estado, da qual deriva, como irrecusável efeito conseqüencial, a sua insuprimível prerrogativa de agir nesse domínio particular das atividades econômicas das empresas (MELLO, 1993, p. 76).

A ingerência do Estado no domínio econômico (em sentido geral), compreendendo o tabelamento de preços de medicamentos, encontra alicerce na exigência deste proteger os interesses da sociedade, pois, como ensina o professor Hely Lopes Meirelles: "Os interesses coletivos representam o direito do maior número e, por isso mesmo, quando em conflito com os interesses individuais, estes cedem àqueles, em atenção ao direito da maioria, que é a base do regime democrático e do Direito Civil moderno (...) Em qualquer caso, porém, o fundamento da intervenção há de ser o interesse público; e seu objetivo final, o bem-estar social" (MEIRELLES, 2002, p. 508/509).

Acrescente-se, ademais, o comentário de Walter Brasil Mujalli:

Pode ainda constatar a intervenção do Poder Público, atuando sobre a atividade do particular, como é o caso da intervenção do Poder Público na atividade econômica. Por esse procedimento (intervenção), a iniciativa do Estado visa coibir os excessos da iniciativa privada e evitar que sejam desatendidas as finalidades do desenvolvimento nacional e a justiça social, fazendo-a, através do controle, repressão do abuso do poder econômico (controle de mercado, tabelamento de preços, etc) (...) O Estado participa junto à sociedade, como orientador e incentivador da conduta individual, para atingir o fim comum, o bem-estar geral da comunidade (...), (MUJALLI, 1997, p. 306/307).

Desse modo, a interferência estatal na economia tabelando o preço de remédios (ou de qualquer outra mercadoria) só se justifica na proporção em que primar pela consagração dos valores assinalados na CF/88 e relativos, em especial, à ordem econômica e social, dando-se sobre a atividade lucrativa, exercida pelas mais diversas empresas, enquanto instrumento da iniciativa particular, entre as quais se incluem as farmacêuticas.

Até o presente momento, tem-se defendido que a intervenção do Estado na economia manifestada pelo tabelamento de preço de remédios de uso popular deve se fazer almejando o bem-estar social, assim, resta pertinente traçar breves comentários a respeito do que se entende por este, na forma como é consagrado no ordenamento jurídico pátrio. Para isso, são bastante válidas as palavras de Hely Lopes Meirelles, que ora se reproduzem:

O bem-estar social é o bem-comum, o bem do povo em geral, expresso sob todas as formas de satisfação das necessidades comunitárias. Nele se incluem as exigências materiais e espirituais dos indivíduos coletivamente considerados; são as necessidades vitais da comunidade, dos grupos, das classes que compõem a sociedade. O bem-estar social é o escopo da justiça social a que se refere nossa Constituição (art. 170) e só pode ser alcançado através do desenvolvimento nacional (MEIRELLES, 2002, p. 509).

Como meio de viabilizar e assegurar este bem-estar, o Estado pode interferir nas atividades econômicas das empresas privadas fabricantes de medicamentos, dentro dos parâmetros da competência constitucionalmente atribuída-lhe, por intermédio de normas (leis) e/ou atos administrativos adequados aos fins da intervenção.

Neste ponto, é salutar enfatizar que, quando da exploração de atividade econômica, os preços podem ser fixados de duas formas: pelo mercado (ou pelos particulares), que é a regra geral, a fim de se assegurar a livre iniciativa e a livre concorrência, dentre outros objetivos; ou pelo Estado, em caráter excepcional, com vistas a regularizar situações em que se vislumbre, na prática, desestruturação da ordem econômica promovida pela seara privada, seja pela supressão dos referidos princípios, seja pelo exercício de atividades que busquem o domínio dos mercados, a extinção da concorrência e/ou o aumento indiscriminado de lucros. Uma das formas do Poder Público atender a esse fim é tabelando o preço de medicamentos que estejam sendo cobrados a valores abusivos pelos laboratórios que os produzem, situação essa que caracteriza desvirtuamento da ordem econômica e social, e que não pode deixar de ser apreciada e regularizada pelo Estado.

Face à imensa diversidade de exigências sociais e à multiplicidade de necessidades coletivas, torna-se imprescindível que o Estado desenvolva uma variedade de medidas interventivas no domínio econômico, de maneira que se atendam tais exigências e necessidades. Nesse contexto é que insere a figura da fixação, ou tabelamento, de preços. Este resulta, como já exposto, do ato de interferência estatal na vida econômica e financeira, não dizendo respeito tão somente ao preço final, mas também ao seu processo de formação. Traçando uma definição do que seria esta medida, pronunciou, o doutrinador Nelson Schiesari, as seguintes palavras: "O tabelamento de preços é medida excepcional que o Governo adota tendo em vista obviar os abusos do poder econômico, manifestados pelo produtor ou distribuidor, de bens ou serviços, seja para lhe conter a ânsia de lucro excessivo, seja mesmo como parte da política oficial de combate à inflação monetária, sob a qual se debate, há longos anos, o Brasil" (SCHIESARI, 1982, p. 251). Como exemplos de produtos que são, eventualmente, tabelados, cita-se: pão, leite, carne, medicamentos, automóveis, gasolina e gás, dentre outros, versando, o presente trabalho, sobre o bem destacado.

No momento em que o Estado procede ao tabelamento de preço de medicamentos, vislumbra-se uma medida considerada tecnicamente como "fiscalização", assim, é imprescindível estabelecer a conceituação – ou sentido - do termo. Dentro do contexto em que foi empregado nas disposições constitucionais ("Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado"), bem como do que se busca ao utilizá-lo, "fiscalização" carrega a idéia de acompanhamento, de rastreamento do enquadramento das condutas de particulares ao legalmente previsto e esperado, visa-se à mantença de suas atividades dentro dos parâmetros estabelecidos pela CF/88; promover a eficácia das regras elaboradas e medidas implementadas pelo Poder Público, objetivando-se regular a atividade econômica. E, conforme destaca o professor Eros Roberto Grau: "Essas normas e medidas, isso é evidente - nítido como a luz solar passando através de um cristal, bem polido – hão de necessariamente estar a dar concreção aos princípios que conformam a ordem econômica. Por isso hão de, quando atinjam a atividade econômica em sentido estrito, necessariamente configurar intervenção sobre o domínio econômico" (GRAU, 2002, p. 322/323).

Desta forma, considerando que o Estado não pode se eximir da prática de determinados atos que, sem ensejarem a prestação da atividade econômica propriamente considerada, concorram, mediante harmonização com as atividades privadas, para o mais completo alcance dos objetivos insculpidos no art. 170 da Constituição Federal brasileira, é que se lhe atribui a função de fiscalização do preço dos mais variados medicamentos de consumo do povo.

Além disso, a fiscalização supõe o poder de regulamentação, visto que busca, especificamente, controlar o cumprimento dos comandos emanados e, se necessário, apurar as responsabilidades, bem como aplicar as sanções pertinentes às empresas farmacêuticas que exerçam suas atividades de forma contrária aos ditames constitucionais, cobrando, por exemplo, valores muito altos para aquisição de remédios. Não fosse dessa maneira, o poder fiscalizatório perderia seu sentido, ante à inexistência de objeto.

Ainda, quanto à definição de "fiscalização", para melhor se compreender o objetivo do Estado ao proceder a um tabelamento de preço de medicamentos, insere-se a lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior: "Fiscalização, enquanto ato de examinar, verificar, vigiar, é atividade que deve estar cingida aos seus fundamentos, conforme os princípios que a condicionam. (...) (o Estado) apenas vela para que a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano ocorram nos quadros dos princípios constitucionais." (GRAU, 2002, p. 229).

Insta ressaltar o posicionamento do Ministro Moreira Alves a respeito da importância das medidas fiscalizatórias implementadas pelo Estado, o que inclui, via de conseqüência, o tabelamento de preços de medicamentos: "A intervenção do Estado na disciplina e fiscalização da atividade econômica tem por finalidade compatibilizá-la com os superiores interesses da justiça social" (ALVES, 1993, p. 44).

Porém, o Estado tem o dever de interferir, de regulamentar a atividade particular na esfera econômica a fim de evitar abusos relativos ao poderio econômico que objetive dominação de mercados, bem como supressão concorrencial e aumento arbitrário de lucros (CF, art. 173, § 4º), promovido por laboratórios farmacêuticos, bem como por outras empresas. Nesse sentido é a lição do professor Nelson Schiesari:

Pela capacidade de postergar direitos e desrespeitar a pessoa humana e mesmo os poderes constituídos avulta, dentre os chamados poderes de fato, o poder econômico. Se, diversamente, é dirigido para a realização dos interesses gerais, dentro das lindes da ordenação jurídica, clara está a sua utilidade. O emprego, o bom emprego do poder econômico não só pode como deve ser feito com vistas à prosperidade pública. O que não se pode admitir ou tolerar é o seu mau uso, ou melhor o abuso, que o Estado tem o dever de reprimir por todos os meios ao seu alcance, com energia e serenidade, sob pena de negar-se a si mesmo, visto como foi constituído para realização do bem-comum (SCHIESARI, 1982, p. 252).

Ademais, ao proceder a um tabelamento de medicamentos, o Estado exerce a função de regulação que lhe fora outorgada pela CF/88, no art. 174, e que pressupõe imposições às atividades econômicas, respeitado o equilíbrio entre os interesses das diversas forças sociais presentes. Isso se efetiva por meio do proferimento de decisões gerais e abstratas, as quais, via de regra, constam em regulamentos; pela aplicação concreta das suas normas e pela composição dos conflitos que elas originam. Assim, conforme afirma Alexandre Santos de Aragão: "Há, portanto, três poderes inerentes à regulação: aquele de editar a regra, o de assegurar a sua aplicação e o de reprimir as infrações" (ARAGÃO, 2001, p. 40).

No caso específico do tabelamento de preços de medicamentos – uma das manifestações desse poder de regulação inerente ao Estado – visa-se à regulação para preservar e estimular a competição entre as empresas farmacêuticas, assegurando-se, destarte, a livre concorrência no setor privado.

Logo, sempre que o Estado tabela preços de remédios e de outras mercadorias, o que se verifica, tecnicamente, é intervenção por direção. A importância de ressaltar esta classificação consiste em enfatizar o caráter compulsório das regras por ele estabelecidas e que devem ser cumpridas pelos particulares, sob pena de aplicação das respectivas sanções (característico da intervenção por direção). Aqui, não há margem de discricionariedade para o administrado (laboratórios fabricantes de medicamentos) optar por atender ou não à ordem emanada: ele deve respeitá-la. No que tange a este conteúdo impositivo das citadas normas, é pertinente o comentário de Eros Roberto Grau:

No caso das normas de intervenção por direção estamos diante de comandos imperativos, dotados de cogência, impositivos de certos comportamentos a serem necessariamente cumpridos pelos agentes que atuam no campo da atividade econômica em sentido estrito – inclusive pelas próprias empresas estatais que a exploram. Norma típica de intervenção por direção é a que instrumenta controle de preços, para tabelá-los ou congelá-los. (grifo nosso), (GRAU, 2002, p. 176.).

Ademais, ainda quanto ao caráter impositivo das regras de ingerência por direção, mas, pontualmente, sobre a fixação de preços, destaca-se o comentário de Lucio Bittencourt, lembrado na Doutrina de Alberto Venâncio Filho: "O ato pelo qual o Poder Público fixa o preço máximo de mercadorias ou utilidades é, por sua natureza, como norma geral, abstrata e obrigatória (...)" (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 230).

O tabelamento de preço de medicamentos se dá sobre a atividade empresarial e, conseqüentemente, sobre os preços privados dos bens produzidos no âmbito da iniciativa particular, ou seja, da indústria farmacêutica. Não se sujeita a ele o preço público ou tarifa, fixado pelo Governo, já que a sua determinação obedece às gerais necessidades.

A Constituição Federal vigente, no que tange à questão da exploração das atividades econômicas, prevê ser esta prerrogativa da iniciativa privada. Assim, conforme o seu art. 173, a ingerência estatal só é possível em caráter excepcional. Ademais, toda e qualquer medida que configure interferência na atividade econômica de particulares, caso do tabelamento de preço de medicamentos, porquanto intervém-se na esfera de atuação dos respectivos laboratórios, só é válida se prevista em lei antes de sua ocorrência (CF, art. 174):

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Pela leitura do dispositivo constitucional supra transcrito, constata-se que o Estado somente atuará legitimado como agente normativo e regulador da atividade de fabricantes de medicamentos, bem como de outros produtos, quando o fizer na forma legalmente prevista e autorizada. Conquanto tenha se afirmado a necessidade prévia de permissão legislativa, isso não significa postular a exigência de lei em cada situação específica. Todas as formas de intervenção estatal na esfera econômica, incluído o tabelamento de preço de remédios, procedem-se mediante ato administrativo, embora sua efetividade se vincule à anterior previsão jurídica, ou como lembra o jurista Celso Ribeiro Bastos:

Nessa linha, na atual ordem constitucional, as restrições que possam ser criadas ao princípio da livre iniciativa têm caráter absolutamente excepcional e somente podem emergir das hipóteses expressamente previstas na Constituição, ou implicitamente autorizadas por ela.

Por ser mais analítica que sua antecessora, a atual Carta Magna nos apresenta a vantagem de haver reduzido o uso de fórmulas excessivamente genéricas dos arts. 163 e 167, que regulavam o sistema de intervenção do Estado na atividade econômica, tão freqüentemente abusados que as intervenções se faziam até por atos administrativos, como decretos, resoluções etc. (BASTOS, 1999, p. 453).

Cabível, ainda, do mesmo autor, o seguinte comentário: "Ademais, exercerá essa sua posição na forma estabelecida em lei. O princípio da legalidade deverá, portanto, pautar a atuação do Estado nessa função". (Bastos, 1999, p. 454). Desta sorte, constata-se que toda e qualquer modalidade de intervenção estatal, o que inclui, inevitavelmente, a órbita econômica e, pois, o tabelamento de preço de medicamentos, não pode acontecer arbitrariamente, de maneira a atender, meramente, os interesses do Poder Público. Ela é instituída pela própria CF/88 e regulada, por seu turno, por leis federais específicas, as quais tratam das medidas interventivas, bem como prevêem o modo e forma de dar-lhe execução, restando, sempre, vinculada ao atendimento dos anseios coletivos (interesse público em adquirir os remédios necessários para o cuidado de sua saúde) e ao respeito dos direitos individuais assegurados pelo referido documento maior. Quanto à exigência de previsão legal, destaca-se o comentário de Walter Brasil Mujalli:

O modo pelo qual o Estado atua, pode variar segundo o objeto, o motivo e o interesse público a ser amparado. A interferência do Estado, pode ocorrer pela forma repressiva de abuso do poder econômico, ou através de medidas mais simples, como é o caso do controle de preços e abastecimento de produtos de primeira necessidade. O que é imprescindível, nesses casos, é que a intervenção se faça quando necessária, mediante um mandamento legal, e deve ser executada pela União ou através de seus órgãos delegados e autorizados pela lei (MUJALLI, 1997, p. 312).

Assim, pode-se afirmar que, para que se verifique uma legítima intervenção, bem como tabelando de preço de remédios, resta precípuo que se atendam a três requisitos: lei federal determinando a medida, bem como a disciplinando; motivo de interesse público justificando-a (imprescindibilidade) – segurança nacional ou para propiciar o desenvolvimento da economia, o qual se encontra inatingível pela iniciativa livre; e preservação (tutela) dos direitos e garantias individuais – "(...) os direitos do homem em sua tríplice acepção: como pessoa humana (direitos individuais); como cidadão (direitos políticos); como trabalhador (direitos sociais)" (GASPARIN, 2001, p. 115).

A CF/88 não proíbe o crescimento da força econômica de particulares em face das atividades laborativas por eles realizadas, tampouco quanto às realizadas pelas indústrias farmacêuticas, o que ela, expressa e claramente veda, é que este poder seja direcionado à dominação mercadológica, extinção da concorrência e/ou ampliação desregrada de lucros. Não quer que uma empresa específica que produza determinado (s) medicamento (s) tenha o controle do mercado, eliminado, assim, a concorrência e elevando exorbitantemente os lucros de seus proprietários e obstaculizando o acesso àquele pelas comunidades mais carentes. Tratando da questão dos abusos, o comentário do jurista brasileiro José Afonso da Silva: "Quando o poder econômico passa a ser usado com o propósito de impedir a iniciativa de outros, com a ação no campo econômico, ou quando o poder econômico passa a ser o fator concorrente para um aumento arbitrário de lucros do detentor do poder, o abuso fica manifesto." (SILVA, 1999, p. 769).

Esse abuso é que a CF/88 veda, como um fator de ingerência estatal na economia, em prol de uma economia de livre mercado. O que deve ser destacado é que as normas constitucionais não vedam a existência de poder econômico, seja dos proprietários dos laboratórios fabricantes de remédios ou de qualquer outro setor da economia. O que elas, expressamente, proíbem, é que ele seja exercido de forma anti-social e, em isto ocorrendo, é dever do Estado intervir no domínio econômico para obstaculizar esses abusos, valendo-se de todos os meios que lhes são disponibilizados, dentre os quais se inclui o "tabelamento de preços". O fundamento deste, bem como da intervenção do Estado no setor comercial, é promover o bem-estar público, a garantia à população de acesso aos medicamentos de que precisam para o trato de sua saúde, buscando-se prevenir abusos por parte de negociantes e de empresas farmacêuticas, de forma a manter a ordem interna (do mercado e do processo econômico). Neste sentido, a afirmação de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, mencionado na obra de Alberto Venâncio Filho: "Pode o Estado (...) tabelar os gêneros de primeira necessidade, em defesa da segurança interna e da ordem social, contra os abusos e a aventura da ganância e da falta de escrúpulos" (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 228). Dentre esses produtos, incluem-se os medicamentos.

Ademais, relativamente à interferência do Estado em questões envolvendo preço, é interessante destacar a ponderação do Ministro Moreira Alves, manifestando-se em ação direta de inconstitucionalidade:

Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros (ALVES, 1993, p. 36).

Para que se possa melhor compreender a importância do tabelamento de preços de medicamentos, dentro da ordem econômica (e social), é necessário se proceder à análise do art. 173, § 4º da Constituição Federal, o qual é dotado da seguinte redação:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

(...)

§ 4º. A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros.

Assim, do estudo das disposições supra, vê-se que a CF/88 acolheu no parágrafo 4º deste artigo o princípio de que a lei terá a prerrogativa de reprimir os abusos relativos ao poderio econômico que busquem a elevação desmedida de lucros, seja de laboratórios farmacêuticos, seja de qualquer outra órbita de atividade econômica, cabendo, ademais, ao Estado, as funções de normatizar e regular a economia, segundo a redação do art. 174, já exposto. Este dispositivo, segundo afirma o Ministro Moreira Alves, destaca que o exercício das funções de fiscalização, incentivo e planejamento são decorrentes do Estado ter sido colocado no papel de "agente normativo e regulador da atividade econômica", reproduzindo-se seu comentário: "E, portanto, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e o princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros" (ALVES, 1993, p. 53). Destarte, constata-se que o Estado pode intervir na economia, regulando preços de remédios, de forma a prevenir o alastramento de anormalidades, dentre as quais se insere a elevação discricionária de lucros das empresas farmacêuticas e, em meio aos vários instrumentos dos quais pode se utilizar para atingir esses fins, inclui-se o tabelamento de preços.

Por meio do mencionado instrumento, o Estado pode fixar preços máximos dos medicamentos, buscando evitar uma alta nos preços, ocasionada por insuficiência de oferta por parte das indústrias que os produzem em relação à procura. Aqui, conforme ressaltado no início do presente trabalho, quando da análise do histórico do tratamento do tabelamento de preços no ordenamento jurídico brasileiro (vide item 2), é importante estabelecer a diferenciação entre "tabelamento", "congelamento" e "controle", haja vista que todos atinam à questão dos preços, porém, possuem características próprias e distintas, o que se faz tomando por base as disposições de Eros Roberto Grau, citado na referida ADIn:

Explicitando esses diferentes conceitos, assinala Eros Roberto Grau que o tabelamento significa a fixação de preços máximos, o congelamento importa na manutenção dos preços que vinham sendo cobrados, enquanto o controle implica regulamentação dirigida a compatibilizar a evolução dos preços e a variação dos custos. "O sistema de acompanhamento e limitação dos preços" – assinala o autor – "distingue-se do de tabelamento, visto que corresponde não à fixação de preços máximos – tal como este último – mas à sua regulação, em coerência com as diretrizes da política econômica do setor público, em um determinado momento..." (GRAU, 1993, p. 42).

Muitos autores valem-se do termo "fixação" como um sinônimo de "tabelamento". Acrescente-se o comentário do Ministro Moreira Alves: "O controle ou o tabelamento de preços constituem instrumentos técnicos de que se vale o Poder Público na ordenação jurídica dos preços (...) São medidas conjunturais de política econômica, utilizadas pelo legislador durante determinado período de tempo, por razões circunstanciais (...)" (ALVES, 1993, p. 43). Desta forma, vislumbra-se que o tabelamento de preços de medicamentos não se impõe em caráter permanente. É apenas um mecanismo de que se vale o Estado, temporariamente, para restabelecer a ordenação econômica e facilitar a aquisição deste bem por todos os cidadãos que dele precisam, objetivo pelo qual deve sempre primar (ordem), sendo, além disso, uma obrigação que lhe é inerente.

Abordando a possibilidade do Estado intervir no setor do comércio, por meio da fixação de preços, manifestou-se o Ministro Celso de Mello:

Todas as atividades econômicas estão sujeitas à ação fiscalizadora do Poder Público. O ordenamento constitucional outorgou ao Estado o poder de intervir no domínio econômico, assistindo-lhe, nesse especial contexto das funções estatais, competência para proceder como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174). A liberdade econômica não se reveste de caráter absoluto, pois o seu exercício sofre, necessariamente, os condicionamentos normativos impostos pela Lei Fundamental da República. A própria noção de intervenção regulatória ou indireta do Estado, cuja prática legitima o exercício do poder de controle oficial dos preços, constitui uma categoria jurídica a que não se tem revelado insensível o legislador constituinte brasileiro. Qualquer que sejam as modalidades ditadas pelo sistema de controle oficial de preços ou qualquer que seja o momento em que esse sistema opere e se concretize (a priori ou a posteriori), as limitações que dele derivam, desde que fundada na lei, incluem-se na esfera de abrangência constitucional do poder de intervenção regulatória do Estado (grifo nosso), (MELLO, 1993, p. 75).

Contudo, insta destacar que o mero tabelamento de preços de remédios, por si só, não é suficiente para garantir os fins almejados pelo Estado, pois é fundamental que ela seja acompanhada de medidas que constranjam a procura desmedida pelo bem tabelado. Sobre isso, pronunciam-se, respectivamente, Clóvis Ribeiro e Teotônio Monteiro de Barros, citados na doutrina da J. Petrelli Gastaldi: "Ora, como para cada preço há uma determinada oferta e uma determinada procura, que nem sempre são iguais, o preço dirigido é freqüentemente um fator de pena de o preço dirigido não se poder manter" (GASTALDI, 1995, p. 215).

"a política dos preços taxados, conhecida vulgarmente entre nós pelo nome de ‘tabelamentos’, para produzir os efeitos visados reclama dois fatores de êxito, sem falar na competência de quem planeja e executa: o primeiro desses fatores, verdadeira preliminar, consiste em um completo conhecimento dos custos de produção dos bens, objeto da providência. Sem um conhecimento desse custo, a fixação do preço é feita mediante puro palpite, no ‘olhômetro’. Daí as conseqüências: umas vezes as tabelas ficam abaixo do que razoavelmente deviam estabelecer para manter o interesse do produtor em continuar a produzir, acarretando o abandono da produção porque ela já não oferece a remuneração suficiente; outras vezes os preços taxados vão além do necessário e quem sai perdendo é o consumidor" (GASTALDI, 1995, p. 215).

É imprescindível que a legislação federal atinente ao tabelamento de preços refira qual o órgão ou, eventualmente, órgãos, competente para proceder à intervenção, segundo entendimento de grande parte da Doutrina e da Jurisprudência (ALVES, 1993, p. 47). E é exatamente disso que tratará o tópico seguinte, buscando pontuar de forma específica a temática atinente ao tabelamento de medicamentos pelo Estado, quem é o órgão competente para tanto, bem assim a normatização respectiva.

4.2 TABELAMENTO DE PREÇO DE MEDICAMENTOS PELO GOVERNO BRASILEIRO

Como citado no início do trabalho, um dos bens de uso popular que recebe seu preço tabelado, no Brasil, são os medicamentos, sendo o setor farmacêutico um dos cujas atividades de seus agentes têm sofrido interferências por parte do Estado. Isso porque se trata de uma mercadoria essencial ao bem-estar da população e que, não poucas vezes, tem o seu preço abusivamente estipulado pelas empresas que os fabricam, as quais não se preocupam, em um primeiro momento, com o bem-estar coletivo e sim com os lucros que serão auferidos pelos proprietários. Esse procedimento afronta gravemente os postulados da ordem econômica nacional e é justamente para corrigí-lo que o Poder Público procede ao tabelamento de preços do referido produto.

Atualmente, o órgão com competência para tratar do assunto (tabelamento), regulamentar o mercado e o ajuste de preço de medicamentos é a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), criada pela Medida Provisória nº 123 (26.06.2003), a qual se aplica a todas as empresas produtoras de remédios, às farmácias e drogarias, aos representantes, às distribuidoras, bem como demais pessoas jurídicas de direito público ou privado que, de algum forma, atuem no setor farmacêutico. Ademais, os fabricantes de remédios deverão atentar às normas definidas na mencionada MP quando forem proceder ao ajuste e determinação de seus preços.

A formalização da instalação do novo órgão se deu em 29.07.2003, mediante a assinatura do regimento interno pelos seus componentes, quais sejam, os Ministros da Saúde, Humberto Costa (que a preside), da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, do Secretário Executivo da Casa Civil, Swedenberg Barbosa e pelo Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, José Tavares de Araújo. A instituição tem o objetivo de adotar, implementar e coordenar as atividades concernentes à regulação da economia do mercado de medicamentos – o que inclui o tabelamento - buscando promover o acesso a estes pela população, valendo-se de instrumentos que estimulem a oferta deste produto e a competitividade no setor, conforme infere-se da leitura do art. 6º da referida Medida Provisória:

Art. 6º. Compete à CMED, dentre outros atos necessários à consecução dos objetivos a que se destina esta Medida Provisória:

I – definir diretrizes e procedimentos relativos à regulação econômica do mercado de medicamentos;

II – estabelecer critérios para fixação e ajuste de preço de medicamentos;

III – definir, com clareza, os critérios para fixação dos preços dos produtos novos e novas apresentações de medicamentos, nos termos do art. 7º;

IV – decidir pela exclusão de grupos, classes, subclasses de medicamentos e produtos farmacêuticos da incidência de critérios de estabelecimento ou ajuste de preços, bem como decidir pela eventual reinclusão de grupos, classes, subclasses de medicamentos e produtos farmacêuticos à incidência de critérios de determinação ou ajuste de preços, nos termos desta Medida Provisória;

V – estabelecer critérios para fixação de margens de comercialização de medicamentos a serem observados pelos representantes, distribuidores, farmácias e drogarias, inclusive das margens de farmácias voltadas especificamente ao atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica;

VI – coordenar ações dos órgãos componentes da CMED voltadas à implementação dos objetivos previstos no art. 5º;

VII – sugerir a adoção, pelos órgãos competentes, de diretrizes e procedimentos voltados à implementação da política de acesso a medicamentos;

VIII – propor a adoção de legislações e tregulamentações refrentes à regulação econômica do mercado de medicamentos;

IX – opinar sobre regulamentações que envolvam tributação de medicamentos;

X – assegurar o efetivo repasse aos preços dos medicamentos de qualquer alteração da carga tributária;

XI – sugerir a celebração de acordos e convênios internacionais relativos ao setor de medicamentos;

XII – monitorar, para os fins desta Medida Provisória, o mercado de medicamentos, podendo, para tanto, requisitar informações sobre produção, insumos, matérias-primas, vendas e quaisquer outros dados que julgar necessários ao exercício desta competência, em poder de pessoas de direito público ou privado;

XIII – zelar pela proteção dos interesses do consumidor de medicamentos;

XIV – decidir sobre a aplicação de penalidades previstas nesta Medida Provisória e, relativamente ao mercado de medicamentos, aquelas previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, sem prejuízo das competências dos demais órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor;

XV – elaborar seu regimento interno.

Além disso, editou-se o Decreto nº 4.766 (26.06.2003), o qual dispõe sobre a criação, competências e funcionamento da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, inserta a função de tabelar o preço destes produtos. Esta, por sua banda, já publicara duas Resoluções: uma versando sobre os critérios de definição de preços iniciais de novas apresentações e produtos novos (Resolução CMED nº 01), e outra tratando dos medicamentos liberados dos parâmetros para estabelecimento ou ajuste de preços (Resolução CMED nº 02).

Com a nova regulamentação do mercado farmacêutico, visa-se à elevação da concorrência, ao fortalecimento do poder de compra do consumidor, assim como definir normas objetivas para orientação dos ajustes e correções de preços de remédios, inclusive dos distribuídos à população pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

As regras prevêem que o ajuste de preços de medicamentos somente poderá ocorrer a cada doze meses, a partir de março de 2004, contudo, haverá uma redução em até 30% (trinta por cento) no preço de 560 (quinhentos e sessenta) medicamentos a partir de 1º de setembro próximo, produzidos por laboratórios que estabeleceram valores além dos limites permitidos. Os reajustes serão limitados a um teto de preços que será definido considerando o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, antes disso, será feito um realinhamento de preços, o qual poderá ser tanto para cima (positivo), como para baixo (negativo). É interessante destacar que as empresas farmacêuticas que elevaram seus preços além do permitido terão que realinhá-los aos valores de março do corrente ano. Feito isto, a correção de preços apenas ocorrerá uma vez a cada ano, sempre neste mês (março), respeitando os critérios definidos pela CMED, a qual analisará as especificidades de cada produtor e de cada medicamento. O desatendimento a atos emanados pelo referido órgão, bem assim às normas da Medida Provisória, ensejam a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8.078 (11.09.1990) e na Lei nº 10.213 (27.03.2001).

Paralelamente à instalação da Câmara, será desenvolvida uma ouvidoria para receber denúncias referentes ao setor de medicamentos, recebendo reclamações dos consumidores acerca de reajustes indevidos. Porém, suas atribuições ainda serão discutidas por aquele órgão.

Uma vez analisada a questão atinente ao tratamento da fixação de preços de medicamentos no Direito brasileiro, bem como de sua regulação econômica, promover-se-á, no capítulo que segue, ao estudo das posições e argumentos dos mais diversos juristas a respeito da constitucionalidade e inconstitucionalidade do tabelamento de preços, não só de remédios, mas de outros bens, o qual representa o objeto do presente trabalho.


5 DISCUSSÃO ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA

5.1 INCONSTITUCIONALIDADE DO TABELAMENTO DE PREÇOS

Iniciar-se-á o estudo pela apreciação dos argumentos dos juristas contrários ao tabelamento de preços pelo Estado e que entendem ser esta medida inconstitucional.

Os que assim pensam, defendem que em uma economia de preços controlados não há livre concorrência, assim como consideram só ser legítima a interveniência estatal na esfera da economia posteriormente à sua desregulamentação, para reprimir o abuso do poderio econômico e o aumento desregrado de lucros, bem como para garantir a defesa do consumidor. Ademais, asseveram que a questão da essencialidade da mercadoria ao consumo popular, muitas vezes, acaba por se constituir em um conceito muito subjetivo, cuja determinação pode ficar ao alvitre dos executores do tabelamento da mercadoria, de acordo com seus interesses próprios e/ou de determinado grupo, o que viria de encontro à primazia do interesse público prestigiado pela CF/88.

Um dos autores que acolhem essa posição é Miguel Reale Júnior, conforme infere-se de sua afirmação: "A fixação prévia de preços ofende a Constituição de 1988 nos seus fundamentos e nos princípios que informam a ordem econômica" (GRAU, 2002, p. 233).

5.2 CONSTITUCIONALIDADE DO TABELAMENTO DE PREÇOS

Agora, destacar-se-ão as teses dos juristas que entendem haver respaldo na ordem econômica constitucional brasileira para o tabelamento de preços.

Os adeptos desse posicionamento defendem ser possível a implementação da referida medida porque cabe ao Estado corrigir as anormalidades promovidas pelas liberdades de mercado e que vão de encontro à harmonia do sistema, tais como a redução e/ou supressão da concorrência, as ações que ensejam divisão desigual de bens e resultados, e as que criam o ambiente propício ao desenvolvimento de uma futura crise nos esteios da economia. Asseveram que o tabelamento de preços representa uma medida intervencionista que visa a coibir abusos e preservar a livre concorrência – considerada, por muitos, sustentáculo do sistema econômico - de quaisquer interferências negativas, assim como a livre iniciativa. Ademais, objetiva reprimir o abuso econômico voltado para o aumento arbitrário de lucros, afirmando que se a CF/88 repudia-o, defendem ser inaceitável que um ou mais de seus dispositivos tornem inútil e ineficaz a citada proibição.

Entretanto, sublinham que o tabelamento de preços é possível tão somente nos casos em que houver desvirtuamento da organização econômica, em qualquer das modalidades previstas no art. 173, § 4º da CF/88, quais sejam: redução e/ou supressão da concorrência, aumento discricionário de lucros e dominação do mercado. Deste modo, afirmam que, uma vez constatado que o método mais adequado à circunstância é o tabelamento de preços, o Estado não só pode, como deve implementá-lo, já que esta é uma função que lhe fora conferida pelo texto constitucional e, em sendo o tabelamento o mecanismo mais apropriado para garantir a execução da mencionada prerrogativa, não há sentido no Estado não usá-lo. E, se não o fizer, ou estará descumprindo uma obrigação que lhe é inerente – prover a organização econômica – ou estará servindo-se de um instrumento desproporcional ao exigido pelo caso concreto, o que, certamente, não terá a eficácia pela coletividade almejada, restando, pois, frustrado o bem-estar desta.

Além disso, ainda tecendo considerações a respeito da possibilidade do Estado intervir no domínio econômico, utilizando-se dos recursos mais apropriados, nos casos de ação fiscalizadora – cuja uma das expressões é o tabelamento de preços – bem como a constitucionalidade deste procedimento, postulam ser uma previsão constante da CF/88 que o Estado cumpra a sua função fiscalizatória nos casos especificados no art. 173, § 4º, os quais configuram atentado em desfavor da ordem econômico-financeira e da economia popular. A única ressalva que se faz é que a referida ingerência deve acontecer excepcionalmente, quando for realmente necessária. Logo, afirmam que dizer que a interveniência estatal deve se fazer apenas em conjunturas extremas, não significa, absolutamente, dizer que ela nunca deverá se suceder, muito menos que não há permissão constitucional para tanto, posto entenderem restar demonstrado que ela existe.

Destaque-se que uma grande fatia da Doutrina entende ser o tabelamento de preços – assim como outras formas de ingerência estatal na economia – um método para fazer valer os valores sociais do trabalho, os quais, ao lado da iniciativa privada, constituem não apenas o fundamento da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil. Destarte, vêem na interferência estatal na economia um meio de se assegurar o respeito aos mencionados alicerces, revestindo-se, pois, o tabelamento de preços deste caráter, o que se sustenta no fato de que, para eles, a livre iniciativa, unicamente, é legítima, quando exercida com vistas à justiça social. Em isto não restando verificado, impõe-se a atuação do Estado, valendo-se dos meios mais condizentes com a circunstância, o que viabiliza, muitas vezes, o tabelamento de preços. Daí seu cunho de constitucionalidade.

Os autores seguem dizendo que, excepcionalmente, em desenvolvendo-se alterações na ordem econômica com potencial de prejudicar as bases da atividade econômica livre, é possível que o Estado restrinja a liberdade econômica de mercado e, conseqüentemente, de particulares, no que se refere à fixação de preços, no intuito de salvaguardar a espontaneidade contingente do mercado na formação de preços.

Nessa linha, são favoráveis ao tabelamento de preços pelo Estado, nas situações em que esta medida se faça imprescindível, por entenderem haver previsão constitucional no sentido do Estado primar pela regularidade das relações econômicas dentro da sociedade brasileira, evitando-se a realização de atos, especialmente pelo setor privado, que venham de encontro à ela. Nesse sentido, afirmam que impedir o Estado de proceder ao tabelamento de preços quando necessário, equivale a aceitar que deve haver supressão aos princípios insculpidos no texto constitucional (destaca-se a livre iniciativa e a livre concorrência, dentre outros), bem como significa renegar a necessidade de mantença de um sistema econômico harmônico.

Ademais, a grande maioria vê no tabelamento de preços um promotor do bem-estar coletivo, da dignidade da pessoa humana, da justiça social e da plena eficácia dos preceitos constitucionais, podendo-se citar: Geraldo Vidigal, Miguel Reale, José Afonso da Silva, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Eros Roberto Grau, Herculano de Freitas, Alberto Venâncio Filho, Castro Nunes, Luiz Gallotti, Moreira Alves, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, dentre outros.

Miguel Reale, quanto à discussão sobre a intervenção estatal no domínio econômico e, especificamente, sobre o tabelamento de preços, firma:

Houve, por conseguinte, ineludível opção de nossos constituintes por dado tipo, o tipo liberal do processo econômico, o qual só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, quer do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário de lucros. (GRAU, 2002, p. 223).

Praticam, pois, um grande erro (inclusive do ponto de vista fático) aqueles que não contribuem para uma interpretação objetiva e serena do texto constitucional, assumindo hostil ou depreciativa perante o Estatuto de 1988, o qual, apesar das múltiplas contradições que o comprometem, abre clareiras à defesa tão necessária da livre iniciativa, o que quer dizer da economia de mercado. (...) Da exegese conjugada desses dispositivos podemos inferir algumas conseqüências básicas da ordem econômica, a saber: a) a livre concorrência deve ser a regra ou diretriz básica da ordem econômica; b) o Estado só deve interferir na vida econômica para evitar a eliminação da concorrência, reprimindo o abuso econômico que vise a obtenção de lucros ilícitos (GRAU, 2002, p. 224).

Cumpre acrescentar as ponderações de José Afonso da Silva, o qual afirma serem os fundamentos da ordenação econômica, a valorização do trabalho humano e a iniciativa privada: "a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado". (GRAU, 2002, p. 227). E, relativamente à presença estatal na órbita econômica, sobressalta: "conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art. 1º, IV)." (GRAU, 2002, p. 227). Adicionalmente, é relevante o comentário de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, no que respeita às vantagens do Estado se impor no campo econômico:

Ou seja, o intervencionismo não se faz contra o mercado, mas a seu favor. O mercado, enquanto mecanismo de coordenação e organização dos processos econômicos e que pressupõe o reconhecimento do direito de propriedade dos bens de produção e a liberdade de iniciativa, é mantido no intervencionismo como o princípio regulador da economia. (grifo nosso) (...) O art. 174 desta (Constituição Federal) determina que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerce, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este último indicativo para setor privado. Tais funções assinalam as formas de intervenção do Estado na economia, ao lado de outras, como por exemplo, a função empresarial, disciplinada pelo art. 173. (grifo nosso) (...) (a Constituição) acentua essencialmente (art. 170) o pluralismo da livre iniciativa e o sentido social, não discriminatório do trabalho humano como fundamento da ordem econômica. (GRAU, 2002, p. 228/229).

Referentemente ao posicionamento de Eros Roberto Grau, este é favorável à intervenção estatal no domínio econômico e, por derradeiro, ao tabelamento de preços pelo Estado, por postular que a CF/88 acolheu a possibilidade da citada medida, no conjunto normativo atinente à ordem econômica:

para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, quer do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário de lucros (...) a liberdade apenas é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (GRAU, 2002, p. 232/233).

Ainda, acerca da possibilidade de tabelamento de preços pelo Estado, manifestou-se Herculano de Freitas, na lição de Alberto Venâncio Filho:

Não há nem pode haver direitos ilimitados. Todos existem na comunhão, e são admitidos até onde não prejudicam a existência e o desenvolvimento progressivo desta. Circunstâncias econômicas, políticas ou de outras de força maior podem determinar a necessidade de restringir ou alargar medidas em favor do consumo ou da produção nacional. As medidas de emergência tomadas durante a guerra e ainda no presente justificam concretamente o acréscimo do que se alvitra (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 225/226).

Importa destacar as ponderações de Castro Nunes, lembrado no livro do autor supra e, sucessivamente, as de Luiz Gallotti:

Nem de certo modo poderia o Congresso legislar sobre o controle de preços sem atribuir ao Executivo ou a um órgão autônomo a execução da lei que viesse a fazer agora na vigência da atual Constituição, tão evidente se mostra que o tabelamento não poderia constar do diploma legal, senão acompanhar pari passu as variações do mercado (...) Se a Constituição manda que se reprima qualquer lucro ilícito, imodesto, exagerado, naturalmente não se pode compreender que, em seu mecanismo, um dos seus dispositivos torne inútil e ineficaz a proibição. Se não é possível o lucro imodesto e se essa proibição consta da lei constitucional, em letra expressa e categórica, é preciso que todas as leis obedeçam, em sua estrutura, ao princípio capital da lei constitucional, a termos de possibilitar-se a repressão. E assim não pode a vedação das delegações impedir a repressão constitucional do lucro excessivo (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 233/234).

Em se tratando de fixação de preços, ainda mais se impõe a necessidade de se deixar certa margem de ação ao Poder Executivo, pois, do contrário, a tarefa se tornaria impraticável, como o exigir-se que cada alteração na tabela de preços fosse precedida de uma lei a ser votada pelas duas casas do Congresso Nacional. (...) Mas nunca poderia ter tido em mente (a Constituição Federal) impedir que excepcionalmente a própria lei possa como único meio de bem realizar os seus fins, facultar ao Poder Executivo a fixação de quotas, percentagens, preços máximos, etc...Porque, se impedisse, estaria tornando inexeqüível aquilo que ela mesma peremptoriamente institui em outro artigo, o que não há como admitir. (VENÂNCIO FILHO, 1968, p. 231).

Manifestando-se acerca da constitucionalidade do tabelamento de preços, proferiram, os Ministros Moreira Alves, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, respectivamente, as seguintes palavras:

O regime de controle ou de tabelamento de preços é inteiramente compatível com a Constituição vigente, que, ao consagrar a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, impõe a observância, dentre outros, do princípio da defesa do consumidor, como dispõe o art. 170, n. V (...) A Constituição Federal, aliás, inclui a matéria no Capítulo pertinente aos direitos e deveres individuais e coletivos, prescrevendo o inciso XXXII do art. 5º, que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" (...) A Constituição de 1988 comporta naturalmente medidas mais atenuadas de intervenção, como o controle do abastecimento, o ordenamento jurídico dos preços e outras tendentes igualmente à tutela do consumo e do investimento (grifo nosso), (ALVES, 1993, p. 42).

O princípio da liberdade de iniciativa não tem, desse modo, caráter irrestrito e nem torna a exploração das atividades econômicas um domínio infenso e objetivamente imune à ação fiscalizadora do Poder Público. A intervenção regulatória ou normativa do Estado encontra pleno suporte jurídico na própria Constituição da República, cujo art. 174 autoriza o Poder Público – enquanto agente normativo e regulador da atividade empresarial – a exercer, na forma da lei, funções de controle na ordem econômica, com o objetivo de reprimir o abuso do poder econômico de cuja prática, sempre inaceitável, resultem ou possam resultar a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência ou o aumento arbitrário dos lucros (CF, art. 173, § 4º). A regulação normativa, pelo Estado, das políticas de preços traduz competência constitucionalmente assegurada ao Poder Público cuja atuação regulatória é justificada e ditada por evidentes razões de interesse público, especialmente por aquelas que visem a preservar os postulados da livre concorrência, a fomentar a justiça social e a promover a defesa dos direitos e dos interesses do consumidor (CF, art. 170, caput, e incisos IV e V), (MELLO, 1993, p. 77).

Um instrumento constitucional de concretização desta função permanente de ponderação de valores, que, em termos absolutos, se contradiriam, Senhor Presidente, é precisamente, na ordem econômica, a competência do estado para intervir como agente normativo e regulador da atividade econômica, expressamente legitimado pelo artigo 174 da Constituição, que não se reduz, data venia, a autorizar o papel repressivo do abuso do poder econômico, previsto num dos incisos do artigo 173: a meu ver, essa atividade normativa e regulatória compreende, necessariamente, o controle de preços, que, mostra Comparato, tanto se pode manifestar na fixação de preços mínimos, para estimular determinado setor da economia, particularmente em períodos recessivos, como na fixação de preços máximos ou como se cuida, no caso, no estabelecimento de parâmetros de reajuste. Não excluo dessa atividade regulatória e, conseqüentemente, desta possibilidade de controle de preços, nenhum setor econômico, Senhor Presidente. Mas, também na linha do voto do eminente relator, penso que mais patente se torna a legitimidade dessa intervenção, quando se trata de atividades abertas à livre iniciativa, porém, de evidente interesse social, porque situadas em área fundamental da construção da ordem social projetada na Constituição de 1988 (PERTENCE, 1993, p. 81).

Apresentados os argumentos prós e contra à constitucionalidade do tabelamento de preços de medicamentos, bem assim de outros produtos de uso essencial do povo, proceder-se-á, no capítulo seguinte, à apresentação das conclusões obtidas no estudo do tema eleito.


6 CONCLUSÕES

Restando finalizada a análise da temática atinente à constitucionalidade do tabelamento de preços privados de medicamentos pelo Estado brasileiro, promover-se-á, neste momento, à apresentação das conclusões alcançadas no decorrer do estudo do assunto.

1. Seguindo a linha de raciocínio dos juristas favoráveis ao tabelamento de preços de medicamentos, entendemos ser constitucional e, desta forma, possível que o Estado intervenha no domínio econômico valendo-se dessa medida, porquanto a CF/88, em seus dispositivos e, em especial, nos arts. 1º a 3º e 170, busca implementar um modelo e uma estrutura econômica de bem-estar social. Assim, é que o Poder Executivo se legitima a tomar todas as medidas legais necessárias a fim de garantir este fim, e o tabelamento de preços constitui-se em uma delas;

2. Ademais, entendemos que as atividades econômicas exercidas por particulares e que, via de conseqüência, compõem a ordem econômica da sociedade brasileira, devem primar pela valorização do trabalho humano e pela livre iniciativa, com o fito maior de garantir a todos existência digna, conforme dispõe a CF/88, art. 1º, III e IV;

3. Uma vez constatadas práticas por parte de particulares que venham a frustrar o atingimento desses objetivos, entendemos que se faz necessária a ingerência estatal no domínio econômico, e o tabelamento de preços é um instrumento eficaz de alcance dessas finalidades, haja vista poder viabilizá-las, bem como ser um ato praticado pelo Estado que se harmoniza com as disposições constitucionais concernentes ao ordenamento econômico. Na verdade, o que se verifica, quando há tabelamento de preços de remédios, é o cumprimento do dever estatal de regulamentar a atividade do particular (dos laboratórios) na esfera econômica, em razão da prática de ações irregulares por parte deste. Assim, na medida em que o Estado cumpre essa obrigação, valendo-se do tabelamento de preços do citado produto, por ser o mais adequado à situação, faz preponderarem os valores insculpidos na CF/88 – trabalho, livre iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualdades regionais e sociais, dentre outros – e, mais do que isso, garante o respeito à dignidade da pessoa humana e promove justiça social, objetivos maiores e principais almejados pelo citado documento legal. Dessa maneira, entendemos que ir de encontro ao tabelamento de preços de medicamentos nos momentos oportunos e necessários, e legalmente previstos, significa repudiar que o ser humano tenha sua dignidade assegurada, bem como constitui um obstáculo ao atingimento da referida justiça, já que dificulta-se o acesso da população a este bem cujo uso lhe é essencial, o que não pode ser aceito de forma alguma dentro de um Estado Democrático de Direito, como é o brasileiro;

4. Não se pode olvidar que o tabelamento de medicamentos visa, primordialmente, a prevenir o acontecimento de determinada situação que venha a distorcer o bom andamento da ordem econômica e social, como por exemplo, o estabelecimento de valores muito altos no seu preços, de forma a fazer com que os laboratórios produtores tenham lucros imodestos. Entendemos, neste sentido, a importância do Estado tomar medidas preventivas, no sentido de evitar que perturbações que acabem por prejudicar o bem-estar coletivo ocorram, posto que é mais fácil assegurar a eficácia dos dispositivos constitucionais em um ambiente organizado, do que em meio a uma situação em que os vícios já se alastraram. E é exatamente isso que visa o tabelamento de preços de remédios: garantir que sejam plenamente eficazes os preceitos da CF/88, sejam eles regras ou princípios;

5. Além disso, ressaltamos que o tabelamento de preços de medicamentos é uma medida intervencionista revestida de caráter de excepcionalidade e, desta forma, não deverá ocorrer de maneira regular, sob pena de alteração de seu próprio objetivo, assim como do poder fiscalizatório do Estado: a adequação do ordenamento econômico – o qual, destacamos novamente, haja vista sua extrema relevância, tem seus alicerces na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano – aos princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor, uma vez constatados sérias mudanças nessa seara. Até mesmo porque entendemos não ser interesse de nenhum cidadão viver em meio a uma estrutura econômica desarmônica, cheia de defeitos e que não busque o bem-estar coletivo – como o bom e eficaz tratamento de sua saúde, principalmente se já estiver debilitada - e, além isso, que o Estado não tome as medidas exigidas para promover este bem-estar;

6. A ingerência estatal no domínio econômico, em todas as suas formas, o que inclui o tabelamento de preços de medicamentos, nada mais é, entendemos, conforme o supra-exposto, do que uma medida de Direito Econômico, que encontra respaldo na CF/88, art. 170, IV e V:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (grifo nosso):

(...)

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor.

7. Apesar do cunho obrigatório do tabelamento de preços, ela possui, como já dito, característica de transitoriedade, visando a estimular o ajustamento do mercado e de seus agentes, sendo fiscalizada na forma instituída pela CF/88, não ficando, assim, seu uso, vinculado ao mero alvitre do Estado;

8. Insta ressaltar que entendemos haver previsão legal na CF/88 acerca da possibilidade de intervenção estatal no setor do comércio, devidamente fundamentada na competência reguladora do Estado quanto à atividade exercida por particulares na esfera econômica, especialmente, em decorrência da prática de atos irregulares (art. 174), conforme exposto ao longo do trabalho e que se reitera:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

9. Da leitura do dispositivo acima, entendemos ver-se claramente que a própria CF/88 faculta ao Estado que este intervenha na seara da economia, a fim de prevenir anormalidades e/ou corrigir distorções já instaladas. Desta forma, uma vez verificado que a medida mais adequada e eficaz a atingir este fim é o tabelamento de preços de medicamentos, não há sentido em não se proceder ao seu uso, porquanto, se implementada outra medida em seu lugar, o que se verificará é a utilização de um instrumento que não atende às exigências do caso concreto (promover o acesso da população a esse bem, para o devido cuidado de sua saúde), sendo, conseqüentemente, ineficaz a solucionar a problemática, o que, por seu turno, não atenderá aos anseios sociais de bem-estar, fazendo com que apenas uma fatia da população possa adquirir os remédios de que necessita, tampouco aos objetivos insculpidos na CF/88, ao permitir que o Estado se faça presente na economia; se for proibida a utilização do tabelamento de preços deste bem, mesmo tendo-se visivelmente constatada a sua necessidade, por melhor promover a ordenação econômica, estar-se-á tornando ineficaz e inútil o próprio preceito constitucional permissivo da ingerência estatal na economia, o que, com certeza, não pode ocorrer, visto que é dever do Estado assegurar a eficácia máxima das regras constitucionais, principalmente, quando é o bem-estar comum que está em jogo (vida saudável a todos, garantia de acesso a todos os medicamentos necessários, a preços justos). Ressalte-se que, o que se almeja com o tabelamento de preços de remédios, é a tutela do consumo (da população) e do investimento, objetivo este que não afronta de maneira alguma as disposições constitucionais, muito pelo contrário, instrumentaliza-as, logo, não há o porquê de proibí-lo, uma vez que tenha restado pertinente e necessário. Assim, entendemos que, na medida em que o Estado intervém preventivamente na economia com vistas a ordená-la, está promovendo justiça social, pois restam prestigiados e fortalecidos os direitos econômicos e sociais reconhecidos em prol de todos, dentro da coletividade.


REFERÊNCIAS

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCON, João Paulo Falavinha. A constitucionalidade do tabelamento de preços de medicamentos no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 444, 24 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5725. Acesso em: 19 mar. 2024.