Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/63137
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Metodologia jurídica e especificidades da pesquisa jurisprudencial aplicadas às políticas públicas

Metodologia jurídica e especificidades da pesquisa jurisprudencial aplicadas às políticas públicas

||

Publicado em . Elaborado em .

O artigo apresenta ao pesquisador uma abordagem para análise de políticas públicas a partir da metodologia jurídica.

Resumo: O presente artigo analisa a construção do conhecimento científico jurídico e sua correlação com as políticas públicas. Isto ocorre por se tratarem de campos de pesquisa complementares, pois o Administrador Público, ao concretizar as políticas públicas, submete-se ao campo do Direito. Isto qualifica o Direito como uma das formas de estudo e análise das políticas públicas. Ao final, apresenta-se a Jurisprudência como uma das possíveis fontes que o jurista possui para estudar as falhas da construção de políticas públicas e a busca de sua concretização no judiciário, pela população alvo.

Palavras-chave: Direito; Pesquisa Científica; Metodologia Jurídica; Políticas Públicas; Jurisprudência.

Sumário: Introdução; 1. Conhecimento e pesquisa científica; 2. Prefácio à tese científica; 3. Metodologia jurídica; 4. Metodologia nas políticas públicas; 5. Reflexão sobre a necessidade de uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas; 5.1. Abordagem conciliatória entre direito e políticas públicas; 6. Premissas para uma metodologia de análise de políticas públicas; 7. Análise de políticas públicas na jurisprudência; Considerações finais.


INTRODUÇÃO

O conhecimento jurídico trata-se daquele que é construído com bases nas premissas fundadoras do estudo da ciência do Direito. Trata-se do fundamento não só da pesquisa do Direito, mas também de todas as áreas do conhecimento que envolvem a interdisciplinariedade cognitiva. O estudo de políticas públicas é aquele notoriamente interdisciplinar, pois nasceu na ciência política e na administração pública, mas torna-se inócuo caso desconsidere tanto o Direito (por vivermos em um Estado de Direito, diretamente vinculado ao princípio da legalidade) como a Economia.

A pesquisa jurídica muitas vezes é elaborada com limitações e atecnias – seja pelo desconhecimento, seja pelo desleixo do pesquisador – que devem ser superados para a construção do conhecimento científico jurídico. Uma das fontes de pesquisa jurídica de relevância com ampla gama de métodos de análise e vasto valor de construção de conhecimento é a pesquisa jurisprudencial.

O presente artigo visa estudar como a metodologia jurídica pode interagir com a análise de políticas públicas e melhorá-la. Para isso, apresentará um giro teórico sobre os conceitos de metodologia, metodologia jurídica e metodologia jurídica de políticas públicas, para verificar como analisar juridicamente políticas públicas.

Após, apresentará a pesquisa jurisprudencial como uma das aplicações práticas de análise jurídica, dividindo-a em pesquisa jurisprudencial quantitativa, qualitativa e estudos de casos jurisprudencial, objetivando traçar uma conexão entre eles a fim de proporcionar meios eficazes para a metodologia da pesquisa jurídica de análise de políticas públicas.

O objetivo deste artigo é de sugerir ao pesquisador uma forma metodologicamente alinhada com o Direito para analisar juridicamente políticas públicas, reforçando esta análise através do estudo, um de seus aparatos documentais de fundamento. Justifica-se esta análise, pois é construída com o intuito de auxiliar na elaboração e no aprimoramento da pesquisa jurídica, que, muitas vezes, carece de embasamento metodológico, fazendo ciência sem se preocupar com premissas importantes para a lógica e a coerência dos argumentos apresentados.


1. CONHECIMENTO E PESQUISA CIENTÍFICA

O objetivo da ciência é construir teorias para explicar por que fenômenos ocorrem de determinada forma. O conhecimento científico deve ser verificável empiricamente, livre de valoração, não normativo, transmissível, cumulativo, geral, explicativo e parcimonioso (JOHNSON, 2001, p. 27-35). Já a ciência pode ser entendida como a sistematização do conhecimento científico, do conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre certos fenômenos que se deseja estudar, possuindo objetivos, funções e objetos próprios (LAKATOS, 2001, p. 81).

São características do conhecimento científico: ser real (lida com ocorrências ou fatos); ser contingente (suas proposições ou hipóteses têm sua veracidade ou falsidade conhecida através da experiência e não apenas pela razão); ser sistemático (trata-se de um saber ordenado logicamente, formando um sistema de ideias e não conhecimentos dispersos e desconexos); ser verificável (hipóteses que não podem ser comprovadas não pertencem ao âmbito da ciência); ser falível (não é definitivo, absoluto nem final); ser aproximadamente exato (novas proposições e técnicas podem reformular o acervo da teoria existente) (LAKATOS, 2003, p. 80-81). .

Pesquisar trata-se de um conjunto de processos sistemáticos, críticos e empíricos aplicados no estudo de um fenômeno (SAMPIERI, 2013, p. 30). Em virtude das características do conhecimento científico a pesquisa científica possui uma lógica de funcionamento e etapas para sua concretização que auxilia o pesquisador. O ponto inicial de uma pesquisa científica é o desenvolvimento de uma ideia para investigar ou um problema para resolver, através da observação de dados empíricos e da reflexão do cientista.

Essa primeira análise gera a formulação do problema e das hipóteses, que serão objeto de testes e de verificações ao longo da pesquisa (JOHNSON, 2001, p. 40). Hipóteses podem ser definidas como enunciados gerais de relação entre variáveis, formulados como solução provisória para um determinado problema, apresentando caráter ou explicativo ou preditivo, compatível com o conhecimento científico e revelando consistência lógica, sendo passível de verificação empírica em suas consequências (LAKATOS, 2003, p. 126).

Formuladas as hipóteses inicia-se a pesquisa. Uma revisão bibliográfica prévia auxilia o pesquisador no intuito de ampliar ou melhorar o campo de pesquisa, evitando-se uma pesquisa inócua ou repetitiva. A coleta de dados também será necessária, para a análise do problema de pesquisa e das hipóteses. Após, inicia-se a verificação e validação das hipóteses através dos dados obtidos e analisados, e apresentam-se os resultados da pesquisa (JOHNSON, 2001, p. 40-41).

O problema de pesquisa pode ser considerado como o objeto de análise da pesquisa científica. Como a pesquisa científica serve para explicar fenômenos, o objeto de pesquisa será aquilo que se busca de alguma forma explicar. Do problema surgem as hipóteses de pesquisa, que podem ser consideradas suas possíveis soluções. São afirmações feitas para resolver o problema, representando a possibilidade de como uma variável independente afeta, influencia ou altera uma variável dependente.

São características de uma hipótese sua clareza, especificidade, generalizabilidade, plausibilidade, ser empiricamente testável, ser parcimoniosa e relacionada com as técnicas de pesquisa disponíveis e escolhidas pelo pesquisador que permitam seu teste (JOHNSON, 2001, p. 65-71).


2. PREFÁCIO À TESE CIENTÍFICA

ECO (2008, p. 5, 10) traz comparações entre teses de compilação e teses de pesquisa, sendo a escolha conforme a maturidade e capacidade de trabalho, considerando-se limitações temporais e financeiras. Por outro lado, temos a tese panorâmica e a monográfica. Nesse sentido, uma coisa é contextualizar um determinado autor, outra é tecer um painel bibliográfico amplo. Entre as duas tipologias, Umberto Eco prefere a tese monográfica, na medida em que reduzir o espectro de pesquisa confere segurança ao trabalho realizado.

O autor (ECO, 2008, p. 5) explica que escrever uma tese implica na persecução de etapas, a ver:

Com efeito, elaborar uma tese significa: (I) identificar um tema preciso; (2) recolher documentação sobre ele; (3) pôr em ordem estes documentos; (4) reexaminar em primeira mão o tema à luz da documentação recolhida; (5) dar forma orgânica a todas as reflexões precedentes; (6) empenhar-se para que o leitor compreenda o que se quis dizer e possa, se for o caso, recorrer à mesma documentação a fim de retomar o tema por conta própria. (…). Fazer uma tese significa, pois, aprender a pôr ordem nas próprias ideias e ordenar os dados: é uma experiência de trabalho metódico; quer dizer, construir um "objeto" que, como princípio, possa também servir aos outros.

A outro giro, o renomado escritor debruça-se sobre a diferença entre tese histórica e tese teórica, sendo esta a que estuda um problema abstrato. Também diferencia a tese científica da política, fazendo a concessão de que se podem encetar investigações político-sociais diante de regras de cientificidade. Assim, não se revela paradoxal a existência de teses políticas científicas, infensa ao caráter “livresco”.

Nesse compasso, Umberto Eco compreende que a tese de compilação se reveste de utilidade científica, caso inédito, na medida em que alinhava as opiniões em um todo orgânico e único. Todavia, é salutar a indicação dos elementos de informação utilizados, com o fito de viabilizar contestações sobre a validade científica (verificabilidade das fontes), bem como a continuidade pública da obra.

Sucede que todo pesquisador corre o risco de superficialidade, sem se impor um fetichismo científico. Inclusive, o autor constata que se pode realizar uma pesquisa em seis meses, seguindo-se os seguintes requisitos: (a) delimitação do tema; (b) possibilidade e atualidade do tema; (c) disponibilidade dos documentos.

Em assim sendo, temas marginais com poucos escritos a respeito tendem a facilitar a elaboração da tese. Lado outro, qualquer pesquisa deverá delinear o campo cronológico e geográfico ao que se circunscreve. Depois disso, sem descurar dos critérios de pesquisa, impende justificar os significados e conceitos utilizados.


3. METODOLOGIA JURÍDICA

A autoridade dos atos oficiais tais como a legislação e a jurisprudência são o ponto de partida de um trabalho jurídico, nada obstante, desvela-se em sugestibilidade a apropriação do discurso oficial como verdade inquestionável inoculada pela autoridade. Nesse rumo, a metodologia jurídica constitui arsenal de construção de um novo sentido pensado autonomamente pelo pesquisador.

Assim, esvaziar a naturalidade do discurso oficial, em uma postura crítica, potencializa a investigação independente de temas jurídicos, assim como a própria evolução do ordenamento jurídico e da jurisprudência. Outra ideia é a existência de intérpretes oficiais do aparato legal, uma vez que a conjuntura democrática propugna o diálogo aberto a todos os cidadãos dispostos a dele participar.

Por isso, crucial romper as amarras panfletárias das expectativas do poder e pensar pelos próprios padrões (LAMY, 2011, p. 22). Não que a pesquisa deva ser autorreferenciada exclusivamente, contudo, os parâmetros externos não podem impor a condução da pesquisa. Então, toda pesquisa jurídica que se baseia, a princípio, em elementos estatais ou oficiais traz ínsita uma heteronomia da pesquisa, motivo pelo qual cabe ao pesquisador esforçar-se para livrar-se dessas manipulações de discurso para vislumbrar o sistema sob uma ótica nova e contribuir para sua evolução.

No ponto, Marcelo LAMY (2011, p. 29-30) sustenta que:

Nos cursos de graduação e pós-graduação, seara cotidiana de muitos pesquisadores, de uma forma geral, imagina-se que o trabalho de pesquisa demonstre:

a. Amplitude e profundidade de conhecimentos na área da pesquisa (razão pela qual se exige a revisão da literatura de referência da mesma).

b. Domínio sobre o tema do trabalho (razão pela qual se exige a revisão exaustiva da literatura básica sobre o mesmo).

c. Capacidade crítica de análise das informações coletadas e das conclusões de suas fontes de pesquisa (fator que diferencia radicalmente uma compilação, um mero estudo exploratório de um trabalho de pesquisa).

d. Rigor metodológico (elemento que efetivamente demonstra a incorporação de um método de pensar e agir próprio da pesquisa).

e. Capacidade lógica de sistematização (refletida pela estrutura geral do trabalho final e interna de cada tópico do mesmo).

f. Perfeição na forma, na redação e na apresentação, nos termos das normas técnicas de r edação de trabalho científico e acadêmico definidas pela ABNT.

Em tal desiderato, aguça-se o espírito científico com disciplina e planejamento (sistematização), bem como pela reunião de informações concatenadas (empiria) e reflexão sobre o material acumulado (crítica). Nessa senda, estabelecer um marco teórico/referencial orientará a revisão de literatura. De início, tem-se um repertório básico de leitura e de fontes primárias, podendo-se expandir tal espectro pela utilização das referências neles contida. Após essa sondagem, a elaboração de um projeto de pesquisa guiará os rumos do trabalho acadêmico por etapas, abordando o componente “metodologia”.

A par disso, inarredável a escolha de um método de abordagem (LAMY, 2011, p. 38-44) que pode ser (a) dialético; (b) estruturalista; (c) empirista; (d) positivista; (e) sistêmico; (f) hermenêutico; (g) fenomenológico. Na esteira, o método dialético, de caráter processual, visualiza a dinamicidade da história. Por outro lado, a cosmovisão do método estruturalista reside na estabilidade dos fenômenos, focando nos aspectos repetitivos, objetivos e invariáveis.

Nesse seguimento, o método empirista retrata a superioridade da descrição indutiva e experimental própria das ciências naturais, refutando ideologias e especulações sem possiblidade de mensuração real. A outro turno, o método positivista preza pela neutralidade e rigor lógico. Já o método sistêmico enxerga a tessitura orgânica para explicar os componentes articulados. Outrossim, o método hermenêutico parte do contexto para fornecer explicações. Por último, o método fenomenológico rejeita inferências da base de dados, na medida em que não se coaduna com pressuposições.

Em 180º graus, há os métodos de procedimento (a) histórico; (b) estatístico; (c) comparativo; (d) observativo; (e) monográfico; (f) econométrico; (g) experimental. A evidência decorre do próprio nome dos procedimentos, entretanto, vale destacar que, na metodologia jurídica, predomina o uso de pesquisas bibliográficas, de sorte que convém explanar como e por quê se fez a seleção das obras de determinada forma.

Ancorado nessa ideia, o pesquisador jurídico passará pelas seguintes fases: (a) planejamento; (b) análise do material coletado; e, por fim, (c) redação e correção do texto a ser publicado. Claro que o processo de escrita poderá ser circular, levantando-se bibliografia complementar de novas fontes em seu curso, é viável a redação parcelada da análise textual quanto ao tema escolhido, guardada a coerência global.

Corre-se o risco, em toda metodologia jurídica, de amealhar um cabedal de ideias em mera justaposição, o que não se confunde com a tese de compilação enunciada por Umberto Eco, na medida em que o objetivo inicial é que separa uma da outra. Isso porque o ideal é esquadrinhar uma análise crítica sobre o material, distanciando-se da mera reprodução de dados legais ou jurídicos.

Na esteira, convém ressaltar a centralidade do exposto na metodologia jurídica, já se examinou acima que o método jurídico aumenta a ameaça da mera descrição, em amontado nada coeso, caso o pesquisador não se desvencilhe da autoridade do discurso oficial e não elocubre desígnios independentes. Por isso, a metodologia na ciência do Direito exige que se colha os materiais jurídico-legais como ponto de partida, não sendo o ponto de chegada esperado necessariamente.

Nessa matiz, não se pode confundir pesquisa metódica jurídica com reprodução de dogmática impensada, a título de argumento de autoridade. Tampouco o pesquisador pode ser mero acumulador de citações da literatura jurídica, ou seja, de nada adianta colecionar conhecimentos se não passá-los pelo crivo da crítica e reflexão, dando-lhes o atributo de cientificidade. Ventilado isso, não há ciência no mimetismo jurisprudencial e da “doutrina”.

Assim, no campo jurídico, a certeza se restringe ao dogma, porém não há última palavra na metodologia jurídica, sendo de rigor o teste até mesmo dos pilares jurídicos. Essa problemática revela-se preocupante aos pesquisadores da área jurídica, uma vez que tendem a partir de dogmas, tido como absolutas verdades, construindo toda uma pesquisa sob bases fracas e movediças, portanto.

Visto isso, de se observar que a tese jurídica deve ostentar coerência, consistência, originalidade, intersubjetividade, historicidade e objetivação. Interessante entender a diferença entre objetividade e objetivação, no ponto, ensina LAMY (2011, p. 64):

Não propriamente a objetividade, a completa independência de nossas ideologias ou pré-concepções de mundo, pois isto é impossível. Mas objetivação: o esforço continuado de desvelar nossas pressuposições, de controlar nossas ideologias, não as encobrindo, reduzindo-as ao máximo. Alguns cuidados ajudam na objetivação: adotar espírito crítico e especialmente autocrítico; incorporar uma dose de rigor no tratamento de qualquer tema, especialmente naquilo que temos por evidente (que muitas vezes é evidente apenas para a nossa concepção de mundo); procurar distanciar-se do que analisamos (muitas vezes nos envolvemos tanto em um tema que enxergamos apenas aquilo que gostaríamos que fosse, em detrimento daquilo que realmente é); abrir-se às opiniões diversas, ao teste alheio de nossas ideias (é preciso que estudemos mais os pensamentos/pensadores que não nos agradam, que parecem contrários a nossa pré-concepção, muito mais do que aqueles com que simpatizamos).

Assim, sem subserviência ao referencial teórico, o aporte de autores de escola há de se potencializar a discussão jurídica dos temas. Na metodologia jurídica, os portais eletrônicos que consolidam a jurisprudência de determinado Tribunal permitem o uso de dados estatísticos anuais com certa confiabilidade, o que facilita a pesquisa jurídica.

A despeito disso, é consabido que o Direito integra o ramo das ciências sociais, razão pela qual a abordagem metodológica provém mais propriamente de um marco interpretativo à luz da pesquisa qualitativa. Eis que, sem prejuízo do uso de dados quantitativos, prevalece a força argumentativa de certa tese do que a verdade probatória da mesma. Tanto que a credibilidade da pesquisa empenha a apresentação de dados anteriormente à análise deles pelo jurista-pesquisador.

Feito isso, mister a menção sintética dos resultados obtidos, ressaindo sua força da possibilidade de generalização e da clareza e da validade da análise realizada. Muito embora o trabalho de pesquisa jurídica seja arraigado em métodos científicos, imperioso reconhecer as limitações técnicas do desenvolvimento do trabalho, produzindo uma tese honesta.

De outro norte, é recomendado que a metodologia jurídica abarque o estudo interdisciplinar com o fito de desvelar fatores ideológicos, culturais e históricos ínsitos à ciência jurídica. Sendo assim, a provisoriedade do objeto de estudo padecerá de crítica suficientemente embasada. Importa esclarecer que isso não implica na perda da neutralidade, e sim no reconhecimento das particularidades do objeto de estudo: o Direito.

Sob a luz de tais diretrizes, equivocado conceber que o objeto de estudo da metodologia jurídica prende-se à Legislação. Nesse vértice, desde a superação do positivismo jurídico, abriram-se as portas para a pesquisa radicada também no Direito extraestatal e em elementos extrajurídicos. Tomando como parâmetro tal quadrante, a Lei e a Jurisprudência eram as sementes, ou melhor, os precursores da pesquisa jurídica nos idos do século passado, porém, o objeto da ciência resta imbricado com a interdisciplinariedade.

A essa altura, a coexistência da razão teórica com a razão prática, sem proeminência apriorística, colima para o equacionamento da pesquisa jurídica. Explica-se: o discurso de neutralidade do Direito mascara os elementos extrajurídicos em que imerso, retirando a cientificidade do texto em apreço e albergando em si uma ideologia própria. Muito por isso, erige-se uma nova metodologia jurídica que não cega os olhos diante dos canais de comunicação com elementos sociológicos, econômicos e antropológicos condizentes com o estudo do Direito.

Feito esses contornos, outro fator espinhoso que não pode ser negligenciado na metodologia jurídica é a admissão da praticidade do conhecimento jurídico, voltado a finalidades sociopolíticas. Precisamente por conta disso, vê-se que o estudo abstrato da ciência jurídica sem considerar os aspectos consequencialistas da tese perde utilidade científica, haja vista desfocar do significado funcional do fenômeno jurídico.

Destarte, já cunhada as etapas metodológicas da pesquisa jurídica linhas acima, consigna-se que o pesquisador deve se afastar da recepção passiva do conhecimento jurídico, refletindo sobre o mesmo. Contudo, esse processo reflexivo deverá levar em conta que o sujeito cognoscente não está dissociado completamente do objeto de conhecimento, máxime quando se comenta o ordenamento jurídico em que se está inserido.

Assim, a ciência jurídica transfigura-se relacional por natureza, só podendo ser compreendida desmascarando a realidade em que inserta, sob degeneração da qualidade da pesquisa jurídica. Vital que a metodologia jurídica fomente o pensamento em suspensão, ao revés do pensamento linear, na medida em que o fenômeno jurídico germina de multifacetados contextos, rejeitando conclusões definitivas (LAMY, 2011, p. 73).

Por isso que Lópes QUINTÁS (apud LAMY, 2011, p. 77) classifica a ciência jurídica como uma “experiência reversível”, o que Marcelo Lamy chama de realidade ambital. Isto é: o direito é condicionado e condicionante do mundo real subjacente, de sorte que emana de seu caráter bidirecional uma matriz metodológica peculiar.

Nesse sentido, nota-se que a ciência jurídica vivencia um extravasamento para as demais ciências sociais e econômicas, o que não refreia sua cientificidade, apenas alerta-se ao pesquisador a necessidade de identificar eventuais entraves impostos pelas demais áreas para uma pesquisa unidisciplinar. Vital, assim, abrir o diálogo com a sociologia, antropologia, filosofia, economia, entre outras ciências na busca dos valores incidentes no objeto de estudo.

Merece menção a crítica de Marcelo Lamy a respeito das palavras talismãs que protegem a tese da discussão pública, leia-se

Há certos termos que parecem albergar, de tempos em tempos, o segredo da autenticidade humana e por isso tornam-se inquestionáveis, talismãs. No século XVII isto aconteceu com a palavra “ordem”, no século XV I I I , com a “razão”, no século XI X, com a “revolução”, no século XX, até hoje, com a “liberdade”. Todos são a favor da liberdade, embora poucos saibam realmente o que significa. Apesar disso, colocar-se ao seu lado traz automaticamente prestígio, mesmo que seja ao lado dos vocábulos dela derivados (democracia, autonomia, independência – palavras “talismãs” por aderência). P or sua vez, questioná-la desprestigia automaticamente, mesmo que a oposição não seja verdadeira (pensemos no defensor da autocensura).

Assim, um grande coringa que tem sido alvo de discursos neutralizadores é a dignidade da pessoa humana. Portanto, deve-se evitar que o pesquisador lance mão de termos abstratos e sem sentido determinado para negar quaisquer discussões de sua tese, como se ir contra sua tese fosse ir contra a dignidade da pessoa humana em si mesma, por exemplo. Desta forma inviabiliza-se a verificabilidade da pesquisa científica, sendo importante a densificação de conceitos utilizados e sua incidência específica a fim de viabilizar um controle técnico mínimo.

Nessa linha de intelecção, cabe ao pesquisador, no uso da metodologia jurídica, despir-se das pré-compreensões a respeito de valores que toma por absolutos e corretos. Embebido com preconceitos nenhuma pesquisa válida surgirá. Em vista disso, a linguagem própria das petições judiciais que apaixonadamente defendem um ponto de vista (autor ou réu), o pesquisador deve desvencilhar-se do discurso sentimental e parcial na escrita.

De seu turno, o pesquisador que assim age enreda-se por um caminho perigoso, na medida em que a própria triagem de materiais iniciais poderá ser parcial, o que maculará toda a pesquisa, perdendo o caráter científico. Essa premissa não impede o apronfundamento e avanço no tema escolhido, entrementes, as contra hipóteses devem ser enfrentadas, revisitando as bases jurídicas solidificadas, caso necessário.

Outro problema específico a ser tratado pela metodologia jurídica é a formalidade do discurso. O pesquisador não pode partir do pressuposto de que sua dissertação será direcionada apenas à banca ou ao auditório-jurista. Assim, o “juridiquês” hermético deve ser desmitificado, preferindo-se uma linguagem simples e direta, sempre explicando os conceitos utilizados e contextualizando os autores escolhidos para que a obra se torne acessível ao público em geral [1].

Isso porque a pesquisa jurídica traz balizas diversas da mera persuasão do público-alvo, na medida em que objetiva trazer algo novo e solucionar lacunas ou falhas no conhecimento jurídico. A argumentação não deve servir propósitos de manipulação, porém precisa demonstrar suas bases teóricas e o procedimento do raciocínio para ser testada racionalmente.

Sobretudo, a lucidez do discurso científico não se coaduna com a retórica da práxis jurídica quotidiana, dado que exige um distanciamento do autor em relação às opiniões sustentadas, inclusive, questionando-as. A mais, reputa-se essencial separar as ideias próprias das ideias alheias, uma vez que é interessante que o pesquisador traga seu ponto de vista sobre o problema de pesquisa, de forma objetivada, logo no início da dissertação.

Em contraponto, como já retroexposto, o embate de ideias deverá atentar para desbaratar eventuais hierarquizações de valores e premissas implicitamente, que são vocacionadas para convencer sem cientificidade. Entrementes, por mais que assim se deva proceder, a vocalização da falácia do discurso oficial sacralizado não pode redundar em relativização ampla de toda a ciência jurídica, sob pena de tolher de pilastras de conhecimento científico.

Com efeito, um texto erudito pode não ser tão científico quanto se pode crer. A fortiori, seguidos os elos acima encadeados, emerge um arquétipo de metodologia jurídica básica para direcionar as dissertações nesse ramo. Em contrapartida, a feição científica deve dosar também o estudo das políticas públicas, observada sua especificidade, o que se propõe a seguir.


4. METODOLOGIA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Outro enfoque metodológico repousa no estudo de políticas públicas, na medida em que este se divide em diferentes etapas desde a formulação até a implementação e avaliação. Também a pesquisa de políticas públicas deve compreender que elas, muito comumente, possuem certo engajamento político, uma vez que são técnicas de governo voltadas a solução de problemas sociais.

Assim, o equacionamento metodológico precisa se valer a interdisciplinariedade, dada a transversalidade do tema, tendo em conta que as políticas públicas envolvem uma teia de decisões que buscam alavancar um projeto de desenvolvimento do governo. Com isso em mente, muito importante entender as causas e consequências da (in)ação do governo, igualmente seu caráter normativo e prescritivo [2].

Aqui, pertine ao pesquisador um esforço de neutralidade (ainda que impossível, em abstrato), para se afastar de abordagens enviesadas. Isso porque o estudo científico de políticas públicas necessitará aferir as coinfluências entre o ambiente circundante e a formação da agenda organizacional e eventuais omissões, por exemplo.

Outro ponto que merece destaque, tanto na metodologia jurídica quanto na metodologia das políticas públicas, é que grande parte do objeto de estudo consiste no comportamento de determinado grupo envolvido, bem como na manifestação de poder. Na esteira, isso demanda o reconhecimento das limitações da própria pesquisa, já que sujeita às incertezas de análise comportamental e política. Nada obstante, como já explicado, é um erro pensar que não se podem estudar efeitos de ações político-sociais cientificamente.

O recorte da metodologia no estudo de políticas públicas assume problemas estruturais, pois suscita a investigação sobre os interesses retroalimentados entre coalizões, corporações, instituições e burocracia estatal. Por evidentes razões, a pesquisa não terá acesso documentado a essas informações, podendo apenas deduzir com apoio em comparações de padrões de ação. Tampouco será completa a pesquisa que transcender os bastidores, em que pese a possibilidade de delimitação de análise.

A esse respeito, a omissão de decisões, no campo das políticas públicas, poderá ser objeto de estudo por intermédio da pesquisa de reclamações e demandas. Essa averiguação desvelará a existência de pleitos não tratados na arena política, ou melhor, de conflitos latentes e encobertos filtrados [3].

Além disso, o sopesamento dos grupos beneficiados e prejudicados por determinada política pública específica talvez possa lançar luz sobre os interesses reais que a propulsaram. Decerto, o bloqueio de reivindicações põe em relevo a raiz dos interesses verdadeiros, ainda que mascarados superficialmente. Sob essas lentes, evidente que o estudo dos estratagemas da engenharia social sofrem limites na própria realidade, porém não se trata de matéria de impossível cognição.

Nesse oceano de ideias, a própria metodologia jurídica viabiliza o estudo dos interesses subjacentes ao texto legal, em outras palavras, a busca racional da teleologia da norma transparece a dimensão material. Assim procedendo, consegue-se alcançar minimamente o substrato conjuntural da janela de oportunidade do processo legislativo.

Dadas as dimensões deste trabalho, não se catalogará todas as influências recíprocas entre a metodologia jurídica e a metodologia das políticas públicas. Nessa moldura, pinçou-se aquelas balizas mais relevantes. Apesar disso, é de rigor registrar que COUTINHO (2013, p. 13) destaca que

“(...) o direito pode desempenhar quatro funções básicas na conformação de políticas públicas, que se relacionam com quatro dimensões distintas: (i) direito como objetivo, que representa uma dimensão substantiva, na medida em que ele desempenha o papel relevante de estabelecer os objetivos das políticas públicas; (ii) direito como arranjo institucional, que representa uma dimensão estruturante; (iii) direito como ferramenta, que representa uma dimensão instrumental e (iv) direito como vocalizador de demandas, que representa uma dimensão participativa.

Assim, a metodologia jurídica estuda a espinha dorsal das políticas públicas, isto é, o Direito alicerça os arranjos institucionais das policies. Fundado nesse arcabouço jurídico, as políticas públicas ganham corpo. Todavia, fundamental perceber que a efetividade do Direito é edificada pelo móvel das políticas públicas em uma relação de circularidade. Disso resulta que as políticas públicas são o instrumental de ação funcional do Direito.

Sem subterfúgios metafísicos, o Direito e as Políticas Públicas são objetos de estudos condicionantes entre si, o que reflete na apreensão da sistemática da metodologia a eles aplicada. Assim, o leitmotiv da metodologia jurídica aplicada às políticas públicas mergulha nos dois campos do saber, exigindo do Pesquisador atenção redobrada às duas tipologias de pesquisa, principalmente os estágios de desenvolvimento da Política Pública.


5. REFLEXÃO SOBRE A NECESSIDADE DE UMA METODOLOGIA JURÍDICA DE ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

A importância de uma análise de políticas públicas sob um viés jurídico reside no fato de o direito e as políticas públicas se relacionarem de maneira profunda e indissociável. Isto é, se por um lado, o direito conforma e condiciona as políticas públicas (definindo objetivos, diretrizes e princípios da ação governamental e afetando os microprocessos existentes na formulação e implementação de políticas públicas), por outro lado, as políticas públicas concretizam (e também condicionam) parte significativa dos direitos constitucionalmente previstos (direitos sociais).

Apesar disso, os juristas mantêm distanciamento do tema das políticas públicas e limitam-se a abordar temas sob a ótica eminentemente estrutural (interpretação, regras de competência, legalidade dos atos praticados, limitação da revisão de decisões administrativas pelo Judiciário). Da mesma forma, os cientistas sociais também não tratam sobre o papel do direito no processo de formulação e implementação de políticas públicas de forma adequada, a despeito de enfatizarem elementos que são importantes para a compreensão desse processo.

Segundo BUCCI (2008), conceituar políticas públicas sob o enfoque jurídico é necessário, contudo não é o problema central, pois o mais importante é estabelecer uma metodologia de análise jurídica. Em sua obra “O Conceito de Política Pública em Direito”, ela conclui que é infrutífero propor um conceito jurídico de política pública, tendo em vista que se trata de um tema interdisciplinar.

A autora ressalta que essa metodologia é imprescindível para o aprofundamento teórico da noção e a construção do diálogo com a ciência política, a ciência da administração e a economia, além de também ser necessária para a construção das estruturas analíticas que serão demandadas como suporte para as abordagens práticas.

BUCCI (2008) destaca que as políticas públicas são matérias interdisciplinares por definição, por isso, a apresentação e descrição destas, de acordo com as diferentes visões científicas, são heterogêneas e fogem de um padrão pré-estabelecido. Dessa forma, a análise desse objeto multifacetado mescla técnicas das ciências sociais aplicadas (provenientes da ciência política) com repercussões nos campos da economia e da ciência da administração pública, objetivando aproximar o processo decisório governamental do problema central. Quanto à abordagem jurídica das políticas públicas, ela ressalta que o aparelho estatal é constituído de instituições jurídicas, criadas e conformadas pelo direito. Isto é, toda ação administrativa é vinculada à existência de prévio fundamento legal, assim estabelece o princípio da legalidade administrativa.

Uma metodologia adequada para o trabalho jurídico é aquela que possibilita a descrição e a compreensão de uma determinada ação governamental, segundo as categorias do direito, bem como a análise jurídica do seu processo de formação e implementação, permitindo comparações e críticas aos modos de ação governamental. Para que uma metodologia jurídica seja eficaz, ela deverá esclarecer as formas de incidência dos controles (judiciais ou não) sobre os elementos que compõem a política pública ou sobre as omissões que a cercam. É certo que a expressão “políticas públicas” é dotada de múltiplos sentidos, podendo partir de arranjos governamentais a significações amplas, como a noção de desenvolvimento. Sua origem é fixada por alguns literários na década de 30 do século XX, a partir da demanda de compreensão do novo papel do Estado intervencionista, com o advento do “New Deal”.

Nesse sentido, CASTRO e MELLO (2017) propuseram um estudo em que adotaram uma abordagem interdisciplinar, problematizando o papel do direito nas políticas públicas e tratando das suas diferentes funções bem como da sua capacidade de efetivamente influenciar as condutas dos agentes. Concluíram que a abordagem jurídica de análise de políticas públicas deve adotar uma perspectiva funcional do direito, reconhecendo a complexidade das políticas públicas, que envolvem um conjunto heterogêneo de atores públicos e privados que possuem diferentes motivações e visões acerca dos problemas existentes e soluções possíveis.

5.1. ABORDAGEM CONCILIATÓRIA ENTRE DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS

A abordagem jurídica de análise de políticas públicas demonstra-se necessária para que haja um entendimento mais aprofundado da relação entre o direito e as políticas públicas, permitindo avanços analíticos capazes de balizar pesquisas empíricas sobre os diversos temas. Para que tal abordagem seja eficaz de acordo com o estudo dos autores mencionados (CASTRO e MELO, 2017), ela deve partir de duas premissas fundamentais, quais sejam, do entendimento de políticas públicas enquanto arranjos institucionais complexos e de uma visão funcional do direito.

BUCCI (2013) afirma que as políticas públicas são estruturadas por meio de um conjunto de processos que envolvem diversos atores e uma rede de instituições que atuam em diversos níveis, constituindo um complexo sistema de incentivos e desincentivos, limites e encorajamento, cooperação e conflito. Dessa forma, elas podem ser analisadas em três dimensões institucionais distintas: macro-institucional – em que se busca entender o governo, suas funções e os mecanismos de seu funcionamento; meso-institucional – onde o foco está centrado sobre os arranjos institucionais e os seus regimes de efeitos; e micro-institucional – abarca o conceito de ação governamental propriamente dito, debruçando-se sobre os diversos processos que estruturam tais ações.

Os referidos autores salientam que a visão funcional do direito depende da revisão de alguns conceitos jurídicos. A teoria pura do direito de Kelsen é até os dias de hoje um padrão de referência do pensamento jurídico positivista, todavia, ela se desenvolveu de forma fundamentalmente descritiva e não prescritiva. Por ser uma teoria eminentemente estrutural, seu foco incide sobre a análise de como as normas são produzidas, aplicadas e interligadas no âmbito de um sistema normativo, porém os efeitos reais produzidos pela aplicação destas normas é quase que ignorado.

Sob esse viés, o direito é caracterizado como um meio que pode ser usado para atingir diversos fins, afastando-se do caráter funcional do direito, de forma que os resultados reais efetivamente produzidos pela aplicação da lei deixam de ter importância, sendo infrutífera qualquer tentativa de determinar a finalidade do direito. Nesse contexto, BOBBIO (2007, p. 206) ressalta que, quando o direito passou a ser considerado como meio (e não como fim) e definido como específica técnica social, a análise funcional do direito se exauriu. A função do direito é possibilitar a realização dos fins sociais que não podem ser alcançados de outro modo de controle social (mais brando, menos constritivo). Tais fins variam de uma sociedade para outra.

Para eles, a análise das políticas públicas sob o enfoque de uma teoria positivista do direito não é adequada, tendo em vista que tratar de políticas públicas significa também tratar de efetividade de alguns direitos. Sendo assim, a análise de políticas públicas deve se preocupar com o impacto efetivo em relação aos destinatários e deve abranger as diferentes funções das normas jurídicas que estruturam as políticas públicas, o modo e o grau de influência que estas políticas públicas efetivamente exercem na conduta daqueles que compõem seu público-alvo, assim como dos atores responsáveis pela sua formulação e implementação. Ressalte-se que a análise de políticas públicas, sob a ótica jurídica, deve convergir para uma perspectiva funcional do direito, sem se limitar à dinâmica interna de funcionamento da estrutura do ordenamento jurídico, estendendo-se às suas funções e a seus efeitos.

Nesse contexto, de acordo com COUTINHO (2013), o direito pode exercer quatro funções básicas na conformação de políticas públicas, que se relacionam com quatro dimensões distintas: direito como objetivo, que representa uma dimensão substantiva, pois desempenha a função de estabelecer os objetivos das políticas públicas; direito como arranjo institucional, que representa uma dimensão estruturante; direito como ferramenta, que representa uma dimensão instrumental e direito como vocalizador de demandas, que representa uma dimensão participativa. Dessa forma, o autor reconhece, assim o caráter funcional do direito, contribui para a caracterização do arranjo institucional (definição de competências, articulação entre diferentes esferas de políticas públicas, entre outros) e atenta para a necessidade de adequação dos instrumentos jurídicos para efetividade das políticas públicas.

Outro debate fundamental, segundo CASTRO e MELLO (2017), refere-se ao modo pelo qual as políticas públicas exercem influência no comportamento daqueles que compõem seu objeto, quais sejam, os destinatários instrumentais (atores políticos-administrativos responsáveis pela formulação e implementação das políticas públicas) e os destinatários finais (podem ser imediatos: aqueles que sofrerão o impacto direto das políticas públicas; e mediatos: os que serão afetados indiretamente pela intervenção).

CASTRO e MELLO (2017) propõe-se, então, uma construção da perspectiva funcional do direito com base nas lições de BOBBIO (2007) - que ressaltou o desempenho de duas espécies de funções distintas do ordenamento jurídico: a função protetivo-repressiva e a função promocional; do ordenamento jurídico; e de WEBER (1964, p. 252) – que destacou a ordem jurídica como um “complexo de motivações efetivas da atuação humana real” e problematizou “os efeitos das normas sobre comportamentos humanos, analisando a capacidade de a ordem jurídica efetivamente motivar as ações do mundo real”, conforme MELLO (2006). Destacam que a contribuição de Bobbio consistiu em descrever, analiticamente, as características das funções protetivo-repressiva e promocional do direito, sem, contudo, tratar da efetividade de tais funções de forma aprofundada. Já a contribuição de Weber consubstanciou-se em identificar os fatores que movem a ação social dos indivíduos, quais sejam: hábitos (tradição); emoções; interesses (ideais ou materiais), que interagem e coexistem na tomada de decisões, possuem a racionalidade como marca distintiva.

O papel desempenhado pelo sistema jurídico formal-racional conduz a razoáveis condições de certeza jurídica, ao permitir que os agentes econômicos tenham ciência prévia dos resultados jurídicos de suas ações e decisões (MELLO, 2006, p. 51).

Diferentes planos do percurso entre a elaboração de um enunciado normativo até a sua possível produção de efeitos, podem ser explicados por diferentes definições de eficácia, segundo ARAÚJO e MELLO (2016): no plano jurídico-formal, a eficácia traduz a aptidão da norma para produzir efeitos. (FERRAZ JR., 1988, p. 181); no plano da implementação da lei, eficácia se refere à sua aplicação pelos operadores do direito (Judiciário, Administração Pública etc.) para a solução de conflitos concretos (significa que seu descumprimento provoca efetivamente uma sanção punitiva, ou sua observância, uma sanção premial); no plano dos resultados concretos, a eficácia relaciona-se à generalização da conduta prescrita – os destinatários efetivamente se comportam conforme a norma (cumprem as obrigações; praticam as ações incentivadas com sanções premiais); no plano dos resultados sociais, a eficácia de normas se relaciona com a avaliação de impacto de políticas públicas. A eficácia de um complexo de normas componentes de uma política pública depende não apenas da observância real de tais normas, mas de seus resultados sociais (ARAÚJO e MELLO, 2016, pp. 121-22).


6. PREMISSAS PARA UMA METODOLOGIA DE ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Sabe-se que a aplicação da teoria de políticas públicas colabora para a compreensão de fenômenos jurídico-institucionais, faz-se necessário estabelecer com que sentido ela deve ser utilizada no âmbito jurídico: como compreensão teórica do papel do direito na estruturação e dinâmica das políticas públicas; ou como proposição de modelos jurídicos para a construção de novos arranjos.

Destarte, a BUCCI (2008) sintetiza algumas premissas para uma metodologia de análise de políticas públicas. A primeira delas é a de que as políticas públicas configuram arranjos institucionais complexos, expressos em programas de ação governamental, que são resultados de processos juridicamente regulados, objetivando adequar meios e fins. Deve-se atentar para o fato de que as políticas públicas são eleitas como objeto de pesquisa na área das ciências sociais aplicadas e construídas a partir da observação. Essa visão não pode se afastar das diferentes premissas e particularidades epistemológicas de cada umas das áreas das diferentes ciências. Sob o aspecto metodológico, o grande desafio é delimitar cada política, distinguindo o que deve ser considerado como objeto de estudo. Dentro desse contexto, CASTRO e MELLO (2017) acrescentam que por possuírem uma complexidade intrínseca, sua formulação e implementação envolvem um conjunto heterogêneo de atores públicos e privados com diferentes visões acerca dos problemas existentes e das soluções possíveis e com distintas motivações.

A segunda premissa é a de que a decisão governamental é o problema central da análise de políticas públicas, de forma que a articulação das ações privadas é vista sob o ângulo da interferência estatal. Sendo assim, as decisões relevantes acontecem no âmbito do poder governamental. Além disso, o equilíbrio entre parte da decisão que recai sobre o Executivo e o Legislativo depende de vários fatores, inclusive, do regime de governo (no parlamentarismo, o Parlamento tem maior influência sobre os eixos principais das políticas públicas a serem adotadas pelo governo. No presidencialismo, essa influência depende da força da representação política no Poder Legislativo). Cuida-se, portanto, de desvendar os processos jurídico-institucionais de construção e implementação das decisões governamentais. CASTRO e MELLO (2017) ressaltam que o fato de a ação governamental ser o núcleo central das políticas públicas, não retira a importância da interação entre o governo e atores não-governamentais na sua formulação ou implementação.

Sabe-se que a ideia de políticas públicas surgiu no contexto do Estado social, como forma de intervenção do Estado. Todavia, a mudança do paradigma do Estado de bem estar-social para um “Estado regulador” não tem o condão de superar o paradigma jurídico, incorporado ao modo de atuação do Estado pós-liberal. Ademais, a ciência política francesa trata da regulação como evolução contemporânea das políticas públicas. Além disso, as políticas públicas permanecem como categoria de análise e estruturação da atuação do Estado, mesmo superado o paradigma do Estado de bem-estar social

A terceira premissa é no sentido de que a ideia de política pública necessariamente pressupõe a ideia de estratégia, isto é, de uma ação racional, estratégica e em escala ampla. A noção de ação estratégica foi criada por Charles LINDBLOM, em 1958, na obra “Still Muddling Through”, em que desenvolve a teoria do incrementalismo e afirma que uma sequência rápida de pequenas mudanças pode produzir uma alteração drástica do status quo mais rápida que uma alteração maior brusca.

Contudo, após a sucessão das economias planificadas do século XX, é baixa a probabilidade de que profundas alterações estruturais sejam desencadeadas pela ação planejada do Estado, tendo em vista que há espaços institucionais previamente preenchidos por organizações e processos minuciosamente regulados pelo direito. As políticas públicas consistem, portanto, no “macroplanejamento”, devendo ser necessariamente complementadas por definições setoriais e locais que podem ser racionalmente programadas e arranjadas (ou não). Elas ocupam um espaço intermediário entre as decisões estruturais do processo de planejamento e as decisões de alcance individual ou de grupos (a exemplo da atividade jurisdicional típica), caracterizando-se pela amplitude de escala.

A mesma autora ainda destaca algumas premissas negativas, entre elas, a de que as políticas públicas não podem e não devem ser reduzidas às disposições jurídicas (constitucionais) com as quais se relacionam, pois não são sinônimos de direitos (direitos sociais). Vale enfatizar que a Constituição não contém políticas públicas, mas sim direitos, que são concretizados através de políticas públicas, ou seja, os arranjos institucionais complexos são conformados pelo Direito, mas não redutíveis a ele. CASTRO e MELLO (2017) salientam que o direito possui um caráter transversal, permeando todos os níveis e estágios das políticas públicas, desde a definição de objetivos, diretrizes e princípios da ação governamental, até os microprocessos existentes na formulação e implementação de políticas públicas, contudo as políticas públicas não se limitam aos direitos.

Nessa mesma linha, a outra premissa destacada por BUCCI (2008) é a de que as políticas públicas não se reduzem às políticas sociais, isto é, políticas públicas não são sinônimas de políticas sociais, pois estas são espécies de um gênero de ações governamentais que se baseiam em estratégias de prestação de serviços, indução e fomento. Ademais, a quaisquer políticas em que se revele a ação do governo como condutora das decisões que moldam a relação com o mercado e a sociedade civil, aplica-se a visão estrutural. Do ponto de vista da estrutura e da dinâmica jurídicas, não há razão para afastar as políticas sociais.

Por fim a autora enfatiza algumas diretrizes metodológicas. A primeira é que não se deve criar um “direito das políticas públicas”, tendo em vista que as políticas públicas não se limitam a um conceito jurídico, logo o processo decisório governamental deve ser analisado segundo diversas óticas epistemológicas combinadas, dentro e fora do Direito.

A segunda diretriz é no sentido de a ideia de políticas públicas não se resume a uma categoria jurídica artificial. No campo das políticas públicas, um estudo jurídico deve ser capaz de relacionar os aspectos econômicos, políticos e de gestão, ínsitos à abordagem, com outras categorias jurídicas além das normas, tais como os processos, as instituições e a cultura jurídica.

A terceira indica que a metodologia jurídica de análise de política pública requer o exame da ideia de políticas públicas a partir dos campos que definem, na sua origem, a particularidade do Direito, a teoria geral do Direito e a teoria do Estado, sem se afastar dos temas correspondentes nos âmbitos da ciência política e da ciência da administração pública. Desse ponto de partida podem surgem outras abordagens em outros campos, como o direito financeiro, o direito processual e até mesmo o direito internacional. Resta saber se esse conjunto de abordagens será suficiente para superar as limitações atuais de cada um desses campos do conhecimento.

A quarta é no sentido de que se deve formular uma metodologia geral, a partir da sistematização de estudos de caso, com base na análise na estruturação e no funcionamento jurídicos de políticas públicas selecionadas. Outra possibilidade de pesquisa, sob o enfoque jurídico, segunda a autora, seria comparar a institucionalização de cada uma das políticas públicas de implementação do direito à saúde, à educação, à assistência social, à segurança pública, entre outras e analisar as estratégias jurídicas de conformação e implementação, identificando modelos de intervenção, com base na observação das experiências concretas. Dessa forma o foco deixaria de recair sobre o direito subjetivo em si e passaria a recair sobre o modo de organização das estruturas jurídicas internas ao Estado ou mediadas por ele, que tornam o exercício do direito eficaz.

Do ponto de vista estrutural, o desafio, de acordo com a literária, está em sistematizar as análises, segundo determinadas categorias, que permitirão identificar repetições históricas, semelhanças e dessemelhanças nos arranjos observados, extraindo conclusões a respeito dos processos decisórios governamentais especificamente considerados e suas componentes jurídicas.

Nesse sentido, o estudo de CASTRO e MELLO (2017) objetivou construir uma perspectiva jurídica de avaliação de políticas públicas, centrada no aspecto funcional do direito que fosse capaz de incorporar elementos de análise econômica relacionados com os arranjos institucionais e com os impactos das normas jurídicas sobre os seus destinatários. Dessa forma os autores acrescentaram dois pressupostos importantes para a abordagem jurídica de análise de políticas públicas. O primeiro, na direção de que as políticas públicas devem objetivar solucionar uma certa situação reputada como um problema do ponto de vista social, de maior ou menor relevância, abrangência ou generalidade, sendo fundadas em uma ação racional, limitada pela cognição inerentes aos agentes e pelo ambiente que condicionam a possibilidade de identificação dos problemas bem como as relações causais e os meios para solucioná-los. O segundo, no sentido de que o direito deve ser analisado através do enfoque funcional, enquanto elemento estruturante das políticas públicas, ou seja, preocupando-se com a produção de efeitos do sistema jurídico e destacando a relevância dos arranjos institucionais na produção de efeitos.

A forma de análise deve se balizar em um modelo lógico da intervenção, que detalhe a cadeia de hipóteses causais e sua ligação entre os meios e os resultados. As vantagens de se criar um modelo de avaliação de políticas públicas consistem em ser um instrumento para avaliação, estabelecendo os vínculos entre uma intervenção e seus efeitos, revelando um “conjunto de hipóteses necessárias para que a intervenção permita melhorar a situação problemática”; bem como em ser um instrumento de comunicação.

Desse modo, a abordagem da ação governamental partindo da premissa da identificação e tentativa de soluções do problema impõe a análise da finalidade ideal da intervenção, o que implica em verificar os efeitos do sistema jurídico, sob uma perspectiva funciona, sendo necessário distinguir entre os diferentes destinatários da ação governamental. Tratar dos efeitos pressupõe, também, o reconhecimento da influência dos arranjos institucionais sobre os resultados da ação governamental. Considera-se, então, o conceito de arranjo institucional proposto por BUCCI (2013, p. 179): “(...) o agregado de disposições, medidas e iniciativas em torno da ação governamental, em sua expressão exterior, com um sentido sistemático”.

Nesse diapasão, BUCCI (2013) destacou a possibilidade de analisar um arranjo institucional a partir de duas dimensões distintas, a objetiva e a subjetiva. A primeira, refere-se ao conjunto organizado de disposições, iniciativas e medidas; já a segunda, relaciona-se aos sujeitos envolvidos numa política (agentes públicos ou destinatários), sendo possível analisar as posições de indivíduos ou grupos envolvidos nas políticas públicas de acordo com os diferentes processos que envolvem a ação governamental em seu plano micro-institucional.

O estudo dos autores propõe o detalhamento da pesquisa de BUCCI (2013) e traz elementos que possibilitem uma avaliação concreta. A dimensão objetiva do arranjo institucional pode ser avaliada a partir de uma estrutura normativa e de uma estrutura organizacional.

Nesse compasso, a dimensão objetiva é formada por normas que exercem influência direta nos resultados e impactos da intervenção, e será avaliada sob o seu aspecto formal (legalidade normativa) e finalístico (adequação normativa aos objetivos da intervenção). Recursos disponíveis; interação entre atores diversos; definição de responsabilidades sobre a forma de implementação da intervenção e são alguns dos elementos que compõem a estrutura organizacional da dimensão objetiva. O último deles pode ser abordado a partir da distinção entre responsabilidade formal (diretamente relacionada à estrutura normativa, sendo fruto direto do comando contido na norma legal sobre o tema) e responsabilidade fática (processos, dotados de um relativo grau de informalidade, que cercam a tomada e implementação de decisões sobre as políticas públicas). Dessa forma, a definição de responsabilidades pode ser complementada ou até mesmo subtraída por outros atores que participam informalmente do processo.

Já a dimensão subjetiva dos arranjos institucionais pode ser verificada sob o viés das posições e práticas dos indivíduos ou grupos diretamente envolvidos no processo de formulação e implementação das intervenções. Essa abordagem pressupõe a racionalidade instrumental dos atores, motivados por interesses, de cunho material e ideal; a diversidade dos tipos de destinatários da intervenção (destinatários instrumentais e destinatários finas imediatos e mediatos) e o estabelecimento de limites e incentivos para que os atores adotem certas práticas, através do arcabouço normativo e de fatores ambientais.


7. ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA JURISPRUDÊNCIA

Demonstrou-se que a ciência do Direito possui metodologia própria de construção de conhecimento jurídico. Tal conhecimento, quando aplicado pelo pesquisador, torna-se conhecimento científico – que possui características distintas do conhecimento cotidiano, às quais a pesquisa científica volta-se. Da construção do conhecimento científico, e sua metodologia própria, ramifica-se um dos vieses de análise multidisciplinar das políticas públicas, posto que exaradas pelo Administrador Público que tem suas funções precípuas submetidas aos dizeres da Lei. Isto porque a República Federativa do Brasil trata-se de Estado Democrático de Direito (Art. 1º, CF/1988) onde o poder legitimamente exercido é aquele decorrente da outorga democrática popular, desde que legalmente qualificada.

No ordenamento pátrio as políticas públicas embasam-se em direitos elencados em Lei (lato sensu). Vivemos em estado garantidor de direitos, onde a atuação administrativa estatal restringe-se aos ditames de uma Constituição extremamente ampla, a qual – conforme o jargão administrativista – não cabe no Produto Interno Bruto do país. Uma das premissas de análise de políticas públicas é que a decisão governamental é o problema central da análise de políticas públicas, e o primado da legalidade administrativa estrita faz com que o agir do administrador público esteja sob o manto do direito através da vinculação à Lei, surgindo desta peculiaridade o fenômeno da judicialização de políticas públicas que permite sua análise pelos Tribunais e, consequentemente, a construção de jurisprudência sobre políticas públicas.

Quando tratamos de judicialização de políticas públicas, de modo geral, afirmamos que se trata de termo que “procura abarcar causas e consequências da expansão do poder judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas”. (CARVALHO, 2009, p. 316). É fenômeno que potencializa a participação do Judiciário ao longo do fazer indireto de políticas públicas. Nossa Constituição não possui políticas públicas, mas extenso rol de direitos que através delas são efetivados.

A análise de casos concretos pelo poder judiciário constrói a Jurisprudência – conjunto de decisões reiteradas de Tribunais, que pode ser objeto de análise científica do jurista. É uma abstração do conteúdo envolvido em determinado caso extraído da prática judiciária, uniformizando um entendimento para que em casos com os mesmos elementos ou elementos semelhantes consolide-se numa ligação genérica, útil, que possa os solucionar. Ela fixa entendimentos, orienta decisões futuras, de modo a servir de grande auxílio na construção, repetição ou inovação de entendimentos jurídicos aplicados. Todavia, a jurisprudência não é vinculativa. É uma das fontes imediatas jurídico-formais de pesquisa jurídica, formas pelas quais se expressa concretamente o Direito, ou seja: um dos determinados atos que concretiza o direito e resulta em textos jurídicos (assim como através da Constituição, das leis, dos princípios, dos tratados internacionais, dos contratos, etc.) (BITTAR, 2017, p. 230-235). Há ainda autores que consideram a jurisprudência não uma fonte do direito, mas a materialização do direito posto, trazido à baila pelo operador do Direito para convencimento dos demais magistrados através de uma fonte psicológica (ou de violência simbólica), pois o julgador não é obrigado a decidir da mesma forma que os demais, mas saberá que deles estará divergindo (MOUSSALLEM, 2006, P. 148-149).

A Jurisprudência, como conjunto de decisões, representa o trabalho dos Tribunais. Nem toda a jurisprudência será conhecida pelo público. Nos casos ordinários apenas as partes interessadas e seus procuradores terão conhecimento do que aconteceu no processo. Na pesquisa extensiva sobre uma matéria específica deverão ser relacionadas as diversas correntes jurisprudenciais formadas para apresentar um panorama mais extenso do problema da aplicação de determinado instituto ou tese jurídica, e tais orientações jurisprudenciais poderão ser organizadas de forma a facilitar sua compreensão do jurista: por correntes de pensamento – priorizando o debate, ou por Tribunais julgadores – priorizando os órgãos divergentes (BITTAR, 2017, p. 240-241).

Logo, a análise jurisprudencial torna-se um método prático estendido ao operador jurídico para analisar a efetividade de direitos através da devida realização de políticas públicas, em virtude da necessidade de busca ao judiciário para seu devido cumprimento. Tais situações respaldam a pesquisa científica de análise jurisprudencial, pois pode se tratar forma direta de avaliação, ou mesmo efetivação, de políticas públicas pelo Poder Judiciário. Essas avaliações podem ser realizadas através de análises e pesquisas quantitativas e qualitativas – de acordo com o viés da observação que será realizada, ou de estudo de caso – quando a observação recaia sobre uma temática onde a Jurisprudência seja parte de uma grande investigação sobre matéria específica.

A pesquisa quantitativa é aquela realizada de forma sequencial e comprobatória, que parte de uma ideia e vai delimitando-a, extraindo objetivos e perguntas de pesquisa, formulando hipóteses e variáveis, testando-as e medindo-as em determinado contexto, para analisar as medições obtidas e estabelecer conclusões acerca das hipóteses. Suas principais características são a de possuir um problema de estudo delimitado e concreto, onde as hipóteses são geradas anteriormente, com sua coleta de dados fundamentada na medição das variáveis ou conceitos contidos nas hipóteses, e seus dados, por serem produtos de uma medição, devem ser analisados por métodos estatísticos, buscando-se controle para descarte de outras explicações (explicações rivais) e minimização do erro, e confiando-se na experimentação e nos testes de causa-efeito – devendo ser uma pesquisa o mais objetiva possível (sem interferências do pesquisador), buscando generalizar os resultados de um grupo (amostra) para o todo (população), com o intuito de explicar e prever os fenômenos pesquisados buscando relações causais entre eles. Em virtude destas características da pesquisa quantitativa, ela torna-se replicável, e se um pesquisador rigorosamente seguir os métodos e regras nela aplicados obterá os mesmos padrões de validade e confiabilidade, pois ela utiliza raciocínio dedutivo externo ao âmbito subjetivo do pesquisador, explicando a realidade objetivamente (SAMPIERI, 2013, p. 30-31).

Observa-se que o principal enfoque da pesquisa quantitativa é o de medir as variáveis ou conceitos contidos nas hipóteses. No caso da pesquisa jurisprudencial aplicada às políticas públicas, este tipo de pesquisa pode ser aplicada nas seguintes análises pelo pesquisador, dentre outras: número de vezes em que determinada política pública foi judicializada, que uma tese sobre aplicação de políticas públicas foi aceita, o número de Tribunais e câmaras que defendem determinadas teses e concretizam certas políticas não efetivadas pelo Estado, os valores gastos na concretização impositiva de políticas judicializadas e suas médias ao longo de determinado período, o número de ações julgadas acerca de determinada matéria de política pública, dentre outras análises. Enfim, pesquisas onde as questões de pesquisa e suas hipóteses sejam correlacionadas com valores mensuráveis acerca da jurisprudência de Tribunais analisada sobre a temática de políticas públicas.

A análise Jurisprudencial aplicada às políticas públicas também pode ser objeto de uma pesquisa qualitativa, método que abrange um amplo espectro da vida real e cotidiana, permitindo que se estude de forma profunda uma ampla gama de tópicos e assuntos que acontecem no mundo real – campo de pesquisa, buscando explica-los. Este método oferece liberdade na escolha dos temas de interesse, não sendo limitado como os demais (YIN, 2016b, p. 5-7). Possui como características: o fato do pesquisador formular um problema sem um processo claramente definido, examinando o mundo social e nesse processo desenvolvendo a teoria coerente com os dados coletados de acordo com sua observação; utiliza lógicas e processos indutivos, indo do particular para o geral; suas hipóteses não são testadas, sendo construídas ao longo do processo de pesquisa e aprimoradas conforme os dados são obtidos; baseia-se na coleta de dados não padronizados nem totalmente predeterminados, não utilizando medições numéricas nem análises estatísticas; seu processo de indagação é flexível, se movendo entre as respostas e o desenvolvimento da pesquisa, e holístico, considerando o “todo” sem reduzi-lo ao estudo de suas partes; avalia o desenvolvimento natural dos acontecimentos, sem manipulação nem estimulação; fundamenta-se em uma perspectiva interpretativa de entendimento dos seres humanos e suas instituições; a realidade estudada é definida por meio das interpretações dos participantes da pesquisa a respeito das suas próprias realidades, e o pesquisador é inserido nas experiências dos participantes e constrói o conhecimento – consciente de que faz parte do fenômeno estudado; e não há pretensão de generalização probabilística nem de replicabilidade de seus resultados (SAMPIERI, 2013, p. 33-35).

Observa-se que seu foco é a subjetividade da análise e pretende-se explicar porque certos fenômenos ocorrem de uma forma peculiar, permitindo maior liberdade na seleção de temas de interesse, sendo utilizada para explicar de forma aprofundada fenômenos sociais através da visão do pesquisador. Cabe ao pesquisador coletar os dados, analisá-los e reproduzir sua análise e conclusão na pesquisa. A coleta de dados na pesquisa qualitativa trata-se de uma de suas principais, fases, pois é quando o pesquisador se insere no campo de estudo e coleta informações para futura análise. Os dados, na pesquisa qualitativa, são informações organizadas. São os menores e mais baixos elementos registrados que resultam de alguma experiência, observação, experimento ou outra situação semelhante (YIN, 2016b, p. 116).

Assim, nos casos de pesquisa qualitativa o pesquisador analisará a Jurisprudência na temática de políticas públicas não através de valores e quantidades, mas sim de forma concreta, específica e subjetiva de efetivação de direitos através das decisões sobre políticas públicas. Fenomenizada a judicialização, caberá verificar-se porque tais decisões são exaradas, os motivos de se criação de uma Jurisprudência – e não decisões singulares em casos concretos, o arcabouço fático e jurídico por trás das decisões, bem como a maneira que é exarada nos Tribunais e nas turmas recursais.

Por fim, o Estudo de Caso caracteriza-se como método preferencial em situações onde as perguntas a serem respondidas são da forma “como” ou “porque”, onde o pesquisador tem pouco ou nenhum controle sobre os eventos comportamentais e foca em um fenômeno contemporâneo. As principais preocupações presentes no estudo de caso são: de conduzir a pesquisa de forma rigorosa, de saber como chegar a conclusões generalizadas quando desejado, de gerir cuidadosamente o nível de esforço e compreender a vantagem comparativa da pesquisa de estudo de caso. Trata-se de metodologia utilizada em muitas situações para contribuir no conhecimento de fenômenos individuais, grupais, organizacionais, sociais, políticos e relacionados, com o fim de compreender fenômenos sociais complexos. Ele permite que o pesquisador foque em um caso e retenha uma perspectiva holística e do mundo real (YIN, 2016a, p. 2-4).

Um estudo de caso possui seis fontes de evidência, quais sejam: documentos, registros de arquivos, entrevistas, observação direta, observação participante e artefatos físicos. Os documentos, aqueles reputados relevantes para Estudos de Caso podem tomar várias formas (YIN, 2016a, p. 106-110), inclusive a jurisprudencial. Tais documentos serão úteis mesmo que não sejam sempre precisos e possam apresentar parcialidades, mas devem ser utilizados cuidadosamente. Desempenham um papel explícito em qualquer coleta de dados na realização de um Estudo de Caso, e as buscas sistemáticas de documentos relevantes são importantes para o plano de coleta de dados do estudo. Seu uso será de grande valia, especialmente no momento de corroboração de outras fontes de evidências, e a revisão destes documentos é de suma importância para compreender as finalidades com que foram redigidos e o público que atendem (YIN, 2016a, p. 111- 112)

A análise jurisprudencial em Estudos de Caso é utilizada como parte de uma pesquisa ampla. Isso ocorre em matérias específicas, onde se analisam evidências de diversas fontes, inclusive a jurisprudência, tais como: estudos sobre elaboração e aplicação de determinada lei de um ente Estatal; estudos de regulação de setores econômicos; estudos sobre crises econômicas, ou em um momento de crises institucionais graves. Dentro desta ampla gama de um caso específico, a Jurisprudência será a fonte um dos escopos de análise do Estudo de Caso.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou esclarecer como a metodologia jurídica pode ser um instrumento útil para a análise de políticas públicas, abordando as principais teorias e conceitos de metodologia, metodologia jurídica e metodologia jurídica de políticas públicas. Tratam-se de campos de pesquisa complementares, posto que o Administrador Público, ao construir e desenvolver políticas públicas, está sob o manto e deve respeitar a lei e o Direito.

Destacou-se a pesquisa jurisprudencial como uma das aplicações práticas de análise jurídica de políticas públicas, posto que a busca ao judiciário trata-se de uma das formas que a população alvo de políticas públicas específicas tem para sua efetiva concretização, quando frustrada. Especificou-se a pesquisa jurisprudencial quantitativa, qualitativa e estudo de caso, visando proporcionar meios eficazes para um estudo metodológico de análise jurídica de políticas públicas.

O artigo propõe ao pesquisador uma forma conciliação entre o Direito e as políticas públicas – campo reconhecidamente multidisciplinar, através de uma metodologia jurídica. Esta análise é reforçada por meio da pesquisa e seus aparatos documentais de fundamento, com fins de trazer um embasamento científico ao desenvolvimento e o aprimoramento da pesquisa jurídica. Buscou-se demonstrar que a método jurídico permite a construção do conhecimento jurídico de forma coerente, abrangendo uma vasta gama de áreas, permitindo-se uma ampla possibilidade de aplicação. Cabe ao operador do Direito desenvolver novos conhecimentos para agregar juridicidade ao campo das políticas públicas, assim gerando novos conhecimentos e novas formas de interpretação científica do tema.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, T. F.; Mello, M. T. L. Avaliação da Lei de Acesso à Informação Brasileira: uma abordagem metodológica interdisciplinar. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v.3, n.2, pp.113-134, 2016.

BITTAR, EDUARDO C.B. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia para os cursos de direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

BOBBIO, Noberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Editora Manole, 2007.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.

______, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de politicas públicas. In Políticas públicas: possibilidades e limites, organizado por Cristiana Fortini, Júlio César dos Santos Esteves e Maria Teresa Fonseca Dias. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 225-260 Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1706397/mod_resource/content/1/mpaula_notas%20para%20uma%20metodologia%20juridica%20de%20analise%20de%20pp.pdf>. Acesso em: 12 dez 2017.

CARVALHO, Ernani. Judicialização da política no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade política. Análise Social, n.191. Lisboa, 2009. p. 315-335.

CASTRO, Marco Tulio de BARROS E; MELLO, Maria Tereza Leopardi. Uma Abordagem Jurídica De Análise De Políticas Públicas. Revista de Estudos Empíricos, v. 4, n. 2, 2017. Disponível em: <http://www.reedpesquisa.org/ojs-2.4.3/index.php/reed/article/view/112 >. Acesso em: 12 dez 2017.

COUTINHO, Diogo R. O Direito nas políticas públicas. In: Marques, E; Faria, C.A. Política Pública como campo multidisciplinar. São Paulo: Ed. UNESP, 2013.

DYE, T. (1966). Politics, Economics and Public Policy: Policy Outcomes in the American States. Chicago: Rand McNally.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 2008, 21ª Edição.

GRAU, E. R. O Direito posto e o direito pressuposto. Malheiros, 2000.

JOHNSON, Janet, JOSLYN, Richard e REYNOLD, H. T. Political Science Research Methods. Washington DC: CQ Press. 2001.

LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

LAMY, Marcelo. Metodologia da pesquisa jurídica: técnicas de investigação, argumentação e redação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011,

MELLO, M. T. L.. Direito e economia em Weber. Revista Direito GV. São Paulo, v. 2, n. 2, p. 45-66, 2006.

MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes no direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2006.

SAMPIERI, Roberto Hernández, CALLADO, Carlos Fernández, LUCIO, María del Pilar Baptista. Metodologia de Pesquisa. 5ª ed. Porto Alegre: Penso, 2013.

WEBER, M. Economía y sociedad. 2. ed. em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1964.

YIN, Robert. Estudo de Caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2016a.

YIN, Robert. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso, 2016b.


Notas

[1] “Quando se utiliza no discurso determinados termos (caros ou abominados pelo emissor), mesmo que se utilizem os mesmos com toda a delimitação técnica, é impossível afastar o efeito halo: que dispara no receptor as mais diversas ressonâncias (conotações, lembranças, sugestões). Nem todas as conotações presentes na mente do emissor são compreendidas e apreendidas do mesmo modo pela mente dos receptores... Da mesma forma, o receptor de um discurso seleciona as informações que reterá e, embora essa seleção possa ser influenciada pelo emissor, não pode ser conduzida absolutamente. A aceitação e a memorização, a rejeição ou a mera desconsideração de alguma ideia apresentada é decorrente do passado do receptor (da cultura que o molda, da visão de mundo que possui). Não há como o emissor impedir as referências ou moldar os interesses do receptor. O efeito filtro pode, no máximo, ser minorado (mas não pode ser controlado) se o receptor o tem em mente e adapta-se às preocupações dos receptores”. (LAMY, 2011, p. 120).

[2] Cf. Disponível em http://www.oei.es/historico/salactsi/rdagnino1.htm. Acesso em 27 de novembro de 2017.

[3] Cf. Idem.


Abstract: This article analyzes the construction of scientific legal knowledge and its correlation with public policies. This occurs because they are complementary search fields, and the Public Administrator, to achieve a public policy, submits himself to the field of Law. This qualifies the Law as one of the forms to study and to analyze public policies. In the end, the Jurisprudence is presented as one of the possible sources that the jurist has to study the failures in constructing public policies and the search for its achievement in the judiciary, by its target population.

Key-words: Law; Scientific Research; Legal Methodology; Public Policies; Jurisprudence.


Autores

  • Vanessa Trindade Bortolon

    Advogada, Graduada na UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Pós- Graduada na EMERJ - Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro; Mestranda em Direito e Políticas Públicas na UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

    Textos publicados pela autora

    Fale com a autora

  • Lucas Medeiros Gomes

    Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Especialista em Regulação na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público Federal. Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

  • Francisco Toniolo de Carvalho

    Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010). É especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (2014). Atualmente é mestrando em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), na área concentração Estado, Sociedade e Políticas Públicas e na linha de pesquisa em Direito, Políticas Públicas e Sustentabilidade. É bolsista da CAPES, realizando pesquisas pelo programa de mestrado. Revisor da Revista Direito das Cidades da UERJ (quais A1). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário e Ambiental, atuando principalmente com os seguintes temas: sustentabilidade, direito ambiental, direito tributário, direito urbanístico, direito administrativo, orçamento participativo e participação popular, e políticas públicas.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORTOLON, Vanessa Trindade; GOMES, Lucas Medeiros et al. Metodologia jurídica e especificidades da pesquisa jurisprudencial aplicadas às políticas públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5343, 16 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63137. Acesso em: 25 abr. 2024.