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A estrutura nomodinâmica dos alimentos no Código Civil de 2002

A estrutura nomodinâmica dos alimentos no Código Civil de 2002

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O texto salienta, por meio de análise da doutrina e da jurisprudência, que a atenta interpretação dos fatos do processo é curial para a adequada concretização dos preceitos normativos pertinentes aos alimentos.

1 INTRODUÇÃO

A concepção tradicional de família atribuía ao homem o comando do núcleo familiar e a responsabilidade pelo seu sustento. Aos filhos ilegítimos, era sonegado o direito à investigação de paternidade, nos termos da disciplina originária do Código Civil de 1916, ficando, por conseguinte, impossibilitada a concessão de alimentos. Apenas 30 anos após o início da vigência daquele diploma legal é que se permitiu a propositura de ação investigatória de paternidade, com trâmite em segredo de justiça e apenas com o propósito de se obter a fixação dos alimentos (DIAS, 2016).

Quanto à mulher, a fruição de alimentos dependia da comprovação das condições de inocente e pobre. Isto é, não se cuidava de sua necessidade, o pressuposto para a prestação alimentícia era de ordem moral. Tolhia-se a sua liberdade sexual e exigia-se a castidade como suporte fático do direito aos alimentos (DIAS, 2016).

A Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/1977) tornou recíproco o dever alimentar entre os cônjuges. Todavia, o parâmetro para seu estabelecimento era a comprovação da culpa pelo término da sociedade conjugal. O cônjuge responsável haveria de pagar ao inocente os alimentos, que figuravam como verdadeira punição no bojo de uma concepção arcaica e moralista de família. Nesses termos, aquele que ostentasse conduta desonrosa ou que violasse os deveres do matrimônio, tornando insuportável a vida em comum, deveria prestar alimentos à parte inocente (DIAS, 2016).

Com a regulamentação da união estável (Leis nº 8.971/1994 e 9.278/1996), estabeleceu-se para essa entidade familiar uma disciplina mais benéfica em relação ao dever de prestar alimentos. Não se condicionava a prestação alimentícia à comprovação de culpa/inocência. Diante disso, a jurisprudência não tardou a perceber a flagrante violação ao princípio da isonomia daí decorrente, passando a dispensar a discussão sobre a culpa também para a concessão de alimentos aos conviventes. O fim da separação como requisito antecedente necessário ao divórcio sepultou de vez a discussão sobre a culpa.

Conforme é possível concluir, sob o pálio do Código Civil de 1916, os alimentos se encontravam disciplinados de forma fragmentária e distinta de acordo com sua origem. O diploma vigente, porém, não mais perfilha tais diferenciações, fundando os alimentos sobre o princípio da solidariedade, o que se extrai por força de interpretação civil-constitucional.


2 CONCEITO DE ALIMENTOS

A garantia do direito à vida digna constitui o suporte normativo constitucional do qual deflui o dever de prestar alimentos. Isto é, a todos é garantido o direito à sobrevivência, para cuja concretude se faz indispensável a mantença dos suprimentos básicos para o não perecimento. No entanto, à luz da ordem constitucional vigente, isso não é o bastante. Muito mais do que a mera subsistência, o que a Constituição garante é a vida digna, o que amplia o conceito de alimentos para alcançar não apenas os víveres e mantimentos, mas todos os produtos e serviços indispensáveis à integral realização da personalidade humana, como o lazer, a educação e a cultura (MADALENO, 2013).

De mais a mais, ante a horizontalidade dos direitos fundamentais e o caráter subsidiário da atuação estatal no provimento das necessidades do indivíduo, a obrigação de parentes, cônjuges e companheiros de prestar alimentos é consequência inarredável. Tamanha foi a importância vislumbrada pelo constituinte nesse plexo normativo que excepcionou expressamente a vedação à prisão do devedor para admitir o encarceramento do devedor de alimentos. Tal como a vida em sociedade impõe deveres imediatos e preexistentes ao indivíduo, a inevitável pertença a um núcleo familiar também o faz (DIAS, 2016).

É o princípio da solidariedade (art. 3º da CRFB/1988), com o dever de mútua assistência que nele se assenta, o supedâneo do dever de prestar alimentos. A fonte da obrigação em tela é a existência de laços de parentalidade entre os indivíduos, independentemente de sua natureza e da espécie entidade familiar na qual se fincam.

Da conjugação dos arts. 227 da CRFB/1988 e 1920 do CC pode-se inferir uma proposição conceitual para os alimentos: trata-se de prestação que, decorrente do dever de mútua assistência em razão dos vínculos familiares, destina-se à garantia dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura e à dignidade, por meio do pagamento periódico de quantia suficiente para sustento, cura, vestuário, casa e educação do alimentante (TARTUCE, 2017).

A ordem de preferência na convocação para a prestação alimentícia parte dos cônjuges e companheiros até os parentes, aos quais incumbe assistir àqueles que não possuem condições de subsistência. Por meio do dever legal de mútua assistência, os vínculos afetivos convertem-se em ônus de garantia das condições materiais para uma vida minimamente digna (TARTUCE, 2017).


3 NATUREZA JURÍDICA DOS ALIMENTOS

Radica-se a natureza jurídica dos alimentos sobre a fonte da obrigação. No caso dos alimentos prestados aos filhos, decorre do poder familiar, nos termos do art. 229 da CRFB/1988. Também neste dispositivo consta o dever dos filhos maiores de ampararem seus ascendentes em situações de fragilidade. De igual maneira, a linha colateral guarda simetria com os casos anteriores, persistindo a obrigação até o quarto grau de parentesco (CAHALI, 2009).

Quanto aos alimentos prestados em razão do fim do casamento e da união estável, tem-se que está centrado no dever de mútua assistência existente durante o período de vigência do vínculo afetivo, obrigação que perdura após seu término, bastando que uma das partes não disponha de recursos para a manutenção de sua subsistência. Nesses casos, a separação de fato figura como um pressuposto para a concessão dos alimentos.


4 ALIMENTOS NATURAIS E ALIMENTOS CIVIS

A classificação em alimentos naturais e civis denota a amplitude do conceito de alimentos, buscando especificar quais prestações estariam contidas em cada uma dessas espécies, ou, noutros termos, qual é a extensão do dever de alimentar (CAHALI, 2009).

Os alimentos naturais qualificam-se como os indispensáveis à manutenção da existência digna, englobando não apenas a alimentação, senão também as despesas com vestuário, lazer etc. Já os alimentos civis prestam-se a manter o padrão de vida desfrutado pelo alimentado, garantindo-lhe o mesmo status social desfrutado antes da dissolução do vínculo afetivo de que se trate (DIAS, 2016).

A distinção em comento foi esposada normativamente pelo Código Civil com propósito punitivo, de molde que, apurada a culpa do alimentando, fará ele jus apenas aos alimentos naturais, a teor do art. 1.694, § 2º, do CC. Findada a discussão da culpa outrora travada nos processos de separação judicial com a EC nº 66/10, foram revogados por arrastamento os arts. 1.702 e 1.704 do Código Civil. Assim, não mais subsiste a possibilidade de redução do valor dos alimentos pela comprovação da culpa na geração da situação de necessidade, prevalecendo os alimentos civis mesmo que isso se verifique (DIAS, 2016).


5 CARACTERÍSTICAS DOS ALIMENTOS

Há interesse público na fixação dos alimentos, dada a transferência de ônus para o Estado nos casos de ausência de sua prestação. Logo, a obrigação correspondente situa-se sob marco regulatório estabelecido por normas cogentes e de ordem pública, insuscetíveis de modificação ou derrogação por convenções privadas. Descabidas, portanto, a renúncia e a transação (DIAS, 2016).

Outra distinção de relevo é a estabelecida entre obrigação e dever alimentar. No primeiro caso, trata-se de decorrência do poder familiar, que independe, pois, da comprovação da necessidade do alimentando, presumida em caráter absoluto. Lado outro, o dever alimentar deflui do princípio da solidariedade originado de vínculos jurídicos afetivos atuais ou pretéritos, impondo-se, à vista de seu caráter assistencial, a demonstração da necessidade daquele que pleiteia os alimentos, além da capacidade do alimentante (MADALENO, 2013).

5.1  DIREITO PERSONALÍSSIMO

Por ostentar caráter personalíssimo, o direito a alimentos inadmite cessão (art. 1.707 do CC) ou compensação (art. 373, inc. II, do CC), salvo as hipóteses em que reconhecida natureza alimentar a pagamentos anteriormente feitos ao alimentando (CAHALI, 2009).

Pela mesma razão, a pensão alimentícia é impenhorável, porquanto destinada à salvaguarda das condições mínimas para uma existência digna, fato obstativo de seu atingimento pela execução civil (CAHALI, 2009).

Ainda que as verbas percebidas resultem de pensões atrasadas, restam protegidas da penhora, impedimento que não aproveita os bens adquiridos com o valor da pensão, ressalvados os demais casos de impenhorabilidade previstos na legislação processual (PEREIRA, 2017).

5.2 RECIPROCIDADE

A obrigação alimentar escora-se no dever de mútua assistência entre cônjuges, companheiros e parentes, sendo, deste modo, recíproca. A exceção diz respeito aos alimentos prestados em decorrência do poder familiar, que não possuem essa característica. O fundamento da reciprocidade é, outrossim, o princípio da solidariedade imanente aos vínculos jurídicos de afeto (DIAS, 2016).

Não subsiste a reciprocidade caso uma das partes da relação familial proceda de modo indigno para com a outra (art. 1708, parágrafo único, do CC). Precitada norma deve ser interpretada extensivamente, a fim de abarcar não apenas os filhos, mas também os ascendentes, por força do princípio da igualdade (PEREIRA, 2017).

5.3 PROXIMIDADE

Em conformidade com o art. 1.696 do Código Civil, a obrigação alimentar recai primeiro sobre os parentes de grau mais próximo. Logo, vislumbra-se um caráter subsidiário no acionamento dos parentes mais remotos. Não obstante, é possível que a ação de alimentos seja ajuizada em face de mais de um obrigado, em formação de litisconsórcio passivo sucessivo (DIAS, 2016).

Impende observar que, na estipulação dos alimentos e consequente distribuição dos encargos de seu pagamento, deve ser observada a regra da divisibilidade próxima proporcional subsidiária, dividindo-se a obrigação entre os obrigados primários, conforme a possibilidade de cada um. Ausentes condições por parte desses, complementa-se o valor necessário para a mantença do alimentando com os parentes de grau mais remoto, observada a mesma regra, e assim sucessivamente (DIAS, 2016).

5.4 ALTERNATIVIDADE

Embora a regra seja o pagamento dos alimentos em dinheiro, pode ser admitida sua prestação in natura, por meio da concessão de hospedagem e sustento. O critério para a admissão dessa forma de pagamento é, no entanto, o proveito do alimentando, a ser aferido pelo magistrado.

Verificado o inadimplemento dos alimentos in natura, o credor pode pugnar por sua conversão em dinheiro, ou pela execução de obrigação de fazer, mediante o estabelecimento de multa cominatória (PEREIRA, 2017).

5.5 PERIODICIDADE

Considerando que a situação de necessidade do alimentando tende a se protrair no tempo, a prestação alimentar possui caráter periódico, eis que deve supri-la até que não mais subsista. Em regra, obedece-se a periodicidade mensal, por ser a mais frequente no percebimento de rendimentos pelas pessoas. Nada impede, contudo, a estatuição de outro lapso temporal, desde que preservada a garantia de vida digna do alimentando (CAHALI, 2009).

5.6 ANTERIORIDADE

Dada a urgência presente no cumprimento das obrigações alimentares, seu vencimento é antecipado em relação ao período corresponde. Isto é, uma vez que o atendimento das necessidades que ela visa suprir não pode esperar, a anterioridade é consequência inseparável sua. A regra da anterioridade encontra-se prevista expressamente na dicção literal do art. 1.928, parágrafo único, do Código Civil.

Faltante o pagamento, o juiz deve fixar um prazo razoável para que o alimentante cumpra a obrigação, o qual não pode ser longo, consoante o caráter de urgência antes afirmado. O manejo da via executiva se torna possível tão logo existente a mora, não se aplicando o entendimento segundo o qual haveria de se esperar o transcurso de um período (CAHALI, 2009).

5.7 ATUALIDADE

A atualidade dos alimentos impõe seja preservado, tanto quanto possível, seu valor real, especialmente diante dos efeitos da inflação. Assim, costuma-se estabelecer o valor dos alimentos como um percentual da renda do alimentante, o que garantiria que, cada vez que esta fosse aumentada, os alimentos sofressem reajuste (CAHALI, 2009).

Outra prática adotada compreende a fixação dos alimentos com base no salário mínimo. Embora a CRFB/1988 vede a vinculação ao salário mínimo para qualquer fim, o texto constitucional estabelece uma exceção em relação aos alimentos, dada a proteção especial a ser conferida à família. Nada obstante, uma vez que o salário mínimo tem passado por valorização acima da inflação, fato que, em muitos casos, não se faz acompanhar por equivalente reajuste na renda do alimentante, os magistrados têm revisado a referida forma de correção, substituindo-a pelo reajuste à luz do IGP-M (DIAS, 2016).

5.8 INALIENABILIDADE

O direito aos alimentos não pode ser objeto de transação. Todavia, não se revestem de ilegalidade as convenções firmadas entre as partes com respeito à fixação do valor da pensão. Quanto aos alimentos pretéritos, no entanto, admite-se a transação, observando-se que, caso se trate de prestações devidas à criança ou ao adolescente, o Ministério Público deverá intervir, tendo em vista a garantia dos interesses dos incapazes (DIAS, 2016).

5.9 IRREPETIBILIDADE

O princípio da irrepetibilidade dos alimentos consigna a impossibilidade de que seja pleiteada a devolução dos alimentos, eis que esses se destinam à manutenção da vida e à aquisição de bens de consumo, motivo pelo qual se afigura impossível retornar ao status quo ante (CAHALI, 2009).

Uma função de extrema importância desempenhada pelo princípio da irrepetibilidade diz respeito à proibição de que a exclusão ou a redução dos alimentos operem efeitos retroativos. Ora, o ajuizamento de ação revisional de alimentos não pode estimular o devedor ao inadimplemento, ante o caráter urgente das prestações alimentares. Logo, a extinção ou a reduz dos encargos familiares opera efeitos ex nunc, atingindo apenas as parcelas vincendas. Isso porque, não fosse assim, se afiguraria conveniente para o devedor procrastinar o pagamento, à vista da possibilidade de redução do quantum debeatur (CAHALI, 2009).

Ainda acerca da irrepetibilidade, é mister salientar que a procedência de ação negatória de paternidade não implica o direito de pleitear a repetição dos valores pagos, o que deriva do princípio ora em apreço. A devolução somente será admissível se comprovada a má-fé ou a postura maliciosa do credor. Referido fenômeno é designado por Rolf Madaleno (2013) como  a relatividade da não restituição. Na esteira desse autor, os princípios da boa-fé objetiva e da vedação do enriquecimento sem causa não se coadunam com semelhante restituição claramente imoral.

5.10 IRRENUNCIABILIDADE

Sobre a irrenunciabilidade dos alimentos, na sistemática do Código Civil de 2002, tem-se que incide apenas sobre as prestações devidas em razão do poder familiar, não se aplicando àquelas pagas ao cônjuge e ao companheiro. Nestes casos, inclusive, uma vez encetada a renúncia, inadmite-se o pleito posterior, em razão do princípio da boa-fé objetiva e da vedação ao venire contra factum proprium (DIAS, 2016).

A inserção das mulheres no mercado de trabalho tem tornado cada vez mais comuns as situações em que essas simplesmente não necessitam dos alimentos, manifestando-se expressamente em tal sentido. Há que se frisar, porém, que a renúncia aos alimentos civis não implica a automática renúncia à pensão previdenciária do ex-marido, que, ainda que operada aquela, poderá ser percebida pela ex-mulher (MADALENO, 2013).

5.11 TRANSMISSIBILIDADE

Conforme o art. 1700 do Código Civil, a obrigação de prestar alimentos é transmissível aos herdeiros do devedor. Considerando o caráter personalíssimo de tal obrigação, tem-se entendido que a transmissão ocorre relativamente aos débitos alimentares anteriores ao falecimento do alimentante, nos limites das forças da herança (DIAS, 2016).


6 ALIMENTOS DEVIDOS AO EX-CÔNJUGE E AO EX-COMPANHEIRO

Os alimentos devidos ao ex-cônjuge e ao ex-companheiro fundam-se no dever de mútua assistência, que sobrevive à dissolução dos vínculos afetivos próprios a essas relações. Amparam-se nos princípios da solidariedade (art. 3º, inc. I, da CRFB/1988) e da dignidade humana (art. 1º, inc. III, da CRFB/1988), estando previstos no art. 1694 do Código Civil. Segundo Maria Berenice Dias (2016), a obrigação alimentar, em tais casos, ostenta evidente caráter indenizatório, pautado em uma ideia de responsabilidade objetiva, postos os danos causados pelo rompimento da sociedade conjugal:

Apesar de a lei não admitir tal expressamente, não se pode chegar a conclusão diversa. A pensão tem um nítido caráter de indenização, dentro de uma visão objetiva da responsabilidade civil, pela qual o dano deve ser indenizado independentemente da culpa, bastando estar presente o nexo causal. (DIAS, 2016, p. 960).

Não mais se admite a discussão do elemento subjetivo culpa na fixação dos alimentos. Com o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010, descabe invocar a culpa como motivo determinante para o dever de prestar alimentos, ou mesmo como justificativa para sua redução, restando, pois, revogada a regra que estabelece a conversão dos alimentos civis em naturais, caso apurada a culpa do ex-cônjuge ou do ex-companheiro pela situação de necessidade. Nesse sentido, o magistério de Rolf Madaleno:

Com a evolução da doutrina e pela intervenção de contundente parcela da jurisprudência brasileira a pesquisa da culpa conjugal passou a ceder lugar para a denúncia do mero fracasso matrimonial, e, embora o vigente Código Civil não tivesse alcançado este grau de civilidade e de respeito integral à dignidade da pessoa, foram justamente a doutrina e a jurisprudência brasileiras que encontraram uma maneira de suavizar o impacto da discussão da culpa pelo fim do casamento ao afastarem sua incidência dos processos litigiosos de separação e objetivarem o direito alimentar em sua integralidade diante da evidência de dependência financeira. (MADALENO, 2013, p. 970).

É cada vez maior a redução no número de casos nos quais foi fixada a prestação alimentícia em favor do ex-cônjuge ou do ex-companheiro. Isso porque, diante da persecução pela igualdade entre homens e mulheres, tornam-se menos frequentes os casos nos quais um dos consortes é economicamente dependente do outro, necessitando de seu provimento para sobreviver (MADALENO, 2013).

Descabe desconsiderar, no entanto, que o modelo patriarcal ainda prevalece em muitas famílias brasileiras, de molde que tentar implantar a fórceps uma concepção aritmética da igualdade entre homens e mulheres somente contribui para aprofundar o fosso social existente entre os gêneros, reduzindo à penúria aquele que se privou do exercício de atividades laborais para se dedicar integralmente à lida doméstica, muitas vezes por força de determinação autoritária e machista do varão. A esse respeito, adverte Sérgio Gischkow Pereira:

Não se pode descuidar que ainda existe uma parcela de famílias que preserva o viés patriarcal. As mulheres, muitas vezes, são impedidas de trabalhar e, quando do fim do casamento, não têm como prover a própria subsistência. Muitas renunciam aos alimentos porque espancadas, porque ameaçadas de morte, porque ludibriadas, ou todos esses fatores conjugados, e, muitas vezes, não há como provar esses eventos. Os juízes e tribunais, em geral, sabem disso, mas nem sempre o doutrinador o sabe. (PEREIRA, 2004, p. 87).

Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a fixação de alimentos entre cônjuges e companheiros deve observar termo certo, possuindo caráter transitório, subsistente até que o alimentando logre se inserir no mercado de trabalho, de sorte a prover suas necessidades. Ressalva a Corte, porém, que os alimentos tornar-se-ão perenes, uma vez presente a impossibilidade fática de que tal inserção se perfaça, seja pela incapacidade do ex-cônjuge ou ex-companheiro, ou pelo decurso de considerável lapso temporal de afastamento das atividades laborais, a tornar pouco provável que se consiga a reinserção no mercado de trabalho. Veja-se:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. ACORDO PARA PAGAMENTO DE PENSÃO. EX-CÔNJUGE. MANUTENÇÃO DA SITUAÇÃO FINANCEIRA DAS PARTES. TEMPORARIEDADE. POSSIBILIDADE DE EXONERAÇÃO. RECURSO ADESIVO. INADEQUAÇÃO. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 15 DA LEI 5.578/68 E ARTS. 1.694 e 1.699 do Código Civil. 

1. Ação de exoneração de alimentos, ajuizada em 17.03.2005. Recurso especial concluso ao Gabinete em 03.05.2013.

2. Discussão relativa à possibilidade de exoneração de alimentos quando ausente qualquer alteração na situação financeira das partes. 

3. Os alimentos devidos entre ex-cônjuges serão fixados com termo certo, a depender das circunstâncias fáticas próprias da hipótese sob discussão, assegurando-se, ao alimentado, tempo hábil para sua inserção, recolocação ou progressão no mercado de trabalho, que lhe possibilite manter pelas próprias forças, status social similar ao período do relacionamento. 4. Serão, no entanto, perenes, nas excepcionais circunstâncias de incapacidade laboral permanente ou, ainda, quando se constatar, a impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho. 

5. Rompidos os laços afetivos e a busca comum pela concretização de sonhos e resolvida a questão relativa à guarda e manutenção da prole - quando houver -, deve ficar entre o antigo casal o respeito mútuo e a consciência de que remanesce, como efeito residual do relacionamento havido, a possibilidade de serem pleiteados alimentos, em caso de necessidade, esta, frise-se, lida sob a ótica da efetiva necessidade.

6. Não tendo os alimentos anteriormente fixados, lastro na incapacidade física duradoura para o labor ou, ainda, na impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho, enquadra-se na condição de alimentos temporários, fixados para que seja garantido ao ex-cônjuge condições e tempo razoáveis para superar o desemprego ou o subemprego.

7. Trata-se da plena absorção do conceito de excepcionalidade dos alimentos devidos entre ex-cônjuges, que repudia a anacrônica tese de que o alimentado possa quedar-se inerte - quando tenha capacidade laboral - e deixar ao alimentante a perene obrigação de sustentá- lo.

8. Se os alimentos devidos a ex-cônjuge não forem fixados por termo certo, o pedido de desoneração total, ou parcial, poderá dispensar a existência de variação no binômio necessidade/possibilidade, quando demonstrado o pagamento de pensão por lapso temporal suficiente para que o alimentado reverta a condição desfavorável que detinha, no momento da fixação desses alimentos.

9. Contra a decisão que recebe o recurso de apelação no efeito suspensivo, é cabível agravo de instrumento (art. 522 do CPC) e não recurso especial. Não tendo sido interposto o referido recurso, a questão está preclusa.

10. Recurso especial desprovido.

11. Recurso adesivo não conhecido. (BRASIL, 2014b).

Sobreleva observar, contudo, que ainda são muito frequentes os casos em que o ex-cônjuge ou ex-companheiro, por ter passado longo período afastado do mercado de trabalho, não possui condições efetivas de se reintegrar com dignidade ao universo laboral. Semelhante preocupação é expendida por Maria Berenice Dias:

Não se pode olvidar a dificuldade de acesso ao competitivo mercado de trabalho, principalmente de quem permaneceu dele afastado por alguns anos. Essa ainda é a realidade: as mulheres, com o casamento ou ao estabelecerem união estável (geralmente por exigência do varão), dedicam-se exclusivamente às tarefas domésticas e à criação dos filhos. Não há como fixar um prazo para que consigam sobreviver por conta própria. Às vezes, a fixação do termo final é condicionada ao término dos estudos ou à conquista de trabalho. Estabelecido a favor do ex-cônjuge encargo alimentar por prazo determinado, para inserir-se no mercado de trabalho, caso tal não ocorra, possível é prorrogar a obrigação por prazo indeterminado, principalmente se, em face da idade, ele não consegue meios para prover sua subsistência. (DIAS, 2016, p. 988).

 Isso se mostra frequente em casamentos ou uniões estáveis dissolvidos após longo período de duração, nos quais, observada a lógica patriarcal tradicional, a mulher, já próxima da fase idosa, não dispõe das menores condições de recuperar as condições financeiras autônomas para sua mantença. Nesses casos, há de imperar o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como de se compulsar a dimensão concreta da aplicação normativa, franqueando-se a fruição de alimentos enquanto for possível sua prestação pelo alimentante, isto é, com termo incerto.


7 PRESSUPOSTOS PARA A FIXAÇÃO DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR

Segundo preceitua o art. 1.965 do CC, “são devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, a própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento”. Impende recorrer às lições de Clóvis Beviláqua sobre a temática:

Aquele que possui bens suficientes ou que está em condições de prover a sua subsistência por seu trabalho não tem direito de viver à custa dos outros. O instituto dos alimentos foi criado para socorrer os necessitados, e não para fomentar ociosidade ou estimular o parasitismo. Eles se dão pietatis causa, ad necessitatem, não ad utilitatem, e, muito menos, ad voluptatem. Aquele que apenas tem com que se manter não pode ser obrigado a sustentar outrem. Há obrigações alimentares mais imperiosas umas que as outras. Assim, se do sustento das pessoas, que o parente já tem ao seu cargo, não restam sobras, não se lhe pode exigir que abra mais um espaço à sua parca mesa, em detrimento dos que já se sentam em torno dela. (BEVILÁQUA, 1905, p. 304).

Deste modo, são pressupostos para a obrigação de prestar alimentos: o vínculo de parentesco, ou conjugal, ou convivencial; a necessidade e a incapacidade do alimentando de sustentar a si próprio; e a possibilidade do alimentante de fornecer alimentos (CAHALI, 2009).

No que concerne ao critério da necessidade, os alimentos destinam-se a manter o mesmo padrão de vida desfrutado por aqueles que dele necessitam, antes de instaurada a situação geradora do dever de alimentar. Cabe ressaltar que se compreendem nos alimentos as despesas com mantimentos, vestuário, lazer, habitação, saúde e educação, não se restringindo à mera subsistência física (CAHALI, 2009).

Com respeito ao pressuposto da possibilidade do alimentante, este é determinado pelas condições financeiras do devedor de pagar a prestação necessitada pelo alimentando sem prejuízo de seu sustento. É inadmissível que, sob o fundamento de remediar uma necessidade, se instaure outra maior, privando-se o alimentante dos recursos mínimos para sua sobrevivência (CAHALI, 2009).

A par desses dois critérios, o princípio da proporcionalidade deve nortear a fixação dos alimentos, de modo a concatenar os dois critérios antes explicitados. A vinculação dos alimentos aos rendimentos do alimentante, por meio de sua fixação em percentual sobre ele incidente, é o mecanismo mais seguro de garantia da proporcionalidade (DIAS, 2016).

É necessário diferençar o processo de quantificação dos alimentos devidos aos descendentes daqueles pagos ao ex-cônjuge e ao ex-companheiro. Nesse último caso, predomina o critério da necessidade, não sendo imperiosa a manutenção de uma relação entre a evolução patrimonial do alimentante e o pensionamento praticado (DIAS, 2016).

Dificultosa se afigura, por variadas vezes, a determinação das possibilidades do alimentante, que pode se utilizar de toda sorte de expedientes para simular o percebimento de rendimentos inferiores, com o fito de reduzir ou mesmo se exonerar dos encargos alimentares. Em tais situações, há que se aplicar o princípio da aparência, partindo-se dos sinais presuntivos de riqueza emitidos pelo devedor como forma de intuir, a partir deles, o real padrão de vida desfrutado pelo alimentante. Cabível se afigura, igualmente, a inversão do ônus da prova, como bem observa Maria Berenice Dias:

Como é difícil ao credor provar os ganhos do pai, os alimentos devem ser fixados por indícios que evidenciem seu padrão de vida. Nada mais do que atentar aos sinais externos de riqueza, pelo princípio da aparência. Esta dificuldade do credor autoriza a inversão dos ônus probatórios, podendo o juiz impor ao réu o encargo de comprovar seus rendimentos. Em sede alimentar, o magistrado não está adstrito ao princípio da congruência, que restringe a decisão judicial ao limite dos pedidos das partes. (DIAS, 2016, p. 994).

Rolf Madaleno minudencia o processo de quantificação dos alimentos nos seguintes termos:

Para fixar a concreta quantidade dos alimentos o juiz toma como ponto de partida o apuro das necessidades do alimentando, sem poder deixar de considerar, por absolutamente indissociável na análise da quantificação dos alimentos, a estratificação social e econômica das pessoas envolvidas na relação de obrigação alimentar. Para estabelecer a conformação do status socioeconômico e cultural do alimentante devem ser considerados os elementos: a) econômico (bens dos pais e dos filhos); b) sociológico (meio de influência, lugar de habitação etc.); c) cultural (nível familiar de escolarização e cultura dos pais). O aspecto econômico toma em consideração a remuneração pelo trabalho, economias e outras rendas do alimentante e na contrapartida o consumo da família, contando desde o necessário para a sobrevivência até a abundância de acordo com o estilo de vida, pois este modus vivendi é determinante para o estabelecimento dos alimentos. Por fim, as economias apuradas permitem determinar o processo de acumulação de capital e ajudam a melhor identificar a possibilidade alimentar do devedor dos alimentos. Do ponto de vista sociológico é relevante diferenciar a infraestrutura familiar, observada a classificação da moradia da família segundo a sua situação geográfica (bairro onde se situa), o material de construção e quantidade de ambientes e o sistema de serviços domiciliares (números de empregados domésticos e custos de manutenção da moradia). A feição cultural considera a escolarização e formação do núcleo familiar até eventual pós-graduação das partes interessadas, porquanto são estas informações igualmente utilizadas pelos organismos governamentais para dividir as pessoas em classes sociais e culturais dentro de um sistema capitalista. Dentro dessas balizas, torna-se função discricionária do juiz buscar o arbitramento alimentar, atentando para o critério da proporcionalidade entre a possibilidade de quem paga e a necessidade de quem recebe, sendo certo que o Código Civil e tampouco qualquer ou a lei extravagante fornece alguma fórmula matemática que permita ao julgador um cálculo exato de uma pensão alimentícia. (MADALENO, 2013, p. 986).

Frise-se, finalmente, que o julgador poderá se valer de todos os mecanismos juridicamente previstos para a determinação do trinômio acima referido, em legítimo exercício de seus poderes instrutórios. Assim, tanto a requisição de cópia das declarações de imposto de renda do alimentante à Receita Federal, quanto a quebra dos sigilos fiscal e bancário, configuram procedimentos passíveis de utilização com esse propósito (DIAS, 2016).

A alteração em qualquer um dos polos do trinômio aduzido (proporcionalidade, necessidade e possibilidade) dará azo à revisão do valor da pensão alimentícia ou até mesmo à exoneração do dever de alimentar, o que, ressalvada a hipótese de contração de novas núpcias, não ocorre automaticamente, sendo premente a postulação em juízo, por meio das ações revisional ou exoneratória da obrigação alimentar.

Sobre a necessidade do alimentando, como já se afirmou, não compreende apenas a carência de elementos para uma existência digna, mas deve pressupor a impossibilidade de obtenção de tais recursos, em razão de incapacidade para o trabalho, que pode ser natural ou sociológica, no último caso diante da improbabilidade momentânea ou permanente de inserção no mercado de trabalho.


8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, a atenta interpretação dos fatos do processo é curial para a adequada concretização dos preceitos pertinentes aos alimentos, porquanto a riqueza das particularidades das situações da cotidianidade é sempre mais profícua do que as molduras legislativas, às quais sempre transbordam.

Não há como, ex ante e em abstrato, fixar todas as hipóteses de cabimento dos alimentos, porquanto, diante das regras constitucionais e legais atinentes à matéria, pode ser que determinada situação concreta, vertida aprioristicamente como indigna do arbitramento de alimentos, reclame forçosamente sejam estes estabelecidos.


REFERÊNCIAS

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BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). Os novos rumos do Direito de Família. In: O Direito de Família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.


BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1290313/AL, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJe 07/11/2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1388116/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/05/2014, DJe 30/05/2014b.

CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol. V. Atual. Tânia da Silva Pereira. 25. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito de Famíia – Vol. 5. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.


Autor

  • Gladston Bethônico Bernardes Rocha Macedo

    Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Advogado.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Gladston Bethônico Bernardes Rocha. A estrutura nomodinâmica dos alimentos no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5278, 13 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62687. Acesso em: 25 abr. 2024.