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A ação afirmativa e sua perspectiva de inclusão no arcabouço jurídico brasileiro

A ação afirmativa e sua perspectiva de inclusão no arcabouço jurídico brasileiro

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As ações afirmativas são definidas como políticas voltadas à concretização da igualdade de oportunidades e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física.

RESUMO: As ações afirmativas são definidas como políticas voltadas à concretização da igualdade de oportunidades e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Assumem uma postura pedagógica, não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, que visam a propagar nos atores sociais a observância do princípio da pluralidade e da diversidade do convívio humano contidos na política de compensação/reparação de grupos sociais historicamente marginalizados, através da valorização social, econômica, política e/ou cultural dos mesmos durante um período limitado de tempo. Esta pesquisa, através de uma metodologia histórica e comparativa, tem por escopo discutir a constitucionalidade das ações afirmativas, especialmente da política de cotas raciais, a partir da análise do princípio da igualdade, elencado no art. 5º caput da Constituição Federal. Pela hermenêutica desse dispositivo, é possível constatar duas interpretações: a igualdade formal (os indivíduos, abstratamente, devem ser tratados do mesmo modo, sem qualquer tipo de distinção) e a igualdade substancial (os indivíduos devem ser tratados de modo desigual se for constatada, no plano sócio-econômico, desigualdade entre eles). Partindo desta última interpretação, a substancialidade, é possível identificar a constitucionalidade da ações afirmativas no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Ações afirmativas, Princípio da igualdade, Substancialidade.


1.INTRODUÇÃO

A igualdade, como princípio jurídico-filósofico, tornou-se um dos pilares da democracia através das grandes revoluções do século XVIII. O movimento constitucionalista moderno, calcado no ideário liberal, edificou o conceito de igualdade perante a lei, uma construção jurídico-formalista segundo a qual a lei deve ser genérica e abstrata, tratando as pessoas indistintamente, cabendo ao Estado o papel de fazê-la incidir de maneira imparcial sobre os casos concretos.

Todavia, substancialmente, tal postulado igualitário não concretizou o almejado por tal movimento. Contemporaneamente, estudos estatísticos constatam que certos grupos, muitas vezes vistos como "socialmente inferiores" (mulheres, negros, pardos, indígenas, portadores de deficiências físicas, entre outros), não possuem a situação sócio-econômica assegurada pela Constituição Federal (CF).

A partir de tais constatações empíricas, alguns países passaram a promover políticas compensatórias, com vistas a garantir o efetivo gozo dos direitos individuais e sociais desses grupos cultural, social e economicamente marginalizados. Através da máxima tratar os iguais de modo igual, e os desiguais de modo desigual, propaga-se a substituição do formalismo liberal clássico para uma idéia de substancialidade. Esta definição parte da premissa de que os indivíduos que estão em condições desiguais não podem ser genericamente tratados da mesma forma.

Nesta seara, surge nos Estados Unidos da América (EUA) a affirmative action, um instrumento jurídico destinado a combater as diferenças sociais. Em suma, as ações afirmativas, ou discriminações positivas, são políticas voltadas à concretização da igualdade material, com o objetivo de atenuar os efeitos da discriminação, seja ela oriunda da cor, gênero, idade. Este mecanismo é possível de ser observado no Brasil em leis como a lei nº. 10.741/2003 (popularmente conhecido como Estatuto do Idoso), e a lei nº. 9.504/1996 (garante uma cota de no mínimo 30% para a candidatura feminina nos partidos políticos).

Desta forma, o presente artigo tem por escopo estruturar a definição e o alcance das ações afirmativas, por meio de um panorama histórico e atual, analisando a possibilidade de inserção deste mecanismo no arcabouço jurídico brasileiro.


2. PANORAMA HISTÓRICO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

A expressão ação afirmativa foi empregada pela primeira vez nos Estados Unidos em 1935, e se referia à proibição, ao empregador, de exercer qualquer forma de repressão contra um membro de sindicato ou seus líderes. Por volta de 1960, o termo populariza-se no contexto da luta pelos direitos civis, especialmente destinado a promover a igualdade racial da sociedade americana, a qual, marcada pelo segregacionismo do sistema Jim Crow, implementavam e legitimavam o racismo, por meio da separação legal de negros e brancos em diversos momentos da vida social. (VILAS-BOAS, 2003)

Com o apoio de muitos membros do Congresso, o movimento de massas ganha força, logrando êxito em importantes medidas voltadas para as minorias étnicas no mercado de trabalho, na educação, nos contratos públicos e também na participação política. Após a aprovação da Lei de Direitos Civis (1964) e da Lei de Direito ao Voto (1965), criam-se a Comissão de Igualdade de Oportunidades no Emprego e a Oficina Federal de Cumprimento de Contratos – esta surgida para garantir a observância da lei. Esses instrumentos legais foram uma evidente manifestação do governo contra a discriminação racial.

O termo affirmative action aparece oficialmente, pela primeira vez, numa ordem executiva assinada pelo presidente J. F. Kennedy em 1961, na qual instou as entendidas ligadas ao Executivo para tomarem a ação afirmativa como um instrumento de combate à discriminação de afroamericanos na contratação de mão-de-obra. Ganha um papel de destaque a figura do então presidente Lyndon B. Johnson (sucessor de Kennedy) que, através da Ordem Executiva 11.246, estimulou que as firmas contratadas pelo governo realizassem a reserva de vagas para membros provenientes das minorias raciais e também dos deficientes físicos.

Mister salientar que a utilização da ação afirmativa não ficou restrita aos Estados Unidos. Na década de 1940, a Índia, país rigidamente estruturado em um sistema de castas, já promovia políticas compensatórias para as minorias étnicas (conhecidas como dalits, ou simplesmente "intocáveis"). A alternativa encontrada foi o estabelecimento de cotas para o acesso aos empregos públicos e, especialmente, às universidades.

Silva (2004) lembra que o sistema legal do Canadá, no que tange à esfera pública, recepciona a idéia de ação afirmativa, sendo esta umas das exceções admitidas ao enunciado geral da igualdade perante a lei. O artigo 15 do Canadian Charter of Rights and Freedown estipula que:

15. (1). Todos os indivíduos são iguais perante e sob a lei, e têm direito à igual proteção e ao igual benefício da lei sem discriminações e, em particular, sem discriminação baseada em raça, origem nacional ou étnica, cor, religião, idade, ou deficiência física ou mental. 15. (2). A subseção (I) não impede qualquer lei, programa ou atividade que tenha como seu objeto a melhoria das condições de indivíduos ou grupos desfavorecidos, incluindo aqueles que estão em desvantagem devido a raça, origem étnica ou nacional, cor, religião, sexo, idade, ou deficiência física ou mental (Menezes apud SILVA, 2004, p. 18)

Na África do Sul, com o término do apartheid, surgiu uma intensa mobilização por parte de organizações civis, com o objetivo claro de estabelecer políticas de discriminação positiva para a população negra (marginalizada por décadas através do processo de separação social vigente). Nesse espírito, aprovou-se o Act of 1996, que, no seu artigo 9º, dispõe que "a igualdade [perante a lei] incluiu a plena igual fruição de todos os direitos e liberdades. Para promover a obtenção dessa igualdade, medidas legislativas e outras que visem proteger ou favorecer pessoas, ou categorias de pessoas prejudicadas por discriminação injusta poderão ser tomadas".

De forma similar, vários países – como Malásia, Ilhas Fidji, Nigéria, Sri Lanka – estão adotando medidas de cunho afirmativo, buscando nesse instrumento jurídico uma forma de redução das desigualdades.


3.PRECISÃO E ALCANCE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

Inicialmente, as ações afirmativas eram percebidas como um mero instrumento encourajador por parte do Estado, a fim de que as empresas e instituições de ensino levassem em consideração critérios como a raça, cor e origem nacional no acesso ao mercado de trabalho e na educação. Permanecia muito forte a idéia de que ao Estado não é dado o direito de intervir nas relações privadas.

O princípio da neutralidade estatal edificou no direito constitucional norte-americano a chamada Doutrina da Ação Governamental (State Action Doctrine). Em seu corolário, a discriminação racial deveria ser combatida exclusivamente na esfera pública. Segundo GOMES (2001), a intervenção nesses casos era considerada legítima apenas nos casos dependentes da outorga estatal, como o dispêndio de recursos públicos e contratação de funcionários.

A contrario sensu, forjou-se o entendimento de que no âmbito privado não pode o Governo coibir os atos discriminatórios. Em suma, todas formas de preconceito racial são consideradas legais quando praticadas pelas pessoas no seu espaço íntimo. Não é por acaso que a omissão do Estado constitui uma das causas principais do recrudescimento do racismo e das perseguições contra negros nos EUA após a guerra civil. A prova disso está no surgimento e a expansão da Ku-Klux-Klan, uma organização fundada para propagar o ódio e a violência contra determinados grupos, especialmente negros.

A dicotomia público-privado, todavia, começa a sofrer profundos abalos na jurisprudência da Corte Suprema. De acordo com GOMES (2001), o ponto crucial nesse sentido foi o caso Reitman v. Mulkey. Entre 1959 e 1963, o Estado da Califórnia havia aprovado leis antidiscriminatórias em matéria da venda e aluguel de propriedades residenciais. Contudo, a população reagiu a essas medidas e, valendo-se da iniciativa popular, aprovou uma Proposição abolindo tais leis e reiterando a clássica assertiva de neutralidade estatal. Por sua vez, a Corte interveio de maneira implacável, anulando o referendo por considerá-lo uma afronta à essência da 14ª Emenda (que proíbe a discriminação racial), acrescentando que "mesmo nas hipóteses em que o Estado é acusado de encorajar (pela sua ausência, omissão ou neutralidade) e não de comandar (ou praticar) a discriminação, há a violação do referido princípio constitucional" (GOMES, 2001, p. 87).

Posteriormente, vários casos similares surgiram, sendo que a interferência do Estado torna-se cada vez mais presente. No entanto, os procedimentos clássicos no combate ao preconceito, baseados na simples proibição de leis discriminatórias, não se mostraram suficientes para acabar com os desníveis sociais constatados.

Por isso, entre os anos de 1960 e 1970, quando do fortalecimento dos Direitos Civis nos EUA, o instituto da affirmative action ganha um novo vigor, alterando sua perspectiva conceitual para abranger a efetiva realização da igualdade de oportunidades, pelo estabelecimento de cotas para às minorias em determinados setores (como a educação e o emprego).

Hodiernamente, as ações afirmativas, também definidas como "discriminação positiva" ou "ação positiva", conceituam-se como "políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física" (GOMES, 2003, p.21). Para tanto, "a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade" (GOMES, 2003, p. 21).

Segundo Vilas-Bôas (2003), "ações afirmativas são medidas temporárias e especiais, tomadas ou determinadas pelo Estado, de forma compulsória ou espontânea, com o propósito específico de eliminar as desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história pela sociedade" (p.29). Na mesma linha de raciocínio defere Bester apud VILAS-BÔAS (2003) "as ações afirmativas estão diretamente relacionadas a todas as maneiras de se efetivar, de forma concreta, o princípio da igualdade jurídica. Por meio delas, possibilitará aos grupos minoritários o reconhecimento formal através de uma forma de tutela positiva advinda do Estado legislador, com o objetivo específico de corrigir as desigualdades históricas" (p. 30-31).

Cabe ressaltar, por outro lado, que as políticas antidiscriminatórias baseadas em leis de cunho meramente proibitivo não pertencem ao rol das políticas de discriminação positiva, como a moderna doutrina enuncia. Enquanto as primeiras oferecem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório ex post facto, as ações afirmativas são híbridas em sua natureza: visam a evitar que a discriminação se propague tanto pelos meios usualmente conhecidos (como as normas de aplicação genérica e abstrata) mas também pelos mecanismos "informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo" (GOMES, 2003, p.28).

As ações afirmativas assumem uma postura pedagógica, não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, que visam a propagar nos atores sociais a observância do princípio da pluralidade e da diversidade do convívio humano contidos na política de compensação/reparação de grupos sociais historicamente marginalizados. Portanto,

Num esforço de síntese e incorporando as diferentes contribuições, podemos falar em ação afirmativa como uma ação reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado, presente ou futuro, através da valorização social, econômica, política e/ou cultural desses grupos, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais desses aspectos depender do grupo visado e do contexto histórico e social. (MOEHLECKE, 2002, p. 203).

3.1 A distinção entre racismo, preconceito e discriminação e seus meios de combate

Não muito raro, racismo, preconceito e discriminação são tidos como sinônimos. Os próprios textos legais fazem uma certa confusão terminológica, tornando as discussões cada vez mais acirradas. Ao enfrentar o assunto, todavia, o artigo não pretende esgotá-lo, mas sim fornecer alguns subsídios necessários para a reflexão.

Para o professor Santos apud JACCOUD & BEGHIN (2002), racismo e preconceito são os modos de ver um determinado grupo, enquanto a discriminação é uma ação no mundo físico (seja manifestação ou comportamento) que prejudique uma pessoa ou um grupo de pessoas devido a uma característica peculiar (como a cor, sexo, compleição física, etc). "Quando o racista ou o preconceituoso externaliza sua atitude, agora transformada em manifestação, ocorre a discriminação" (p. 38).

Por outro lado, racismo e preconceito são fenômenos distintos. No primeiro caso, há uma associação com a idéia de superioridade racial de um grupo para outro, sendo este imbuído de uma deficiência moral ou intelectual. Já o preconceito caracteriza-se pela construção mental ou afetiva de uma idéia negativa sobre um determinado grupo, tendo como ponto de partida o arcabouço moral do sujeito que o julga. A título de exemplo, vejamos as seguintes situações: um correligionário de um grupo neonazista, ao ter para si a idéia de inferioridade racial judaica perante a raça arianas, é imbuído de racismo; agora, caso um sujeito considere que negros e índios são incapazes de assumir cargos importantes no governo, há aqui um caso típico de preconceito.

Avançando no assunto, pode-se conceituar a discriminação como toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular a igualdade de oportunidade e o tratamento entre indivíduos ou grupos. Logo, há discriminação "sempre que uma pessoa seja impedida de exercer um direito (ao trabalho, por exemplo), por motivos injustificados, arbitrários, racistas, não podendo usufruir as mesmas oportunidades e o mesmo tratamento de que gozam outras pessoas, em função da raça, sexo, idade ou qualquer outro critério arbitrário" (Silva Jr. apud JACCOUD & BEGHIN, 2003, p. 39).

A doutrina tende a distinguir dois tipos de discriminação: a direta e a indireta. No primeiro caso, o discriminado sofre a exclusão expressamente pela sua característica (o fato de ser mulher ou idoso, por exemplo). Já na discriminação indireta, redunda não diretamente dos atos concretos ou da própria manifestação discriminatória, mas sim de práticas administrativas, empresariais ou de políticas aparentemente neutras.

Gomes (2001) lembra dois casos de discriminação indireta fortemente combatidos pelo direito norte-americano:

- Discriminação por impacto desproporcional (Disparate Impact Doctrine): é uma prática de cunho legislativo ou administrativo que, mesmo não provida de intenção discriminatória no momento da sua concepção, venha a causar danos nocivos de incidência desproporcional para determinadas categorias. Um exemplo típico ocorreu nos EUA quando algumas empresas na década de 1970 passaram a aplicar "testes de inteligência" (absolutamente desnecessários) como requisitos para a promoção de cargos, ao invés da simples apresentação de diplomas escolares como era o costume. Neste caso, havia o evidente intuito de manter o status quo e prejudicar a população negra que, devido ao sistema Jim Crow, era obrigada a freqüentar escolas segregadas e de qualidade inferior.

- Discriminação manifesta (Prima Facie Discrimination): corresponde à ausência ou a presença meramente simbólica de alguns grupos sociais em certas profissões ou cargos, numa indicação de "discriminação presumida caso o percentual de presença desses grupos em tais atividades ou estabelecimentos seja manifestamente incompatível com a representação percentual do respectivo grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho" (GOMES, 2001, p.31-32).

A discriminação indireta tem sido entendida, por muitos autores, como a forma mais perversa de discriminação. Uma possível explicação para isso é o fato de que ela se alimenta de alguns mecanismos arraigados e considerados legítimos sob o manto de um aparente estado de igualdade. Todavia, o caráter dissimulado e invisível dessa discriminação cai por terra quando os resultados dos índices sócio-econômico revelam-se extremamente desfavorável para um subgrupo em relação aos termos médios da população. Sobre o assunto, Jaccoud & Beghin (2003) lembram do "pouco sucesso dos negros no ensino fundamental, em que pese o alto grau de universalização atingido por esse sistema" (p. 40).

Feitas as necessárias distinções terminológicas, passemos agora à análise dos instrumentos de combate a esses fenômenos. Jaccoud e Beghin, de modo bastante didático, denominam uma política específica para cada situação.

No caso do racismo e do preconceito, a melhor alternativa seria a implementação de políticas valorativas e persuasivas, com o objetivo de reconhecer e valorizar a pluralidade étnica-social que marca a sociedade. O propósito não é atingir simplesmente o grupo específico, mas sim toda a população, num processo contínuo. As autoras citam como exemplo o GTI População Negra, que utiliza métodos educacionais em escolas e faculdades como arma de combate ao racismo e o preconceito racial.

Por outro lado, quando se trata da discriminação direta, a política a ser aplicada é a repressiva, por meio da utilização da legislação criminal pertinente. "O combate ao ato racista – a discriminação direta – deve ser realizado por medidas penais dirigidas contra indivíduos que executam atos de discriminação racial" (JACCOUD & BEGHIN, 2003, p.42). Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 é bastante contundente ao declarar a prática do racismo um crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, inciso XLII).

Já a discriminação indireta não é eficazmente combatida pela mera aplicação de leis de cunho antidiscriminatório. Para tanto, as autoras afirmam que a política a ser instituída deve possuir um caráter afirmativo, ou seja, têm por objetivo garantir a oportunidade de acesso dos grupos discriminados, ampliando a participação destes nos diversos setores da vida econômica, política, institucional, cultural e social. As ações afirmativas caracterizam-se por serem "temporárias e por serem focalizadas no grupo discriminado; ou seja, por dispensarem, num determinado prazo, um tratamento diferenciado e favorável com vistas a reverter um quadro histórico de discriminação e exclusão" (JACCOUD & BEGHIN, 2003, p. 67).


4.BASES FILOSÓFICAS PARA A CONSTRUÇÃO DA AÇÃO AFIRMATIVA

A justificação filosófica para a ação afirmativa repousa em duas esferas no campo da aplicação da justiça: a distributiva e a compensatória.

A justiça compensatória tem uma natureza restauradora, alicerçada na idéia de um dano a ser reparado para que se restabeleça o equilíbrio entre a parte violada e a violadora. Durante o curso da História, algumas sociedades subjugaram determinados grupos ou categoria de pessoas, sem contudo corrigir os efeitos da discriminação passada (que terminou por se manifestar nas gerações futuras). Segundo GOMES (2001), "ao adotarem os programas de preferência em prol de certos grupos sociais historicamente marginalizados, essas sociedades estariam promovendo, no presente, uma reparação ou compensação pela injustiça cometida no passado" (p. 62). Essa reparação se faria imprescindível numa sociedade democrática, devido ao ônus social, cultural ou econômico a ser carregado pelas novas gerações.

Contudo, um dos sérios problemas enfrentados ao se utilizar o referencial da justiça compensatória é saber precisamente como mensurar a conexão causa-dano-reparação. Talvez seja esta uma das possíveis causas do descrédito que muitos doutrinadores têm sobre a ação afirmativa.

Por outro lado, a justiça distributiva tem por fundamento a necessidade de (re)distribuir de maneira equânime os ônus, direitos, vantagens, riquezas e outros bens primários entre os membros de uma sociedade. Segundo Gomes (2001), "o pressuposto de que um indivíduo ou o grupo social tem o direito de reivindicar certas vantagens, benefícios ou mesmo o acesso a determinadas posições, às quais teria naturalmente acesso caso as condições sociais sob as quais vive fossem de efetiva justiça" (p. 66).

A idéia de justiça distributiva apresenta, modernamente, duas importantes vertentes. A primeira delas, baseada no conceito de igualdade ao nascer (equality of birth), afirma que devem ser levados em consideração todos os fatores relevantes de distinção entre os seres humanos para posterior averiguação das capacidades e do mérito. Destarte, seria absolutamente injusto tratar de modo idêntico indivíduos que tiveram trajetórias totalmente distintas pela imposição de artifícios injustificáveis pela sociedade. Para essa corrente,

o racismo e o sexismo constituem explicações plausíveis para esse desvio de rota. Para mitigá-lo, a tese distributivista propõe a adoção de ações afirmativas, que nada mais seria do que a outorga aos grupos marginalizados, de maneira eqüitativa e rigorosamente proporcional, daquilo que eles normalmente obteriam caso seus direitos e pretensões não tivessem esbarrado no obstáculo intransponível da discriminação (...) Contestar essa presunção (de que mulheres e outras minorias raciais progrediriam não fosse o racismo e o sexismo) eqüivaleria, em outras palavras, a sustentar que os grupos marginalizados seriam dotados de uma "inferioridade" congênita. (GOMES, 2001, p. 67-68).

A segunda vertente possui uma feição utilitarista. A redistribuição dos benefícios e ônus, neste caso, tem um duplo sentido: promover o bem-estar-geral (ao se reduzirem as mazelas sociais) e reduzir os rancores oriundos da desigualdade. Filiam-se nessa linha Wasserstrom e Dworkin. Este último sustenta que o objetivo imediato das ações afirmativas é o de aumentar o número de membros de certas raças em certas posições e profissões. Desta forma, à medida que negros, mulheres e outras minorias forem ocupando também essas posições, consequentemente se reduzirão na mesma proporção os sentimentos de frustração e injustiça (GOMES, 2001).

A incorporação das ações afirmativas pelo Estado encontra também um importante substrato filosófico na obra de Rawls. Em sua obra Uma Teoria da Justiça, descreve princípios que possam ser usados para definir uma situação socialmente justa, já que "a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento." (RAWLS, 2000, p. 03). Em sua filosofia político-liberal, estabelece como princípios: a liberdade e a eqüidade (subdivide em igualdade e diferença). Kervegan (1989) refere que, para Rawls, a liberdade é absolutamente primeira em relação à eqüidade, e a igualdade é absolutamente primeira em relação a diferença. Assim, "não é justo favorecer a redução das desigualdades em detrimento da igualdade de oportunidades, o que seria o caso, por exemplo, se determinadas posições estivessem reservadas ou fossem atribuídas como prioridade a grupos ou indivíduos considerados favorecidos" (KERVEGAN, 1989, p. 36).

Contudo, se os grupos fossem considerados desfavorecidos, deveria se garantir ao indivíduo as suas liberdades fundamentais e manter as possibilidades sociais abertas para si e para os outros (princípio de igualdade) e favorecer a distribuição dos bens primeiros (direitos, liberdades, patrimônio, rendimento, etc) aos mais desfavorecidos (princípio da diferença).

Desta forma, Rawls acredita que, no tocante à educação, a discriminação se traduz na outorga, explícita ou dissimulada, de preferência no acesso à educação de qualidade a um grupo social em detrimento de outro grupo social. Conseqüentemente, reduzem-se as perspectivas de bem-estar e de sucesso daqueles que dela são vítimas. Enfim, "para a teoria da justiça compensatória, a melhor forma de correção e de reparação desse estado de coisas consistiria em aumentar (via ações afirmativas) as chances dessas vítimas históricas de obterem os empregos e as posições de prestígio que elas naturalmente obteriam caso não houvesse discriminação" (Rawls apud GOMES, 2001, p. 63-64).


5.A AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL: PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL

O preâmbulo da Constituição Federal brasileira afirma que o Estado democrático é destinado a "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". Sem entrar no mérito da sua eventual força normativa, o texto preambular constitui-se num forte conteúdo determinador da interpretação constitucional. Ao receber a função de assegurar um rol de direitos fundamentais, a doutrina moderna afirma que o Estado já não pode mais assumir a mesma postura neutra (edificada pela cartilha liberal dos séculos XVII e XVIII) presente nas Cartas anteriores.

É com esse espírito que a igualdade elencada no art. 5º caput da CF ganha uma novo vigor, ultrapassando a barreira meramente formal e adquirindo um caráter substancial, ligado à idéia de igualdade de oportunidades. A ingerência do Estado torna-se de suma relevância nesse processo porque a aplicação estática do princípio da igualdade, à luz da ótica liberal oitocentista, não conseguiu reverter na prática as desigualdades oriundas dos processos históricos. Aliás, Dray apud GOMES (2003) refere que o pressuposto liberal de que os indivíduos devem ser abstratamente tratados como iguais não passaria de uma mera ficção:

a concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições (Dray apud GOMES, 2003, p. 19).

Na mesma linha argumentativa, Canotilho (1998) afirma que o postulado substancial da igualdade é um dos fatores fundamentais para a concretização da democracia econômica e social; logo, a sua aplicação torna-se fundamental. "Não se pode interpretar o princípio da igualdade como um princípio estático, indiferente à eliminação das desigualdades, e o princípio da democracia económica como um princípio dinâmico, impositivo de uma igualdade material (...) A igualdade material postulada pelo princípio da igualdade é também a igualdade real veiculada pelo princípio da democracia económica e social" (CANOTILHO, 1998, p. 332).

Além disso, o artigo 3º da Constituição Federal define que constituem objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Rocha apud VILAS-BÔAS (2003) refere que este dispositivo declara, diretamente, que o Brasil não é livre, nem justo e nem solidário, pois se assim o fosse, "não haveria necessidade de serem considerados como objetivos fundamentais. Dessa forma, contém uma afirmação de quais são os objetivos fundamentais, e ainda, a determinação de se construir uma nova sociedade brasileira com base nas premissas traçadas no texto constitucional" (p.54).

Ao objetivar a eliminação dos diversos tipos de discriminação, a carta constitucional dá um ensejo para que as ações afirmativas façam parte do arcabouço jurídico pátrio. Nesse sentido, o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou

Posso assegurar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam, em si, mudança de óptica, ao denotar ‘ação’. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e encontramos, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de ter-se como virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa. E é necessário que essa seja a posição adotada pelos nossos legisladores. Qual é o fim almejado por esses dois artigos da Carta Federal, senão a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza, que é uma das formas de discriminação, visando-se, acima de tudo, ao bem de todos, e não apenas daqueles nascidos em berços de ouro? (MELLO, 2001)

Não se pode olvidar também que a noção de ação afirmativa está diretamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, elencado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. A igualdade interpretada de modo substancial, como um mecanismo de equiparação e redução de desigualdades, tem intrinsecamente uma busca do bem-estar dignificador do homem. Nesse sentido, ao referir-se às características do estado social de direito, Taborda (1998) lembra que "a tutela fundamental não é mais a propriedade privada e sim a dignidade da pessoa humana como centro invariável da esfera da autonomia individual que se procura garantir por meio da limitação jurídica do Estado. Exige-se agora do Estado uma intervenção positiva, para criar as condições de uma real vivência e desenvolvimento da liberdade e personalidade individuais" (p. 257).

Ainda na esfera constitucional, há ainda uma série de outros dispositivos que podem ser considerados de cunho afirmativo. Dentre eles, vale a pena citar:

- Art. 7º inciso XXX, que se refere à proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

- Art. 23, inciso X, que outorga às unidades federadas a responsabilidade combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.

- Art. 37, inciso VIII, que dispõe que a lei reservará a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão).

- Art. 145, parágrafo primeiro, que, no tocante à ordem tributária, afirma que os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.

- Art. 170, que dispõe sobre os princípios a que se erige a ordem econômica do Brasil, dentre eles a redução das desigualdades regionais e sociais (inciso VII) e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (inciso IX).

- Art. 179, que dispõe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

- Art. 227, inciso II, que trata da criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

No âmbito infra-constitucional, há uma grande quantidade de leis ordinárias que podem ser enquadradas no rol das ações afirmativas. A primeira surgida no País foi a Lei no 5.465/68, que prescreveu a reserva de 50% de vagas dos estabelecimentos de Ensino Médio Agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária a candidatos agricultores ou filhos destes. Contudo, ela não obteve o êxito esperado (sendo posteriormente abolida do ordenamento) pois, na prática, a sua utilização beneficiou apenas uma pequena elite aristocrata rural – de tal forma que a lei recebeu a alcunha de Lei do Boi.

Destacam-se também as leis 9.504/97 (que possibilitou a reserva de uma cota de no mínimo 30% para mulheres nas candidaturas partidárias), 9.029/95 ( que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho), 8.112/90 (que prescreve, no seu art. 5º, parágrafo 2º, a reserva de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da União), 10.741/2003 (que institui diversas garantias para a classe dos idosos) e o Decreto-Lei 5.452/43 (que estabelece, no art. 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres).

5.1 A política de cotas no Brasil

Durante o período colonial, ao contingente populacional brasileiro foi acrescida a população negra (oriunda principalmente da África) que, em decorrência da escravidão, tornou-se uma alternativa viável para a substituir a mão-de-obra indígena. Desde então, o negro, com seus hábitos, costumes e cor, passa a ser um elemento conspícuo na formação da identidade nacional.

Nessa perspectiva, pode-se inferir que esse lapso de mais de três séculos de escravidão influenciou na condição econômica e social da população negra e parda. Para Skidmore (1998) a relativa mobilidade social dos brasileiros não-brancos começou a declinar após o nascimento da República. Isso demonstra que a discriminação racial não desapareceu nos séculos posteriores à abolição da escravatura, na medida em que "o desaparecimento de leis e regulamentos formais levou simplesmente a que as preferências fossem exercidas de maneira mais sutil, como convém ao variado espectro das categorias raciais socialmente reconhecidas" (SKIDMORE, 1998, p.108).

Esse modo "sutil" corresponde às barreiras artificiais e invisíveis (chamadas, pelos norte-americanos, de glass ceiling) que até hoje obstaculizam o acesso de negros e pardos qualificados a posições de poder e prestígio. Para Skidmore (1998), diferentemente do que acontecia nos Estados Unidos, através das leis Jim Crow (que mantinham as raças fisicamente separadas em lugares públicos), as barreiras de cor no Brasil não eram legais, escritas, embora pudessem ser facilmente observadas, por exemplo, "no Ministério das Relações exteriores, no corpo dos oficiais da Marinha (o Exército era ligeiramente melhor) e nos altos escalões da Igreja Católica" (SKIDMORE, 1998, p. 113).

A análise de dados estatísticos (principalmente do IBGE) comprova a existência de uma profunda desigualdade étnica no país. O Brasil é o segundo maior Estado com população negra do mundo (ficando atrás apenas da Nigéria). Dos quase 170 milhões de habitantes, a população preta e parda corresponde a um percentual de aproximadamente 46%. Ao se verificar o rendimento médio mensal, na população branca é de 4,5 salários mínimos, enquanto que na população preta e parda esse índice cai para 2,2 (menos da metade). O índice de analfabetismo entre pessoas com mais de 15 anos chega a 7.7% da população branca, enquanto na população negra a cifra é de 18.7%, e na parda, 18.1%.

Além disso, dentre o 1% mais rico em relação ao total de pessoas, a participação de brancos é de 87,2%, enquanto que os negros e pardos somam a irrisória porcentagem de 12,8%. Dentre os 10% mais pobres, a situação inverte-se: 67,3% de negros e pardos e 32,7% de brancos. Esse desnível de renda provavelmente é um dos principais fatores que influenciam nas estatísticas da educação. A média de anos de estudo da população branca é de 8 anos, enquanto que na população preta é de 5,7 e na parda 5,6. Dentre os estudantes brancos da faixa etária de 20 a 24 anos de idade, 53,6% deles estão cursando a graduação e 0,8% cursam Mestrado ou Doutorado. Para os jovens negros e pardos, essa porcentagem cai para 15,8% na graduação, enquanto que no Mestrado ou Doutorado o índice é oito vezes menor: 0,1%.

Em virtude desse significativo desnível nos indicadores da educação, surgiu a proposta de implementação de cotas raciais em vestibulares, já adotada em algumas instituições, como a Uenf e a UERJ (e a partir deste ano, UnB, Unicamp, UNEB, UFMT e UFBA). A "política de cotas", como ficou conhecida no Brasil, abrange não apenas a reserva de vagas para grupos étnicos mas também para estudantes oriundos de escolas públicas.

Esta medida foi certamente a mais ousada tentativa de implementação da affirmative action no Brasil. Geradora de intensas discussões por todo o País, finalmente ganhou a aprovação da jurisprudência pátria, numa evidente demonstração da viabilidade constitucional das ações afirmativas. Em mandado de segurança impetrado contra as leis estaduais 3524/00 e 3708/01 do Rio de Janeiro, que instituem o sistema de cota mínima para a população negra e parda e para estudantes oriundos da rede pública estadual, o Desembargador Cláudio de Mello Tavares definiu que

A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdades. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe buscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história pelas mãos calejadas dos discriminados (...) O único modo de deter e começar a reverter o processo crônico de desvantagem dos negros no Brasil é privilegiá-la conscientemente, sobretudo naqueles espaços em que essa ação compensatória tenha maior poder de multiplicação. Eis porque a implementação de um sistema de cotas se torna inevitável. Na medida em que não poderemos reverter inteiramente esta questão a curto prazo, podemos pelos menos dar o primeiro passo, qual seja, incluir negros na reduzida elite pensante do país. O descortinamento de tal quadro de responsabilidade social, de postura afirmativa de caráter nitidamente emergencial, na busca de uma igualdade escolar entre brancos e negros, esses parcela significativa de elementos abaixo da linha considerada como de pobreza, não permite que se vislumbre qualquer erva de inconstitucionalidade nas leis 3.524/00 e 3.708/01, inclusive no campo do princípio da proporcionalidade, já que traduzem tão somente o cumprimento de objetivos fundamentais da República (Agr. Inst. nº 2003.002.04409 da 11ª Câm. Cível do TJ/RJ, 16-10-2003, rel. Des. Cláudio de Mello Tavares).

Sem adentrar, todavia, na questão da efetividade e justiça da política de cotas, conteúdo que os autores deixam para um artigo posterior, faz-se necessário lembrar que tal sistema não é a única alternativa para o acesso de minorias em universidades. Este ano, a Unicamp aprovou um programa de ação afirmativa que, ao invés de estabelecer um número de vagas, fornece uma pontuação extra para os alunos oriundos de escolas públicas e também para aqueles que se intitularem oriundos de grupos étnicos minoritários (negros, pardos e indígenas). Esse sistema é bastante semelhante ao adotado por várias universidades norte-americanas.


6. CONCLUSÃO

Contemporaneamente, permanece imprescindível a discussão a respeito da estrutura democrática. Pensar em democracia implica abstrair contextos sociais a tal ponto em que todos possuam a disponibilidade de participar. É percebida, portanto, como o poder do povo, ou seja, o poder de pobres, ricos, independentemente de raça, cor, religião, sexo, opção sexual.

Nesse sentido, a Constituição Federal define como preceitos fundamentais a dignidade humana (art. 1º, III), o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput). Esses direitos são denominados "fundamentais" por serem imprescritíveis, imprescindíveis e inalienáveis a toda pessoa; e quando violados, ferem a essência, o fundamento, do ser humano, terminando por descaracterizá-los. Logo, essa disponibilidade formal não pode estar atônita à realidade, mas sim, deve corresponder a uma garantida ação material que possibilite o acesso de tais direitos à toda a população.

Essa ação material, ou simplesmente afirmativa, tem o ímpeto de combater as desigualdades, mediante à valorização social, econômica, política e/ou cultural dos grupos historicamente marginalizados. Como instrumento jurídico, sem dúvida o mais ousado no combate à desigualdade, tem um papel fundamental na proposta democrática, assegurando, possibilitando e resgatando a pluralidade social. Dessa forma, a análise sistemática da Constituição Federal (especialmente do preâmbulo constitucional e dos arts. 1º, 3º e 5º caput) acorda o ingresso da ação positiva lato sensu no arcabouço jurídico brasileiro.

Por outro lado, isso não significa que toda política, por simplesmente ser tida como afirmativa, será necessariamente constitucional. Abusos e violações de toda ordem podem ser cometidas através do uso arbitrário e indistinto desse mecanismo inovador. Cabe ao bom senso do legislador, dos magistrados e principalmente da sociedade a árdua tarefa de utilizar a ação afirmativa de modo ponderado e proporcional para que ela possa atingir sua principal meta: reduzir as desigualdades e a discriminação, e não propagá-las.


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TABORDA, Maren Guimarães. O princípio da Igualdade em perspectiva histórica. Revista de Direito Administrativo. São Paulo, 211, p. 256-262, jan/mar, 1998.

VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações Afirmativas e o Princípio da Igualdade. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.


Autores

  • Daniel Lena Marchiori Neto

    Daniel Lena Marchiori Neto

    Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo realizado estádio de doutoramento junto ao Colorado College, EUA. Professor de Teoria Geral do Estado e Introdução ao Direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense.

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  • Vanessa Wendt Kroth

    Vanessa Wendt Kroth

    Graduada em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Analista-Tributária da Receita Federal.

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Informações sobre o texto

Artigo científico desenvolvido no projeto de pesquisa "Política de cotas raciais em universidades públicas à luz da Teoria da Justiça de John Rawls", financiado pelo PIBIC/CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Seitenfus.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCHIORI NETO, Daniel Lena; KROTH, Vanessa Wendt. A ação afirmativa e sua perspectiva de inclusão no arcabouço jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 598, 26 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6356. Acesso em: 18 abr. 2024.