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Lei 13.146/15: inclusão ou desproteção?

Lei 13.146/15: inclusão ou desproteção?

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Este artigo tem a finalidade de pautar a atual mudança da teoria das incapacidades sofrida no Código Civil através da Lei 13.146/15, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Resumo: Este artigo tem a finalidade de pautar a atual mudança da teoria das incapacidades sofrida no Código Civil através da Lei 13.146/15 conhecida como Estatuto da pessoa com deficiência. A mudança que iremos tratar se refere à alteração que declara o deficiente relativamente incapaz, ou seja, a partir da lei atual, a pessoa com deficiência tem maior autonomia para exercer seus direitos civis. Para que se compreenda a importância da Lei de inclusão, traremos à tona reflexões a respeito de: Estado Democrático de Direitos, princípio da igualdade e dignidade humana; que é algo inerente ao ser humano independente de quem seja. A teoria das incapacidades é uma forma de proteger as pessoas em seus negócios civis, por isso é questionável a decisão que revogou os incisos: I,II e III do art. 3º do Código Civil, (essa alteração será vista no artigo através da tabela “Alterações sofridas no Código Civil a respeito das incapacidades”) que agora passa a trazer maior responsabilidade aos deficientes no momento de exercer negócios civis. Esses questionamentos são tratados por diversos doutrinadores, por isso para reforçar o conteúdo exposto no artigo, trouxemos declarações de Nelson Rosenvald e José Fernando Simão com a finalidade de expor posicionamentos já formados a respeito do assunto.

PALAVRAS-CHAVES: Direitos. Dignidade. Igualdade. Deficiência. Incapacidade.

Sumário: Introdução; 1. Estado Democrático de Direitos; 1.1 O Princípio da Dignidade Humana; 1.2 Direitos Humanos; 1.3 Princípio da Igualdade; 2. Incapacidades do Código Civil brasileiro; 3. Considerações sobre o efeito da lei 13.146/15. Conclusão. Referências


Introdução

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 46,6 milhões de pessoas que declaram ter algum tipo de deficiência, ou seja, 23,9% da população brasileira. Com esses números expressivos nota-se a relevância da Lei 13.146 promulgada em 06 de Julho de 2015, conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Usando-se da supramencionada como base para elaboração desse artigo científico que têm como objetivo: expor a dualidade presente entre a Lei 13.146/15 com atual modificação do vigente Código Civil, que deixa de declarar o deficiente como absolutamente incapaz, ou seja, a partir de agora a pessoa com deficiência possui maior autonomia para exercer seus direitos civis. Essa autonomia pode se tornar perigosa, já que muitos não detêm de aptidão alguma para realizar negócios jurídicos. Contudo, é inegável considerar que a Lei de Inclusão se valeu como chave para a liberdade de exercer direitos.

Para que se compreenda as suas nuances, se faz necessário que se traga à tona reflexões a respeito de: Estado Democrático de Direitos, Direitos Humanos e Teoria das Incapacidades.

Nota-se que para a construção de um Estado Democrático de Direitos, é essencial que o ordenamento jurídico vigorante, tenha como o princípio base a dignidade humana. Nesse contexto, constata-se que a República Federativa do Brasil, o tem, como um dos seus princípios fundamentais. Nortear-se pelos Direitos Humanos, que se encontra positivados na CF/88, que deixa claro em seu texto a importância do respeito aos mesmos.

Expondo ainda a Teoria das Incapacidades, que tem como propósito proteger a relações negociais e patrimoniais, nota-se uma dualidade questionável na decisão que revogou os incisos: I,II e III do art. 3º do Código Civil, que agora passa a trazer maior responsabilidade aos deficientes no momento de exercer negócios civis.O presente artigo tem como propósito apresentar a relevância dos supracitados na construção da reflexão crítica e sistemática abordada no referido, usando-se de assertivas de alguns operadores do Direito, que contribuíram para uma maior compreensão a respeito da dignidade humana, incapacidades e a nova forma classificatória.


1. Estado Democrático de Direitos

 A Constituição Federal de 1988 consagra no preâmbulo e no caput do art. 1°, o Estado Democrático de Direitos como um dos princípios fundamentais:“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (BRASIL, 1988, grifo nosso).

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.” (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Sendo assim; vários direitos, garantias e deveres foram assegurados e protegidos dentro da Constituição. Podem-se considerar tais direitos como o direito à vida, a dignidade da pessoa humana, respeito pelos direitos humanos, direitos sociais e a liberdade.

José Afonso da Silva interpreta o Estado Democrático de Direitos com a junção do Estado de Direito e Estado Democrático:

“A promoção de um processo de convivência social numa sociedade, livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos; participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos do governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses distintos da sociedade, há de ser um processo de libertação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de direitos individuais, coletivos, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas, suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.” (SILVA, 2009).

Lênio Streck e Bolzan de Morais apontam que:

“O Estado Democrático de Direito tem como princípios a constitucionalidade, entendida como vinculação deste Estado a uma Constituição, concebida como instrumento básico de garantia jurídica; a organização democrática da sociedade; um sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, de modo a assegurar ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, bem como proporcionar a existência de um Estado amigo, apto a respeitar a dignidade da pessoa humana, empenhado na defesa e garantia da liberdade, da justiça e solidariedade; a justiça social como mecanismo corretivo das desigualdades; a igualdade, que além de uma concepção formal, denota-se como articulação de uma sociedade justa; a divisão de funções do Estado a órgãos especializados para seu desempenho; a legalidade imposta como medida de Direito, perfazendo-se como meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo de normas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; a segurança e correção jurídicas.” (STRECK, DE MORAIS, 2006).

Pode afirmar que é um Estado que aduna anseios do Estado Liberal e do Estado Social, mas que não deixa de abranger as reivindicações sociais, econômicas e políticas. É um Estado que visam direitos e obrigações para todos, sem distinção.

Dessa forma, qualquer indivíduo é considerado um cidadão que têm direitos e deveres que devem ser garantidos e cumpridos de acordo com as normas.

1.1               O princípio da Dignidade Humana

A dignidade é algo que sempre fez parte do homem, embora, por vezes, não tenha sido considerada em todos. Ou seja, muitos tiveram sua dignidade negligenciada e não reconhecida no decorrer da história da humanidade.

O princípio da dignidade humana, de acordo com Nunes (2002, p.45), é o “principal direito fundamental constitucionalmente garantido”.

Tal princípio situado no rol de direitos fundamentais apresentado na Constituição Federal de 1988, tendo como os artigos 1° ao 4°:

Art. 1º, III da Constituição Federal:

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana.’

Art. 4°, II da Constituição Federal:

“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

II – prevalência dos direitos humanos.’’ (grifo nosso)

Segundo a observação de Comparato:

“A nossa Constituição de 1988, [...], põe como um dos fundamentos da República ‘a dignidade da pessoa humana’ (art. 1º, inciso III). Na verdade, este deveria ser apresentado como o fundamento do Estado brasileiro e não apenas como um dos seus fundamentos.”

E mais na frente:

“se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerando em sua dignidade substância da pessoa, cujas especificações individuais e grupais são sempre secundárias.” (COMPARATO 1998, apud, VANINI, 2005, p.176)

Outra interessante definição relacionada à dignidade da pessoa humana foi feita por Scarlet:

“[...]temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (SCATLET, 2001, apud SANTANA, 2010, p.60, grifo nosso)

Conforme Marcelo Novelino:

“[...]a dignidade da pessoa humana possui três dimensões normativas: I) metanorma, para atuar “como diretriz a ser observada na criação e interpretação de outras normas […] ”; II) “princípio, que impõe aos poderes públicos o dever de proteção da dignidade e promoção dos valores, bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna; e, III) uma regra, a qual determina o dever de respeito à dignidade, seja elo Estado, seja por terceiros […]”(NOVELINO, 2016, apud CARVALHO, REZENDE, 2017, p. 254).

Considera assim a dignidade humana como o ponto moderador do Estado e do Direito, sendo aplicável em toda interpretação e podendo ser apontada como fundamental a todos as relações, e por consequência a existência de qualquer pessoa, indiferentemente se as mesmas possuírem alguma limitação, sendo visual, de locomoção, física auditiva, cognitiva e outras.

O Princípio da Dignidade Humana é necessário, para que qualquer indivíduo consiga exercer os direitos que lhe são assegurados, para a obtenção de uma vida digna.

1.2 Direitos Humanos

A origem do conceito dos Direitos Humanos encontra-se na filosofia, dos “direitos naturais”, supostamente atribuídos por Deus. Por isso, muitos filósofos defendem a não existência de diferenças entre os direitos humanos e os direitos naturais, sendo John Locke um dos mais importantes filósofos a desenvolver tal teoria.

Os Direitos Humanos são os direitos e liberdades que todos os seres humanos possuem, indistintamente. Estando compreendidos em um enorme conjunto de direitos, como por exemplo, direitos políticos, econômicos, culturais, civis e sociais. Sendo assim, abrange o direito à liberdade, à vida, à moradia, à saúde, à educação, à paz, ao progresso e ao meio ambiente, dentre vários outros.

A ONU proclamou uma declaração que deve ser respeitada por todas as nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E de acordo com essa Organização, os Direitos Humanos “são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. O que são direitos humanos, 2017).

1.3        Princípio da Igualdade

Como previsto em variados trechos da Constituição Federal de 1998, destacando o caput do Art. 5°, o princípio da igualdade:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (grifo nosso).

Ressaltado por Coutinho (2013, apud, SCHMIDT, 2016, p. 15), a igualdade tem sido identificada “como peça-chave na concepção e no desenho das normas por legisladores, em sua implementação por meio de iniciativas de política pública e em sua interpretação por juízes e tribunais”.

Dessa forma, além da igualdade na lei, o objetivo é a busca da igualdade concreta, sendo essa na atual realidade onde tudo se ocorre, e que por vezes para tornar alguém igual, necessite desigualar outrem.A dificuldade diante disso seria saber até que ponto o tratamento desigual não gera um ato inconstitucional.

De acordo com Rui Portanova, na paráfrase de Marcelo Amaral da Silva (2003, p.1):

“A interpretação desse princípio deve levar em consideração a existência de desigualdades de um lado, e de outro, as injustiças causadas por tal situação, para, assim, promover-se uma igualização. [...]. Sua razão de existir certamente é a de propiciar condições para que se busque realizar pelo menos certa igualização das condições desiguais.” (SILVA, 2003, apud SILVA, 2011).

Dessa maneira, o Princípio da Igualdade teria uma aplicação dupla: uma teórica, que seria de “repulsa os privilégios injustificados” e de prática, com uma contribuição na diminuição dos “efeitos decorrentes das desigualdades em um caso concreto”. Assim, a igualdade passaria a figurar como “ponte entre o direito e a realidade que lhe é subjacente” (SILVA, 2003, apud SILVA, 2011).

Vale salientar que a proteção das pessoas com deficiência deve ser feita através das leis sendo essa a teoria, e o cumprimento das mesmas na prática. Só desta forma a dignidade será completa e protegerá a igualdade sem discriminação.


2. Incapacidades no Código Civil brasileiro

A capacidade civil pode ser classificada através do nível de aptidão do indivíduo em compreender e exercer negócios jurídicos em geral. Esses níveis quando observados, são classificados em: (a) Capacidade plena ou de fato: que diz respeito às pessoas que tem capacidade de Direito e de exercício de negócios civis por conta própria, sem a ajuda de um representante ou auxiliar, sendo todos os seus atos guiados por suas próprias vontades.  (b) relativamente incapaz: Pessoas que possuem capacidade de Direitos, mas tem o exercício deles limitados, ou seja, o relativamente incapaz tem o direito de expressar suas vontades nos negócios civis, porém assistido por um auxiliar. (c) O absolutamente incapaz:

É o indivíduo que não possui até uma determinada idade, a aptidão para exercer seus Direitos, sendo eles os menores de 16 anos. Para esses, os negócios civis são feitos por seus representantes. A breve classificação vista anteriormente faz referência ao atual Código Civil Brasileiro que sofreu alterações influenciadas pelo Estatuto da pessoa com deficiência.

É importante observar que o Código Civil quando titula a capacidade das pessoas, tem o objetivo de protegê-las. Essa proteção quando modificada, causa grandes conflitos entre os doutrinadores e operadores do Direito.

Veja a seguir um breve comparativo do Código Civil antes e depois da nova Lei:

 Tabela 1 Alterações sofridas no Código Civil a respeito das incapacidades

Código Civil de 2002

Lei. 13.146/15 – Nova Redação

Art.3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade

Art.3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.

I - (Revogado);

II - (Revogado);

III - (Revogado). (NR)

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;

III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;

IV - os pródigos.

Parágrafo único.

A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

Art.4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;

III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;

........................................................................

IV - os pródigos.

Parágrafo único.

A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.

De acordo com Flávio Tartuce (2017, p. 86): “O sistema de incapacidade anterior não protegia a pessoa em si, mas os negócios e atos praticados, em visão excessivamente patrimonialista”.


3. Considerações sobre o efeito da lei 13.146/15 

A Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência que entrou em vigor no país em Janeiro de 2016, com efeito de emenda constitucional, teve os principais focos em igualdade e inclusão social aos deficientes. Os seus efeitos nas leis, acarretou alterações, como por exemplo, as vistas acima na tabela 1, tirando os deficientes da condição de absolutamente incapazes,  e os incluindo na condição de relativamente incapaz através do inciso III.

Flávio Tartuce explica: “No inciso III, não se usa a expressão excepcionais sem desenvolvimento completo, substituída pela antiga previsão do art. 3º, III, da codificação (pessoas que por causa transitória ou definitiva não puderem exprimir vontade) O objetivo, mais uma vez, foi a plena inclusão das pessoas com deficiência, tidas como capazes no novo sistema e eventualmente sujeitas à tomada de decisão apoiada.” (2017, p. 91). A aplicação desse instituto pode ser considerada como uma forma de trazer avanços sociais para a sociedade brasileira, pois com a inclusão das minorias aqui tratadas, elas não vão se sentir mais excluídas, menosprezadas ou menos humanas. O sentimento de autonomia que elas irão obter com a Lei 13.146/15, traz à tona a isonomia de que tanto a sociedade atual anseia.

No Capítulo II do Estatuto, se trata da Igualdade e da não Discriminação, declarando no art. 4º:

 “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação” (BRASIL, 2015).

A presente declaração de igualdade, explicitada também na Constituição Federal Brasileira de 1988, traz um amparo, de que todos os deficientes devem ser vistos de forma igual aos demais indivíduos. Tal conquista não se limitam apenas em ser vistas como iguais.

A Lei também assegura a capacidade de lhes dar a oportunidade de exercer seus atos pessoais e jurídicos de forma mais autônoma possível. Declaradas no art. 6º:

 “art. 6º  A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I - casar-se e constituir união estável;

II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. (BRASIL, 2015)”

Ao analisar as considerações feitas no presente art. 6º e ponderar o que os deficientes já passaram nos séculos passados. É possível ver um arco-íris depois de uma era tempestuosa de discriminação e desvalorização humana. Esta Lei tem como finalidade conceder ao deficiente o direito de gozar do que lhe pertence e almeja.

De acordo com Flávio Tartuce: “Podem existir limitações para os atos patrimoniais, e não para os atos existenciais, que visam a promoção da pessoa humana” (2016, p. 85, grifo nosso).

Apesar de todas as conquistas agora asseguradas, o que entra em discussão e causa grande preocupação, é em relação aos que necessitam de uma representação total em seus atos jurídicos.

Veja o que o advogado e também professor da universidade de São Paulo José Fernando Simão diz a respeito da incapacidade relativa de quem não pode exprimir sua vontade “A mudança legislativa é extremamente prejudicial àquele que necessita de representação e não de assistência e acarreta danos graves àquele que o Estatuto deveria proteger”, ele expressou sua opinião com base na situação de que: uma pessoa em coma induzido por questões médicas, e por consequência durante um determinado tempo não tenha nenhum discernimento.

Ao examinar essa situação, nota-se o seguinte questionamento; ela poderá exercer um ato com apenas um auxílio ou assistência?  É em circunstâncias como essas que questionamos se a atual lei realmente é capaz de produzir plenos efeitos fáticos.

Em contrapartida, a respeito da incapacidade absoluta, o Dr. Nelson Rosenvald diz:

 “A incapacidade absoluta é incompatível com o sistema civil brasileiro pelo fato de que não se admite em um ordenamento jurídico guiado pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pela Convenção Internacional de Pessoas com Deficiência que regras de direito civil possam “a priori“ estabelecer categorias de “não pessoas”. Inversamente, os diversos tons da incapacidade relativa permite agasalhar todo tipo de assistência – desde as menos às mais extensas - conforme indique o projeto terapêutico individualizado levado a efeito por uma avaliação biopsicossocial que verifique, simultaneamente, o histórico clínico e social do indivíduo, com um olhar voltado para a pessoa e outro para o entorno“.

Como o objetivo de solucionar as questões discutidas em relação a representação, auxílio e curatela, está em tramitação no Senado Federal o projeto de lei 757/2015 que pede a não vinculação automática das pessoas com deficiência a qualquer determinação prévia de incapacidade, garantindo assim que qualquer pessoa com ou sem deficiência tenha apoio necessário para os atos da vida civil.

Alguns juristas considera esse projeto como um retrocesso, outros já acreditam na regulação dos processos civis, onde há situações específicas de pessoas sem qualquer condição de exprimir suas vontades.

Por enquanto, é de total responsabilidade dos juízes determinar de forma mais justa e coerente possível se o curador vai auxiliar ou apenas assistir a pessoa com deficiência em seus atos civis, já que no art. 85º deixa claro apenas que o curador atuará em assuntos patrimoniais.

“Artigo 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

§ 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

§ 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. “(BRASIL, 2015, grifo nosso).

É preocupante o que pode acontecer às pessoas com deficiência, pois boa parte deles não possuem capacidades cognitivas para compreender de fato o que será bom ou ruim para si mesmo ao, por exemplo: assinar um contrato. José Simão cita uma situação que causa grande preocupação a respeito disso. Veja:

“Alguém com deficiência leve, mas com déficit cognitivo, e considerado relativamente incapaz por sentença, assinar um contrato que lhe é desvantajoso (curso por correspondência de inglês ofertado na porta do metrô) (...) Com a vigência do Estatuto esse contrato passa a ser, em tese, válido, pois celebrado por pessoa capaz. Para sua anulação, necessária será a prova dos vícios do consentimento (erro ou dolo) o que por exigirá prova de maior complexidade e as dificuldades desta ação são enormes.” (grifo nosso).

Não dá para negar que as pessoas com deficiência, dependendo da patologia, têm maior risco de serem alienadas por pessoas más intencionadas. Se um deficiente é lesado em ações contratuais, dentre outros, para reverter o ato que o prejudicou será mais dificultoso.  Por esse motivo, cabe aos familiares/curadores, zelar ainda mais por seus filhos, esposa, pais, irmãos e parentes com deficiência, pois a nova Lei embora possua inúmeros direitos benéficos, também causa vulnerabilidade e desproteção.

A responsabilidade dos juízes também deve ser levada em consideração ao nomear curador, pois é de suma importância que o deficiente tenha alguém que o auxilie de forma benéfica e não exploratória.


Conclusão

Considera-se a dignidade humana como um direito inegociável e irrevogável. Nem mesmo o Estado, dotado de soberania, é capaz de negligenciar este direito considerado existencial. Motivo este que as normas que regem um Estado Democrático de Direitos deve adotar a pessoa como seu alvo principal.A respeito do princípio da isonomia, isto é, a igualdade, pode-se compreender a necessidade de se ter leis que beneficiem e deem suporte à pessoa que possui determinadas limitações. Para se chegar a uma sociedade igualitária, é necessário que os indivíduos possuam os mesmos direitos e deveres, dentro do que lhe compete, e a respeito disso, vale ressaltar que as capacidades civis, que dão autonomia na medida em que ela pode ser cumprida.

O sistema das incapacidades oferece ao relativamente e absolutamente incapaz o direito de ter assistência se for relativamente incapaz, e representação, se o caso indivíduo for absolutamente incapaz. Esse sistema pode ser considerado uma forma de igualdade, pois quando oferece suporte para essas pessoas, elas também estão gozando dos seus direitos, e neste caso, o direito principal é a proteção de seus bens.

 A autonomia adquirida por elas, declaradas relativamente incapazes traz à tona uma nova concepção à sociedade. Os Direitos existenciais garantidos às pessoas com deficiência dão maior sentido de viver e com isso proporciona a oportunidade de mostrar que também possuem anseios e tem direito de gozar deles de igual modo aos demais.

Apesar do grande avanço devido à Lei de Inclusão, ela deixa a desejar no aspecto de não permitir mais a possibilidade de serem representados, pois é inevitável que haja casos de pessoas totalmente inaptas a cumprirem seus atos da vida civil, seja por um estado comatoso ou por uma patologia grave, por exemplo. Por causa dessa falha, a PLS 757/2015 que ainda está em tramitação no Senado Federal, tem a proposta de oferecer apoio suficiente ao indivíduo que necessite de atos da vida civil, seja ele deficiente ou não.Enquanto o projeto não é aprovado, caberá aos magistrados definir um curador que seja capaz de respeitar as vontades do curatelado. 

Ademais, caberá ao curador zelar pelo patrimônio do relativamente incapaz dando assistência necessária sem interferir nos direitos existenciais, apenas oferecendo suporte, como o aconselhamento a respeito dos atos civis, tendo em mente que a decisão final virá da pessoa relativamente incapaz.


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