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Da necessidade de integrar os artigos 395 e 397 do CPP para delinear as hipóteses de arquivamento do inquérito policial

Da necessidade de integrar os artigos 395 e 397 do CPP para delinear as hipóteses de arquivamento do inquérito policial

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Os artigos 395 e 397 do CPP podem embasar pedido de arquivamento de inquérito policial, o que acaba dando contornos nítidos à expressão “falta de base para a denúncia”, contida no artigo 18 do mesmo Código.

1- INTRODUÇÃO:

O Código de Processo Penal nada diz a respeito dos fundamentos que justificam o arquivamento do inquérito policial. A lei, no artigo 18, utiliza-se apenas da expressão: “falta de base para a denúncia”, sem, contudo, explicitar o significado e a abrangência desse termo. Dessa maneira, é necessário interpretar e integrar dispositivos do próprio Código para delinear as hipóteses que fundamentam o arquivamento do IP, conferindo à referida expressão do artigo 18 o sentido esperado.


2- DO INQUÉRITO POLICIAL E SEU ARQUIVAMENTO:

A fase preliminar (fase de investigação criminal) objetiva colher elementos relativos à materialidade (existência do crime) e autoria ou participação na infração penal. O inquérito policial é a principal forma de investigação criminal, contribuindo para a formação da opinião delitiva do titular da ação penal – que em regra é o Ministério Público, mas excepcionalmente pode ser a vítima, ou seja, o querelante. É, como se sabe, procedimento administrativo preliminar presidido pela autoridade policial.

Registre-se, também, que é peça dispensável, isto é, caso a opinião delitiva formou-se através de outros meios de investigação, a sua instauração é desnecessária. Como exemplos: inquéritos parlamentares, inquéritos civis públicos, procedimentos administrativos disciplinares etc.

O Código de Processo Penal, no seu artigo 17, diz: “A autoridade policial não poderá arquivar o inquérito policial”. Assim, o delegado de polícia não tem atribuição para determinar o arquivamento do inquérito policial. Segundo Távora e Araújo (2015), a investigação é indisponível para a autoridade policial, de modo que todo inquérito iniciado deve ser concluído e encaminhado ao Poder Judiciário, com exceção dos estados que dispõem de Central de Inquéritos, em que o Ministério Público é o responsável pela distribuição.

Conforme as lições de Távora e Araújo, baseadas nos artigos 13, inciso II, 16, 24 e 28 do CPP, diante do inquérito policial, abrem-se para o Ministério Público as seguintes possibilidades:

a) Oferecer denúncia, havendo lastro probatório;

b)  Requisitar novas diligências à autoridade policial, caso o inquérito não traga lastro probatório suficiente para embasar a denúncia;

c) Requer a remessa dos autos a outro juízo, caso entenda que não possua atribuição para atuar e que o órgão jurisdicional é incompetente; 

d) Requerer o arquivamento do inquérito policial, não havendo base legal para denunciar.

Neste último caso (requerimento de arquivamento do inquérito policial), o juiz irá decidir, podendo acatar o pedido do Ministério Público ou discordar dele. Em discordando, irá provocar o Procurador-Geral (no âmbito estadual) ou a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (no âmbito federal). Assim, surgem agora as seguintes possibilidades ao MP:

  1. Oferecer denúncia diretamente;
  2. Designar outro membro do MP para denunciar. Nesse caso, estará obrigado a denunciar, já que funciona em nome do Procurador-Geral;
  3. Insistir no arquivamento, caso em que o magistrado estará obrigado a homologar tal pedido.

Registre-se que, em regra, essa decisão judicial que homologa o arquivamento do inquérito policial não está acobertada pela imutabilidade da coisa julgada material, de sorte que, se surgirem provas novas, o MP poderá oferecer denúncia, desde que, evidentemente, não esteja extinta a punibilidade. Este, pois, é o enunciado n° 524 da súmula do STF: “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas”.

Entretanto, se o arquivamento do inquérito policial requerido pelo Ministério Público e deferido pelo magistrado tiver como fundamento a atipicidade do fato, haverá coisa julgada material, o que impede a instauração de nova ação penal.


3- EM QUE CONSISTE A EXPRESSÃO: “FALTA DE BASE PARA A DENÚNCIA”?

O ponto que o Código não deixa claro – quando trata de arquivamento do inquérito policial – está no seu artigo 18, segundo o qual: “Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.” A análise detida desse artigo suscita a necessidade e a importância de se delinear a abrangência da expressão “falta de base para a denúncia”, uma vez que é com base nela que o juiz homologará o arquivamento do inquérito policial. 


4- DA NECESSIDADE DE INTEGRAR DISPOSITIVOS DO CPP:

Desse modo, torna-se necessário analisar e integrar dois dispositivos do CPP para que a expressão: “falta de base para a denúncia” ganhe a lógica e o sentido esperados. Citando Távora e Araújo:

É essencial uma primeira indagação: quais os fundamentos que justificam o arquivamento? Como a lei nada diz, utilizando a expressão lacônica “falta de base para a denúncia”, precisaremos integrar dois dispositivos, um que trata da rejeição da denúncia (art. 395, CPP) e outro que articula a absolvição sumária (art. 397, CPP) [...] (TÁVORA; ARAÚJO; 2015; p. 47).

Com coerência, defendem os referidos autores que se a denúncia deve ser rejeitada é porque sequer deveria ter sido oferecida. Então, sendo constatado pelo MP (ao receber os autos do inquérito policial) caso de rejeição de denúncia, o arquivamento do inquérito deve ser requerido pelo promotor de justiça e deferido pelo magistrado. Do mesmo modo, estando o promotor de justiça convencido de que é caso de absolvição sumária, qual a razão para oferecer denúncia? Não há, pois, razão para fazê-lo, já que quem será absolvido não merece ser processado.

É fundamental, portanto, a integração de dispositivos do próprio Código de Processo Penal, a fim de que a expressão do artigo 18 tome contornos lógicos, além de conferir celeridade ao sistema.

4.1- CASOS DE REJEIÇÃO DA DENÚNCIA:

O artigo 395 do CPP – que trata dos casos de rejeição da denúncia ou queixa – diz: “A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

I - for manifestamente inepta; 

II- faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal;

            III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.”

Somente o inciso I não será hipótese de arquivamento do inquérito policial, pois, nesse caso, a falta é imputada ao membro do MP, já que a denúncia por ele oferecida não descreveu o fato criminoso em todas as suas circunstâncias nem qualificou o acusado, ainda que com sinais característicos. Portanto, para que a denúncia não seja inepta, é necessário que o Ministério Público aponte os fatos de modo que permita ao acusado exercer o seu direito de defesa. A propósito, já se manifestou o STF: “a denúncia que expõe, satisfatoriamente, condições de tempo, lugar e modo de execução dos fatos delituosos não é inepta” (HC 97.657/SC, Rel. Min. Eros Grau).

Quanto ao inciso II, verificada desde logo tal hipótese pelo Ministério Público e estando dela convencido, deverá requerer o arquivamento do inquérito, em vez de oferecer denúncia. Faltar pressuposto processual significa que falta requisito indispensável à constituição válida e regular do processo e, conforme doutrina consolidada, os pressupostos processuais de existência são constituídos de: juiz (devidamente investido), demanda (no processo penal, uma acusação) e partes. Igualmente, se faltar qualquer condição da ação, a saber: legitimidade para a causa, interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido e a justa causa, o MP deverá requerer o arquivamento. Importante destacar que, para Lopes Júnior (2014), as condições da ação penal, segundo as categorias próprias do processo penal, são: a) prática de fato aparentemente criminoso – fumus commissi delicti; b) punibilidade concreta; c) legitimidade de parte; d) justa causa.

No que se refere ao inciso III, constatada pelo Ministério Público falta de justa causa, isto é, falta de lastro probatório mínimo capaz de deflagrar a denúncia, o requerimento para arquivar o inquérito policial constitui, sem dúvida, opção lógica e célere a ser adotada pelo promotor de justiça. Isso porque, se convencido de que não há provas bastantes para iniciar ação penal, qual a razão para fazê-lo?

Assim, os incisos II e III do artigo 395 abrem margem para que o promotor de justiça requeira, logo de início, o arquivamento do inquérito policial, em vez de oferecer denúncia.

4.2- CASOS DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA:

Seguindo a mesma linha, uma vez constatado, ab initio, ser caso de absolvição sumária, não deve haver denúncia, pois, nas palavras de Nestor Távora e Fábio Roque Araújo: “quem merece ser absolvido não deve ser processado” (TÁVORA; ARAÚJO, 2015, p. 47). Dessa maneira, os casos patentes de absolvição sumária, verificados pelo promotor de justiça ao receber os autos do inquérito policial, também constituem motivo idôneo para fundamentar o pedido de arquivamento do inquérito.

O artigo 397 do CPP – que dispõe sobre as hipóteses de absolvição sumária – diz: “Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:

I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;

II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;

III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou

IV - extinta a punibilidade do agente.”

A existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato (descrita no inciso I), isto é, o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito (previstas no artigo 23 do CP), deve autorizar o pedido de arquivamento do inquérito policial. Tomando por base o adjetivo do próprio inciso, se a causa é “manifesta”, qual a razão de o MP oferecer denúncia se ele mesmo está convencido de que o sujeito passivo da investigação está acobertado por uma excludente de ilicitude, o que certamente desaguará na absolvição?

Da mesma maneira, a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade – salvo a inimputabilidade – (inciso II) autoriza o pedido de arquivamento do inquérito policial. A inimputabilidade está excluída porque os inimputáveis, quando concorrem para um delito, serão processados e, ao final, submetem-se à aplicação de medida de segurança.

O inciso III trata da absolvição quando o fato narrado não constitui crime. Evidentemente esse inciso, do mesmo modo como os anteriores, deverá fundamentar o pedido de arquivamento, pois o promotor de justiça não deverá oferecer denúncia se o fato narrado não constituir crime.  A mesma linha segue o inciso IV – que trata da extinção da punibilidade do agente –, isto é, estando o MP convencido de que incide ao caso uma das causas de extinção da punibilidade, deverá, desde o início, requerer o arquivamento do inquérito policial.

É importante registrar que boa parte da doutrina e jurisprudência rejeitam as excludentes de ilicitude e culpabilidade como ensejadoras do requerimento de arquivamento do inquérito policial. Conforme esse posicionamento, o promotor de justiça deve oferecer denúncia e, durante o processo, estando evidenciada uma dessas excludentes, ocorreria a consequente absolvição. Nesse sentido:

EMENTA: HABEAS CORPUS. USO INDEVIDO DE UNIFORME MILITAR POR CIVIL. ART. 172 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. DENÚNCIA. ALEGADA ATIPICIDADE DO FATO. Peça acusatória que, ao revés, descreve fato previsto na lei penal. A presença, ou não, de causa excludente da culpa haverá de ser verificada no curso da instrução criminal. Ademais, a falta de justa causa para a ação penal somente pode ser reconhecida e afirmada quando manifesto que o fato narrado não constitui crime. Habeas corpus indeferido (STF – 1ª T. – HC 79359/RJ – Rel. Min. Ilmar Galvão – DJ 8/10/1999. p 39).

No entanto, essa não parece ser a via mais razoável, pois não há motivo para deflagrar a ação penal se o MP está convencido quanto à existência de uma excludente. Este é o entendimento de Távora e Alencar:

            Assim, a nosso sentir, e invocando o conceito analítico de crime, é dizer, crime como fato típico, ilícito e culpável, se presente qualquer elemento que leve à atipicidade da conduta, exclua a ilicitude ou afaste a culpabilidade, ressalvada a inimputabilidade [...] somos partidários de que existindo elementos que descaracterizem a infração, deve haver o requerimento de arquivamento [...] (TÁVORA; ALENCAR, 2014, p. 155).


5-  CONCLUSÃO:

Portanto, o dispositivo do artigo 395 do CPP – que trata da rejeição da denúncia – e o do artigo 397 do CPP – que articula a absolvição sumária – podem embasar pedido de arquivamento de inquérito policial, o que acaba dando contornos nítidos à expressão “falta de base para a denúncia”, contida no artigo 18 do mesmo Código.

Logo, haverá “falta de base para a denúncia”, quando: a) Ausente pressuposto processual ou condição da ação; b) Faltar justa causa; c) Verificada excludente de tipicidade; d) Verificada excludente de ilicitude; e) Constatada excludente de culpabilidade, salvo a inimputabilidade; f) Constatada a extinção da punibilidade.


REFERÊNCIAS:

ARAÚJO, F. R.; TÁVORA, Nestor. Código de Processo Penal para concursos. 6ª ed. Salvador: jusPODIVM, 2015;

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, R. R. Curso de Direito Processual Penal. 9ª ed. Salvador: jusPODIVM, 2014;

LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Ivo Andrade Souza. Da necessidade de integrar os artigos 395 e 397 do CPP para delinear as hipóteses de arquivamento do inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6270, 31 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57623. Acesso em: 19 abr. 2024.