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O instituto da arbitragem no processo civil romano

O instituto da arbitragem no processo civil romano

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A arbitragem é uma instituição jurídica prevista em nossos códigos há muito tempo, mas que foi esquecida ou reduzida a poucas áreas do nosso direito. O processo arbitral é muito antigo, sendo largamente usado nas civilizações clássicas, especialmente na romana.

1.Introdução

A arbitragem é uma instituição jurídica prevista em nossos códigos há muito tempo, mas que foi esquecida ou reduzida a poucas áreas do nosso direito [1]. O processo arbitral é muito antigo, sendo largamente usado nas civilizações clássicas, especialmente na romana.

Os povos primitivos tendiam a cuidar de seus próprios negócios – incluindo suas lides –, de forma privada, sem intervenção pública alguma para o auxiliar: a força física podia e era utilizada – a lei do mais forte. Com a evolução do conceito de respeito ao próximo, houve uma fase do arbitramento facultativo: chamava-se alguém, neutro aos interesses mútuos para decidir a contenda. A arbitragem obrigatória, com a exceção de quando os litigantes entravam em acordo, surge como primeira forma de intervenção do populus (cidadãos romanos), que possuía desejo de que a paz social fosse alcançada. Os conflitos, posteriormente, são resolvidos pelo próprio Estado, por delegação desta função a funcionários, os magistrados. [2]

No Direito Romano, a arbitragem facultativa sempre foi aceita e mesmo incentivada. A arbitragem obrigatória foi a forma de resolução de litígios durante um período que compreendeu as fases das ações da lei (legis actiones) e do processo formulário (per formulas) – ou seja, o equivalente a quase onze séculos (@ 794 a.C. – @ 294 d.C.) –, ainda que esta já contasse com maior participação dos magistrados. Nesses períodos, o processo se dava em duas fases, desconsiderando a fase da citação: in iure (diante do magistrado) e apud iudicem (diante do iudex privatus ou arbiter [3]). Somente com a advinda do processo extraordinário (cognitio extraordinaria) que a arbitragem perde um pouco da sua importância para os romanos, com o exercício pleno da iurisdictio por parte do populus [4]. Esta mudança para o processo extraordinário, representou o advento do valor do direito público, em detrimento ao apreço exclusivo ao direito privado antes existente.


Processo Privado Romano

O Ordo Iudiciorum Privatorum – algo como "ordem dos juízos privados" – é a denominação que se pode utilizar ao se englobar os períodos das legis actiones e o formulário, por seu caráter essencialmente privado, no qual os interesses nas ações se bastavam nos sujeitos nelas envolvidos (passivo e ativo), não transpassando à cidade de Roma como um todo [5].

Assim como em praticamente todas as cidades, ou aglomerações primitivas, Roma foi instituída com base em aspectos religiosos, aspecto este que alcançava as práticas jurídicas. Os primeiros personagens envolvidos com a aplicação das leis – ainda não escritas – eram os mesmos responsáveis pelo contato dos cidadãos com os deuses, os pontífices.

Entretanto, tornava-se cada vez mais difícil centrar todas estas funções, principalmente a jurisdicional, na pessoa do rex e dos sacerdotes. O aumento na complexidade das relações intersubjetivas – privadas – exigia uma maior agilidade e disponibilidade de quem julgava. Isso traz consigo a necessidade da criação de órgãos auxiliares específicos – e especializados – para tal exercício: foram criadas as magistraturas públicas (magistratus publici populi romani). Ocorre uma transferência parcial do imperium do rex aos novos órgãos [6] – essa função jurisdicional era inerente à sua condição de magistrado, como bem lembrado por CRUZ e TUCCI; AZEVEDO [7].

Os magistrados, graças à iurisdictio, passavam a ter o poder de dizer (de declarar) a norma jurídica que iria incidir sobre um caso concreto específico. Daí a necessidade da existência de duas fases distintas no procedimento: in iure, diante do magistrado (pretor), que preparava as questões referentes à contestação; e apud iudicem, na qual o iudex ou o arbiter – cidadão romano – decidia a demanda em nome do povo romano, sem subordinação a órgão superior algum [8].

As duas fases distintas acabam por demonstrar que havia uma clara distinção entre iurisdictio e iudicatio. Para SCHULZ [9], a "iurisdictio (ius dicere) significa en el ámbito del procedimiento civil ordinario, la autoridad para decidir si a un actor, en un caso concreto, debe serle permitido deducir su demanda ante un Juez. Iudicatio (iudicare) significa la autoridad para dirimir, sentenciar un proceso". Esta bipartição, que será observada tanto no procedimento das legis actiones quanto no per formulas, reafirma que as resoluções de litígios entre os romanos realmente eram de caráter privado.

O direito subjetivo material era estreitamente vinculado à ação judiciária – não só no processo romano, mas até o final do século XIX, quando surge o dilema entre Windcheid x Müther [10] permaneceu desta mesma forma [11] –, ou, como diria Cesare Sanfilippo [12], "configurava-se o direito subjetivo não pelo aspecto de seu conteúdo substancial, mas sim pela ótica da ‘ação’ com a qual o titular podia tutelá-lo contra possíveis ofensas. Os romanos não diziam: ‘eu tenho um direito’ (e, por via de conseqüência, uma ação para tutelá-lo), mas diziam simplesmente: ‘eu tenho uma ação’" [13]. A ordem jurídica romana acabava, portanto, por se caracterizar como um sistema de ações. Essa ação era sempre bilateral, dependendo da atuação oral de ambas as partes.


Processo das Legis Actiones

As fontes primordiais que temos para descrição desse período do processo romano são, basicamente, a Lei das XII Tábuas e informações históricas fornecidas pelas Institutas de Gaio [14] (I. 4.11-29).

As ações da lei eram instrumentos processuais privativos dos cidadãos romanos, protegendo-lhes seus direitos subjetivos. Elas eram parcas e específicas, cada uma tendo uma estrutura diferenciada para situações jurídicas características. Possuem esse nome por terem suas ações rigidamente restritas às palavras das leis nelas expressas, sendo, portanto, bastante estáveis.

Entre todas as legis actiones, aquela na qual havia um destaque especial à figura do árbitro era a legis actio per iudicis arbitrive postulationem (CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, págs. 66-67). Tendo sido instituída pela Lei das XII Tábuas – porém, os fragmentos das Institutas a ela correspondentes se perderam, tendo sido descobertas apenas posteriormente –, destinava-se à partilha de herança e divisão de coisa comum, como, também, à cobrança de dívida derivada de uma sponsio (promessa) – advinda do surgimento de uma forma mais ágil e simples de comércio, que terminava com essa sponsio.

Apesar de ter sido inicialmente função do rei, a Justiça muda de administrador quando surge a figura do juiz e do árbitro, ambos desvinculados de qualquer característica religiosa, vindos dentre os Quirites – cidadãos romanos: patrícios ou senadores – e, após, mesmo entre os plebeus. Esta mesma prática é estendida à legis actio sacramento quando da separação do processo em duas partes: in iure (diante do pretor), para que se fixasse os marcos da disputa; e, depois, apud iudicem ou in iudicem, (ante o iudex unus ou o arbiter, podendo ser auxiliado por um consilium – pessoas de sua confiança), quando a demanda era conhecida e decidida em nome do próprio Populus – povo romano (CRUZ e TUCCI; AZEVEDO 1996, págs. 54-55).

a)Procedimento in iure

Para que se pudesse iniciar o procedimento das legis actiones era necessária a in ius vocatio (citação) do réu, começando apenas com a presença de ambas as partes, sendo-lhes negado o direito de ausência em juízo (revelia) [15]. Isso decorre do caráter essencialmente oral de todos os atos, mesmo na in ius vocatio. Essa proibição era protegida mesmo por uma lei das XII Tábuas [16].

Graças ao aspecto substancialmente privado das relações aqui abrangidas, não havia a possibilidade de se recorrer a qualquer meio jurisdicional (alguma espécie de "oficial de justiça" ou polícia do populus, e. g.), devendo, como diz a lei supracitada, a parte o fazer por si mesma.

Também não era permitida a representação em juízo: "Ninguém pode agir em nome de outrem" [17], passando a existir apenas no processo formulário, sob as formas de cognitor e procurator [18].

O aspecto da publicidade da citação é notório: a in ius vocatio só poderia ser realizada em locais públicos, tais como as termas, os teatros, ou mesmo nas vias públicas (ruas), só não dentro do domicílio do demandado, por sua inviolabilidade (graças a seu caráter sacro) [19].

Após a citação, as partes apresentavam-se diante do magistrado e discutiam protocolarmente a razão da contenda. Discordando o réu das alegações proferidas pelo demandante, determinava-se a manutenção do estado atual da coisa litigiosa. Sendo impossível delimitar a controvérsia em um mesmo dia, o réu deveria prestar vadimonium [20], evitando uma nova in ius vocatio.

Procedia-se, então, após um prazo de trinta dias instituído pela Lex Pinaria (GAIO, I. 4.15), à escolha do iudex, pela vontade comum das partes, ou por indicação do magistrado, ou, ainda, por sorteio (sortitio) dentre aqueles cidadãos constantes de um album existente no tribunal.

Devido à manutenção do aspecto exclusivamente oral durante todo o procedimento, havia a presença de testemunhas, que presenciavam mesmo a litis contestatio.

b)Procedimento apud iudicem

Após três dias do estabelecimento do iudex ou arbiter e notabilizada a litis contestatio, as partes se apresentavam diante daquele (comperendinus dies). Ambas faziam uma pequena síntese do litígio (causæ coniectio), sendo acompanhada da exposição das razões (peroratio ou causam dicere) das partes e a produção das provas.

Como acontecia na fase in iure, o procedimento era oral e a peroratio (sustentação oral) só acontecia com a presença dos dois litigantes. Porém, na ausência de um deles, esperava-se até o meio-dia (ante meridiem) e, não aparecendo o mesmo, julgava-se a demanda em favor que cumprisse o prazo determinado (de absente secundum praesentem) [21].

Logo depois da peroratio, havia a etapa probatória, na qual prevalecia o preceito "onus probandi incumbit ei qui dicit non qui negat" (o ônus da prova incumbe a quem diz e não a quem nega). A mais importante prova era a testemunhal, ainda que houvesse outras, tais como o juramento ou a confissão. Como testemunhas, eram convocados ordinariamente aqueles cidadãos que haviam presenciado a celebração do contrato entre as partes, ou que houvessem observado o momento da violação de determinado direito da parte demandante.

O processo era finalizado com a sententia proferida pelo iudex, exaurindo-se o papel do mesmo. Independentemente do que fora decidido por quem julgava, tornava-se impossível o pedido de uma outra legis actio sobre a mesma coisa julgada (res in iudicium deducta), devendo, em caso de ajuizamento, o magistrado denegá-la (denegatio actionis).

Como bem relatam CRUZ e TUCCI; AZEVEDO (1996, pág. 67), nos casos de partilha de bens hereditários (actio familiæ erciscundæ), após a exposição do caso, requeria-se ao magistrado a escolha de um árbitro (arbiter), já que, dada a natureza daquela ação, a tarefa de quem julgava exigia atividades extrajudiciais – tais como a medição e avaliação do patrimônio em questão – demandando conhecimentos que extrapolavam as funções meramente jurídicas.


Processo Per Formulas

As fontes primordiais que temos para descrição desse período do processo romano são as inúmeras constituições imperiais dos sécs. II e III d. C., inseridas no Codex e no Digesto de Justiniano; as Institutas de Gaio; a reconstituição do edictum perpetuum (contendo partes dos editos pretorianos).

O Processo Formular recebe este nome por uma – a mais importante – de suas características básicas: o pretor, ao assumir essa magistratura, emitia, pelo direito honorário, um edito contendo um modelo, chamado formula, contendo todos os esquemas jurisdicionais previstos, abstratamente, para seu período de magistratura.

Sua origem se dá com a aversão cada vez maior às legis actiones, como nos relata o jurista Gaio (I., 4. 30), coincidindo com a época da expansão mediterrânea do Império Romano, na qual o comércio internacional foi, de certo modo, intensificado. A impossibilidade da utilização das legis actiones com uma das partes não sendo cidadã romana, ou mesmo da escolha de um iudex estrangeiro para julgar causas entre romanos, exigiu uma alternativa processual para suprir a falta dessas condições nas províncias. Desta forma, com a prática do processo per formulas, havia a possibilidade de o pretor peregrino redigir instruções aos recuperatores para que julgassem as demandas com base no ius gentium, não as motivando no ius civile.

Ainda que, como as legis actiones, pertencesse ao ordo iudiciorum privatorum e, com isso, mantivesse o procedimento dividido nas duas instâncias – in iure e apud iudicem –, ao contrário daquela, o processo formular não era tão formalista e também era mais rápido. O próprio fato da existência de uma fórmula escrita faz com que a total oralidade do procedimento anterior fosse quebrado, dando mesmo maior espaço à ação do magistrado e das partes, que não mais ficavam presas a "fórmulas" orais prontas, tendo maior liberdade de argumentação.

a)Procedimento in iure

Tendo sido ampliados os direitos amparados com a advinda do ius honorarium, houve maior agilidade e flexibilidade ao processo, ainda que continuasse existindo certa complexidade no procedimento diante do pretor.

O processo começava com a comunicação extrajudicial, ao réu, da pretensão (intentio) do demandante (in ius vocatio), por meio de um instrumentum, correspondendo à editio formula (ou também chamada de editio actionis), criação do direito pretoriano – já que a comunicação prévia não havia no direito clássico).

Com a apresentação das partes perante o magistrado, o demandante, ordinariamente representado por um advocatus [22], repetia formalmente sua pretensão (edictio actiones), apontando a fórmula constante do edito pretoriano que julgava apropriada (postulatio actiones), de modo que o pretor concedesse-lhe a respectiva ação.

Se, eventualmente, não fosse prevista no edito a hipótese pedida ou faltasse algum pressuposto material ou formal, a ação era negada pelo magistrado (denegatio actiones), sendo este uma ato discricionário do mesmo, baseado em seu imperium. Se deferida pelo magistrado, manifesta-se o réu, também acompanhado por um advocatus. Ele poderia tanto apresentar a sua defesa – não se olvidando de opor as exceptiones devidas, ou mesmo dar origem a um iudicium contrarium (na qual as partes assumiam idêntica posição processual, de autor e réu, simultaneamente) – quanto confessar (confessio) – que, perante o magistrado, possui uma eficácia probatória (D. Ulpiano 50. 17. 52, Libro XLIV).

Encerradas as postulationes e tendo o magistrado todas informações necessárias para redação da fórmula (causa cognitio), era feita, primeiramente, a escolha do iudex unus – dependendo da actio em questão, do arbiter ou do colégio dos recuperatores. Este procedimento era realizado pelo magistrado e pelas partes.

Por fim, passava-se à redação da fórmula, realizada de forma conjunta – pelo magistrado que, ao fim, a entregava às partes mediante um decretum, e pelas partes, dando um caráter misto a mesma, tanto público quanto privado.

A fórmula, que seria apresentada ao iudex unus, encontrava-se dividida em quatro partes – não necessariamente todas aparecendo sempre na fórmula [23] –, como Gaio explica nas Institutas (4. 39): intentio, demonstratio, adiudicatio e condemnatio.

Na intentio encontramos a pretensão do autor, aquilo que ele pretendia que o iudex decidisse, contendo "a enunciação da relação jurídica substancial (prevista no ius civile ou no ius honorarium) deduzida em juízo (...), ou seja, a causa petendi" [24]. A intentio poderia ser classificada, tendo em conta as diferentes actiones.

A demonstratio, juntamente com a intentio, tinha por objetivo delimitar a res in iudicium deducta, especificando o fato que causava ação.

Como descrito por Gaio (I., 4. 42), a adiudicatio é a parte da fórmula que permite ao iudex adjudicar a coisa a um dos litigantes, como na ação de partilha entre herdeiros, na de divisão de coisa comum e de demarcação entre vizinhos.

Já a condemnatio dá ao iudex o poder de condenar ou absolver o réu. O valor da condenação poderia vir tanto na fórmula, como poderia ser deixada à avaliação do próprio juiz [25]. Na eventual existência de cláusula arbitrária (arbitratus de restituendo), em fórmulas relativas a certa res, as partes, na feitura da mesma, estipulariam o tempo em que o valor da coisa deveria ser considerado.

Havia também as chamadas partes adjetas ou adjectiones, que auxiliavam no dimensionamento preciso da questão, no caso da insuficiência das partes necessárias (especialmente, intentio e demonstratio). Para o autor, principalmente – mas não somente –, havia a præscriptio (GAIO, I., 4. 130-137), que poderia evitar a pluris petitio e que uma ação conexa pudesse ser apresentada posteriormente.

O réu, por sua vez, poderia contar com a exceptio [26], apresentada entre a intentio e a condemnatio, que tinha natureza de defesa material do réu, consistindo em uma cláusula condicional negativa (defesa positiva do réu diante de possível iniqüidade do ius civile, fundada no ius honorarium).

Já a parte final do procedimento in iure, após a feitura da fórmula, consistia na litis contestatio, comportamento processual das partes que se fazia com o compromisso de participarem da fase seguinte, apud iudicem, e obrigava-os a aceitarem o que nela fosse decidido.

Com a ocorrência da litis contestatio, alguns efeitos podem ser observados, tais como [27]: conservativo, por não admitir nenhuma modificação objetiva da fórmula (res in iudicium deducta definitiva); extintivo, não permitindo a propositura de outra ação fundada na mesma relação jurídica anteriormente deduzida em juízo, e desde que houvesse identidade estrutural entre a relação de direito material e o vínculo que nascia da submissão aos termos da fórmula (accipere iudicium) [28]; novatório, no caso da extinção da relação obrigacional originária pela litis contestatio, surgindo a novatio necessaria (sendo que a obligatio vinda da litis contestatio ficava subordinada à condenação do réu [29]).

Ainda como conseqüência da litis contestatio, os elementos objetivos da fórmula – a res in iudicium deducta (o objeto do julgamento conduzido) – não poderiam ser mudados, a não ser em casos muito excepcionais. O iudex unus poderia, desde que obedecendo à fórmula, utilizar-se dos meios necessários para alcançar a decisão, podendo, para isso ser orientado pelo magistrado. Porém, em algumas situações extremadas – como a morte ou perda da capacidade (capitis diminutio) de uma das partes, ou o caso do juiz não conseguir chegar a alguma decisão (ratio dicendi) acerca da demanda.

b)Procedimento apud iudicem

Poucas são as fontes que se aprofundam na descrição da fase procedimental in iudicium, ou seja, perante o iudex, pois não era ela muito interessante aos juristas clássicos, graças à existência de poucas regras para discipliná-la. Na maioria das vezes, o juiz utilizava-se dos costumes (mores maiorum) e das regras contidas na lei das XII tábuas, que permaneceu vigente simultaneamente ao procedimento per formulas durante alguns anos.

Para que o procedimento apud iudicem se iniciasse, era preciso que uma das partes procurasse o juiz para o caso nomeado – que anteriormente deveria prestar juramento de que seguiria os preceitos legais –, podendo mesmo haver a contumácia (resistência) da outra parte. Apresentando-se as partes no terceiro dia após a litis contestatio, elas faziam uma pequena síntese da causa ao juiz – da mesma forma que no procedimento das legis actiones –, para que este conhecesse o objeto do litígio (causæ coniectio).

Após este momento introdutório, começava a principal parte do procedimento, que era justamente o da instrução e discussão a respeito das provas. As partes deveriam comprovar apenas as questões de fato – na intentio do autor ou na exceptio do réu –, não se preocupando em comprovar a existência ou eficácia de alguma norma jurídica.

Os advogados das partes tinham importante papel logo após a instrução: eles eram responsáveis pelas alegações acerca do que havia sido apurado, fazendo uma sustentação oral dividida em partes bem elaboradas.

Baseando-se nas provas – e presunções – e respeitando os limites da fórmula, o juiz deveria prolatar a sentença (pronuntiatio) – no caso do tribunal de recuperatores, a maioria dos componentes decidia. A regra da livre convicção [30] garantia certa discricionariedade para que alcançasse a ratio decidendi. O iudex poderia declarar, no caso em que não chegasse a ratio decidendi, que não era evidente (sibi non liquere [31]) a ele o resultado, abstendo-se de dar sua opinião, seu julgamento.

Na sentença, – não obrigatoriamente, porém normalmente escrita –, o iudex declarava se a intentio do autor procedia ou não (absolutio ou condemnatio – a certa pecunia – do réu), não precisando motivá-la. Desta decisão nasceria uma nova relação jurídica entre os litigantes (res iudicata) [32], servindo como embasamento da actio iudicati, a qual o vencedor utilizaria para exigir o cumprimento da sentença. É da sentença, também, que surge o efeito que autoriza a futura oposição de uma exceptio rei iudicatæ (exceção da coisa julgada – I., 4. 106).

Sabendo perfeitamente a importância que possuía a sentença proferida pelo iudex, os romanos criaram algumas regras [33] para repudiar posturas inadequadas à isenção judicial – favorecimento de uma das partes, imprudência na regência do processo, dolo (dolo malo), proferir condemnatio extrapolando os termos da fórmula – que faziam com que o iudex assumisse os prejuízos por ele causados (actio contra iudicem qui litem sua fecerit).

Como resultado da sentença condenatória proferida pelo iudex, temos a obligatio iudicati, que por sua vez servia de pressuposto da actio iudicati (como ocorria no sistema das ações da lei).


Conclusão

O Processo Civil Romano, dividido em três diferentes períodos, contou, em sua maior parte – correspondente ao Ordo Iudiciorum Privatorum –, com a constante presença do instituto da Arbitragem para a resolução de suas lides.

A flexibilização das formalidades presentes no processo privado romano trouxe maior liberdade de atuação ao arbiter ou iudex unus, possibilitando que a arbitragem viesse a consistir em um instrumento a mais na resolução de conflitos – e não mais o único.

Com o advento do período da extraordinem cognitio, a centralização do poder torna-se cada vez mais forte – principalmente no principado e no dominato, na figura dos imperadores, dos césares –, sobrepujando a liberdade privada existente até então. Os magistrados passam a administrar a justiça, em detrimento do papel de destaque até então dado aos árbitros.

O direito justinianeu trouxe a diferenciação no plano da eficácia jurídica: se o compromisso entre as partes contivesse um juramento, as mesmas estariam vinculadas ao cumprimento do combinado. sobrepujar

A arbitragem passou por períodos de significação diferente ao longo dos séculos posteriores. Na Idade Média era valorizada pelos nativos do que houvera sido Roma, fugindo dos julgamentos dos direitos bárbaros [34]. Algumas cidades previam, em suas leis – compilações – a possibilidade da utilização do instituto em julgamentos privados. A Idade Moderna – com seu liberalismo burguês – via com maus olhos a arbitragem, tendo esse sentimento seu cume no século XIX, e seu fim no século posterior.

No Brasil, a arbitragem chega-nos pelas Ordenações Filipinas e ganha já em nossa primeira Constituição (1824) poder vinculante igual ao de uma decisão de um juiz togado. Em alguns códigos estaduais – que tiveram vigência no começo do século XX – estava prevista, culminando no Código Civil de 1916 (Livro III, Título II, Capítulo X) e no Código de Processo Civil de 1939 (Título Único do Livro IX), mantendo-se no Código de Processo Civil de 1973 – inclui-se o compromisso e mais nada.

Em 1996, foi aprovada a Lei 9.307 (conhecida como Lei Marco Maciel), que trata justamente da arbitragem. A nova lei trouxe alguns assuntos interessantes – e, às vezes, divergentes: a criação do tribunal arbitral; a irrecorribilidade da sentença arbitral; a dispensa de homologação pelo Judiciário, para emprestar-lhe executividade, conferindo força executório de sentença, equiparando-a à sentença judicial transitada em julgado.


Bibliografia

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CARMONA, Carlos Alberto. A Arbitragem no Processo Civil Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993.

CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano – Institutas de Gaio e de Justiniano vertidas para o português, em confronto com o texto latino. São Paulo: Edições Saraiva, 1951. Vol. II.

CRUZ e TUCCI, José Rogério; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de História do Processo Civil Romano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996.

MIRANDA, Ersio; AZEVEDO, Antônio Martins; PAES, Elizabeth M. M. Dias Tavares; MARCHETTI, Fernanda Cristina Lizarelli. Ações (Classificação). São Paulo: Suigeneris, 2001. Disponível em: <http://www.suigeneris.pro.br/acoesclass.htm>. Acesso em: 17/fev/2004.

SCHULZ, Fritz. Derecho Romano Clásico. Barcelona: BOSCH, Casa Editorial, 1960. (trad. de José Santa Cruz Teigeiro).

SURGIK, Aloísio. Lineamentos do Processo Civil Romano. Curitiba: Livro é Cultura, 1990.

VELASCO, Ignácio M. Poveda. História Externa e Interna do Direito Romano. In: Revista de Direito Civil – Imobiliário, Agrário e Empresarial, v. 49. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul/.set. 1989.


Notas

1 "Os tempos modernos tem assistido a ressurgência de algumas instituições jurídicas que haviam desaparecido, ou ficado olvidadas. (...) Desaparecida com o advento da República, (a arbitragem) volta agora a adquirir uma nova importância, social e jurídica." (BAPTISTA, Luiz Olavo. Prefácio. In: PUCCI, 1997, pág. 7).

2 ALVES, 1991, págs. 224-225.

3 Moreira ALVES (1991, pág. 233) explicita em poucas palavras pequena diferença entre o iudex privatus e o arbiter: "... alguns textos, ao invés de aludirem ao iudex, se referem ao arbiter (árbitro). Qual a diferença entre eles? As fontes não nos esclarecem suficientemente sobre esse ponto. Daí, divergirem os romanistas. Segundo parece, o arbiter é o juiz popular que tem de deslocar-se para o lugar do litígio (...), e que, em face da natureza destas lides, tem poderes mais amplos do que o iudex".

Giuliano CRIFO (In: CARMONA, 1993, pág. 71), assim analisa a questão: "Nas fontes, arbiter e iudex aparecem bem distintos, seja porque o iudex é necessariamente nomeado pelo magistrado, qual escolhe em um elenco de cidadãos que tenham os requisitos para ser iudices privati; seja porque não necessariamente o arbiter era chamado a decidir uma lide, devendo limitar-se a dar a exata configuração da relação intercorrente entre as partes que a ele recorriam (...) e que lhe pediam uma declaração da vir bonus, seja porque – e é o elemento por certo mais interessante – enquanto o iudex é vinculado, no pronunciar a sua decisão, a quanto prescreve a fórmula dada pelo magistrado, o arbiter, ao invés, é vinculado quanto as partes mesmas, no negócio que instaura o juízo arbitral, previra." (trad. Carlos Alberto Carmona).

José Rogério CRUZ e TUCCI; Luiz Carlos AZEVEDO (1996, pág. 67), ao comentarem acerca da legis actiones per arbitrive postulationem, dizem que nesta ação "era requerida, ao magistrado, a nomeação de um árbitro (arbiter). E isso, porque, dada a natureza daquela ação, a tarefa do julgador não se restringia à aplicação das normas jurídicas, mas, na verdade, implicava a medição e avaliação de glebas de terra, de animais e de vários outros bens que compunham o patrimônio a ser por ele dividido, o que, certamente, reclamava conhecimento e experiência extrajudicial".

4 ALVES, 1991, pág. 226.

5 O ex-professor da Universidade de Freiburg, Fritz SCHULZ (1960, pág. 1), acentuando o caráter privatista do Direito Romano, chega mesmo a afirmar a dificuldade de isolar-se das relações privadas quando estudamos outros ramos do Direito de Roma: "los Derechos constitucional, administrativo, criminal y procesual (...) tienen gran importancia para el Derecho privado, pero no pueden ser estudiadas adecuadamente en un sistema rigurosamente jusprivatista y constituyen la materia propria de otros tratados."

6 "Esse poder, no entanto, não pode ser tido como sinônimo de iurisdictio, porquanto o conceito desta é distinto daquele de imperium.

"Enquanto o imperium é considerado pela doutrina como um poder unitário e indeterminado, a iurisdictio podia ser delegada, como ocorria com os magistrados municipais, que, desprovidos de imperium, detinham aquela por delegação do pretor" (CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, pág. 43).

7 "É de ter-se, ainda, presente que a função jurisdicional era faculdade inerente à condição de magistrado, não existindo um poder judicial autonomamente estruturado, porquanto os romanos encartam o mister de distribuir justiça entre as funções de natureza administrativa" (1996, pág 43).

8 Na verdade, esta foi uma mera simplificação. CRUZ e TUCCI; AZEVEDO (1996, pág. 44) lembram que, além da presença do iudex unus, as lides entre romanos e estrangeiros seriam perante o tribunal dos recuperatores; e, ainda, em questões que versem sobre sucessão hereditária, perante o tribunal dos centumviri.

9 SCHULZ, 1960, pág. 13.

10O dilema consiste na problemática da natureza da ação, baseando-se em uma confusão entre direito material e direito processual – para Windcheid, a "ação é um meio auxiliar para pedir a manutenção de um direito preexistente, em cujo exercício fomos turbados ou lesados"; já para Müther, a "ação é a pretensão do titular do direito, em relação ao Estado, à concessão de uma fórmula no caso de violação desse direito" (MIRANDA, et alii, 2001).

11 O Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071), revogado recentemente, estava ainda sob a influência deste pensamento que tirava a autonomia do processo: "Art. 75. A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura".

12 Apud CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, pág. 45.

13 "O mais antigo conceito de Ação, de que se tem notícias, é aquele atribuído a Celsus, adotada pelo Direito, ‘Nihil aliud est actio quam persequendi in judicio quod sibi debeatur’, ou seja, ‘Ação nada mais é do que o direito de reclamar em juízo aquilo que nos é devido.’" (MIRANDA, et alii, 2001)

14 "En conjunto, la exposición gayana, es fuente fidedigna para el estudio del Derecho clásico, si bien sería absurdo considerarla como definitiva e intangible ya que es, como toda obra, de carácter elemental y, en ocasiones, defectuosa y descuidada. Por outra parte, no faltan interpolaciones en la obra de Gayo y esto hace indispensable una labor crítica." (SCHULZ, 1960, pág. 11).

15 Como lembram-nos CRUZ e TUCCI; AZEVEDO (1996, pág. 55), todas as ações só se exerciam diante do pretor e com o comparecimento do adversário, com exceção da pignoris captio – na qual o credor se apoderava dos bens móveis pertencentes ao devedor.

16 Tradução anexa a CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996.

17 Apud CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, pág. 55. Livre tradução de: D., 50.17.123, Ulpiano, libro XIV ad edictum: "Nemo alieno nomine lege agere potest".

18 GAIO, I., 4. 83-84.

19 D. 2. 4. 18, Gaio, Libro I ad legem duodecim tabularum.

20 "O vadimonium consistia numa promessa solene efetuada pelos vades (parentes ou amigos do réu), garantindo – sob pena de pagarem certa quantia (summa vadimonii) ao autor – o comparecimento do demandado na data aprazada (se certo die sisti – Gaio, I. 4.184)" (CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, pág. 57).

21 Lei das XII Tábuas, 1. 6-9.

22 Para ser um advocatus, o cidadão deveria possuir certas características, sendo o ministério proibido a alguns: os ditos infames (ignominiosus) (GAIO, I., 4. 182).

23 GAIO, I., 4. 44.

24 CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, pág. 90.

25 GAIO, I., 4. 52.

26 JUSTINIANO, em suas Institutiones – livro que faz parte, juntamente com o com o Codex, com o Digesto (ou Pandectas) e com as Novellæ, do Corpus Iuris Civilis –, também comenta sobre as exceções (4, 13 pr.): "Foram elas instituídas por amor à defesa dos réus; pois muitas vezes sucede que, embora justa a demanda intentada pelo autor, é todavia iníqua em relação ao réu".

27 CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, págs. 100-103.

28 A exceção se encontra em ações ajuizadas imperio continens, não sendo reconhecido o efeito extintivo da litis contestatio (GAIO, I., 4. 106).

29 GAIO, I., 3. 180.

30 Utilizamos no direito brasileiro esta regra – art. 131, do Código de Processo Civil. Porém, diferentemente do que acontecia em Roma, nossos juízes devem especificar na sentença o que lhe levou a tomar determinada decisão.

31 A opinião aqui exposta é a de CRUZ e TUCCI; AZEVEDO (1996, pág. 130) e a de SURGIK (1990, pág. 71). De forma diferente pensa SCHULZ (1960, pág. 14), que afirma só ser possível a declaração non liquet no procedimento criminal, não no civil.

32 CRUZ e TUCCI; AZEVEDO, 1996, pág. 128).

33 GAIO, I., 4. 52.

34 O Direito Canônico contribui para este quadro ao adotar as práticas do antigo direito romano em seus julgamentos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Luiz Gustavo de Lacerda. O instituto da arbitragem no processo civil romano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 581, 8 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6288. Acesso em: 26 abr. 2024.