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Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva.

Re-pensando o conceito das ações afirmativas

Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva. Re-pensando o conceito das ações afirmativas

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A tese da ampliação dos horizontes do conceito tradicionalmente empregado traz como corolário lógico a inclusão de pessoas em novos cenários de implementação de medidas antidiscriminatórias.

SUMÁRIO: 1. Considerações preliminares. 2. Um novo conceito de discriminação positiva. 3. Fundamentos do fenômeno jurídico e reconstrução da individualidade. 4. Princípio da Igualdade. 4.1. Legalidade e isonomia. 4.2. Crítica ao capitalismo. 5. Problema hermenêutico e mudanças sociais. 6. Discriminação positiva e horizontes ontológicos do Direito (condição existencial do homem e papel do Estado). 6.1. Discriminação positiva e ontologia de produção da norma jurídica. 6.2. Discriminação positiva e ontologia de concreção do Direito pelo cidadão (direito de resistência). 6.3. Discriminação positiva e ontologia de concreção do Direito pelo juiz. 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas.


1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Para Joaquim B. Barbosa Gomes (2001) as ações afirmativas (ou discriminações positivas) podem ser definidas como políticas públicas ou privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de etnia e de compleição física. Referido conceito se harmoniza com quase toda a doutrina nacional que se ocupa do assunto (cf. Piovesan, 1998; Rocha, 1985; entre outros).

A primeira vista, entretanto, este conceito limita o instituto da discriminação positiva e traz à tona uma série de indagações que merecem ser objeto de uma reflexão mais aprofundada.

Em primeiro lugar, da análise conceitual indicada fica evidenciado o conteúdo teleológico "igualador" das políticas públicas afirmativas. Esta confessada finalidade já desenha uma séria perplexidade, à luz do princípio do pluralismo, previsto logo no preâmbulo da nossa Constituição Federal. Ora, uma sociedade que faz firme opção pelo pluralismo não pode pretender "igualar" as pessoas. Ao contrário, deve buscar, com todo vigor, assegurar dignidade às minorias. Além disto, a mais consistente fundamentação axiológica da ética afirma a necessidade do "respeito às diferenças de toda ordem, como expressão da riqueza humana e social" (Boff, 2004:48) a partir do qual deve ser constituída uma sociedade democrática, pluralista, multiétnica e plurireligiosa.

Em uma outra vertente, percebe-se que emerge do conceito tradicionalmente usado uma preocupação em garantir a ascensão social de determinados grupos desprotegidos socialmente. É certo que algumas políticas de discriminação positiva devem buscar, com efeito, garantir mecanismos de melhoria das condições econômicas de parcela da população. Contudo, o instituto não se pode se restringir unicamente à esta finalidade. Existem alguns grupos cuja proteção meramente econômica não seria sequer relevante [1] para promovê-los socialmente. Aliás, a exasperação do conteúdo econômico das medidas discriminatórias corresponde a uma adequação indevida (às vezes irrefletida) ao metadiscurso neo-liberal que, consoante se demonstrará, representa a causa primeira da exclusão social que o instituto, por princípio, tenciona combater.

De outro lado, a adoção do critério meramente quantitativo (minorias) para a determinação dos destinatários das ações afirmativas não pode ser aceito sem reservas. É fato que em alguns casos os grupos carentes de proteção não constituem propriamente uma minoria, como pode ser observado, no Brasil, com relação aos miseráveis, que constituem a grande maioria da nação, ou os analfabetos, que correspondem a 60% da população brasileira (Boff, 2004:31). Resulta, portanto, absolutamente insuficiente o aspecto conceitual quantitativo para a definição das possibilidades das medidas de discriminação positiva.

A vinculação das ações afirmativas a "raça, gênero, idade, etnia e compleição física" também não revela o problema em sua inteireza. Referidos critérios excluem da proteção um contingente incalculável de pessoas inseridas em contexto social desfavorável que não se encaixam na diagramação invocada e que, no entanto, também devem ser consideradas desprotegidas socialmente e, portanto, objeto de políticas afirmativas. Tomem-se como exemplos os trabalhadores rurais sem terra, os urbanos sem teto, e tantos outros.

Uma outra questão não respondida até o momento pelos estudiosos do assunto prende-se à explícita impossibilidade de estabelecimento de critérios invariáveis para a determinação do que seja uma minoria desprotegida socialmente, situação que poderia efetivamente constituir-se numa exasperação da injustiça social. É perfeitamente possível supor, por exemplo, que existam alguns poucos negros de classe média alta em melhores condições que muitos brancos pobres numa disputa por uma vaga em uma instituição de ensino superior. O sistema de cotas, ao menos do ponto de vista do branco pobre mencionado, que também é um excluído, se revelaria profundamente injusto.

Além disto, o que se observa é que tem sido constantemente posta em questão a dívida social da nação com relação aos povos negros como medida justificadora das ações afirmativas, notadamente o estabelecimento de cotas. Sem dúvida esta dívida social existe e é latente. Ocorre que ela não atinge somente aos negros, já que se estende a um universo maior de pessoas marginalizadas e excluídas pelo modelo econômico adotado na sociedade. A perversa e injusta distribuição da propriedade rural, por exemplo, representa igualmente uma dívida social para com os trabalhadores historicamente oprimidos pelo processo de concentração da riqueza.

Alguns aspectos práticos das ações afirmativas, tal qual é considerada hoje em dia, poderiam conduzir a sérias antinomias no precário sistema de proteção social. Refere-se aqui à possibilidade, até certo ponto comum, de determinadas pessoas pertencerem a duas ou mais situações de marginalização social. Seria o caso, por exemplo, de uma pessoa negra também ser homossexual. A condição de negro enseja demandas sociais específicas, muitas vezes ausentes na condição de homossexual e vive-versa. Pretender a homogeneização de soluções afirmativas, nestes casos, poderia conduzir a injustiças ou, no mínimo, revelar-se insuficiente para o enfrentamento do problema.

Pode ocorrer, outrossim, que uma pessoa apresente-se como integrante de um grupo desprotegido socialmente mas não se ajuste ao modelo de proteção fulcrado objetivamente na necessidade. Seria exemplo desta hipótese um preso com boa condição econômica. Quase todas as medidas costumeiramente adotadas para a promoção do reeducando assentam-se no estabelecimento de garantias econômicas visando impedir a reincidência delituosa. Estas medidas, entretanto, restariam insuficientes e até certo ponto injustas quando relacionadas ao recluso com boa situação financeira. Em razão do exposto, não se concebe a linearidade absoluta como sendo pressuposto inarredável para as medidas de discriminação positiva.

A doutrina alienígena parece ostentar uma visão mais abrangente das medidas de discriminação positiva. Fala-se até mesmo num Direito Antidiscriminatório (Unzueta, 1997), assentado, entretanto, em um caráter grupal [2]. Ocorre que, neste cenário, ficaria excluída a possibilidade de utilização das medidas de discriminação positiva ao indivíduo que não se encaixe em um modelo previamente estabelecido, situação que pode redundar em grande injustiça e limitar injustificadamente as possibilidades das medidas protetivas.

A síntese até aqui realizada parece demonstrar a necessidade de uma visão mais sistemática e menos fragmentária das medidas de discriminação positiva com o fito de determinar uma ampliação de seus horizontes de efetivação, finalidade que deve ser buscada vigorosamente por todos aqueles que fazem do Direito sua profissão e da justiça a sua opção existencial. A tese da ampliação dos horizontes do conceito tradicionalmente empregado traz como corolário lógico a inclusão de pessoas em novos cenários de implementação de medidas antidiscriminatórias. É exatamente este o objetivo do presente estudo.


2. UM NOVO CONCEITO DE DISCRIMINAÇÃO POSITIVA [3]

O problema da discriminação positiva é um dos mais relevantes e complexos da atualidade e merece cuidadosa análise. Pensamos que a solução para as indagações apontadas deva resultar de um diálogo com a crítica que, sobretudo Adorno, faz do sistema de homogeneização capitalista, bem como da idéia de espaço público desenvolvida por Hannah Arendt. Estes pensadores talvez possam nos indicar pistas seguras no sentido da exata compreensão do instituto. Mas essencialmente será em Heidegger que se buscará o referencial teórico capaz de determinar as conclusões que se pretende apontar.

A finalidade é indicar a incorreção das teorias que pretendem limitar o alcance de medidas de discriminação positiva e, ao mesmo tempo, explicitar possibilidades hermenêuticas para a afirmação do discurso de indivíduos inseridos num contexto social desfavorável.

Em primeiro lugar deve ser justificada a opção realizada pelo termo discriminação positiva em detrimento de ação afirmativa [4]. Entendemos, à exemplo de Paulo José Freire Teotônio (2004), que a utilização da expressão "ação" deve ser evitada na nossa tradição jurídica pela possibilidade de acentuação do caráter instrumental do instituto em prejuízo de sua natureza substancial, melhor delineada na idéia de discriminação positiva.

Para nós, o instituto da discriminação positiva deve ser considerado como o conjunto de medidas públicas ou privadas de atendimento a demandas específicas de pessoas individualmente consideradas, mas inseridas em um contexto social desfavorável, potencialmente capazes de promover alguma mudança social. Esta assertiva já apresenta a totalidade das armas que serão utilizadas na batalha.

O primeiro aspecto do conceito sugerido é a reconstrução substancial da individualidade. O destinatário de qualquer medida antidiscriminatória deve ser o indivíduo inserido dentro de um grupo social e não o próprio grupo em si. A vinculação do problema da discriminação positiva a um determinado grupo social, para nós, pode esvaziar o instituto de sua compleição fundamental, na medida que acentua apenas um lado da moeda, que é o da ontologia do processo de formação de normas jurídicas ou, no dizer de Heidegger (2004), do estabelecimento do direito inautêntico (este problema será retomado adiante com maior vagar). Entendemos que mais importante do que o processo de eclosão de uma regra geral e abstrata emanada do Estado relacionada à discriminação positiva, são os momentos ontológicos de concreção do fenômeno jurídico na situação específica. É por isto que se tenta por em relevo a individualidade do ator social, já que é exatamente nela que se vai delinear os contornos definitivos do instituto [5].

Uma outra característica do conceito proposto é a exclusão deliberada do propósito "igualador" da discriminação positiva. Com isto não se quer negar que, em alguns momentos (talvez na maioria deles), a discriminação positiva objetive a redução das desigualdades sociais. Contudo, para nós, o instituto pode se prestar a outras possibilidades de defesa de indivíduos inseridos dentro de contextos sociais desfavoráveis. É por isto que a igualdade, embora muitas vezes buscada, não pode ser considerada como essência das medidas.

A consideração da condição existencial do homem que vive em sociedade e do papel que o Estado e a própria sociedade representam no cenário da vida cotidiana são premissas fundamentais do conceito sugerido. Com efeito, entendemos que todos os mecanismos de controle social devem objetivar o estabelecimento de possibilidades de melhoria das condições existenciais das pessoas. Num contexto democrático politicamente avançado o respeito às condições individuais é corolário supremo do princípio da pluralidade social.

O conceito abre-se, lado outro, para a hermenêutica como ontologia fundamental, consoante adiante se verá, e não se distancia da absoluta necessidade de consideração dos horizontes de afirmação do Direito (o da produção da norma e o da efetiva concreção do fenômeno jurídico). Através desta ampliação dos horizontes do instituto pode-se superar a idéia de que ele se encerre no estabelecimento de cotas para determinados grupos minoritários. Esta nova perspectiva promove uma abertura para infinitas possibilidades, através da realização de uma ontologia. Referida abertura permite uma nova leitura dos enunciados jurídicos à luz de uma crítica ideológica dos valores fundados pelo neoliberalismo.

Ao considerar a possibilidade de contextos sociais desfavoráveis, do conceito proposto irradia-se uma veemente crítica do sistema capitalista de produção, fenômeno propulsor do aumento das desigualdades sociais e da determinação de exclusão e marginalização de pessoas inseridas em uma situação concreta opressora. Sem a consideração das causas do fenômeno justificador das medidas antidiscriminatórias, todas as soluções apontadas não passariam de paliativos.

Toda medida de discriminação positiva, além disto, deve resultar na possibilidade de acarretar uma mudança social, ainda que não relevante, mas mensurável objetivamente. Vale dizer, para evitar o abstracionismo e a banalização do instituto, é necessário que as medidas, ainda que concretamente atinjam um único indivíduo, possam representar alguma possibilidade de transformação social, o que equivale à problematização elevada à consciência pública. Toda hermenêutica das discriminações positivas deve ser libertadora e, nesta medida, constituir-se em uma denúncia dos perversos efeitos do sistema social.

Mas é de todo conveniente analisar detidamente cada um dos elementos informadores do conceito sugerido, à luz de uma releitura atenta de alguns postulados da teoria geral do direito.


3. FUNDAMENTOS DO FENÔMENO JURÍDICO E RECONSTRUÇÃO DA INDIVIDUALIDADE

O fenômeno jurídico é algo extremamente complexo. Seus fundamentos têm sido constantemente buscados, mas ainda pouco consenso se estabeleceu até hoje acerca deles. Suas implicações, de outro lado, são decisivas para a existência da sociedade. Um complicador a mais deve ser apontado. Trata-se do fato do Direito ter sido utilizado nas diversas sociedades como poderoso instrumento de afirmação da ideologia dominante, que procurou ajustar o discurso jurídico à proposta que a inspirou. Esta nefasta associação descaracteriza completamente o Direito e o que emerge dela é uma desfiguração explícita ou, em outras palavras, um amontoado de mecanismos esparsos e assistemáticos de controle social, completamente ajustados à hipocrisia dos detentores do poder econômico, interessados na manutenção de um modelo não inclusivo e degradante da condição existencial de vários seres humanos.

De qualquer maneira, uma primeira constatação que parece evidente é a de que o homem que nasce, cresce e vive em sociedade é "diferente daquele que se desenvolveria isolado do convívio com seus semelhantes" (Souto, 2004:23). O comportamento social é extremamente complexo uma vez que resulta da interação de vários fatores, alguns internos outro externos.

De outra parte, a natureza do ser humano permite a suposição de que ele sempre atue com uma finalidade (Souto, 2004), ou visando algum objetivo. O processo de coletivização do homem é imanente à sua condição existencial. Com efeito, desde cedo ele percebe (às vezes sem se dar conta disto) os benefícios de viver em comunidade.

O ser humano enuncia juízos morais (Tugendhat, 2000:12). Aristóteles [6] sustenta que nossa linguagem encontra-se impregnada destes juízos, os quais ele chama de afetos, e que consistem em sentimentos negativos ou positivos (prazer e desprazer) diante de um determinado acontecimento. O pensamento aristotélico tem servido de fundamento para as mais variadas teorias sobre a ética [7]. Lado outro, a reciprocidade deste processo é fato inconteste, já que o ser humano, dentro do grupo, aspira sempre, em maior ou menor grau, uma aprovação social (Souto, 2004). Parece possível concluir, portanto, que a atuação ética do homem, que encontra seu fundamento na liberdade, é conseqüência imanente de seu processo associativo e sua origem confunde-se com ele.

Ocorre que a coletivização tende a sufocar a individualidade do homem. As respostas que o ser humano oferece a estímulos em sociedade são cada vez mais padronizadas. Esta padronização social, entretanto, somente é aceita pelo ator social através de uma permanente tensão, onde ele busca a todo tempo encontrar-se com o seu próprio ser, perdido em meio a respostas prontas e comportamentos cotidianos cada vez mais previsíveis (Heidegger, 2004). A existência de uma pessoa é marcada pela busca da individualidade perdida no processo de coletivização.

A possibilidade do homem atingir o coletivo tem suas raízes, portanto, na sua própria liberdade, muitas vezes mitigada no processo de associação com seus semelhantes. É certo que esta liberdade associativa do homem, fundada em sua individualidade, é difícil de ser vista nos dias de hoje. Isto ocorre porque ela se perdeu no espesso vapor autoritário que emergiu do pensamento medieval, onde a coletivização do indivíduo foi a tônica única.

Este cenário começou a mudar desde o Renascimento e já na Revolução Francesa, em 1789, aquela individualidade parecia de novo querer se consolidar. Ocorre que o neoliberalismo apropriou-se do discurso individualista da modernidade, falseando, entretanto, sua verdadeira essência.

Covinha ao neoliberalismo que o Direito se mantivesse com algumas de suas bases assentadas no medievo. Isto porque, naquela época, o jurídico era altamente dogmatizado, formal, atrelado aos interesses da classe dominante e isto convinha ao capitalismo. O pensamento medieval, portanto, não foi completamente sepultado junto aos despojos da revolução. Nenhuma ruptura, por mais incisiva que seja, pode ter o condão de impedir o fluxo histórico do pensamento dos vencidos. E se o Direito foi o catalisador de significativas mudanças, paradoxalmente foi também por meio dele que os refluxos do medievo se evidenciam até os dias de hoje. Seu discurso ainda permanece com suas bases profundamente assentadas na Escolástica. O repúdio à individualidade, que constitui barreira já superada até mesmo pela mais moderna sociologia, ainda teima em impor-se no mundo jurídico. Isto ocorre porque é somente desta maneira que nossa ciência pode se por em situação de subserviência à classe dominante.

A ciência jurídica, fulcrada em dogmas como a legalidade e a igualdade formal, ainda teima em sufocar toda a individualidade humana, que é latente e deseja se impor a qualquer custo. O indivíduo não pode ser apenas um dado frio do fenômeno jurídico. Ele é a sua base e seu fundamento. Por ele o Direito foi feito e é nele que se encerra.

A despeito de tudo isto, entretanto, não se descura que os fundamentos do fenômeno jurídico são eternos e imutáveis [8] e assentam-se no consenso informador, na afirmação da liberdade humana e na idéia teleológica da necessidade de garantia do bem comum. Desta maneira, mesmo deformado pela associação com a ideologia dominante, o fato é que o Direito pode a qualquer tempo se descortinar a partir de sua estrutura fundante [9] e revelar-se com suas originárias feições, entre as quais se destaca o prestígio conferido à individualidade humana.

As medidas de discriminação positiva sem dúvida realçam (até agora timidamente é verdade) a necessidade da redescoberta da individualidade no mundo do Direito. Pessoas devem ser consideradas de per si e não apenas como partes de uma engrenagem social.

A redescoberta da individualidade do homem amplia os limites de efetivação de medidas de discriminação positiva. Elas devem visar o ser humano, ainda que inserido num determinado contexto social desfavorável. Não se trata de implementar possibilidades a um grupo em si mesmo considerado (ainda que de fato isto possa perfeitamente ocorrer), mas a melhoria das condições do próprio indivíduo inserido no contexto social.

Em tese, portanto, seria perfeitamente possível conceber a adoção de medidas de discriminação positiva visando apenas um único membro de um grupo social, desde que o resultado desta ação pudesse repercutir socialmente [10].


4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Costuma-se dizer que a igualdade de todos perante a lei é princípio fundante do Direito. Isto é um bom exemplo de um dogma jurídico, acolhido irrefletidamente tanto pela comunidade científica como pelos operadores da ciência jurídica. Posto desta forma a assertiva realmente parece evidente. Mas será mesmo a igualdade fundamento [11] do Direito? Entendemos que não. Por duas razões: em primeiro lugar porque o argumento não passa de uma falácia, assentada sobre bases exclusivamente formais e, em segundo lugar, porque presta um enorme desserviço à sua causa verdadeira, consoante adiante se tentará demonstrar.

Um dos confessados objetivos do presente trabalho é o desenvolvimento da tese de que a igualdade não é princípio fundamente do Direito, mas seu fim e assim deve ser considerada. Na verdade, somos todos desiguais e a tarefa-fim do Direito é tornar esta desigualdade cada vez menor ou, quando isto não for possível, reconhecer as diferenças e respeitar a pluralidade.

Dito isto, é necessário que se percorra o árduo caminho pelo qual já passaram os estudiosos das ações afirmativas. Cuida-se agora de considerar os princípios da legalidade e da isonomia, à luz do objeto de nosso estudo.

4.1. LEGALIDADE E ISONOMIA

O tema central da discussão sobre a legitimação da discriminação positiva pode ser resumido como uma heróica tentativa de demonstração do óbvio, ou seja, de que os seres humanos são diferentes uns dos outros e que, portanto, assim devem ser considerados pelo Direito que, se não for capaz de reconhecer esta pluralidade, acaba pondo-se à serviço dos interesses de uma classe dominante e apartando-se de sua primária característica de poderoso instrumento de transformação social.

Tanto o princípio da legalidade quanto o da isonomia nasceram efetivamente com a modernidade. Esta, de seu turno, eclodiu afirmando a necessidade do espírito crítico, através da liberdade de pensamento e da racionalidade, contra o autoritarismo das monarquias absolutistas da Idade Média e da Igreja Católica. A idéia do domínio da razão foi momento fundamental e necessário para que o homem tomasse de volta sua própria vida, indevidamente solapada no contexto autoritário citado. A razão, portanto, foi o primeiro valor universal da modernidade. A afirmação deste valor, entretanto, significou concretamente a atribuição às ciências - e em primeiro lugar a ciência econômica - do papel orientador da atividade humana. Pressuposto de validade deste sistema seria a suposição de que a razão se mantivesse neutra e apartada das relações de poder, panorama que mais tarde não se confirmaria. Girardi alerta para este importante pressuposto: "esta autoridad que se les atribuye supone que lãs ciencias son objetivas y neutrales y non están vinculadas a las relaciones de poder" (2002: 133). Como conseqüência da vinculação do discurso racional aos interesses da classe detentora do poder econômico restou a constatação de que aos tecnocratas, isto é, aqueles detentores da autoridade conferida pelo cientificismo, foi conferida a orientação da vida das pessoas [12]. O projeto desta tecnocracia, que se estendeu aos mais variados campos do saber, pretendeu se legitimar através do Direito.

Ocorre que, para que pudesse ser recepcionado pelo mundo jurídico, era necessário que este discurso se justificasse, conforme exposto acima, em termos de liberdade consensual e de bem comum. Mas isto, ao menos em princípio, se revelou impossível. O cientificismo da modernidade jamais foi capaz de cumprir sua promessa originária, de superação de todas as dificuldades do homem pela evolução da ciência [13]. O discurso, portanto, encontra-se em profunda crise de legitimação. A racionalidade-objetiva da ciência é questionada em termos de possibilidades e até mesmo de legitimidade. Antigos postulados da ciência são colocados em dúvida ou vivamente criticados. A ciência hoje duvida de tudo, inclusive de si mesma. Não tem mais certezas. Suas leis mais rigorosas significam apenas alta probabilidade de ocorrência (Souto, 1997:27) [14].

O refúgio das formas é a última trincheira do pensamento da modernidade. Como alguns fenômenos não podem ser explicados em seu conteúdo substancial, que pressupõe a idéia de certeza científica, a ciência moderna cultua um exasperado apego à forma, aos métodos e, por isso mesmo, cria seus próprios dogmas a partir da observância de rituais formais legitimadores, numa tentativa angustiante e desesperada de não perecer.

O Direito absorveu o refúgio das formas e, exatamente por isto, está longe de promover transformações sociais capazes de redundar na igualdade de oportunidades para todos. Na verdade, inobstante a clássica formulação de que "todos são iguais perante a lei", o que se observa é a ampliação das gritantes desigualdades. Disto resulta que a igualdade proclamada é puramente formal. O exemplo do Brasil é eloqüente. A Constituição Federal de 1988, ao criar o Estado Democrático de Direito, garantiu o acesso das pessoas a uma gama grande de direitos sociais. Esta garantia, entretanto, por ser apenas formal, jamais se efetivou de fato. Ao contrário, o que se vê é que o "Estado interveio na economia para concentrar riquezas e o Direito foi utilizado para sustentar esta ‘missão’, gerando uma enorme dívida social a ser resgatada" (Streck,1997:428).

A fórmula do Estado Democrático de Direito destina-se justamente para "instrumentalizar o Direito como campo privilegiado na concretização dos direitos sociais mediante o deslocamento do foco da decisão do Poder Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário. E, levando-se em conta que a maioria dos direitos sociais previstos na Constituição não se realizaram, é possível afirmar que a dogmática jurídica tem servido como obstáculo para a efetivação/realização desses direitos" (Streck, 1997:428).

Isto ocorre porque, consoante afirmado, a dogmática jurídica tem suas raízes assentadas no medievo. Poucas pessoas têm compreendido o Direito como instrumento de transformação social, fato que acaba convertendo-o em obstáculo às mudanças necessárias. Ao negar-se em assumir seu verdadeiro papel, o Poder Judiciário acaba aumentando consideravelmente a dívida social para com os excluídos, ao argumento de que ela deva ser saldada no plano político e não jurídico. A assertiva só seria verdadeira, entretanto, se não houvesse a previsão formal de direitos cuja implementação, exatamente em razão desta previsão, haveria de ser garantida pelo Judiciário. Do contrário estes direitos simplesmente não existem.

Pelo que se vê, portanto, o discurso da modernidade somente pode se legitimar pelo Direito no caso de explícita despreocupação com o conteúdo substancial das garantias individuais. O jurídico, considerado em sua natureza substancial [15], deveria mostrar-se absolutamente refratário ao discurso neo-liberal, propulsor de opressão e marginalização das pessoas excluídas do contexto mercadológico.

Na realidade, quem conferiu as armas para a recepção do discurso neo-liberal no campo do Direito foi o positivismo jurídico. A ciência jurídica passou a ser considerada como um mero conjunto de normas ajustáveis ao caso concreto a partir de um processo de silogismo lógico (cf. Alflen da Silva, 2003: 370). O enunciado formal da igualdade de todos perante a lei serviu de justificação deste discurso que, em verdade, ostentava uma crônica dificuldade de legitimação no que se refere a uma axiologia substancial.

O princípio da igualdade, portanto, só encontra agasalho no Direito dentro de uma perspectiva puramente formal, completamente ajustada ao discurso racional-tecnocrata da modernidade, já que, substancialmente, as pessoas são diferentes entre si. Mutatis mutandi, diante de uma perspectiva substancial do Direito o discurso técnico-jurídico da modernidade – e seu postulado fundamental da igualdade de todos perante a lei - não se sustentaria em cotejo com a liberdade consensual e a afirmação do bem comum.

A racionalidade-objetivante exprimida pela norma legal da maneira pela qual é vista pelo positivismo jurídico (bem como os dogmas dela decorrentes, dentre os quais o da igualdade formal) ainda persiste como última instância legitimadora do pensamento científico-jurídico. Enquanto a ciência da matemática pura estabelece conceitos de relatividade em sistemas complexos, a ciência-jurídica ainda permanece exprimindo a inerrância da lei. Enquanto a física quântica abre-se para formas cada vez mais sutis e indetermináveis de energia, o Direito continua refratário à subjetividade. Enquanto o mundo se volta para a substância, nossa ciência se entrincheira na forma. Tudo em nome da afirmação de um modelo de sustentação de precedentes, epistemologicamente fundado em assertivas autoritárias-dogmáticas.

A igualdade jurídica, portanto, não é princípio fundante do Direito, mas seu horizonte desejável de efetivação. Conseqüência desta visão é o restabelecimento da possibilidade do fenômeno jurídico converter-se em instrumento de redução das desigualdades e catalisador de transformações sociais. Sua razão teleológica reside na implementação de possibilidades para que os diversos tipos de pessoas existentes no Estado vivam em harmonia e paz. O Direito, considerado sob a perspectiva formal apenas, deixa de assumir este papel transformador e passa a servir de trincheira para a manutenção de odiosos privilégios, legitimando terríveis desigualdades. Neste diapasão ele distancia-se de seu princípio fundante, que é a asseguração do bem da comunidade. Evidentemente que nenhuma hermenêutica pode legitimar-se senão promovendo o resgate da originária feição.

E nem se diga que a igualdade formal de todos se dá em nome do estabelecimento da necessidade de segurança jurídica. " Que insegurança maior pode haver do que a clamorosa injustiça, formalizada em lei e, ademais, sem meio de impugnação, depois de se tornar a formalização como intocável fonte de segurança e, portanto, de justiça?" (Lyra, 1948:14).

A liberdade individual informa o consenso e este é fundamento da lei. Evidentemente que é pressuposto do exercício da liberdade o interesse da pessoa em se inserir em um sistema onde seja vista em sua individualidade, respeitada em suas diferenças e com as possibilidades de progresso existencial potencializadas pela inequívoca consciência de que o comando normativo ao qual se sujeita deriva de um consenso e aspira o bem comum.

Na realidade não se verificou a viabilidade de um sistema assentado na afirmação da necessidade de estabelecimento de "um campo neutro onde as virtudes e possibilidades do indivíduo poderiam se desenvolver livremente" (Barbosa,2002:02). O que se vê é a urgência da ampliação do espaço público como forma de diminuir as desigualdades sociais.

"A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era por si só, capaz de tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecidos, as oportunidades que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados" (Barbosa,2002:03).

Os estudos atuais sobre o princípio da discriminação positiva, entretanto, partem do pressuposto de que a igualdade é fundamento do Direito. Salientam os autores que ela deve ser buscada substancialmente, e não reconhecida apenas formalmente. A mudança deste paradigma poderá promover, consoante adiante se tentará demonstrar, um alargamento das possibilidades de discriminações positivas. Para que isto ocorra é necessária a realização de uma ontologia hermenêutica fundamental dirigida para a superação dos formalismos e orientada pela busca da essência do fenômeno jurídico.

4.2. CRÍTICA AO CAPITALISMO

A grande maioria dos autores concorda que o sistema capitalista e a ideologia liberal que o inspira são os grandes responsáveis pelo cenário de opressão e marginalização social existente hodiernamente, do qual emana a necessidade de medidas de discriminação positiva.

Adorno ( 1999 ) critica o modo de produção capitalista e notadamente a técnica que, segundo ele, provoca a homogeneização do sistema social. Para ele, a técnica passa a exercer "intenso poder sobre a sociedade" devido ao fato de que as condições de sua utilização são determinadas pelos detentores do poder econômico e tem o não confessado propósito de servir aos seus interesses. A pretensão de domínio do tecnificismo, entretanto, não tem natureza absoluta, ainda que procure mostrar-se como tal.

Referido autor, outrossim, alude à pulverização da individualidade no sistema capitalista, ocorrida a partir do que ele denominou de "indústria cultural", que não é uma cultura que surge espontaneamente das massas, mas, ao contrário, "aspira a integração vertical de seus consumidores", determinando o próprio consumo e causando imensa desigualdade. Os detentores do poder econômico no mundo capitalista se "interessam pelos homens apenas enquanto consumidores e empregados" e, com isto, acabam reduzindo a humanidade tanto no seu conjunto quanto em seus elementos, às condições que representam estes interesses. É "portador da ideologia dominante", um discurso que visa a padronização comportamental e a não inclusão social.

É paradoxal a estrutura do capitalismo. A base ideológica está estruturada sobre o individualismo. Ocorre que é exatamente este individualismo que justifica a exploração, o lucro a qualquer custo, os modelos de sucesso do sistema, a exclusão social e a falta de solidariedade. Na verdade, a ideologia inspiradora opera com dois grupos bem delineados (divisão esta muito bem assinalada por Marx): de um lado os proprietários dos meios de produção, os quais são reconhecidos em sua individualidade e, de outro, os detentores da força de trabalho, massificados pelo sistema para que possam servir aos interesses do primeiro grupo. Com isto cria-se uma enorme exclusão social.

As leis que emergem deste contexto tecnocrata representam em regra a ideologia da classe dominante. Com efeito, cada vez mais são editados textos normativos que se afastam de suas feições originárias. Quase não se vê nos dias de hoje a efetivação de regras que permitam a potencialização das possibilidades existenciais do indivíduo, que acaba convertido em mero instrumento de realização dos objetivos do poder econômico. Leis garantindo direitos individuais, entretanto, são promulgadas, mas poucas conseguem se efetivar diante da visão absolutamente formalista dos operadores do Direito. Pode-se dizer, assim, que o grande obstáculo à concreção de benefícios sociais é justamente a dogmática jurídica, completamente ajustada à ideologia dos detentores do capital.

Para Adorno, a ideologia capitalista falsifica as relações entre os homens e vale-se de uma visão extremamente formalista do Direito para conferir-lhe legitimação. O resultado, para ele, é um "anti-iluminismo", já que o iluminismo nasceu com a finalidade de libertar os homens de seus medos, mas acabou se vendo diante de um novo engodo: "o progresso da dominação técnica" (1999:8). Este discurso pelo progresso tornou-se instrumento utilizado pela indústria cultural para "conter o desenvolvimento da consciência das massas e impedir a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente". Por fim, a industria cultural do capitalismo cria condições "cada vez mais favoráveis para a implementação de seu comércio fraudulento, no qual os consumidores são continuamente enganados em relação ao que lhes é prometido, mas não cumprido" (1999:9). Tudo sob o olhar passivo de uma dogmática jurídica que insiste em não se reconhecer como poderoso instrumento de transformação social. Neste sentido, a proposta que cumpre fazer é de uma hermenêutica de libertação fundada em bases de discriminação positiva. Parece ser esta a única maneira de assegurar aos excluídos uma participação efetiva no sistema social.

O sistema cria estereótipos de sucesso cada vez mais concentrados na possibilidade de acesso aos bens de consumo. Toda a axiologia fica reduzida à possibilidade de adequação ao modelo. Valores edificados durante longos séculos simplesmente deixam de ter relevo de um momento para o outro, na medida que outros modelos vão sendo construídos aos borbotões, todos ajustados unicamente à perspectiva de lucro dos detentores do poder econômico.

A alteração substancial dos vetores valorativos produz uma necessidade de acesso aos bens de consumo cada vez maior, pois somente desta forma o indivíduo pode ajustar-se ao modelo. Com isto, as demandas aumentam drasticamente e, assim, aparecem os excluídos, vale dizer, as pessoas que não conseguiram moldar-se ao estereótipo de sucesso criado pelo sistema. Certamente esta é a gênese da exclusão econômica.

O sistema é perverso. Ele próprio, ao estabelecer o modelo de sucesso, cria necessidades ao consumidor, que "deve contentar-se com o que lhe é oferecido" (Adorno, 1999:10). O homem passa a ser um mero objeto do sistema e, desta forma, instaura-se a dominação ideológica, que é perversamente não inclusiva. O "universo social, além de configurar-se como um universo de coisas, constitui um espaço hermeticamente fechado onde as tentativas de libertação estariam fadados ao fracasso" (Adorno,1999:10).

A situação não é de aporia, contudo. As pessoas, mesmo alienadas, podem tomar nas mãos seus próprios destinos. Quem fornece as pistas para esta reconstrução é Hannah Arendth. Referida pensadora também promove uma crítica da sociedade moderna a partir do que ela denomina de "perda do mundo", desencadeada pela modernidade e que conduz à eliminação da esfera pública e diluição da distinção entre o público e o privado. Entretanto, o que de mais relevante se extrai de seu pensamento é um permanente convite à ação, à luta. E este convite, no campo do Direito, funda-se na utilização da hermenêutica como arma para uma verdadeira compreensão das possibilidades existenciais do jurídico.

Arendt (apud Moraes e Bignoto, 2003:230) denuncia a incorporação da natureza à lógica do funcionamento da mente humana, transformando-se num processo. É como se, do ponto de vista do homem, o processo de fabricação fosse mais importante que o produto acabado, como se "o método fosse mais importante que qualquer fim singular". Ela aponta na direção da necessidade de valorização do homem e isto se dá quando ocorre uma superação do método pela essência, da forma para o conteúdo. Parece ser exatamente isto o que ocorre no mundo jurídico. As pessoas não parecem comprometidas com o resultado de seu trabalho, mas sim com o emprego das técnicas e métodos necessários ao desempenho de suas funções. Não se preocupam com a essência, mas com o método. Não se preocupam com o conteúdo, mas com a forma. Esta situação precisa urgentemente mudar porque, do contrário, de nada adianta a edição de normas garantidoras de direitos aos marginalizados do sistema.

No que se refere às medidas de antidiscriminação, não convém esquecer que "o tipo de sociedade vigente vem organizada na expoliação violenta da mais-valia do trabalho e na exclusão de grande parte da população" ( Boff, 2004:30). Assim, muitas propostas que visam de alguma maneira atenuar os efeitos do capitalismo e do neo-liberalismo trazem o germe da discriminação positiva e podem se concretizar dentro deste cenário, ainda que para isto tenham que superar a visão da comunidade jurídica sobre o assunto e, fundamentalmente, sobre si mesma.

Tome-se como exemplo o investimento feito num determinado local em educação pública de qualidade. Enquanto medida geral e abstrata, visando a melhoria dos indicadores regionais, não pode ser considerada antidiscriminatória. Entretanto, a partir do momento que uma pessoa de baixa renda tenha acesso ao programa, ele acaba se convertendo numa medida de discriminação afirmativa. A condição existencial da criança de baixa renda foi considerada pela medida, que lhe proporcionou condições de desviar-se da inexorabilidade do destino que haveria certamente de suportar caso não lograsse obter um ensino de qualidade.

Esta superação, no mundo jurídico, pode planificar-se de diferentes modos e em diferentes ocasiões. De qualquer maneira, insiste-se, ela só se revelará possível pela hermenêutica. É através dela que o Direito pode se superar como último refúgio das formas para adquirir o status de principal instrumento de transformação social. E é também através dela que os atores sociais podem realmente compreender o sistema e repudiá-lo vigorosamente naquilo que lhes seja prejudicial. Mas este assunto merece ser desenvolvido com mais vagar.


5. PROBLEMA HERMENÊUTICO E MUDANÇAS SOCIAIS

O estudo do problema hermenêutico é de fundamental importância para a tentativa de ampliar os horizontes do conceito de discriminações positivas. É por meio da hermenêutica que o indivíduo deve se compreender e, com isto, refutar um sistema perverso de dominação que tanto mal lhe proporciona. Mas para que atinja esta finalidade é preciso entender a hermenêutica como ontologia fundamental.

Antes de mais nada, entretanto, é mister deixar explícito que para nós, o Direito não se encerra na norma jurídica. Lado outro, a tarefa da hermenêutica não é e nem pode ser a explicitação do conteúdo de uma regra de conduta, mas a compreensão do fenômeno jurídico em sua inteireza (neste sentido: Streck, 1997, Pessoa, 1997, entre outros).

É certo que a manifestação mais explícita do Direito é a norma (Bobbio, 2003). Esta, pelas próprias características, pressupõe abstração e generalidade. Não é possível conceber a idéia da produção de uma lei em situação casuística. Sem a possibilidade de conhecer efetivamente a totalidade da situação concreta que pretende regular, que pode apresentar infinitas peculiaridades, em alguns casos a aplicação da norma jurídica abstratamente enunciada pode levar a uma situação de injustiça ou, em outras palavras, a uma violação do consenso. A situação concreta efetivamente vivenciada, em alguns momentos, transforma a aplicação da norma jurídica num contra-senso, numa violação. Este exemplo é diuturnamente repetido nas relações intersubjetivas de um país.

Várias teorias tem sido construídas ao longo do tempo objetivando conferir razoabilidade ao processo de interpretação do Direito [16]. Nenhuma delas, entretanto, parece atacar o problema nas suas causas primárias e elementares. A nosso sentir, o grande problema da compreensão do fenômeno jurídico reside no desconhecimento dos fundamentos hermenêuticos do Direito. Os operadores de nossa ciência ainda se servem da hermenêutica como técnica de interpretação de um enunciado (Bleicher, 1980). O máximo a que se consegue chegar por intermédio desta visão é a proclamação de um espírito da norma posta, cuja legitimidade nem sempre fica evidenciada. Este espírito é sempre invocado para corrigir as distorções que a aplicação de uma norma ao caso concreto podem provocar. Alguns chamam este processo de interpretação lógica (na verdade, uma técnica de interpretação que busca resultados lógicos, mas nem sempre legítimos ). Seria bastante? Entendemos que não.

A hermenêutica não é técnica, mas fenômeno de compreensão. Ela não é auxiliar do Direito, mas sua essência. Essencialmente o Direito é hermenêutica (cf. Tárrega, 2001, Streck,1997, Ferreira, 2004). É um problema fundamental na atualidade (Bleicher, 1980), ainda que o Direito não tenha experimentado os notáveis progressos vivenciados nas outras ciências que se ocupam do tema, como, por exemplo, a filosofia e a teologia.

O sentido da compreensão não se identifica com a práxis do trabalho exegético, servindo a ele. A verdadeira compreensão do sentido daquilo que nos é dado deve extrapolar uma mera exegese prática de afirmação literal do sentido, porquanto deve ocupar-se das próprias condições de possibilidade do horizonte do entendimento. Em outras palavras, debaixo da idéia da busca da clareza de um texto existem problemas muito mais profundos e sérios que não podem ser desprezados, sob pena de comprometimento absoluto da aplicação dos conhecimentos hauridos.

A transposição dos limites estreitos da exegese jurídica como prática só se revela necessária, entretanto, se for igualmente superada a idéia sobre o Direito fornecida pelo positivismo jurídico. Acabado dentro de uma norma positiva o fenômeno jurídico não precisa ser compreendido. Em outras palavras, o Direito como técnica-jurídica carece tão só de uma técnica-hermenêutica.

É preciso ter em mente, consoante afirmado, que o caráter dogmático da epistemologia jurídica tradicional tem suas raízes assentadas no pensamento da Idade Média (Bleicher, 1980). A exemplo da Alta Escolástica, também o Direito de hoje quer vincular todos as soluções de seus gritantes problemas a uma concepção sistemática fechada. A implementação dos dogmas jurídicos foi estabelecida com o propósito de conduzir a uma forma objetiva de interpretação dos textos normativos, que se resume na busca de afirmação do sentido literal de um enunciado, sem maiores considerações. O princípio hermenêutico da Escolástica (na verdade mera técnica-interpretativa) vem sido constantemente repetido até nossos dias no campo jurídico.

Ocorre que, desde a eclosão do Iluminismo, novos paradigmas de compreensão se tornaram possíveis graças ao avanço da hermenêutica. O pensamento de Kant descortinou possibilidades infinitas para a compreensão humana. Scheleiermacher, ao indicar a necessidade da subjetividade na interpretação, estabeleceu um marco que, no plano jurídico, jamais seria ultrapassado. As bases de uma nova hermenêutica foram ampliadas com a publicação, em 1927, de Ser e Tempo, de Heidegger (obra que o mundo jurídico recusa-se em conhecer). Para este extraordinário pensador a compreensão é questão existencial. A existência é marcada pela compreensão do ser. A hermenêutica não é mais considerada como uma arte de interpretar textos, mas uma tentativa de determinar a própria essência da interpretação da existência. Compreendida a existência, ela interpreta-se a si mesma no tempo e na história.

Na verdade, uma coisa só pode se manifestar dentro de uma totalidade já dada e toda a interpretação se move dentro de uma concepção prévia desta totalidade. A existência do ser-no-mundo (Dasein) projeta o horizonte de sua auto-compreensão. O mundo, portanto, encontra o seu fundamento no ser.

É certo que, consoante afirmado, a norma jurídica tem importância para o Direito. Esta constatação é inevitável e seu alcance não deve ser mitigado. Entretanto, a exata compreensão da norma só é possível através de uma ontologia hermenêutica do Direito como um todo. Somente aí será possível descortinar seus princípios fundantes e avaliar as conseqüências decorrentes de sua concreção.

Hodiernamente já se fala num processo de ampliação do círculo de intérpretes como sustentáculo do sistema pluralista do Direito ( Häberle:1997). É o salto que faltava para que a dogmática jurídica pudesse ser compreendida como poderoso instrumento de transformação social. Neste diapasão resulta perfeitamente possível e factível uma interpretação do Direito à luz dos interesses do indivíduo inserido em um contexto de marginalização social [17].

Para que isto ocorra, entretanto, parece necessária a atualização do discurso das pessoas inseridas em um contexto social desfavorável, que deve nortear-se para a redescoberta da individualidade e pelo rompimento definitivo com antigos dogmas que, longe de fornecer coerência ideológica ao pensamento, acabam aprisionando-o a aporias insustentáveis e inconciliáveis.

Pessoas excluídas e marginalizadas devem buscar estabelecer um modelo diferente daquele universalmente consagrado pelo capitalismo neo-liberal. Mas para que isto ocorra é fundamental que haja uma compreensão da natureza e dos fundamentos do Direito e de suas implicações neste cenário. As estratégias precisam urgentemente se ajustar à realidade e exatamente em função delas, instrumentos jurídicos devem ser potencializados e não simplesmente descartados. Em suma, a leitura ideológica do discurso do Direito, em quase todos os casos, poderá resgatar o consenso e o bem comum orientadores da produção da norma e, nesta medida, servir de instrumento para a concreção das conquistas das pessoas. Fazendo isto o individuo realiza, sem nenhuma dúvida, uma ontologia hermenêutica fundamental.

Dentro desta nova visão da hermenêutica e do Direito é possível determinar a inserção de medidas de discriminação positiva em cenários de produção e concreção do fenômeno jurídico e, com isto, alargar os horizontes de sua implementação.

Advirta-se, entretanto, que não são todas as medidas que podem ser consideradas de discriminação positiva. Para que isto aconteça é necessário que elas se revelem capazes de promover alguma mudança social.

É sabido, não existe sociedade estática. A estrutura social está em permanente construção. É possível defender, portanto, que todo fato social (e a manifestação do fenômeno jurídico é um fato social) provoque alguma forma de mudança na sociedade. Contudo, não é exatamente deste tipo de mudança que estamos nos referindo aqui. Na verdade, o que defendemos é que uma medida de discriminação positiva deve corresponder ao menos à possibilidade de alteração das bases jurídico-sociais da comunidade. Com isto não se quer dizer que seja necessário que esta alteração ocorra efetivamente. Absolutamente. Basta que ela se revele possível diante da implementação da medida.

Vamos imaginar um ator social residente numa pequena e distante comarca que se sinta perseguido pelas autoridades em razão de sua condição de homossexual. Ajuíza, em razão disto, uma medida judicial protetiva. Ao cabo do processo sua pretensão acaba sendo deferida. Sem dúvida que esta medida judicial é uma providência de discriminação positiva, já que, mesmo atingindo um único sujeito diretamente, é potencialmente capaz de provocar uma profunda mudança social, na medida que pode constituir-se em paradigma para que novas ações com o mesmo objetivo sejam adotadas.

Assim, entendemos que tanto são medidas de discriminação positiva a reserva de cotas para negros em universidades federais, por exemplo, como a decisão judicial que garanta o exercício de um direito individual cuja fruição não se mostrava possível em face de um contexto social desfavorável.


6. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E HORIZONTES ONTOLÓGICOS DO DIREITO ( CONDIÇÃO EXISTENCIAL DO HOMEM E PAPEL DO ESTADO [18]):

Evidentemente, pelas mais variadas razões, a própria sociedade pode adotar práticas de discriminação positiva [19]. Com isto não se quer dizer, entretanto, que o sistema jurídico seja colocado à margem da deliberação particular. Medidas discriminatórias devem estar previstas expressamente em lei porque, do contrário, poderiam se revelar ofensivas ao comando constitucional da isonomia. Em outras palavras, para que uma empresa privada, por exemplo, pratique medidas de discriminação positiva é necessário que elas encontrem amparo no sistema jurídico.

Na realidade, a afirmação da legitimidade de toda sorte de medidas antidiscriminatórias só pode se assentar no sistema jurídico. É por isto que elas devem ser estudadas à luz dos princípios do Direito.

Em face da afirmação da legitimação de uma ontologia hermenêutica fundamental do Direito o fenômeno da discriminação positiva ganha foros de dignidade jamais vistos no mundo jurídico. Na verdade, muitas decisões judiciais que reconheceram medidas afirmadoras da dignidade humana realizaram uma ontologia que resultou, como não poderia deixar de ser, na implementação de verdadeiras medidas afirmativas.

Citemos um exemplo. Recente estudo da Anistia Internacional denunciou que existem no mundo cerca de setenta países que, com fundamento na legislação positiva, perseguem homossexuais e transexuais [20]. Pois bem, entendido o Direito como ontologia hermenêutica fundamental, mesmo nestes países, esta perseguição não se revelaria possível, porquanto haveria séria violação do princípio consensual informador da ontologia do processo de construção do direito positivo. Exatamente em razão desta violação, seria perfeitamente lícito a qualquer prejudicado aspirar a não concreção do Direito neste caso. Mas de que forma opera-se a possibilidade de insurreição à estes diplomas discriminatórios? Vejamos.

O Estado, acima de uma realidade político-jurídica, é uma realidade existencial que determina, ou pelo menos condiciona, a existência de seus integrantes. Pode trazer o bem ao indivíduo ou, ao revés, tolher-lhe as possibilidades de progresso. É através do Direito que o Estado apresenta-se mais ostensivamente. O fenômeno jurídico para ser compreendido em sua inteireza deve ser considerado em três momentos ontológicos distintos [21]. O primeiro deles ocorre quando é editada uma norma de conduta obrigatória. Neste momento ocorre a imposição do "direito inautêntico, utilitário, manipulável" (Maman, 2002:76). Esta pode ser considerada a ontologia da norma. O segundo momento aparece quando da situação de pretensão de concreção da norma posta. O indivíduo compreende o comando positivado e pode aderir ao enunciado ou não. Pratica, portanto, um fato positivo (caso resolva cumprir a norma) ou negativo, caso resolva resistir à efetivação da lei. A ontologia deste momento pode ser entendida como sendo do fato. No caso da ocorrência de um fato negativo, ou seja, quando o particular resiste à concreção do Direito, surge um conflito a ser solucionado pelo Estado, instaurando um terceiro momento ontológico do Direito, que chamamos de ontologia da aplicação do Direito, ou da decisão. Neste momento o Estado reveste-se de sua compleição humana, vale dizer, ele se efetiva entre homens existentes, através de um processo dialógico. Enquanto a ontologia dos momentos anteriores é calcada na busca do consenso, neste último ela se orienta pela busca do bem comum e da Justiça, universo valorativo objetivado por um processo dialético (direito autêntico).

A realização desta ontologia hermenêutica fundamental conduz à conclusão de que o Direito não pode ser considerado apenas uma superestrutura baseada em regras. É preciso, antes de mais nada, "a compreensão do fenômeno jurídico enquanto fato institucional, que deve ser apreendido a partir das práticas sociais vigentes entre os membros do grupo ou, em outras palavras, das regras em seu contexto de utilização" (Kozicki,1997).

De qualquer forma, mister se desenhar separadamente os diferentes contextos pelos quais se revela possível a compreensão do Direito através da ontologia.

6.1. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E ONTOLOGIA DE PRODUÇÃO DA NORMA JURÍDICA

O Partido Comunista Português propôs, através da Direcção de Organização Regional da Guarda (DORG), mais de meia centena de propostas para inclusão no Plano de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central (PIDDAC) de 2000 tendentes à promoção do distrito de Guarda. As propostas que os comunistas consideram prioritárias para o distrito abrangem as acessibilidades, educação e ensino, equipamentos para corporações de bombeiros e instituições de interesse turístico, desportivo e social, indústria e emprego, cultura e ambiente. Referidas medidas foram sugeridas, segundo o próprio partido, "para fazer valer a necessidade de utilização do princípio da discriminação positiva". Ou seja, as medidas visam por fim ao isolamento da população por meio da construção de infra-estrutura necessária para o estímulo à "instalação de novas empresas e empresários que criem postos de trabalho com qualidade [22]".

Pelo que se vê, medidas destinadas a melhorar a qualidade de vida de pessoas que habitam um determinado local podem perfeitamente ser consideradas como instrumentos de discriminação positiva.

O processo de elaboração de uma norma jurídica, como vimos, pode ser revelado em sua natureza ontológica a partir da compreensão da espacialidade. A idéia que se formou e floresceu no constitucionalismo do Século XIX e se seguiu daí em diante, teve como fundamento a necessidade da criação de um espaço neutro, onde as virtudes e capacidades dos indivíduos pudessem se desenvolver livremente (Dray,1999, apud, Barbosa,2001). Esta neutralidade espacial, entretanto, somente pode ser concebida em termos teóricos, já que, na prática cotidiana, o que se observa é algo totalmente diferente. Na verdade, o que se percebe hodiernamente é a co-existência entre o espaço público e o privado na vida de uma comunidade. Ocorre que, consoante afirmado, o espaço privado no liberalismo, por sua própria natureza, não é inclusivo. De outra banda, a pretendida neutralidade do espaço público acaba, na prática, pondo-se à serviço da afirmação do modelo não inclusivo do espaço privado. A razão desta afirmação assenta-se no fato de que "el capilalismo destruye las formas de organización social y econômica diferenciadas que se oponen a su dinâmica, para imponer una forma única de organización social y de la producción" (Hernandez, 2002:01).

Em razão de medidas de discriminação positiva, entretanto, ocorre uma legítima ampliação do espaço público com o propósito de incluir as pessoas que o espaço privado acabou excluindo. O Estado de Direito, de maneira genérica e abstrata, só pode promover à esta inclusão por meio da produção legislativa. Mas para fazê-lo ele sempre esbarra na questão relacionada à desigualação formal de cidadãos, circunstância que acaba representando grave e injustificado óbice ao desenvolvimento de políticas de inclusão social.

Tal limitação só é possível, consoante afirmado, por aqueles que insistem em ter uma visão limitadora do Direito e se revelam incapazes de reconhecer nele qualquer possibilidade de transformação social. Na verdade, portanto, não se cuida de mudar normas ou princípios constitucionais para que o significado do Direito possa se impor. Basta que se transforme a própria visão de seus operadores. Esta transformação só é possível por meio da hermenêutica.

"O jurídico é alcançado pelo homem existente (Dasein) em sua constituição fundamental, isto é, dentro de sua estrutura existenciária e que se dá o nome de compreensão, a qual se desdobra nos fenômenos sucessivos da explicitação (Auslegen) e interpretação" (Maman, 2002: 72) Ou seja, quando edita a norma jurídica, o Estado reconhece, genérica e abstratamente, o modelo consensual de homem justo ideal.

A eclosão de regras de conduta (lei) é fenômeno de previsão e pode ser desvendado em sua natureza ontológica. Em outras palavras, enquanto a lei posta é ôntica, não se pode esquecer que ela foi produto de uma ontologia fundadora, que deve ser resgatada para que possa ser convenientemente compreendida. Disto resulta que o Direito não se encerra na compreensão literal de uma norma, uma vez que esta também não se confinar aos seus aspectos ônticos.

O processo de eclosão das normas do Direito, consoante se afirmou, pode representar uma abertura do espaço público a indivíduos excluídos socialmente. É perfeitamente possível conceber o Direito como instrumento de inclusão social. Para tanto, é necessário que ele se preste a atender demandas específicas de pessoas inseridas em situação de marginalidade e, para que isto ocorra, é necessária a participação dos oprimidos na vida da sociedade política. E a história do movimento social, ao menos no Brasil, está a indicar que esta participação cresce vigorosamente a cada dia (Tomazi, 2000).

Na verdade é perfeitamente lícito supor que a atuação dos movimentos sociais no plano jurídico está intimamente ligada à formulação de pretensões de atendimento a demandas sociais. Em outras palavras, o desejo mais acentuado de uma organização de pessoas é a edição de medidas de discriminação positiva. Referidos movimentos podem ser vistos desde a Antiguidade (escravos, religiosos e mercadores). Também nas Idades Média, Moderna e Contemporânea os movimentos sociais de camponeses, operários, etc. podem ser sentidos no seio da sociedade. Na fase atual do capitalismo industrial monopolista que se multiplicam os movimentos ecológicos, pacifistas, feministas, etc" (Tomazi,2001:222).

Foi a partir dos anos 30 que começaram a surgir associações de trabalhadores no Brasil. Normalmente, no seio da massa, sob a atuação de líderes carismáticos, agentes de educação popular e religiosos, " formaram-se as comunidades, associações e movimentos populares de todo tipo" (Boff, 2004:46). Referidos movimentos, em um determinado momento histórico, passaram a privilegiar uma estratégia de participação nas decisões políticas do país, a partir da vontade de "modificar a realidade circundante e de gestar as sementes de um outro tipo de sociedade, mais participativa, popular e democrática" (Boff, 2004:46). Exatamente neste momento aquelas associações se transformaram em movimentos sociais.

A organização das massas e a explicitação de suas demandas têm influenciado cada vez mais as decisões políticas do país, materializadas na edição de leis.

A ontologia do processo de eclosão das normas jurídicas está, portanto, cada vez mais orientada na conformidade dos interesses de atores sociais. São as pessoas, titulares afinal do Poder Constituinte Originário, que reclamam participação nas decisões políticas do Estado. Elas pretendem ser ouvidas e atendidas em suas pretensões. O critério da maioria já não pode mais legitimar as leis do Estado, uma vez que o atendimento às demandas de indivíduos inseridos num contexto social desfavorável é extremamente necessário para a manutenção sadia do sistema. Afinal, são exatamente os excluídos que se encontram em situação de conflituosidade em relação ao Estado. A pretensão de por fim a este conflito é fenômeno que deve orientar a ontologia de produção das leis. O consenso fundamentador da atividade legislativa deve se legitimar, portanto, no atendimento de demandas que impliquem em reduzir situações de conflito no corpo social e isto só será possível caso se lance mão de medidas de discriminação positiva.

6.2. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E ONTOLOGIA DE CONCREÇÃO DO DIREITO PELO CIDADÃO (DIREITO DE RESISTÊNCIA)

O Direito é instrumento de controle social. A despeito de insinuações em contrário, pode-se dizer que todo controle deve "oferecer ao indivíduo alternativas para as ações que visem satisfazer as suas necessidades" (Souto, 2003:176). A norma jurídica deve sempre buscar, ao definir situações, entregar aos indivíduos instrumentos que permitam um ajustamento maior aos meios sociais, porquanto é instância pacificadora do estado de tensão resultante do próprio processo associativo, que pressupõe do indivíduo a outorga de parcela de sua liberdade para a constituição do grupo.

Dentro desta perspectiva, supõe-se inicialmente que a norma não deva pretender regular na inteireza todos os fatos sociais. Absolutamente esta não deve ser sua tarefa. O fim buscado pela norma deve ser o de estabelecer parâmetros aceitáveis de atuação do indivíduo perante o grupo. Referidos parâmetros traduzem expectativas de comportamento que, espera-se, sejam flexíveis por natureza, na medida que a rigidez só faria aumentar "a tensão entre o individual e o coletivo" (Souto, 2003: 177). Em razão desta característica da norma, é latente a idéia de que é absolutamente necessária a aceitação, em determinados casos, de um comportamento divergente, que não pode ser previsto pela lei, mas que, nem por isso, se revela atentatório aos interesses coletivos disciplinados. Em outras palavras, se é fato que a norma pretende ser uma instância de controle social, não menos certo que suas limitações intrínsecas determinam a necessidade de que, na aplicação ao caso concreto, ela apresente certa dose de maleabilidade. Do contrário sucumbiria no propósito de instância pacificadora.

Além disto, consoante afirmado no início deste trabalho, não são somente os indivíduos inseridos em um movimento social que podem ser sujeitos de medidas de discriminação positiva. Ora, até mesmo uma única pessoa pode ser beneficiária delas. Acentuar a necessidade do aspecto grupal das medidas antidiscriminatórias seria o mesmo que exigir que os destinatários estivessem organizados em torno de uma ideologia comum com um projeto delineado. Com isto, entretanto, ainda permaneceriam excluídos indivíduos sem capacidade de organização. Ocorre que são exatamente estas pessoas as que mais precisam de medidas de discriminação positiva. É por isto que se propõe um resgate da subjetividade e da individualidade do ator social, muito embora o caráter grupal não seja descurado por completo, na medida que a possibilidade de mudança social é determinante para a caracterização do instituto.

O indivíduo é quem deve suportar, na situação concreta, os efeitos de uma norma positiva. Ele pode ajustar seu comportamento à regra ou, do contrário, resistir a sua efetivação. Quando surge um fato social sujeito às regras do Direito, portanto, um novo momento ontológico é fundado. Trata-se de uma abertura à previsão, de estabelecimento de possibilidades. Ocorre que, consoante afirmado, este momento está afastado daquela primeira ontologia que resultou na compreensão da norma. Dentro da perspectiva do Direito este segundo momento é muito mais importante que o primeiro. É através dele que o jurídico deixa de ser inautêntico e pode ser autêntico. É somente neste segundo momento que o Direito poderá tornar-se concreto.

A compreensão do caráter institucional de nossa ciência exige a consideração de um ponto de vista interno. "A postura do usuário em relação ao sistema pode assumir mais de um aspecto" (Kozicki,1997). Desta forma, o indivíduo pode tentar legitimamente impedir os efeitos concretos que uma formulação genérica prescreveu.

Sustenta Wittgenstein [23] que os jogos de linguagem (e os enunciados jurídicos, para ele, são jogos de linguagem) fundamentam-se numa epistemologia eminentemente antropológica. Em outras palavras, é preciso um consenso entre as pessoas que se comunicam sobre as regras do jogo para que a compreensão se torne minimamente possível. A linguagem é mera atividade, ou forma de vida, que supõe consenso informador como pressuposto de qualquer compreensão.

Ora, se a compreensão do conteúdo do Direito se abre a um consenso lingüístico, evidentemente que a participação do cidadão no processo é por demais relevante. Esta participação do ator social no horizonte do Direito constitui uma ação hermenêutica. Na verdade, o individuo realiza uma ontologia hermenêutica fundamental do fenômeno jurídico.

O resultado desta ontologia vai determinar a ação do sujeito. Tanto ele pode aderir ao enunciado legal e pautar seu comportamento na conformidade da regra abstrata, como pode reconhecer a inaplicabilidade da regra à sua situação específica. No primeiro caso o Direito se concretiza. No segundo estabelece-se um conflito que deverá ser mediado por nova ontologia, agora desencadeada pelo Estado.

O Direito não deve ser considerado como mero processo de subsunção de uma lei a uma situação concreta. Ele não se esgota aí. Em outras palavras, a objetividade racional da fórmula de adequação lógico-dedutiva não pode garantir, por si mesma, a solução substancialmente justa para um caso concreto. A busca da justiça como instância teleológica do sujeito do fenômeno jurídico é horizonte que somente se efetiva pela ontologia hermenêutica fundamental.

A resistência não é modalidade de desobediência. Ao contrário, é possibilidade conferida a todos de demonstração de que a situação abstrata descrita pela lei positiva não corresponde ao caso concreto vivenciado. Esta possibilidade decorre da realização da ontologia hermenêutica pelo indivíduo. Ele entende que a norma abstrata ao se concretizar, afasta-se de seus princípios fundantes e, portanto, não pode ter o condão de promover a justiça que se almejou quando do processo de construção da norma. Algumas peculiaridades fugiram do alcance da previsão do legislador e, por isto, ela não tem cabimento no caso.

O dissenso - o termo é de Bobbio (2003) - exercido dentro dos limites estabelecidos pelas regras jurídicas é salutar e assim deve ser considerado. É exatamente a resistência do cidadão que será capaz de estabelecer o caráter dialético da aplicação da norma jurídica. O Juiz deve buscar uma posição de síntese e, para que isto ocorra, é necessário ampliar os horizontes da participação individual. A tipologia da resistência determina a possibilidade de explicitação de novos parâmetros axiológicos informadores de uma situação de consenso, que compete ao Direito resgatar. É neste sentido que deve ser utilizada.

Na verdade, pode-se dizer que existe uma fase prévia à concreção do Direito, que supõe a adesão do indivíduo a um comando normativo, o que nem sempre acontece, uma vez que "os empobrecidos do mundo têm perversidades a denunciar em nome de verdades e causas pelas quais vale lutar; caso contrário a vida não tem um mínimo de sentido, nem valem os sacrifícios pagos para preservar a dignidade básica de comer pelo menos uma vez ao dia, de morar com os filhos pouco melhor do que os animais, de participar, pela palavra e pela prática, da sociedade da qual são marginalizados ou excluídos." (Boff, 2004:17).

A ontologia hermenêutica fundamental que pode resultar numa resistência legítima, por si mesma, já é importante e fundamental medida de discriminação positiva. Ainda que, num primeiro momento seja dirigida indiscriminadamente a toda a sociedade, na verdade só ela pode orientar o discurso de determinados resistentes inseridos em uma situação de marginalização social e é exatamente aí que se converte em medida discriminatória positiva.

Para esclarecer o que se foi afirmado, é necessário citar um exemplo. Imagine-se que trabalhadores rurais ocupem uma área durante alguns anos, mas ainda não tenham direito ao usucapião. Algumas delas, entretanto, cederam suas posses a especuladores. Neste momento é editada uma norma jurídica diminuindo os prazos para usucapião de áreas cultivadas pelos próprios posseiros. Evidentemente que a ontologia hermenêutica do especulador não é a mesma dos trabalhadores rurais. A concreção do Direito, neste caso, indica a necessidade de uma discriminação positiva, uma vez que somente os primeiros serão contemplados com a usucapião.

6.3. DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E ONTOLOGIA DE CONCREÇÃO DO DIREITO PELO JUIZ

Consoante afirmado, pode acontecer que o sujeito, ao realizar sua ontologia hermenêutica em relação a uma norma positiva, entenda que ela não deva ser aplicada ao seu caso concreto e específico, quer porque revelou-se absolutamente injusta para regular a situação efetiva, quer porque outras possibilidades se lhe apresentaram como mais eficazes para sua existência. Neste caso não há concreção do Direito e surge a necessidade do desencadeamento de um novo momento ontológico hermenêutico tendente a efetivá-lo.

Este último momento ontológico é realizado pelo juiz, a quem compete tornar concreto o Direito em face de uma situação controvertida.

Alguns juízes, entretanto, não têm compreendido bem os seus papéis. Isto ocorre, segundo aponta Lênio Streck, apoiado em Ferraz Jr., porque o sentido comum teórico, que é o conhecimento que se encontra na base de todos os discursos científicos e epistemológicos do Direito, se encontra impregnado de uma espécie de habitus (Bourdieu) ou seja, um conjunto de "crenças e práticas que, mascaradas pela communis opinio doctorum" (1997:422), propiciam a eles uma apreensão acrítica do significado de expressões, de categorias e da própria atividade judiciária, banalizada e rotinizada exatamente em função desta errônea compreensão do fenômeno jurídico e de sua própria inserção no processo.

Exatamente em razão desta rotinização "os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam a ser analisados como meras abstrações jurídicas e as pessoas, protagonistas do processo, são transformadas em autor e réu, reclamante e reclamado, e, não raras vezes, suplicante e suplicado. Neste sentido, pode-se dizer que existe uma espécie de coisificação das relações jurídicas" (Streck, 1997:420).

Na verdade, a investigação que os juízes tem feito do fenômeno jurídico se resume ao ôntico, isto é, a maneira pela qual o Direito se apresenta de maneira sensível e palpável. Não há preocupação em descobrir o verdadeiro ser do fenômeno. Entretanto, "a generalidade da pesquisa ontológica dá-lhe (ao direito) um sentido mais amplo do que as investigações ônticas das ciências positivas, pois propõe indagar a condição do ser e não o significado do ente" (Maman,2003:71).

A visão da grande maioria dos juízes em relação ao Direito, portanto, parece absolutamente insuficiente, na medida que fecha todas as portas para uma transformação social. Neste cenário é difícil entender como medidas de discriminação positiva podem ter o alcance pretendido pela sociedade. Em outras palavras, a garantia de direitos através da ontologia da produção legislativa pode sucumbir diante do descomprometimento do julgador com um modelo transoformador.

Na verdade, como momento ontológico, não fica o juiz, quando da concreção do Direito, adstrito a nenhum dado ôntico específico. Ele deve considerar as várias possibilidades existentes. Em primeiro lugar buscará o resgate da ontologia da norma e identificará a situação de consenso inspiradora. Sua finalidade será de pacificação. Nesta primeira fase, portanto, o juiz não busca necessariamente a justiça, mas a paz social, instância que melhor exprime o consenso. Somente no caso desta pacificação se revelar impossível na situação específica o juiz deve tornar concreto o Direito através da afirmação axiológica da justiça.

A reconstrução dos momentos ontológicos precedentes, feita pelo juiz quando da concreção do Direito, se orienta, num primeiro momento, pela observação dos dados ônticos mais sensíveis: a lei que emergiu da primeira etapa e o fato que surgiu da segunda etapa, tendo como o norte hermenêutico seus próprios valores, que não são singelas emanações subjetivas, mas uma axiologia fundada no processo histórico de realização de uma síntese a partir do desenvolvimento de um movimento dialético. Em outras palavras, a ontologia de concreção do Direito realizada pelo juiz é a reconstrução da ontologia da norma na busca do consenso, exprimida pela possibilidade de pacificação, bem como, se necessário, a reconstrução da ontologia do fato, com a proclamação da solução justa para uma situação que não pode ser pacificada.

A concreção do Direito, portanto, é também um momento ontológico-hermenêutico. Não se trata de interpretar o sentido de uma lei, mas as possibilidades desta lei de fazer justiça ao caso concreto. Este deve ser o objetivo do aplicador que, para conseguí-lo tem que compreender a si mesmo.

Somente mediante a observação das possíveis conseqüências da concreção do Direito em relação ao sujeito pode-se atingir o "direito autêntico". E isto se dá com o escutar do pulsar do indivíduo na sociedade. É por isto que o cidadão tem o poder de resistir (para Ihering, dever de resistir). Somente após escutar todos os interessados e analisar os argumentos justificadores da resistência, bem como outros dados ônticos levantados, poderá o juiz orientar sua ação hermenêutica. A tarefa do julgador, portanto, não pode ser compreendida como a mera adequação de um fato à uma norma. Absolutamente não. O juiz deve pacificar conflitos e dizer a justiça.

Na ontologia de aplicação do Direito não cabe simplesmente a pergunta: o que diz a lei? Existem outros dados para se considerar. Existem outros entes. O fato e o valor, conforme diz Miguel Reale (1960), são entes que devem ser apreciados neste momento. Mas não só eles. Ainda existem outros. A expectativa do juiz em editar um enunciado justo, que é momento ontológico, "se abre a inúmeras possibilidades além das mencionadas, no sentido ôntico; possibilidades riquíssimas do ser humano" (Heidegger 1981:14). O juiz deve considerar a situação em toda a sua inteireza e não pode ficar limitado na consecução deste processo. Seria um contra-senso. É o mesmo que imaginar que a lei pudesse regular toda a pletora de situações concretas de maneira homogênea. Sabemos todos que isto não é possível e nem mesmo desejável.

Mas então, em determinados casos, é lícito ao juiz decidir contra a lei, como apregoam os adeptos do direito alternativo? Para nós isto jamais acontecerá. A lei, criada em um momento ontológico, se apresenta onticamente no mundo impregnada de sua essência vital, que pode ser traduzida pelo consenso e o bem comum. O juiz, no momento da aplicação do Direito, deve reconstruir o fenômeno ontológico da edição da lei e, nesta operação, resgatar seus fundamentos consensuais e teleológicos. Se eles não se mostrarem presentes na situação efetiva esta lei não pode se ajustar ao fato concreto e, então, o julgador deverá suprir eventual lacuna. Não agirá contra a lei. Ao contrário, simplesmente declarará que ela não pode ter aplicação ao caso concreto porque, específica e ocasionalmente, não conduz à uma solução justa. Ele estará agindo em favor da lei, que foi criada exatamente para orientar um processo de construção de uma solução justa.

Quando torna o Direito concreto o juiz deve utilizar-se de seus valores, de suas impressões e indicar suas escolhas. Referido processo, entretanto, não conduz a um subjetivismo, consoante em princípio seria lícito supor. A necessidade de reconstrução dos momentos ontológicos precedentes e a possibilidade concreta conferida aos resistentes de manifestar as suas razões determinam, através da síntese dialética, a verificabilidade objetiva da axiologia deduzida. Em outros termos, é pressuposto necessário para a ontologia de distribuição da justiça a participação do interessado. Esta participação, para ser efetiva, não pode ser considerada dentro de um contexto puramente formal, mas essencialmente substancial. A participação, portanto, no horizonte de concreção do Direito, é pressuposto de eficácia política do ato [24] e, desta forma, é exatamente ela que afasta a pura subjetividade do julgador e permite a efetivação de uma ontologia hermenêutica fundamental do fenômeno jurídico.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cidadão participa de maneira decisiva de todos os momentos ontológicos do Direito. No processo de formação da norma atua como propulsor de pressão social. Nesta fase ele reclama a revitalização do consenso inspirador e denuncia a leitura equivocada dos institutos e princípios que lhes são caros, deflagrando um momento capaz de redundar na produção de um enunciado genérico atento às suas reivindicações. Lado outro, o indivíduo deve compreender o Direito à luz de suas necessidades, produzindo uma crítica ideológica do modelo. A partir daí, deve resistir à concreção de um fenômeno jurídico capaz de gerar uma injustiça a partir de uma ontologia hermenêutica. Finalmente, atua também como co-partícipe no processo de reconstrução dos momentos ontológicos anteriores, feito pelo juiz na situação conflituosa concreta, uma vez que é exatamente a partir de suas considerações que o Estado vai poder atuar. Os modernos sistemas processuais têm permitido, inclusive, instrumentos de defesa coletiva que garantem a participação de determinado grupo ou categoria de pessoas nesta última ontologia hermenêutica.

Em razão do que se expôs, pode-se deduzir que o conceito tradicionalmente conferido às medidas de discriminação positiva resulta insuficiente para a compreensão do instituto, assim como limitador de suas potencialidades. Desta forma, é premente a necessidade de afirmação de novos parâmetros conceituais a partir das raízes do fenômeno jurídico, que estão calcadas no consenso social e teleologicamente informadas pelo bem comum. Neste diapasão, somente por meio de uma reconstrução da individualidade se pode atingir a essência das medidas antidiscriminatórias e entendê-las como providências tendentes à reapropriação do espaço público, usurpado pelo sistema capitalista de produção. Nesta medida, a compreensão do fenômeno em estudo somente se revela factível à luz da constatação de que o sistema social vigente é o grande propulsor das desigualdades sociais, cuja desconstrução somente se revelará possível a partir de uma ontologia hermenêutica do fenômeno jurídico.


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NOTAS

1 Os semitas, por exemplo, não carecem, em regra, de nenhuma proteção econômica governamental. Com relação a eles, portanto, as medidas de discriminação positiva não devem visar a garantia de ascensão social.

2 No ano de 2002, por exemplo, foi proclamada a Declaração de Madri no Congresso Europeu sobre incapacidade (realizado entre 20 a 23 de março). O segundo artigo do referido documento assinala que: "La Unión Europea, al igual que otras muchas otras regiones del mundo, há recurrido um largo camino durante lãs últimas décadas desde uma concepción paternalista sobre lãs personas com discapacidad hasta outra que lês faculta a decidir sobre sus proprias vidas. Los viejos enfoques baseados em grand medida em la compasión y em la indefensión se consideran inaceptables. La ación está girando desde el énfasis em la rehabilitación Del individuo hacia uma concepcón global que aboga por la modificación de la sociedad para incluir y acomodar lãs necessidades de todos los ciudadanos, incluidas las personas con discapacidad reclaman la igualdad de oportunidades y de acceso a los recursos sociales, como, por ejemplo, el trabajo, uma educación integradora, el acesso a las nuovas tecnologias, los serviços sociales y sanitarios, el deporte y actividades de ócio, y a productos, bienes y servicios de consumo."

3 Não é nossa intenção neste trabalho delinear o desenvolvimento histórico do instituto. Para quem desejar se aprofundar na historicidade da discriminação positiva, indicamos a insuperável obra de Barbosa Gomes (2001).

4 O termo "ação afirmativa" é preferido pela tradição americana enquanto que o "discriminação positiva" é mais usado na Europa (Gomes, 2001).

5 Esta visão é absolutamente compatível com a teoria sociológica do culturalismo, adotada, entre outros, por Alain Touraine e Claus Offe.

6 Retórica, Livro II.

7 Interessantes estudos sobre sentimento e ética foram feitos por Souto ( 2004 ) e Boff (2003).

8 Advirta-se que a conclusão acima não está relacionada diretamente ao jusnaturalismo. Na verdade, o que queremos dizer é que os princípios e fundamentos do fenômeno jurídico já se apresentaram historicamente e, exatamente por isto, não podem mais ser modificados.

9 Na verdade, idéias como a teoria do Poder Constituinte Originário e do direito de revolução, outra coisa não são do que a afirmação da possibilidade sempre presente do Direito romper espúrias ligações com a classe dominante e se por à serviço do povo, já que é nele que reside seu fundamento último.

10 Um mandado de segurança, por exemplo, deferido a um homossexual relacionado ao direito de herança de um companheiro falecido é medida individual de discriminação positiva.

11 Expressão utilizada no sentido do que funda, do que constituí a base e a premissa do fenômeno jurídico.

12 "Personas que nadie há elegido lhegan a tener más autoridad que los mismo gobiernos democraticamente elegidos, por ser depositarios de la ciência y representantes de la razión. El experto es sacralizado como el sacerdote de la nueva religión y, como todo sacerdote, pretende de lãs masas fé em sus oráculos" (Girardi, 2002: 133).

13 Para Lenio Luiz Streck (1997:427): "A modernidade propôs uma dupla possibilidade para a humanidade. Por uma delas, a realização da razão seria o desenvolvimento universal de um sistema social que concretizasse o princípio da igualdade formal, através da crescente redução das desigualdades reais no mundo moderno. Tal não aconteceu. Ao contrário, o que ocorreu foi a pós modernidade aprofundar a irracionalidade, aumentar as diferenças e consolidar relações cada vez mais alienadas. Foi isto o que os homens modernos fizeram de sua história. A razão foi assaltada no sentido de ser despida de sua vocação humanizadora."

14 Não é preciso ir muito longe para descobrir este novo paradigma científico. Basta abrir um tratado de física para se confrontar com um discurso de relatividade de massa, de espaço-tempo e de probabilidade (física quântica ). Hipóteses são edificadas com base em teorias filosóficas para explicar formas energéticas cada vez mais sutis. Partículas elementares são cada vez menores e seu comportamento individual se revela "anômalo como o de indivíduos humanos singulares e as regularidades observáveis se referem antes a conjuntos massificados de numerosas partículas sub-atômicas que formam, antes um mundo de possibilidades e tendências e não de fenômenos e coisas" (cf. Souto, 1997: 27).

15 Substancialmente considerado o Direito não pode descurar-se de seu princípio consensual informador e da motivação teleológica ao bem comum. Despido destas características o fenômeno jurídico apresenta-se absolutamente desfigurado e, portanto, despido de legitimidade.

16 Não seria possível, neste trabalho, elencar o pensamento das várias correntes da hermenêutica jurídica. Para quem desejar se aprofundar no tema deve ser consultada a obra de Carlos Maximiliano ( 1941 ).

17 Esta afirmação não deve causar estranheza já que durante os últimos Séculos o Direito foi sempre interpretado na conformidade dos interesses da classe dominante.

18 Já tivemos oportunidade de desenvolver as linhas gerais do raciocínio a seguir no artigo Direito e ontologia hermenêutica fundamental:alguns paradigmas para a compreensão do fenômeno jurídico, ainda não publicado, bem como no Justiça, ethos e ontologia hermenêutica fundamental do direito: o amor como enunciado-dirigente axiológico, igualmente não publicado até o presente momento.

19 Em 1993, por exemplo, a PUC-Rio atribuiu a estudantes negros pobres bolsas de estudo de 100%, reclassificando-os em vagas abandonas por outros candidatos.

20 Cf. http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2004/06/28/ult32u8597.jhtm, acesso em 29 de junho de 2004.

21 Seguindo as pegadas de Solon Spanoudis na apresentação da tradução de um texto de Heidegger (1981), necessário um esclarecimento preliminar acerca das expressões ôntico e ontológico, existenciário e existencial. Fazemos isto com o escopo de superar a singela idéia hoje presente no Direito, herdada do positivismo jurídico, que nossa ciência é um dado (fenômeno ôntico portanto), já que totalmente identificado com a lei positiva. Nossa argumentação é de que o Direito é fenômeno existencial e por isto sua compreensão só será possível por meio de uma ontologia hermenêutica. Pois bem, a palavra existência não pode ser traduzida por realidade, como costumeiramente se faz. Existência vem do verbo ek-sistere; ek sistência é algo que emerge, se manifesta, se desvela. Tudo o que é percebido, entendido, conhecido de imediato, é ôntico. A lei positiva é ôntica. São dados necessários para a descoberta do que se manifesta, do que se descortina, vale dizer, da existência. Pode-se dizer, a partir daí, que o Direito também é ôntico? Entendemos que não (para nós, evidentemente, o Direito não se resume na norma positiva). Heidegger parte da vida cotidiana para mostrar os fenômenos ônticos e seus aspectos ontológicos. Uma das características fundamentais do ser humano é a perspectiva "futural" (Heidegger, 1981:12). O homem sente-se sempre impelido a ir adiante, a prever a eclosão de possibilidades. Por exemplo, a partir da ciência de que Jarbas matou Jonas, o homem passa imediatamente a especular sobre o futuro de Jarbas. Será condenado? Será preso? Agiu bem? Foi movido por ciúmes? Cumprirá a pena? Será absolvido? É inocente? O prever, neste exemplo, "é o ontológico, aquilo que possibilita as diversas maneiras de se prever o resultado; é uma característica primordial, fundamental do ser humano, uma existenciália, entre outras e não se confunde com causa" (Heidegger, 1981:13). Mas a partir de que dados o homem pode prever o que acontecerá com Jarbas? A lei positiva é um dado ( embora não seja o único ), na medida que ela prevê uma sanção para aqueles que cometem um homicídio ou mesmo reconhece causas que excluem o crime; a reação das pessoas contra (ou mesmo a favor) o comportamento de Jarbas, observáveis sistematicamente, também pode servir de parâmetro possibilitador de uma previsão; a condição econômica de Jarbas, se ele é rico, se ele é pobre, se pode constituir um bom advogado ou não, enfim, também isto tudo influirá na previsão sobre seu futuro. Todos estes dados correspondem ao ôntico ou existenciário.

22 A totalidade das medidas apresentadas pelos comunistas estão em http://freipedro.pt/tb/030200/polit4.htm acesso em 04/06/2004.

23 Esta é a posição que Wittgenstein sustenta na segunda fase de seu trabalho, por ocasião da publicação das Investigações Filosóficas.

24 Já tivemos oportunidade de estudar o direito de defesa como pressuposto de eficácia política do ato administrativo. No referido estudo se advoga a tese de que " o administrado tem o direito de ser ouvido antes da tomada de uma decisão pela administração, sempre que tenha que suportar os efeitos resultantes deste ato. A necessidade desta prévia audiência tem dupla finalidade, de um lado é garantia do cidadão e de outro é recomendada pela boa administração" (Ferreira, 1997: 18).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Luiz Alexandre Cruz; FERREIRA, Alexandre Mendes Crus. Hermenêutica afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva. Re-pensando o conceito das ações afirmativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 528, 17 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6054. Acesso em: 24 abr. 2024.