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Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária

Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária

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INTRODUÇÃO

A DIVERGÊNCIA ENTRE O SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL E O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O Supremo Tribunal Federal decidiu no mês de setembro, em recurso extraordinário 252.748-3/SP, pelo Ministro Relator Celso de Mello, que:

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 252.748-3 SÃO PAULO

RELATOR MINISTRO CELSO DE MELLO

"ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR FIDUCIANTE. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL. INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO."

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, no mês de outubro, decidiu em três oportunidades da seguinte forma e em divergência com a decisão da Corte Suprema:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL 122318/MG 18.10.1999 3 TURMA

RELATOR MINISTRO NILSON NAVES

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA (LEI 4728/65 E DECRETO 911/69). PRISÃO CIVIL (FALTA DE CABIMENTO). SEGUNDO DECISÃO DA CORTE ESPECIAL DO STJ, É ILEGÍTIMA, OU É ILEGAL A PRISÃO CIVIL DO ALIENANTE OU DEVEDOR COMO DEPOSITÁRIO INFIEL (ERESP 149.518). DA TERCEIRA TURMA, MC 1709 E HC 8324. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO

(PARTICIPARAM DA VOTAÇÃO OS MINISTROS EDUARDO RIBEIRO, WALDEMAR ZVEITER, ARI PARGENDLER E MENEZES DIREITO)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL 222242/MG 04.10.1999 3 TURMA

RELATOR MINISTRO EDUARDO RIBEIRO

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PRISÃO CIVIL. A INCORPORAÇÃO A NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO DAS DISPOSIÇÕES CONSTANTES DO PACTO DE SÃO JOSÉ DE COSTA RICA ELIMINA A POSSIBILIDADE DE PRISÃOCIVIL, TRATANDO-SE DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.

(PARTICIPARAM DA VOTAÇÃO OS MINISTROS WALDEMAR ZVEITER, ARI PARGENDLER , MENEZES DIREITO E NILSON NAVES)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

MEDIDA CAUTELAR1899/SP 11.10.1999 4 TURMA

RELATOR MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA

PROCESSO CIVIL. CAUTELAR.LIMINAR CONCEDIDA MONOCRATICAMENTE PELO RELATOR. PRISÃO CIVIL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. DESCABIMENTO. NOVA ORIENTAÇÃO DA CORTE ESPECIAL REFERENDADA PELA TURMA.

I. CONFORME DECIDIU A CORTE ESPECIAL (ERESP 149.518-GO) EM SESSÃO REALIZADA DIA 5.5.99, DESCABE PRISÃO CIVIL EM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, POR NÃO SE TRATAR DE DEPÓSITO TÍPICO.

II. PRESENTES O PERICULUM IN MORA E O FUMUS BONIS IURIS, RESTA REFERENDADA PELA TURMA A LIMINAR CONCEDIDA PELO RELATOR, COM O ESCOPO DE COMUNICAR EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL PARA IMPEDIR A DECRETAÇÃO DE PRISÃO DOS RÉUS EM DECORRÊNCIA DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE QUE TRATAM OS AUTOS.

(PARTICIPARAM DA VOTAÇÃO OS MINISTROS BARROS MONTEIRO, CESAR ASFOR ROCHA, RUY ROSADO DE AGUIAR E ALDIR PASSARINHO JUNIOR)


DIRETRIZES DE ORDEM TÉCNICA E JURÍDICA E A IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL EM CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA

As diretrizes de ordem técnica e jurídica tem por fim apurar a constitucionalidade ou não da prisão civil em contratos com a garantia da alienação fiduciária.

A controvérsia não é nova, mas o interesse se avulta em função de posicionamentos jurisprudenciais divergentes entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.

A origem do instituto da alienação fiduciária em referência com a Lei nº 4.728/65 (Lei de Mercado de Capitais) que por meio do art. 66 disciplinou a figura da alienação fiduciária em garantia. Depois a questão ficou expressamente delimitada no Decreto Lei 911/69 que instituiu a Lei da Alienação Fiduciária. O momento que se encontrava a vida nacional, quando da criação da alienação fiduciária, convinha desenvolvimento econômico do País notadamente porque a circulação do crédito é fonte direita do incremento de produção e expansão do escoamento do que se produz.

E não é por outro motivo que para facilitar a obtenção de crédito, tornava-se indispensável garantir de maneira mais eficiente possível a figura do credor, não onerando demasiadamente o devedor, ainda mais em face do sistema criado pelo Código de Defesa do Consumidor visando, no mais das vezes, proteger a parte mais fraca na contratação.

Essencialmente, tem a alienação fiduciária função de transferir "ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independente de tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direito e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal."(art.66 da Lei citada). No contrato em questão, o devedor transfere ao credor a propriedade de bens móveis, para garantir o pagamento da dívida contraída, sob a condição de uma vez liquidada, tornar-se proprietário incondicional do bem transferido.

Com efeito, o elemento determinante de tal contrato é a confiança entre o fiduciante (alienante) e o fiduciário (adquirente), de tal forma que aquele tem a expectativa de que voltará a ser dono do bem uma vez verificado o implemento da condição, vale dizer, o pagamento da obrigação. Daí porque afirma-se que a propriedade do fiduciário é resolúvel.

Com mais precisão temos o importante estudo do mestre Orlando Gomes onde esclarece que: "Sob o aspecto técnico, a esperança do retorno da propriedade consubstancia-se na pretensão restituitória, consistente na faculdade, contratualmente assegurada, de exigir do proprietário fiduciário que lhe devolva o direito fiduciariamente transferido tanto que resolvido pelo implemento da condição. A obrigação de restituir é o elemento natural do contrato".

Mas deve-se ressaltar que segundo o que nos informa a doutrina, "A parcela fidúcia contida em nossa alienação fiduciária em garantia, representa, em verdade, gota no oceano, face cláusula resolutiva que contém" , o que justificaria a conclusão de que o instituto tem no cenário nacional características próprias diversas da fidúcia do Direito germânico, na qual ao lado do "trust receipt" do direito americano, baseou-se o legislador pátrio.

A verificação da figura do depositário ocorre quando tem incidência o art. 4º do Dec. Lei nº 911/69: "Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro VI, do Código de Processo Civil", que diretamente equipara o devedor fiduciante ao depositário, inclusive quanto as responsabilidades inerentes previstas no art. 1287 do CC: "Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos".

E pela própria disciplina da ação de depósito, o depositário que for considerado infiel sofrerá pena de prisão não excedente a um ano como forma de coerção para que pague o saldo contratual em aberto ou devolva a coisa que não é sua.

A constitucionalidade do decreto de prisão, sem qualquer caráter punitivo ou penal, decorrente de violação de norma penal, nunca foi considerada pacífica dentro da doutrina e jurisprudência, tudo decorrendo da interpretação que era feita acerca do art. 153 par. 17, da CF de 1969, no qual permitia-se excepcionalmente a prisão civil por dívida decorrente de devedor de alimentos ou depositário infiel. A redação daquele artigo foi repetida no essencial pelo legislador constitucional de 1988 (art. 5, LXVII).

A regra geral quanto a impossibilidade de prisão por dívida pecuniária teve início com a CF de 1934 que não fazia qualquer ressalva, fato que veio a ocorrer a partir do texto de 1937, o que se repetiu até os dias atuais. Quando ainda vigente a CF de 1969, era conhecida a posição do mestre Pontes de Miranda que sustentava a constitucionalidade da prisão do depositário judicial ou extrajudicial, assim equiparado, que se recusasse a devolver o bem confiado.

A tal posicionamento, seguia-se o entendimento da mais alta corte do País, conforme pode-se verificar nos julgados insertos na RTJ 116/564 e 1282, invocados a título meramente exemplificativo.

Ocorre que já em 1972 se levantam vozes contrárias ao decreto de prisão basicamente porque não teria sido intenção do legislador constitucional impor a aplicação da coerção e nem deixar ao arbítrio do legislador ordinário a sua fixação aleatória, notadamente considerando a equiparação do devedor fiduciante a depositário realizada por técnica de ficção, incorporando à situação fictícia uma medida reprovada pela lei mais alta.

No entanto, argumenta a tese favorável da prisão, a necessidade do resguardo do instituto da alienação fiduciária, bem como a ação de busca e apreensão cujo perecimento seria inevitável, vez que não encontrado o bem, não haveria citação do réu e interesse na conversão em depósito, resultando em mera ação de execução sem garantia de bens para respaldá-la. Por outro lado, entendimento em contrário afrontaria os ditames legais que regem a matéria.

Com efeito, conforme demonstra o jurista Paulo Restiffe Neto, "a alienação fiduciária, que é negócio jurídico constituído contratualmente por instrumento escrito, contém o depósito legal, ou necessário, que decorre da própria natureza do instituto da garantia fiduciária, em que o devedor aliena para garantir, continuando, com as responsabilidades de depositário, até operar-se a revisão configuração do depósito da vontade das partes sempre que se realize uma alienação fiduciária em garantia, por força de disposição legal, torna-se o alienante depositário necessário "ex vi legis", com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbirem de acordo com a lei civil e penal".

Ocorrendo a infidelidade depositária, a pena de prisão nada mais seria do que um meio coercitivo de compelir o devedor a cumprir a sua obrigação, sem o que a ação de depósito estaria travestida de ação de cobrança. Este é o pensamento do mestre Humberto Teodoro Jr., considera a prisão civil como uma sanção de "caráter intimidativo e de força indireta para assegurar a observância das regras de Direito".

A prisão civil é, pois, uma pressão psicológica; uma técnica executória de caráter indireto e instrumental; meio coercitivo de compelir o devedor a cumprir sua obrigação reconhecida pela sentença de procedência da ação, sendo destarte, lícita já que prevista legal e constitucionalmente, continua aquela tese.

Logo, o parágrafo primeiro do art. 902 estabelece que o autor da ação de depósito poderá requerer a cominação de pena de prisão até um ano. O texto do parágrafo único do art. 904 do CPC, por sua vez, dispõe que a prisão do depositário será decretada, caso descumprido o mandado de entrega da coisa ou do equivalente em dinheiro.

Deve-se ressaltar que o estatuto processual civil só prevê e dispõe de um único tipo de Ação de Depósito seja ele clássico ou por equiparação legal, judicial ou convencional.

A doutrina tem apreciado esta matéria valendo citar a ligação do jurista Celso Ribeiro Bastos: "A expressão depositário infiel é utilizada de maneira ampla pela Constituição, dando assim margem à lei ordinária para que possa cominar a cena de prisão a modalidade diferentes de depósito. Há duas modalidades de depósitos: a convencional e a judicial."

Continua o importante mestre que : "Ambas comportam a prisão civil, o que varia é o momento da sua decretação. No caso de depósito concencional, a sua decretação e execução só pode se dar após o trânsito em julgado da sentença proferida, isto por força do art. 904 do CPC".

Os que admitem a prisão civil na alienação fiduciária e os que a rejeitam partem, todos, interpretando-o diversamente, do mesmo artigo da Constituição Federal, o 5º, LXVII, entendendo: a) os primeiros, que o dispositivo não exclui a prisão porque’ afinal’ há depósito na alienação fiduciária; b) enquanto que os segundos negam ao devedor fiduciante a qualidade de depositário. Mas, a respeito de raramente empregado, ao lado desses, há outro argumento, argumento que conduz a esta conclusão: revogação daquele dispositivo constituicional, restringindo-se o cabimento da prisão civil a somente uma hipótese – de inadimplemento de débito de alimentos.

Esse outro argumento requer, para ser compreendido, o exame de dois dados: a) a vigência de outra norma, interna ou internacional, posterior à Constituição e que reduz a incidência da norma do artigo 5º, LXVII; b) sendo essa norma internacional, a sua eficácia interna.

Temos que torna-se impossível a prisão civil aplicando o princípio de que o cerceamento da liberdade decorre de questão meramente patrimonial de que a lei por ficção equiparou o devedor fiduciante a depositário, não se pode erigir a segurança do crédito como valor superior ao direito de ir e vir, inequivocamente de maior importância. Não teve o legislador ordinário competência legiferante ao ponto de restringir a liberdade quando a própria CF não conferiu expressão ampla, já que sobre o tema, a interpretação extensiva é de todo indevida em relação a casos não tratados.

Por segundo, sempre pressupondo os valores em jogo, a restrição a liberdade de ir e vir sempre deve estar ligada à necessidade da própria sobrevivência pessoal ou da ordem pública, fatos que por si só justificam a exceção aberta pela própria Constituição permitindo a prisão decorrente de dívida militar ou no caso de efetiva ocorrência de depositário infiel.

Sobre o assunto há o posicionamento do Professor José Raul Gavião de Almeida que se manifesta igualmente contrário a prisão porque "O depósito a que o constituinte ligou a prisão civil corresponde a uma figura conceitual elaborada pela Ciência Jurídica, não comportando, para ampliar o ensejo da sanção, inovações legislativas, sob pena de afronta ao princípio da reserva constitucional".

Há ainda, por fim, autoridade do eminente doutrinador Álvaro Villaça Azevedo que textualmente nega a existência da figura do depositário na alienação fiduciária. São suas as palavras: "A conclusão, portanto, é de que não existe, na alienação fiduciária em garantia, a figura de depositário, pois, em verdade, o alienante (fiduciante) é o proprietário, porque desde o início negocial, sofre ele o risco da perda do objeto. Ninguém pode ser condenado, portanto, como depositário infiel, se corre o risco da perda da coisa; isto, porque, reafirme-se, o depositário deve guardar bem alheio e não bem próprio".


A IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL EM CONTRATOS COM A GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM CONFORMIDADE COM ACONSTITUIÇÃO FEDERAL, A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITO HUMANOS E O PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA

O Estado brasileiro ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, pacto que, no seu artigo 7º , 7 , assim dispõe:

"Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandatos de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar."

Tal dispositivo quer significar que alguém somente poderá ser preso por dívida caso descumpra obrigação alimentícia, e em nenhuma outra hipótese mais, mesmo no de depositário infiel.

O artigo 5º, parágrafo 2º, da Carta da República, por sua vez, estabelece que todo e qualquer tratado de Direitos Humanos será prontamente recepcionado pela ordem jurídica interna e terá o status de norma constitucional.

Insiste-se, todavia, que a teoria da paridade entre o tratado internacional e a legislação federal não se aplica de direitos humanos, tendo em vista que a constituição de 1988 assegura a estes garantia de privilégio hierárquico, atribuindo-lhe natureza de norma constitucional…

A incorporação automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Direito brasileiro – sem que se faça necessário um ato jurídico complementar para a sua exigibilidade e implementação – traduz relevantes conseqüências no plano jurídico (Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, pp. 94 e 104, Max Limonad, 1996).

Conseqüentemente: a) há uma norma internacional, posterior a 1988, que, tutelando os direitos humanos, restringe a uma única hipótese a prisão civil; b) essa norma tem a eficácia de norma constitucional, de modo que se pode dizer que, a partir de 1992, o artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, encontra-se revogado, não mais sendo lícito falar em prisão civil por depósito. Nesse sentido:

PRISÃO CIVIL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA 0 INTERPRETAÇÃO DO ART. 66 DA LEI Nº 43728/65, ALTERADO PELO DECRETO-LEI Nº911/69, EM FACE DO NOVO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL – ORDEM CONCEDIDA –

I. O paciente é representante legal de devedora que , em contrato de alienação fiduciária, deu em garantia bem posteriormente apreendido por terceiro em outra ação de busca e apreensão. Na ação de busca e apreensão originária, posteriormente convertida em ação de depósito foi decretada a prisão civil do paciente que na qualidade de depositário, tendo sido devidamente intimado, não apresentou o bem (máquina de extrusão e modelagem). A decisão transitou em julgado.

II. A constituição Federal prevê a prisão civil por dívida em apenas dois casos: inadimplemento voluntário e obrigação alimentícia e depositário infiel(art. 5º, LXVII). No parágrafo 2º desse mesmo art. 5º, está dito que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Em 1991, foi incorporado em nosso ordenamento constitucional, pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12/12/91, textos do Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, que em seu art. 11 veda taxativamente a prisão civil por descumprimento de obrigação contratual. Por outro lado, no caso específico da "alienação fiduciária em garantia", não se tem um contrato de depósito genuíno. O devedor fiduciante não está na situação jurídica de depositário. O credor fiduciário não tem o direito de exigir dele a entrega do bem. Nem mesmo de proprietário deve ser rotulado, pois nem sequer pode ficar com a coisa, mas apenas como produto de sua venda, deduzindo o montante já pago pelo devedor. ( STJ – RHC 4.210 94.039687-2 – 6º T. – Rel. p/ Ac. Min. Adhemar Maciel – J. 29.05.95)

Ainda que a Constituição Federal não contivesse o preceito do artigo 5º, parágrafo 2º, a Convenção Americana de Direitos Humanos incidiria limitando as hipóteses de prisão civil. Os tratados de direitos humanos são diverso os dos tradicionais, que regulam as relações recíprocas entre Estados e que por esse motivo têm a mesma eficácia de lei infraconstitucional. Tem eficácia imediata com o status de norma constitucional porque representam ou concorrem para a concreção do novo paradigma do direito privado – a proteção dos direitos fundamentais, da recolocação da pessoa humana como valor máximo. Nesse sentido:

Os fundamentos foram muito elaborados. Pela sua importância, transcrevemos uma parte deles. Afirma-se que: "Temos adotado o critério da supralegalidade dos tratados, mesmo que para os tratados de direitos humanos tenhamos proposto outra modalidade, que assinalaremos a seguir. Estes últimos gozam de uma proteção internacional, porque a ‘pessoa’ é o sujeito do Direito Internacional".

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na OC 2/82, expressou:

"A Corte deve enfatizar que os tratados modernos sobre direitos humanos, em geral, e em especial, a Convenção Americana, não são tratados multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de uma troca recíproca, para o benefício mútuo dos Estados-contratantes. Seu objeto e sua finalidade são a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto perante seu próprio Estado quando perante os outros Estados-contratantes.

Ao provar esses tratados sobre direitos humanos, os Estados submetem-se a uma ordem legal dentro da qual eles, pelo bem comum, assumem várias obrigações não somente em relação com os outros Estados, mas perante os indivíduos sob sua jurisdição. Uma vez aceita a primazia das obrigações do Estado relativas as normas internacionais de direitos humanos, o Poder Executivo tem o dever de respeitar os direitos e liberdades fundamentais da pessoa. Sua obrigação, na realidade, é de predominantemente caráter negativo já que o dever consiste em se abster de todo ato que afirme esses direitos. O Poder Judiciário deverá oferecer um recurso efetivo contra toda violação (…)

Os direitos, garantias e liberdades, estipulados em um tratado internacional de direitos humanos são, por natureza, operativos, de vez que o objeto e a razão de ser de uma convenção de direitos humanos, assim como a clara intenção das partes, é reconhecer em favor das pessoas certos direitos e liberdades e não regulamentar suas relações entre si. A falta de operatividade coloca o Estado em mora frente à comunidade internacional.

A disposição que propomos coloca os direitos humanos no caminho da supremacia normativa e ética de nível supremo, superior à regras constitucionais, quando a coexistência de normas da Constituição e os tratados, ou entre estes, necessite da interpretação que determine qual é o Direito aplicável, atividade que dependerá geralmente do juiz…"

(Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, pp. 263 e 264, Editora Revista dos Tribunais, 1998).

Mas mesmo que, contra a evidência de textos expressos, teime-se em negar eficácia à Convenção Americana de Direitos Humanos, há os argumentos que seguem e que apontam para o mesmo sentido.

A correta exegese da norma constitucional (ou melhor, porque a verdade objetiva, mesmo no campo da hermenêutica, não pode ser alcançada, a exegese defensável da norma constitucional) tem de, necessariamente, partir de premissas que considerem e respeitem a natureza dos bens e interesses protegidos e principalmente as particularidades da interpretação constitucional e, designadamente, das normas que tutelam os direitos fundamentais.

As normas constitucionais têm uma estrutura diversa da das (normas) ordinárias: são complementação e do exame e descoberta dos valores culturais, políticos, econômicos e jurídicos que compõem a escala de valores esses cambiantes, mas que a própria Constituição trata de, esquematicamente, definir, deixando ao aplicador a tarefa. Nesse sentido:

Devido à posição que ocupam no sistema jurídico, os direitos fundamentais somente podem ser restringidos por normas de hierarquia constitucional ou por normas infraconstitucionais quando o próprio texto constitucional autorizar a restrição. Por isso, as restrições de direitos fundamentais ou indiretamente constitucionais…

A competência do legislador para impor restrições aos direitos fundamentais é limitada não apenas pela imposição da observância das condições referidas nas cláusulas de reserva qualificada e do limite do conteúdo essencial, como também pelo princípio da proporcionalidade. A vinculação entre competência e princípio da proporcionalidade estrita evita a regulamentação contrária aos direitos fundamentais naquele espaço após o conteúdo essencial e que se encontra a disposição do legislador para determinar o seu conteúdo ( Raquel Denize Stumm, Princípio da Proporcionalidade do Direito Constitucional de formular o juízo de valor correspondente e necessário ao preenchimento do respectivo conteúdo. Essa característica exige, ao lado dos métodos clássicos de hermenêutica, o uso de princípios próprios, como os da supremacia e da unidade da Constituição, da razoabilidade, entre outros ( cfr. Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação do Constituição , p. 141, Saraiva, 1996).

Como primeira premissa, portanto: o intérprete deve, para uma interpretação evolutiva, encontrar o conteúdo axiológico do programa da norma constitucional ou o ponto de vista normativo, sempre comprometido a uma creta escala de valores esquemática referida no conjunto do ordenamento.

A liberdade é um direito fundamental (axioma), que é restringido pela prisão. A Constituição pela importância para o homem dos direitos fundamentais, e particularmente da liberdade, estabelece um sistema que os protege, não só contra atos de poder também os do legislador ordinário. Parte dela ( da Constituição) as hipóteses de restrição aos direitos fundamentais, o que não exclui, quando a própria Constituição o autoriza, a possibilidade de uma lei infraconstitucional impor restrições necessárias à tutela de outros direitos fundamentais, só que mesmo nesse caso, de atuação do legislador ordinário, não se exclui o exame da razoabilidade do ato legislador pelo juiz Brasileiro, pp. 137, 146 e 147, n. 6.3. e 6.3.3., Livraria do Advogado, 1995).

Ou seja: a liberdade é um direito fundamental, especialmente protegido pela Constituição da República, que estabelece os casos em que esse direito pode ser restringido.

Como segunda premissa: mesmo que o artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal permitisse, supondo verdadeira essa assertiva e supondo-o ainda em vigor, a intervenção do legislador ordinário, a lei por ele editada não estaria imune a críticas a partir do princípio da razoabilidade.

Antes de tudo, vale relembrar a seguinte crítica à hermenêutica constitucional adotada entre nós, que continua interpretando a nova ordem constitucional a partir de pontos de vista adequados à antiga ordem como se nada de novo ocorresse no sistema jurídico com o advento da nova Constituição, como se os valores perseguidos pela norma continuassem os mesmos e como se a sociedade permanecesse a mesma, prestigiando os mesmos valores:

Atente-se para a lição mais relevante: as normas legais têm de ser interpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior.

Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo( Luís Roberto Barroso, ob. C., p. 67 )

Pois bem, a primeira preocupação aqui é a de determinar se a liberdade pode ser restringida pelo legislador ordinário em obediência à chamada cláusula constitucional de reserva explícita ou a limites imanentes do direito fundamental liberdade.

O sentido literal do artigo 5º, LXVII, afasta, pois nele a isto não se alude expressamente, qualquer abertura para a legislação infraconstitucional; os casos de prisão civil pôr dívida são aqueles ali mencionados de modo expresso e explícito – depósito e inadimplemento de pensão alimentícia – e apenas esses casos. Nesse sentido: Ao próprio direito de liberdade a Constituição preferiu fazer valer nestas restritíssimas hipóteses outros direitos especialmente encarecidos, quais sejam: o de receber a pensão alimentar e o de ver restituída a coisa depositada ( Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, p. 306, 2º volume, Saraiva, 1989).

Para que algum direito fundamental possa ser limitado fora das hipóteses em que a própria Constituição o fez ou que ela permite que o legislador ordinário o faça há de existir um conflito entre esse direito e outro também fundamental. Nesse sentido:

Revelam-se os limites imanentes implícitos quando ocorrer um conflito positivo de normas constitucionais, a saber entre uma norma consagrada de certo direito fundamental e outra consagradora de outro direito ou de diferente interesse constitucional ... ou seja, somente entre direitos válidos e bens e interesses constitucionalmente protegidos ( Raquel Denize Stumm, ob. c. p. 143, n. 6. 3. 2. )

Novamente devemos lembrar que o Brasil foi signatário da chamada Convenção Interamericana Sobre Direitos Humanos, realizada em 1969 em São José da Costa Rica, e bem assim é induvidoso que em razão do tratado internacional ter incorporado-se ao sistema jurídico pátrio, deve ser considerado como lei e a sua observância de rigor.

Finalmente, nesta linha, há julgado que ampara a presente tese, proferido em processo de Habeas Corpus contra a prisão decretada contra depositário infiel. Nesse aspecto afirma a citada decisão: "Assim, difícil contrariar-se a tese, que ora apoiamos, mostrando-se clara a impossibilidade de prisão civil por dívida (ou até mesmo pelo não cumprimento da obrigação contratual), exceção feita aos inadimplementos de débitos alimentares, podendo-se, até, diante de todo o exposto, discutir-se sobre ter continuado eficaz a previsão Constitucional Art. 5º, LXVII), que fala de outros casos de prisão civil de depositário infiel (...)".


A APLICAÇÃO DO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS HUMANOS-PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL – POSIÇÃO DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL FRANCISCO REZEK E MARCO AURÉLIO

Imperioso lembrar que o ESTADO BRASILEIRO é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, incorporado ao nosso ordenamento jurídico por força do Decreto nº 678, de 1991, segundo a qual "ninguém será detido por dívida"

          Diante da atual posição do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL tivemos em Habeas Corpus 74383-8 Minas Gerais a posição de divergência dos MINISTROS FRANCISCO REZEK e MARCO AURÉLIO MELLO:

          HABEAS CORPUS Nº 74383-8 MINAS GERAIS

          V O T O

          O SR. MINISTRO FRANCISCO REZEK - Peço todas as vênias para votar no sentido do deferimento da ordem de habeas corpus, porque até hoje não consegui entender os fundamentos da decisão majoritária do plenário sobre a prisão por dívida, num país cuja Constituição diz não tolerar a prisão por dívida.

Explico meu voto.

Primeiro, penso que estamos diante de uma estrita questão jurídica. Os fatos são claros: alguém está preso ou na iminência de ser preso por não haver pago ao Banco dívida resultante de penhor rural. São só estes os fatos. O restante é direito de nível constitucional e ordinário, e o que se impõe é interpretar o inciso LXVII do rol de garantias, onde está dito que "não haverá prisão civil por dívida, salvo responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel."

Há de se presumir equilíbrio e senso de proporções em todo legislador, sobretudo no constituinte quando trabalha nas condições em que trabalhou o constituinte brasileiro de 1988. Ele prestigia uma tradição constitucional brasileira: não há, nesta República, prisão por dívidas; não se prendem pessoas porque devem dinheiro. Mas abre duas exceções. E o que vamos presumir em nome do equilíbrio?

Que essas duas exceções têm peso mais ou menos equivalente. No caso do omisso em prestar alimentos, a linguagem Constitucional é firme: inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação.

E, ao lado disso, o que mais excepciona a regra da proibição da prisão por dívida? O depositário infiel. Mas nunca se há de entender que essa legislação é ampla, e que o legislador ordinário pode fazer dela, mediante manipulação, o que quiser.

          O depositário infiel há de enquadrar-se numa situação de gravidade bastante para rivalizar, na avaliação do constituinte, com o omisso em prestar alimentos de modo voluntário e inescusável.

          Mas, num país de tantos surrealismos, inventa-se um dia a tese de que o credor possa prendê-los, para meio de forçar a solução de uma dívida civil seja o mecanismo criminal de encerramento.

Inventa-se dizer que os devedores, em caso como o da alienação fiduciária em garantia e do penhor rural (hipóteses históricas – mais que isso, hipóteses bíblicas de dívida) são "depositários infiéis".

O que compra e um dia não dispõe mais do bem, nem pode pagar, é um típico devedor civil, nunca um depositário infiel. Os mesmos civilistas que, mais tarde, ludibriando a Constituição, inventaram as figuras do depósito legal, foram responsáveis, na origem, pela teoria de depósito voluntário, materializada naquela situação que todos nós entendemos: a de alguém que recebe, por exemplo, pela confiança do juiz, os bens da viúva ou do órfão par que os guarde fielmente e os devolva um dia; e que quando chamado a devolvê-los, de modo insolvente, intolerável, os sonega.

Este é o depositário infiel de que fala a tradição dos próprios civilistas, que um dia degeneraram na produção de burlas à Constituição. Este é o depositário infiel de que fala a Carta de 1988, no inciso LXVII do rol de direitos. esse é o depositário infiel cuja prisão o constituinte brasileiro, embora avesso à prisão por dívida, tolera.

Nunca – e me bastaria o texto da Carta Magna para não admiti-lo – se dirá que o depositário infiel a que se refere a Carta, como exceção possível ao mandamento que proíbe prisão por dívida, seja aquele falso depositário produzido por legislação ordinária no Brasil dos recentes (por sinal, os menos brilhantes da nossa história política, constitucional e legislativa). Toda norma que, no direito ordinário, quer mascarar de depositário que na realidade não o é, agride a Constituição.

          Mas, por cima de tudo isso, ainda vem São José da Costa Rica. Essa convenção vai além, depura melhor as coisas, e quer que em hipótese alguma, senão a do inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia, se possa prender alguém por dívida. O texto a que o Brasil se vinculou quando ratificou a convenção de São José da Costa rica não tolera sequer a prisão do depositário infiel verdadeiro.

O julgamento, em plenário, dessa questão jurídica, foi extremamente longo, e não pude assisti-lo até o fim. Pelo leitura das atas observei que se admitiu aquilo que em certo momento eu afirmara em meu voto:

          o inciso LXVII proíbe a prisão por dívida e, ao estabelecer a exceção possível, permite que o legislador ordinário discipline a prisão do alimentante omisso e do depositário infiel. Permite, não obriga. O constituinte não diz: prenda-se o depositário infiel. Ele diz: é possível legislar nesse sentido.

Mas algo ma causou perplexidade. Ter-se-ia dito que, então, dado ao legislador ordinário o poder de optar entre permitir, ou não, a prisão do depositário infiel o texto de São José da Costa Rica não poderia ter, a partir da sua vigência no Brasil, limitado o direito constitucional que tem o legislador ordinário de fazer sua escolha!

Veja-se qual foi o raciocínio: a Constituição não obriga a prender o depositário infiel; ela diz apenas que isso é uma exceção possível à regra de que não há prisão por dívida, e o legislador ordinário que delibere. O legislador ordinário poderia, então, disciplinar a prisão nessa hipótese, ou não fazê-lo e assumir uma atitude mais condizente com os noves tempos.

Mas afirmou-se: esse texto de São José da Costa Rica, ao proibir a prisão do depositário infiel, limita – e então poderia fazê-lo – a liberdade do nosso legislador ordinário. Raciocinou-se, com todas as vênias, como se o texto de São José da Costa Rica só fosse um produto alienígena, uma obra de extraterrestres, que desabou arbitrariamente sobre nossas cabeças.

Procedeu-se como se São José da Costa Rica não fosse um texto de cuja elaboração o Brasil participou, e que só começou a valer no Brasil depois que o Congresso Nacional aprovou este texto – com todos os requisitos necessários à produção de direito ordinário – e que o Chefe de Estado o ratificou.

O necessário para que a República se envolva num tratado é, no mínimo, igual ao necessário para produzir direito ordinário. Entretanto, havendo-se raciocinado como se convenção não fosse obra que só nos vincula por causa da nossa vontade soberana, exorcisou-se a convenção como coisa estranha à brasilidade...

Parece-me que o texto vincula, sim, o Brasil, em moldes perfeitamente conformes à Constituição da República, e que há que prestar-lhe a devida obediência, sob pena de nos declararmos em situação de ilícito internacional, porque nos obrigarmos a fazer uma coisa e os tribunais fazem outra. Mas se não houvesse nada disso, se nunca tivesse feito o tratado de São José da Costa Rica sobre direito humanos, a simples leitura da Constituição, no inciso LXVII do rol de garantias, bastar-me-ia para dizer que o depositário infiel, cuja prisão aqui se autoriza, não é nunca uma figura de amplitude legislativa ordinária, invente situações de todo diversas daquela verdadeira e autêntica do depósito; e, em frontal agressão ao preceito constitucional maior, diga que na República é possível, sim, a prisão por dívida, a prisão daquele que plantou e não colheu, ou colheu e perdeu, e não pagou o banco; daquele que comprou e não pagou as prestações devidas a tempo, não tendo como devolver o bem.

          Situações lamentáveis, reprováveis no plano civil, mas que não poderiam ter – volto a dizer, em frontal agressão ao preceito maior da Carta – tratamento igual ao da prática de crimes.

          Meu voto, com todas as vênias, é no sentido de conceder a ordem.

          HABEAS CORPUS Nº 74383-8 MINAS GERAIS

          V O T O

          O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, há pouco, depois da decisão do Plenário, fiquei vencido na Turma ao enfrentar situação praticamente idêntica a dos autos, em que em jogo também se faz um penhor e se teve a determinação, pelo juízo cível, da prisão do devedor.

Senhor Presidente, compreendendo que é salutar o efeito vinculante. Todavia, tomo-o como a decorrer de um gesto espontâneo, resultante de idéias harmônicas com princípios básicos, com a ordem jurídica em vigor, que se impões por si sós.

Sou daqueles magistrados que entendem que, quando não puder me expressar de acordo com o meu próprio convencimento, fundado na interpretação por mim conferida ao arcabouço jurídico-normativo, devo, simplesmente, requerer a aposentadoria e deixar o ofício judiciante. Assim continuarei, enquanto tiver assento nesta Corte.

Recordo-me de uma professora da Faculdade Nacional de Direito que me acompanhou nos cinco anos do curso, sempre aludindo à circunstância de que cada um de nós tem freios inibitórios. Da observância desses freios inibitórios resulta o próprio conhecimento sobre si mesmo, mesmo as reações passíveis de ocorrerem.

Quando V. Exa. indagou-me, fisionomicamente, se participaria do julgamento, eu já estava certo de que faria, em face do preceito inseto no nosso Regimento Interno, artigo 134, § 2º, categórico ao revelar que, declarando-se Ministro habilitado a proferir o voto, ainda que ouvido o relatório ou assistido aos debates, poderá participar do julgamento.

Senhor Presidente, entendo o texto do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal como encerrar duas regras. À primordial, para mim, é a que vem em primeiro lugar, a revelar, até mesmo, a colocação geográfico do preceito; demostrar que a norma encerra uma garantia constitucional do cidadão e não de simples credores. Que regra é essa? "Não haverá prisão civil por dívida..."

A segunda parte, Senhor Presidente – como ressaltado pelo Ministro Francisco Rezek –, cuida de exceção. Por isso mesmo, temos o emprego do vocábulo "salvo". "...salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;"

Ora, há envolvimento, no caso dos autos, de obrigação alimentícia? Não. E de depositário infiel? Também não, porque o depósito infiel a que se refere o inciso, a figura do depositário infiel é aquela retratada no Código Civil; é a da pessoa que recebe um determinado bem, como obrigação precípua de não pagar o valor desse bem, vez que não há compra e venda, mas de restitui-lo tão logo solicitado pelo depositante.

Pois bem, é possível potencializar-se a nomenclatura em detrimento do fundo, do princípio da realidade? É possível entender-se que essa exceção, aberta justamente no rol das garantias constitucionais, comporta o elastecimento pretendido pelo legislador ordinário? É claro que não, pois, caso contrário, a exceção deixará de ser exceção para consubstanciar-se em verdadeira regra, criando-se até mesmo, como temos em dia uma casta especial de credores.

          A par desse enfoque, e para mim seria bastante o teor desse inciso, temos que o Brasil subscreveu o Pacto de São José da Costa Rica que, todos sabemos, coloca-se no mesmo patamar da legislação ordinária, o que implica dizer que esta, no que previa a prisão de certos devedores, ficou revogada, quando passou a ser obrigatório o Pacto de São José da Costa Rica.

Para ser mais preciso, restou ab-rogada. Não posso, Senhor Presidente, desconhecer esse contexto. Reiterando o voto que proferi no caso em que mencionei, acompanho o Ministro Francisco Rezek, para conceder a ordem. É o meu voto.


RAZÕES DE ORDEM JURÍDICA SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL EM CONTRATOS COM A GARANTIA FIDUCIÁRIA PELA INEXISTÊNCIA CONTRATO DE DEPÓSITO E PELA INCONSTITUCIONALIDADE DO DL 911/69

Excluída a norma constitucional diretamente restritiva da liberdade (quanto à prisão civil), uma vez que ela não estende a medida coercitiva a outras hipóteses que não aquelas expressamente previstas na sua fattispecie, e também excluída a cláusula de reserva explícita, visto que a mesma norma não confere ao legislador ordinário competência para criar outras hipóteses de cabimento da prisão civil, resta indagar se: a) o legislador ordinário pode criar figuras assimiladas ao depósito e assim colocá-las sob a incidência da norma constitucional restritiva da liberdade ou b) se há algum interesse na alienação fiduciária suficientemente valioso e garantido também pela Constituição a justificar a prisão.

Primeiro, o depósito caracteriza-se pela entrega de uma coisa para alguém guardá-la ou (caracteriza-se) pelo elemento custódia no interesse do proprietário. O depositário exerce a guarda no interesse do depositante, o qual pode dele exigir a restituição do bem a qualquer tempo (ORLANDO Gomes, Contratos, p. 401, n.266, Forense, 1975, 5º edição). O devedor fiduciante recebe o bem alienado fiduciariamente como possuidor direto e como titular de um direito eventual, sem Ter a obrigação de restitui-lo segundo o arbítrio ou a vontade do credor fiduciário. Enquanto ele estiver em dia com as prestações, o credor não poderá exigir-lhe a restituição do bem.

Assim podemos notar que nos casos de alienação fiduciária não existe a figura do depósito como constituição para uma prisão civil por depositário infiel. A propósito, vale trazer à colação, decisão do Egrégio 1º Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo: "Carece da ação de Depósito, por falta de interesse processual, aquele que a propõe com fundamento em contratos de depósito inexistentes, por constituídos às margens das disposições legais dos artigos 768 e 1266 do CC e 200, 271 e 274 do C. Comercial, uma vez permanecendo a posse do bem dado em garantia da dívida, com o devedor, a título de depositário, pois é da essência de ambos ajustes, a tradição da coisa ao credor". (RT 641/167)

A jurisprudência atual do nosso Superior Tribunal de Justiça é abundante no respaldo da nossa tese doutrinária :

"DEPÓSITO - O depósito irregular não se confunde com o mútuo, tendo cada um finalidades específicas. Aplicam-se-lhe, entretanto, as regras deste, não sendo possível o uso da ação de depósito para obter o cumprimento da obrigação de devolver as coisas depositadas, cuja propriedade transferiu-se ao depositário. O adimplemento da obrigação de devolver o equivalente há de buscar-se em ação ordinária, não se podendo pretender a prisão do depositário." (REsp. 3.013-SP - Rel. Min.: EDUARDO RIBEIRO, 3ª Turma, 26.11.90. Unânime).

"Não é lícita, aliás, em casos tais a prisão civil, porque se depósito houvesse seria depósito irregular, sujeito às regras do mútuo, inviável o retrocesso aos tempos prístinos da execução por coação corporal. Votos vencidos.Recurso especial conhecido mas não provido." (REsp. 6.566-PR - Rel. P/ acórdão, Min.: ATHOS CARNEIRO. 4ª Turma, 11.6.91. Maioria.)

A 6ª Turma, através do Min. Luiz Vicente Cernicchiaro (HC 2.155-0-SP) propalou que:

"HC - CONSTITUCIONAL - COMERCIAL - PRISÃO CIVIL - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. A Constituição da República autoriza a prisão civil, por dívida em dois casos: inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel (art. 54, LXVII). Cumpre, no entanto, distinguir duas situações: a) o depósito é a obrigação principal: b) o depósito é obrigação acessória. No primeiro caso, o depositário deve restituir a coisa, conforme o convencionado; no segundo, o depósito reforça a obrigação de cumprimento de contrato. A prisão civil é restrita a primeira hipótese. Impossível estendê-la à segunda, sob pena de a restrição ao exercício do direito de liberdade ser utilizada para impor ao devedor honrar dívida civil. Interpretação coerente com a evolução histórico-política dos institutos jurídicos."

(HC 2.155-)-SP - Rel. designado Min.: LUIZ VICENTE CERNICCHIARO. 6ª Turma, 22.03.94. Maioria.

O eminente Des. Telmo Cherem, quando ainda Juiz do Tribunal de Alçada, no julgamento da apelação cível nº 59447-4, de Curitiba, com sobras de razão registrou : PRISÃO CIVIL - IMPOSSIBILIDADE - DEPÓSITO ATÍPICO. - A possibilidade de prisão do depositário infiel, contemplada pela Constituição Federal, somente pode ser considerada em presença de contrato típico, vale dizer quando ocorre o efetivo depósito, o que não se dá com o devedor fiduciante."

Como lembra o Des. Telmo Cherem, o advento da Constituição de 1988 teve o grande mérito de ressuscitar a discussão do tema, especialmente pelo confronto do art. 5º, inciso LXVII, da atual Constituição Federal com o do art. 153, § 17, da Carta de 1969. Reacendeu a discussão na doutrina e na jurisprudência a respeito da constitucionalidade da prisão do devedor-fiduciante. Como o novo texto suprimiu a expressão "na forma da lei", argumentam alguns que o Constituinte teria deixado de admitir a prisão do depositário, a não ser na hipótese do clássico contrato de depósito, isto é, o depósito típico regulado pela Lei Civil.

A supressão desta cláusula, contudo, não poderia assumir uma tal significação, decorrendo, apenas, da evidente inutilidade de se repetir a exigência do devido processo legal para a decretação de prisão, princípio que a nova Lei Maior, com especificidade, tratou de salvaguardar também como garantia fundamental

A edição do novo texto teve o mérito, isto sim, de reavivar os debates sobre o tema da prisão decorrente dos depósitos atípicos, também chamados de depósitos por equiparação, como se dá com o devedor-fiduciante, que assume esta condição por mera ficção legal, já que depositário, na exata acepção do conceito, não o é. - Cf. Acórdão nº 5546 - TA - 3º Câmara Cível.

A ação de depósito, dí-lo o art. 901, do Código de Processo Civil, teve por fim a restituição da coisa depositada. E restituição, segundo as palavras de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (in "Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa", 11ª ed., Ed. Nacional, pg. 1052) é a "entrega de coisas que nos emprestaram, ou que possuímos injustamente, a quem por direito lhe pertencem".

O professor WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO dá a exata noção do contrato de depósito, definindo-o como aquele : "pelo qual uma das partes, recebendo de outra uma coisa móvel, se obriga a guardá-la, temporária e gratuitamente, para restituí-la na ocasião aprazada ou quando lhe for exigida. Usando as expressões do próprio legislador (Cód. Civil, art. 1265), podemos dizer que "pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame" (Curso de Direito Civil, 5º vol., "Direito das Obrigações", 2ª parte, pg. 223).

O contrato de depósito somente se aperfeiçoa e se encontra apto a produzir efeitos, mediante a conjugação de dois requisitos básicos: a tradição da coisa e o recebimento desta pelo depositário, que assume, expressamente, a obrigação de guarda e restituição, quando pedida.

É bem verdade que em matéria comercial, admite-se o chamado constituto possessório. Porém, elemento necessário para aproveitar-se ao apelante este instituto, que o banco houvesse recebido a posse em momento anterior e após transferindo-a ao cliente, que passaria a exercê-la em nome do primeiro, assumindo a condição de depositário. Impossível admitir a cláusula constituti, onde a coisa não exista e seja apenas uma garantia , pois, que se falar em tradição ficta, em transpasse da posse pela regra do constituto possessório, mormente quando a efetiva existência da coisa é da essência do contrato , assim como o é do contrato de depósito, somado, ainda, para esse último, a efetiva entrega da coisa ao depositário, assumindo este, expressamente, a obrigação de guardá-la e entregá-la quando solicitado pelo depositante.

A prisão civil, odiosa discriminação cruel do capitalismo exacerbado, somente pode ser utilizada como forma de coação à infidelidade advinda de verdadeiro depósito, aquele em que à negativa à restituição é ato gravíssimo, de intolerável perfídia, ato criminoso e, por isso mesmo, sujeita à prisão, por expressa determinação legal.

O depósito irregular, como garantia de empréstimo, sendo, pois, mero acessório do contrato principal, não redunda na sanção máxima de sujeitar o apelado ao grave vexame da prisão infamante, própria, como já se afirmou, do depósito regular, aquele depósito certo, seguro, que coloca a coisa sob a guarda exclusiva do depositário, proibido de fazer uso e movimentar o bem, cuidando de restituí-lo quando solicitado.

Consequentemente, inexiste custódia na alienação fiduciária; o que existe é uma equiparação do devedor ao depositário, enfim, uma ficção jurídica. Sobre a noção de ficção jurídica: A ficção jurídica consiste em equiparar voluntariamente algo que se sabe que é desigual... As ficções legais têm normalmente, como finalidade a aplicação da regra dada para uma previsão normativa típica (p1), a outra previsão normativa típica (p2). Deste modo, não são remissões encobertas. Em vez de ordenar: as conseqüências jurídicas de p1 vigoram também para p2, a lei finge que p2 é um caso de p1. Como a lei não contém enunciados sobre fatos mas ordenações de vigência, o legislador não afirma que p2 é na realidade igual a p1, mas preceitua que para p2 valem as mesmas conseqüências jurídicas que para p1. ( Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direiro, p.312, Fundação Calouste Gulbenkian, 2º edição ).

O legislador ordinário, então, equiparou, pôr assim dizer, algo desigual ao depósito, ou algo que não é depósito ao depósito. Ora, se ontologicamente não há igualdade, isto é, não há depósito, mas algo a ele assimilado, houve a criação de uma nova hipótese de cabimento da prisão civil, passando-se tudo como se no Decreto-lei 911 estivesse escrito o seguinte: embora o devedor fiduciante não seja depositário, mesmo assim, porque equiparado ao depositário, ele deve sofrer as mesmas conseqüências a que este está sujeito, inclusive a prisão civil.

Qualquer tentativa de fuga dessa conclusão requer um raciocínio que subverte todo o sistema, a saber: Ter-se-á que argumentar que o contrato de depósito, tal como definido no Código Civil , não exige a custódia, exigindo somente a entrega do bem para qualquer outra finalidade. Mas esse raciocínio, além de dogmática e sistematicamente incorreto, teria o inconveniente de autorizar a prisão civil do contratante em qualquer hipótese em que ele se recusasse a restituir o bem que foi entregue, colocando-se em risco a liberdade do locatário, do comodatário etc, o que força sua pronta rejeição. Como visto, o legislador ordinário não pode interferir nesse campo dos direitos fundamentais a não ser quando expressamente autorizado pela Constituição ou quando o conflito entre direitos fundamentais o exigir; portanto, o artigo 4º do Decreto-lei 911 é inconstitucional em conformidade com os seguintes argumentos jurídicos:

Recentemente a 5 Câmara do TAPR decidiu pôr unanimidade o seguinte: "Agravo de Instrumento - Busca e Apreensão (DL 911/69) Indeferimento da liminar (art. 3) Inconstitucionalidade do caráter compulsório da medida - Ofensa do artigo 5 LIX da CF 88"  (Ac. 3878, Rel. Juiz convocado Valter Ressel - in Informativo Jurídico do Centro de Documentação do TJ Paraná

Diz essa norma constitucional (Art. 5, inc. XXXV ): "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito". Sobre essa exclusividade do Poder Judiciário, há referências também nos incisos XI e XII do mesmo artigo. Assim cabe ao Poder Jurisdicional qualquer apreciação a lesão ou ameaça de lesão de direito. E’ norma que vem do direito natural.

Ora, o decreto-lei 911/69 foi criado pelo poder absoluto que vigorava na época e com issso foram criadas normas imperativas que afetam e cerceiam todo o processo que norteia a convicção jurídica. Esse decreto-lei , em seu artigo terceiro, pôr um lado, concede a faculdade ao credor de requerer a busca e apreensão do bem, mas pôr outro lado, obriga a conceder a liminar, dizendo: "será concedida liminarmente, bastando que prove a mora ou o inadimplemento".

No 39 Congresso da União Internacional dos Magistrados, realizado em Amsterdã de 22 a 26 de setembro de 1996, o relatório da segunda comissão firmou o princípio seguinte: "Os princípios fundamentais que governam o processo civil e a jurisdição devem estar assentados sobre a legislação e não sobre decreto executivo’.

É bem verdade que em relação à absurda restrição ao direito de defesa e ao contraditório, nas ações de busca e apreensão oriundas de contratos de alienação fiduciária, alguns Tribunais como o nosso TRIBUNAL DE ALÇADA DO ESTADO DO PARANÁ tem decidido de maneira favorável a tese da INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 3 DO DECRETO LEI 911/69, como decidiu recentemente os membros da SÉTIMA CÂMARA CÍVEL DO TAPR , em Agravo de Instrumento 79.478-5 cujo RELATOR foi o Eminente JUIZ VALTER RESSEL e participaram do julgamento os JUIZES LEONARDO LUSTOSA e MIGUEL PESSOA, com o seguinte VOTO DO JUIZ VALTER RESSEL e com o teor jurídico:

"INCONSTITUCIONALIDADE DO CARÁTER COMPULSÓRIO DA LIMINAR DE BUSCA E APREENSÃO PREVISTA NO ART. 3 DO DL 911/69

O caráter compulsório da liminar de busca e apreensão tal qual está posto no Artigo 3 do Decreto Lei 911/69 vem sendo tachado de inconstitucional , após o advento da Carta Magna de 1988, pôr alguns operadores do Direito que se ocuparam do assunto, tanto no meio doutrinário como jurisprudencial.

É que a Constituição Federal de 1988 ampliou e aprofundou os princípios atinentes ao processo , especificando com maior abrangência e precisão as regras que devem orientá-lo, de sorte a ensejar maior garantia à tutela de direitos individuais e coletivos.

A dicção da nova Carta quer que ninguém seja privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (Art.5 LIV) e como corolário desse princípio, determina que se assegure a todos os acusados em geral outros dois comandos processuais, quais sejam, o do contraditório e o da ampla defesa (inc. LV)."

O autor NAGIB STAIBI FILHO , em sua obra "A Execução e o Princípio do Devido Processo Legal" (RF 310/65 a 79), reconhece que "a Constituição de 1988 é bem diferente das anteriores, quer na forma , que no conteúdo ", admitindo que a mesma "foi pródiga em dispositivos processuais, pois não escapou ao constituinte que o processo, como relação social juridicamente prevista, é o meio pelo qual o Estado decide".

Prosseguindo, assevera o autor que "o devido processo de lei é proteção processual para qualquer restrição à liberdade ou aos bens, seja qual for a área da atividade estatal" e, citando HUMBERTO THEODORO JUNIOR , lembra que "só há relação processual completa após regular citação do demandado". E, referindo-se a outro princípio inserto na mesma Carta, o da publicidade dos atos processuais ( Art. 5, LX) , enfatiza que "tem direito à publicidade processual todo aquele cuja liberdade ou bens pode ser, de alguma forma, restrita pelo ato processual", e que "de tal princípio decorre, inicialmente, o direito do acusado ou litigante de conhecer dos termos da imputação que lhe é feita, mesmo porque só o conhecimento da demanda que lhe é proposta permitirá que exercite a defesa de forma plena".

Cabe aqui registrar que esta matéria, dada a sua importância, foi objeto de debate no XXXVI Seminário Regional da Magistratura Paranaense. Realizado em 21 e 22 de Novembro na Comarca de Paranavaí, donde resultou aprovada, com apenas um voto em contrário, uma proposição que tem o seguinte teor : "Com o advento da Constituição Federal de 1988, tornou-se inconstitucional o caráter compulsório da liminar de busca apreensão prevista no Artigo 3 do Decreto Lei 911/69. Logo para a concessão da liminar há necessidade de se alegar e provar também requisito genérico do periculum in mora."

E esse debate teve raiz não só no pensamento dos doutrinadores citados, mas também em decisão tomada pela 3 Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, em Mandado de Segurança impetrado pôr financiadora contra decisão monocrática que indeferiu a liminar, tal qual o fez do Dr. Juiz de Quedas do Iguaçú. A emenda dessa decisão é a seguinte:

"ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - BUSCA E APREENSÃO (DECRETO-LEI 911/69 ART. 3 CAPUT) . Inconstitucionalidade da liminar obrigatória. Segurança denegada. Voto vencido" (Relator para o acórdão Juiz ARAKEN DE ASSIS. Vencido o Relator do processo Juiz JOÃO SIDINEI RUARO.

Publicado em Julgados do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. N. 76 pág. 143)

E finalmente asseverando a existência dessa incompatibilidade constitucional da liminar em tela com regras da Constituição Federal, já escreveram ROGÉRIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI ( in Constituição de 1988 e Processo), ANTONIO VIDAL RAMOS DE VASCONCELLOS (Busca e Apreensão na Alienação Fiduciária, IOB) e VICENTE GRECO FILHO (in Tutela Constitucional das Liberdades).


CONCLUSÕES FINAIS

Em que pese a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, mas a mesma não poderá prevalecer com uma decisão definitiva, principalmente após os inúmeros precedentes dos nossos Tribunais de Alçada e de Justiça, do Superior Tribunal de Justiça e das manifestações dos ministros do próprio STF.Diante de todos os argumentos jurídicos, não há outra conclusão senão reconhecer que a prisão civil do devedor fiduciante ou em contratos com a garantia fiduciária é completamente inconstitucional, já que a liberdade de ir e vir como decorrência do direito da personalidade, do amparo na ordem constitucional e no pacto internacional de direitos humanos não podem ser violados quando os princípios de uma ordem decretal dizem respeito a questões meramente patrimoniais sem qualquer interesse público, bem como pelo próprio critério substancial da inconstitucionalidade da norma que rege a garantia fiduciária.


Autor

  • Celso Marcelo de Oliveira

    Celso Marcelo de Oliveira

    consultor empresarial, membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial, do Instituto Brasileiro de Direito Bancário, do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, do Instituto Brasileiro de Direito Societário, do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, da Academia Brasileira de Direito Constitucional, da Academia Brasileira de Direito Tributário, da Academia Brasileira de Direito Processual e da Associação Portuguesa de Direito do Consumo. Autor das obras: "Tratado de Direito Empresarial Brasileiro", "Direito Falimentar", "Comentários à Nova Lei de Falências", "Processo Constituinte e a Constituição", "Cadastro de restrição de crédito e o Código de Defesa do Consumidor", "Sistema Financeiro de Habitação e Código de Defesa do Cliente Bancário".

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/625. Acesso em: 19 abr. 2024.