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Alice e o Direito sem o império do indivíduo

Alice e o Direito sem o império do indivíduo

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O problema de Alice e do direito, finalmente, é um desafio comum: é a possibilidade de poder alterar a ordem das coisas, interferindo em seu próprio destino e, conseqüentemente, na extensão dessa interferência.

INTRODUÇÃO

"A autopoiesis é igualmente condição e resultado da evolução, é assim a forma da evolução da evolução".1

"As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender".2

"O que é direito, sempre e somente pode ser decidido pelo próprio sistema jurídico".3

"Realidad es solamente aquello que es observado". NL.

Há uma transformação em curso na ciência, no pensamento, enfim, em amplos setores da sociedade. As modificações geram em muitos uma mal estar, levando-os a reagir às mudanças que se processam, e a um estranhamento generalizado que busca resistir na defesa do tradicional.

No sistema jurídico não é diferente, já que é perceptível uma certa resistência a tudo aquilo que se apresenta com força de "novo". Alguns dos conceitos que o formam, estão se transformando no ritmo destas modificações, outros não. Mas, não se pode compactuar com esse discurso que resiste as mudanças no sistema jurídico. O direito também está ao abrigo dos efeitos do tempo, isto é, de tudo aquilo que acompanha o movimento histórico e suas alterações.

Muitos são os que não aceitam o fato de que os tradicionais paradigmas estão vivendo uma crise, e essa crise significa a necessidade de se abandonar explicações já consagradas para buscar uma outra forma de compreender o espaço social em todas as suas manifestações, isto é, econômicas, políticas, jurídicas e ideológicas.

Muitos limites precisam ser ampliados para se permitir um novo espaço a uma nova forma de observação, superando as velhas verdades, os velhos e tradicionais papéis.

Como já se afirmou, esse é o caso do direito, ainda preservado por muitos e embolorado numa lógica que remonta ao passado, e que olha, através dos olhos daqueles que não entendem o novo, assustado para um novo século que teima em derrubar o que muitos consideravam como um saber "quase sagrado".

Todavia, aos poucos, esse saber tradicional que ainda impera sobre as universidades, como, igualmente, sobre o sistema jurídico como um todo, está sendo provocado, irritado, desafiado por "novos" significados, novas compreensões que buscam uma nova forma de construir o pensamento, e em especial, a análise jurídica.

O objetivo deste texto é fazer uma aproximação entre a obra "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll e a Teoria dos Sistemas, conforme a análise realizada por Niklas Luhmann, a partir de alguns conceitos que são importantes para se compreender essa teoria e os seus efeitos sobre o direito.

A comparação entre essas duas obras, em um primeiro momento tão desiguais, se justifica na medida em que, como na obra de Carroll, os trabalhos de Luhmann significam uma importante ruptura com aquela forma de pensar o direito como quer a tradição a partir das idéias de Kant, ou mesmo, a partir das de Kelsen.

Da mesma forma que o personagem de Alice que decidiu correr atrás do Coelho Branco e, assim, mergulhou com ele na abertura da grande toca que conduzia ao "País das Maravilhas", rompendo com a linguagem convencional e, dessa maneira, construindo uma crítica aos que se agarravam apenas naquilo que parecia ser a única compreensão do mundo real, Niklas Luhmann, igualmente, nos convida a imergir sobre uma nova linguagem jurídica onde os dogmas são confrontados, e onde a própria compreensão que explica precisa ser reanimada para aceitar o sistema jurídico como diferente, isto é, enquanto um sistema autopoiético.O direito é um discurso muito mais rico, surpreendente, dinâmico e não pode continuar sendo amarrado a uma visão que tem dificuldades em explicar o seu significado. Apresentado a partir de dogmas tradicionais que estão a sofrer com os efeitos da crise da pós-modernidade, o direito como está apresentado, tem muitas dificuldades na sua capacidade em compreender o que não está no direito, bem como legitimar aquilo que está no direito; de ser compreendido e compreender, já que não consegue mais nessa perspectiva tradicional estabelecer uma comunicação sem ruído.

O direito não é um campo estanque, imobilizado pela armadura conceitual que nos acostumamos a vestir sem questionar. O direito é um sistema parcial, vivo, auto-reflexivo e auto-reprodutivo, e se deve entendê-lo sob o prisma de operações que acontecem faticamente, isto é, enquanto comunicações dele com ele mesmo, e com outros sistemas parciais que formam o espaço social, bem como com o ambiente que o envolve.

A teoria dos sistemas supera muitas das dificuldades que ao longo das décadas nos acostumamos a conviver sem enfrentar. Aceitamos algumas máximas que, hodiernamente, não se consegue mais justificar. E o resultado dessa manutenção da tradição é o desenrolar de uma crise de identidade que impera na atual dogmática jurídica.

É essa crise que afasta o discurso jurídico de amplos setores da sociedade, mas, igualmente, é através desse conceito de crise, posto nessa época de pós-modernidade, que está criada a necessidade de se buscar novas formas de compreensão para aquilo que seja o direito e para aquilo que venha a ser o seu papel enquanto direito, bem como enquanto instituto pertencente ao sistema social.

Da mesma forma em Alice, também se construía uma crítica velada ao mundo tradicional e autoritário de Oxford, bem como ao pensamento vitoriano, predominante naquele momento na Inglaterra e que permitiu a uma sociedade acreditar-se superior em relação ao restante do mundo, mas que no ocaso do século XIX foi teimosamente contrariada pelos eventos históricos que aconteciam ao longo do império e que indicavam o início do fim, apesar da alienação por parte dos súditos da coroa britânica.

Alice é o resultado do momento austero, e ao mesmo tempo vitorioso que a sociedade anglo-saxônica britânica experimentava. A tensão entre essa austeridade e a arrogância criava um ambiente sufocante, a tal ponto, que parecia submergir qualquer originalidade destoante do tradicional. Alice é uma linguagem que choca porque não se enquadra no modelo cultural vigente.

O problema de Alice e do direito, finalmente, é um desafio comum: é a possibilidade de poder alterar a ordem das coisas, interferindo em seu próprio destino e, conseqüentemente, na extensão dessa interferência.

Se Alice precisa se perder para, então, se encontrar, a Teoria dos sistemas, por seu turno, precisa libertar o sistema jurídico daquela forma de pensar que faz do domínio do indivíduo a essência de toda compreensão do mundo jurídico. O desafio é mudar esse paradigma, e dessa forma, não deixar o direito ser visto como uma mera observação de um sujeito privilegiado, quase que divinizado em sua capacidade de interferir no mundo do ser, ao mesmo tempo em que delineia o mundo do dever-ser. O sistema jurídico não pode mais continuar a ser tratado como o resultado da percepção e observação dos indivíduos.

O direito é compreendido como um sistema autopoiético, auto-referencial, e tem em si mesmo a capacidade de determinar a sua própria evolução a partir da interação dos elementos que o formam, e que são produzidos e maturados por essa interação circular e recursiva que lhe dá existência. Para que isso possa acontecer, é necessário que o direito enquanto sistema venha a ser compreendido como um sistema fechado, enclausurado, pois somente assim será possível ao próprio sistema do direito definir-se, escolhendo a sua programação, seleção e evolução.4

Não é um mundo de faz de contas como em Alice, que critica uma razão que não traz mais em si a capacidade de justificar os significados, mas no caso de Luhmann uma teoria dos sistemas que sem prescindir do indivíduo5, não aceita ficar condicionado/entregue a esse como única justificativa para a sua razão existencial.

Tal como na história de Alice, aqui não se trata de constatar o fato de que o direito é dependente frente a irrevogabilidade e a inevitabilidade do ambiente, do sujeito, do olhar tradicional, ao contrário, é através dos conceitos de sistema, clausura, redução da complexidade e diferença, para citar apenas alguns, que o direito tem a possibilidade, como pretende Luhmann, de fazer-se independente e livre da interferência dos inputs vindos do ambiente e que sempre o reduziram como uma mera manifestação de um observador-criador.

Luhmann nos conduz, portanto, a uma caminhada onde ao direito se abrem inúmeras possibilidades. O direito é um sistema que por si só ocupa um espaço e onde não quer ver a interferência do sujeito, da sociedade, mas sim, quer ver a interferência do direito mesmo, para que dessa forma o sistema jurídico possa ser revigorado, entendido como um conceito mais elástico na medida em que busca estabelecer uma compreensão com o ambiente sem que isso signifique fazê-lo ser uma mera observação de um indivíduo em particular, ou como afirma Luhmann, ser o resultado de uma observação de 1º grau.6

O que esse autor nos oferece é a possibilidade de se antever o sistema jurídico como auto-reflexivo, atuante, capaz de romper com a visão de um direito fadado a uma existência meramente contemplativa, entregue aos desígnios dos indivíduos, ou, quando muito, justificado pela vontade obscura da visão do direito jusnatural, tão próximo da providência divina.

Como Alice, uma das soluções possíveis é despertar. Despertar para a sua capacidade interna e com condições de se autodeterminar. O mundo de situações extraordinárias prossegue em sua lógica; o direito precisa lutar para se afastar de seu papel tradicionalmente manifesto, isto é, da lógica que o reduz, pois "Agora, os perigos surgem em grande parte a partir do próprio direito. Por isso as trincheiras contra o perigo não podem mais ser erigidas no terreno da oposição entre o legal e o ilegal; elas atravessam o próprio direito como regulamentação e distribuição dos riscos...".7

Destarte, nessa aproximação que se faz ao tema da Teoria dos Sistemas e mantendo a comparação com a obra de Lewis Carroll, vamos analisar o capítulo 2, do livro "El Derecho de La Sociedad", de Luhmann, destacando os conceitos que fundamentam essa verdadeira revolução/transformação do sistema jurídico, e, em assim o fazendo, buscar romper com aquelas certezas históricas da tradicional dogmática jurídica, a qual quer que as cartas do baralho tornem a ser tão somente cartas do baralho, como queriam, igualmente, os muitos críticos de Alice.


I. UMA APROXIMAÇÃO AO CONCEITO DE SISTEMA – O DIREITO SEM O IMPÉRIO DO SUJEITO: O Rei e a Rainha de Copas.

"- Pode me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?

- Isso depende do lugar para onde você deseja ir.

- O lugar para onde desejo ir? Francamente, para mim tanto faz.

- Nesse caso, tanto faz o caminho que você seguirá".8

"Por ‘sistema’ no entendemos nosotros, como lo hacen muchos teóricos Del derecho, un entramado congruente de reglas, sino un entramado de operaciones fácticas que, como operaciones sociales, deben ser comunicaciones, independientemente de lo que estas comunicaciones afirmen respecto al derecho. Esto significa entonces que el punto de partida no lo buscamos en la norma ni en una tipología de los valores, sino en la distinción entre sistema y entorno". NIKLAS LUHMANN

Alice não tem idéia para onde está indo. Em um primeiro momento, ela segue o coelho branco, preso a um compromisso em que somente ele conhece a sua razão de ser. Depois, abandonada a sua própria sorte num universo que teima em desafiar a sua lógica, se vê obrigada a aceitar o novo, o diferente desse mundo, para finalmente, descobrir que até mesmo ali, há um rei e uma rainha de copas que exercem, de forma caricatural, aquele controle enfadonho da razão autoritária que a fizeram correr atrás de um coelho com um relógio de bolso.

Nesse caminho em que ela mergulha num misto de curiosidade, medo e desejo de compreender o inusitado, Alice conhece vários e estranhos personagens que são caricaturas de personalidades da história da Grã-Bretanha. Por exemplo, quando ela se vê frente ao pote de geléia de laranja, Carroll está falando do símbolo do protestantismo, Guilherme de Orange, tão importante para a ascensão da Inglaterra. Da mesma forma, quando descreve a batalha entre os cavaleiros Branco e Vermelho, está se referindo ao embate famoso de Thomas Huxley e o Bispo Samuel Newman.

O que está posto no fundo em Alice, dessa forma, não é apenas uma inocente história, porque de inocente ela não tem nada. Através de uma linguagem figurada Carroll rompe com muitos valores afirmados de sua sociedade, mas ao mesmo tempo, ao romper com esses valores através do uso dessa linguagem repleta de metáforas, quer que se compreenda que a Inglaterra vista de forma rigorosa e racional precisa perceber que há algo mais além da imagem que se reflete no espelho. A sociedade não é aquela afirmação mecânica de valores já determinados e inexoravelmente inquestionáveis.

Já o sistema, nó górdio do campo teórico de Luhmann, é observado como um conjunto de operações fáticas que, enquanto operações sociais são comunicações, operações comunicativas.

Distintamente do que faz a dogmática jurídica, Luhmann não pretende compreender o sistema do direito a partir de regras ou normas previamente postas que definem o que é direito ou não, mas essa compreensão está determinada por aquilo que se apresenta como a diferenciação entre o sistema do direito e o ambiente.

A diferenciação do sistema é o resultado da sua própria formação enquanto sistema auto-reflexivo e recursivo que no seu próprio interior reconhece e elabora a diferença entre ele e o ambiente.

Reconhecer a diferença como fundamento à auto-reflexão é admitir que é o direito, e não o ambiente que define o que é conforme ao direito/e o que não é conforme ao direito. Quanto mais elaborada for a definição dessa diferenciação com o ambiente, quanto mais auto-reflexivo o sistema se construir, maior será a sua capacidade de observação, isto é, de redução da complexidade, e nesse sentido, maior será a sua capacidade de compreender-se bem como de compreender os outros sistemas parciais e o próprio ambiente.

Se em Alice as descobertas a empurram para buscar a fuga do mundo que encontra, em Luhmann, ao contrário, se segue a diferença como um fio condutor que permite anotar ao direito uma capacidade de auto-organização, de compreender-se a partir de determinados elementos que estabelecem relações, tanto com o próprio sistema, quanto com o ambiente.

Essas relações do sistema são constituídas, principalmente entre si, mas não raro dirigem-se, igualmente, aos outros elementos que estão alocados nos outros sistemas parciais como naqueles presentes no ambiente.

O direito é, assim, um dos sistemas parciais presentes no sistema social global e tem o seu limite estabelecido por esse sistema que o engloba, mas que não o determina/domina. Autopoiético, a Teoria dos sistemas não prescinde do ambiente, ou do indivíduo, mas não admite ser o resultado desses.

Da mesma forma que Carroll enfrenta os julgamentos dos que não entendem as suas metáforas críticas, Luhmann é acusado de afastar do direito e da sociedade a figura do indivíduo, criando uma teoria onde a sociedade está abandonada ou despojada da presença supostamente fundamental desse. Tal crítica não tem nada de verdadeiro.

Luhmann compreende que na diferenciação sistema/ambiente, o sistema, e não o indivíduo, empreende o desafio em seguir com a evolução, isto é, ao diferenciar-se do ambiente e não estando mais determinado por ele o sistema pode decidir aquilo que lhe é ou não importante, e dessa forma passa a ter condições de agir reduzindo a complexidade dos dados/fatos, podendo oferecer uma melhor compreensão dos significados que importam para ele (sistema) e, também, para o ambiente ou mesmo para os outros sistemas parciais. E, em agindo dessa forma comunicar-se com o ambiente, e inclusive com o indivíduo.

Assim, esses elementos que dão sustentação à capacidade auto-referencial do sistema permitem-lhe consolidar o conceito de diferença, pois é nesse conceito que se funda uma das grandes novidades trazidas pela teoria de Luhmann.

A diferença é móvel que permite aos sistemas justificar a sua importante distinção com o ambiente, e é através do reconhecimento dessa distinção que se pode admitir que o sistema é autopoiético.

Compreendido a partir de sua capacidade comunicacional calcada em seus elementos internos, o sistema parcial do direito se auto-organiza, estabelecendo, fundamentalmente, uma operação/comunicação interna entre aquilo que o forma, e sempre que necessário, com aqueles elementos que estão além de seu próprio espaço sistêmico, mas que possibilitam no caso do sistema abrir-se para o ambiente e, dessa maneira, dinamizar o seu próprio movimento. Dinamizar, mas não determinar.

Dessa maneira, o sistema jurídico, a partir dessa capacidade autopoiética, estabelece as condições para se tornar um sistema de grande complexidade, e que "contém em si, as condições de sua própria mobilidade".9

Auto-referente, o sistema escolhe aquilo que é importante para a sua própria evolução, para a sua própria existência, orientando os elementos que lhe pertencem para a execução de todas aquelas operações fáticas.

E, na produção e execução dessas operações fáticas, o sistema encontra a potencialidade para impingir-se em uma própria dinâmica que auto-reprodutiva, permite buscar a evolução nos movimentos de seleção/codificação que faz de tudo aquilo que estabelece alguma comunicação com ele.

Para ser possível preservar a evolução, o sistema parcial do direito ainda que devendo manter-se comumente enclausurado, deve optar abrir-se ao que lhe irrita para depois, voltar a se enclausurar. Na abertura, o sistema pode encontrar elementos que ajudam a manter a dinâmica interna, e codificando-os, processá-los através do movimento de suas operações fáticas.

Diferente de Alice, em que a rainha é uma força de ordem que gera a desordem no país das maravilhas, e que não admite ser contestada, sendo por assim dizer a constatação da presença de certo ruído do discurso racional no universo imaginário de Carroll, a diferença é uma rainha positiva em Luhmann, é origem e fonte para o auto (re) conhecimento do sistema.

Para Alice, a rainha gera o desejo de retornar ao ambiente monótono, mas seguro da razão, e não por acaso ela consegue despertar depois de fugir da voz estridente daquela. Na Teoria dos sistemas, a diferença, ao contrário, desperta uma certeza: não é a norma que funda o direito, dizendo o que é ou não o direito, mas, é a compreensão de que o sistema jurídico por ser diferente do ambiente traz em si mesmo a reflexão para decidir o que é ou não conforme ao direito.

Com o conceito de diferença se pode compreender a necessidade de se reduzir a complexidade da relação entre o sistema/ambiente, que ocorre na medida em que quebra a velha ordem da noção de input/output. O reconhecimento da diferença é reflexão que o sistema faz de si mesmo em contraste com tudo aquilo que não lhe pertence, mas que ao mesmo tempo mantém com ele uma comunicação e não dominação, o que na teoria de Luhmann é reconhecida com o conceito de operação fática.

As operações fáticas são, assim, comunicações do resultado do reconhecimento das diferenças que permitem o entendimento do processo entre o sistema e o ambiente. Da mesma forma elas são o entendimento para os acoplamentos estruturais entre os subsistemas, pois nesses se obedecem as mesmas condições da comunicação entre o ambiente/sistema.

Importa destacar que é através do conceito de operações fáticas que Luhmann pode romper com o império da estrutura, pois como ele afirma, "las estructuras, como enlazamientos altamente selectivos, son necesarias para que se lleven a cabo las operaciones, mas el derecho no adquiere realidad por alguna idealidad estable, sino finalmente por aquellas operaciones que producen y reproducen el sentido especifico del derecho".10

Assim, Luhmann rompe com a tradição estruturalista ao se permitir colocar o conceito de estrutura em um segundo plano, mas não querendo dizer com isso que prescinde desse conceito. Não pretende, diferentemente do que acontece no país das maravilhas visitado por Alice em que o coelho branco está preso ao tempo que escoa, ou que tem na rainha uma voz estridente e que ameaça o próprio mundo que ela conheceu, permitir que a velha dogmática jurídica e estruturalista determine o sistema do direito de forma tão linear, vindo a subverter essa nova linguagem jurídica representada pela Teoria dos sistemas.

Como ele afirma, "Las comunicaciones establecen condiciones de enlace para operaciones subsiguientes y con ello confirman o modifican, a la vez, las estructuras dadas. De esta manera los sistemas autopoiéticos son siempre sistemas históricos, que parten del estado inmediatamente anterior que ellos mismos han creado. Lo que hacen por primera y por última vez. Las comunicaciones jurídicas tienen, siempre, como operaciones del sistema del derecho una doble función: ser factores de producción y ser conservadores de las estructuras".11

Dessa maneira é o reconhecimento da diferença que permite admitir-se a existência de uma relação entre os sistemas e desses com o ambiente.

O abandono do principado do conceito de estrutura se deve ao fato de que esse conceito dá uma idéia de imutabilidade e de estabilidade que reduzem o espaço do sistema jurídico, retirando-lhe a carga potencial de autoreprodução.

Isso ocorre porque com tais conceitos Luhmann pode construir uma certeza de dinâmica e mobilidade ao direito autopoiético, percebendo-o a partir dele mesmo, e de sua capacidade em realizar a autoreflexão desse intenso processo na busca de uma melhor seleção para a sua evolução, bem como evoluindo, permitir ao sistema reduzir tanto a complexidade do seu interior como aquela do ambiente.

Não cabe ao sujeito, então, compreender o direito para que o sistema jurídico alcance a existência. O sistema jurídico se compreende na sua própria imagem, importando mais a sua observação sobre aquele que o observa do que a desse sobre ele. Logo, não é o ambiente que diz o que é o direito, mas é o direito que diz o que é o direito. É o sistema, através dos conceitos de diferença e operação que sem precisar ordenar "cortar as cabeças", realiza a seleção daquilo que lhe é ou não relevante. E, enquanto organismo autoreflexivo o sistema tem capacidade de memória, quer dizer, "o que hoje se perde, amanhã se pode achar".

Em Alice o Rei é condescendente, subjugado pela Rainha autoritária. Em Luhmann as operações fáticas12, tanto quanto o conceito de diferença exerce um papel ativo, estabelecendo o procedimento pelo qual se dá a comunicação entre os sistemas e o ambiente.


II. A COMPLEXIDADE E O SISTEMA: O Leão e o Unicórnio lutam pela coroa

"La formación de un sistema supone reducir la complejidad para aumentar el potencial de selectividad. Y, de hecho, los limites de un sistema son los limites del ámbito en el que el sistema puede realizar sus elecciones y cumplir sus selecciones".13

"Com o direito pode fazer-se muito, mas não se pode fazer tudo".14

"O leão e o unicórnio pela real coroa pelejaram: deram um belo espetáculo para todos que assistiram. Até que cansados, a toque de tambor os expulsaram".15

O sistema e a complexidade travam uma intensa relação. O primeiro, busca ser um mediador da segunda, numa tentativa de reduzi-la, como que buscando compreender as relações entre o ambiente e o próprio sistema.

A existência dos sistemas parciais busca transformar e diminuir a força da complexidade, e sendo autopoiéticos, têm a capacidade reflexiva necessária para estabilizar as estruturas mesmas que abrandam a complexidade.

A complexidade está reconhecida na certeza de que o ambiente e os sistemas mantêm uma relação a partir de sua diferenciação, e está na diferença a capacidade de redução dessa complexidade. Assim, através de todas as operações fáticas que se realizam, se permite ao sistema selecionar e adaptar a sua evolução, e essa é uma expressiva novidade apresentada por Luhmann à Teoria dos Sistemas.

O ambiente é, dessa forma, um espaço intenso e conjuntural de emergência de informações para os sistemas. Essas informações são possibilidades múltiplas que acarretam intensa irritabilidade aos sistemas tradicionalmente fechados e que assim necessitam abrirem-se através de suas operações fáticas para selecioná-las ou não.

Como os sistemas são diferentes do ambiente, a seleção daquelas informações deve ser operacionalizada através de um agir do sistema que as codifica16 ao mesmo tempo em que busca diminuir a complexidade que carregam por não pertencerem ao próprio sistema.

Igualmente se busca a redução da complexidade quando ocorrem os acoplamentos estruturais entre dois ou mais sistemas parciais, e tais acoplamentos não devem ser entendidos como fusão, mas sim como realização de uma correspondência de certo evento que chama a atenção de mais de um dos sistemas parciais.

O acoplamento é importante para o sistema conservar a sua capacidade de autopoiesis, uma vez que é obrigatório para ele abrir-se, em alguns momentos, interrompendo, ainda que momentaneamente, a sua clausura natural.17

Da mesma forma quando o ambiente irrita o sistema e o perturba compelindo-o a abrir-se aos elementos do ambiente que são selecionados por ele, essa abertura do processo autopoiético necessita reduzir a carga de complexidade desses elementos, sem o que, o sistema pode vir a ser profundamente abalado em sua capacidade de auto-reprodução.

Ao selecionar os elementos de fora do sistema e que serão englobados por ele, se observa que esses acontecem, não no limite da auto-reprodução, mas naquele resíduo estrutural que se conserva presente nos sistemas.

Para que essa presença não pese sobre os sistemas, se busca com o processo de diferenciação e de seleção/codificação, reduzir a carga de complexidade carregada por eles, para não afetar, igualmente, a capacidade mesma do sistema em manter a sua evolução.

O sistema parcial do direito, por conseguinte, deve ser concebido como um daqueles sistemas que tem como necessidade operacional, reduzir toda e qualquer complexidade que advenha do ambiente, e para que isso ocorra, ele deve suportar a tensão entre a emergência da expectativa e o inconstante e imprevisível risco da decepção, originada pela primeira.

Dessa forma, em Luhmann, a complexidade e o sistema estabelecem uma relação que se não chega a ser de natureza conflituosa, é de contato constante. Isso porque o sistema tem como objetivo reduzir essa complexidade, para poder apresentar os significados daquela relação binária que é útil para ele e para o ambiente, isto é: aquilo que é conforme ao direito/aquilo que não é conforme ao direito.

Em Alice, o leão e o unicórnio disputam há um longo tempo a coroa do rei de copas, apesar desse saber que nunca vai perdê-la, já que nenhum daqueles dois tem força suficiente para alcançar qualquer vitória. Mantendo a luta, o rei de copas anula dois de seus adversários, conservando-se no poder. Alice compreende isso, mas sendo estranha ao país das maravilhas, não tem força para alterar tal situação.

Na Teoria dos sistemas, ao contrário, a coroa é alcançada pela autopoiésis, já que nela está a força para o sistema parcial do direito justificar a sua existência, realizando um de seus objetivos, isto é, a redução da complexidade interna e externa pela diferenciação, e assim manter a sua comunicação com o entorno e com os outros sistemas parciais. Diz, dessa forma, Luhmann, que "... el sistema jurídico puede tomar en consideración hechos externos, pero sólo como información que ha sido generada internamente: sólo como ‘difference that makes a difference’(Bateson). Y si el estado del sistema ha cambiado, esto se debe a que se ha referido a la aplicación del derecho o en última instancia, al código. Dicho de otra manera: el sistema del derecho no puede atribuir al entorno normas, pero sí conocimientos. Incluso la cuota de conocimiento que atribuye al entorno es una operación puramente interna y no un proceso de ‘transfer’ de informaciones".18


III. O MUNDO DE ALICE – Uma aproximação ao conceito de Autopoiesis.

"... o conhecimento constitui uma operação pela qual o sistema observador procura resolver os paradoxos e tautologias da sua própria auto-referência, razão pela qual as tradicionais categorias da ciência moderna (causais, empíricas, dedutivas-normológicas, estatísticas) deverão dar lugar às categorias circulares reveladas crescentemente desde as ciências da natureza... até às ciências humanas:... por outras palavras, se até aqui a circularidade era vista como um paradoxo inconfortável ou uma contradição lógica da qual se deveriam imunizar os argumentos e teorias (retorno infinito, tautologias, redundâncias, círculos viciosos e virtuosos, petitio principii, etc), os adeptos da teoria autopoiética concebem-na como um modelo heurístico e fechado". JOSÉ ENGRACÍA ANTUNES

A autopoiesis é um conceito caro a Luhmann. É o resultado de da teoria que tem em MATURANA e em VARELA, seus dois principais propagadores. Com esse conceito, ganha corpo a discussão em torno do problema da relação entre estrutura/operação, bem como, ainda, nos remete a uma nova luz para a relação norma/ação; regra/decisão.

A autopoiesis é o extraordinário na teoria dos sistemas. Entendido o sistema como capaz de se auto-reproduzir significa que ele não é mais determinado pela heteroreferência, mas, principalmente, pela auto-referência.

A visão do outro é a apenas a visão do outro, isto é, o sistema parcial do direito se liberta da velha ordem vertical do input/output. Luhmann destaca que "Para realzar claramente el uso interno de esta distinción, distinguimos entre autorreferencia y heterorreferencia. Es decir: un sistema que dispone de capacidades adecuadas de observación, puede distinguir entre la referencia a sí mismo y la referencia a todo lo demás. Con esta terminología nos encontramos, a diferencia de la doctrina más antigua de los sistemas abiertos, en el plano de la observación de segundo orden. Observamos cómo observa el sistema y cómo efectúa con ella la diferencia entre autorreferencia y heterorreferencias".19

O sistema jurídico não pode ser percebido como um espaço observável por um espectador privilegiado, que sobre ele infere as suas regras, condicionando-o a uma engenharia rígida. É a visão que o sistema tem de si mesmo que permite reconhecer o que ele observa e, quando se diferencia do ambiente para se observar, reflete através de todas aquelas operações fáticas a redução da complexidade, selecionando/codificando e dessa forma, evoluindo.

O sistema é auto-reprodutivo em seu constante processo de evolução, selecionando as operações fáticas que com ele se comunicam para, então, abrindo-se ao "outro" (entorno e outros sistemas parciais), ganhar nova sinergia e, dessa forma, voltar a fechar-se, pois que ele é auto-referencial.

A relação binária da auto-referência/heteroreferência deu a Teoria dos Sistemas de Luhmann a oportunidade de libertar o sistema do direito da obrigatoriedade de ser um sistema aberto. O sistema é enclausurado20, mas não isolado, pois que não ocorre no hiato, no vácuo, mas no tecido do sistema social geral. Não são paredes de tijolos que o mantém afastado do ambiente, mas portas, que podem ser abertas, ainda que se devam, tradicionalmente, mantê-las fechadas.

Dessa forma, a clausura operativa não é, repita-se, isolamento, pois é a partir de sua maior capacidade que o sistema constrói uma comunicação semântica com o entorno, de forma constante, sem significar que ele precise se manter aberto e dependente. Até porque, o sistema conserva uma abertura cognitiva com o ambiente e com os outros sistemas parciais, e isso permite uma constante comunicação entre eles. A clausura se deve ao fato de que o sistema não precisa ser aberto para ter a sua existência reconhecida e receber de fora dele qualquer observação ou definição. Estando fechado, o sistema tem condições de definir suas próprias operações fáticas, reproduzir-se a si mesmo e nessa reprodução ele pode determinar o que lhe pertence e o que pertence ao ambiente ou aos outros sistemas parciais.

A autopoiesis é posta como uma invariável no sistema, mesmo quando esse se move/operacionaliza com o auxílio de estruturas e de operação em operação (interna e, por vezes, aberta), ela não se altera.

Nesse sentido, Luhmann afirma que "... o derecho no adquiere realidad por alguna idealidad estable, sino finalmente por aquellas operaciones que producen y reproducen el sentido especifico del derecho".21

Logo, a clausura das operações do sistema tem razão de ser na medida em que isso permite ao sistema maior capacidade de construção de sua própria complexidade-identidade, pois que ele não fica determinado por nada de fora (em determinadas situações, o próprio sistema pode vir a se abrir para o ambiente, o que acontece, mas ele não está determinado pelo que está fora dele e por isso, essa sua característica de clausura). A clausura é a forma que o sistema encontrou para extrair a ordem do ruído, entendido como comunicação entre o sistema e o ambiente, estabelecendo dessa forma, a sua autopoiése.

Essa característica de clausura da operação permite, assim, que aconteça uma melhor seleção dos elementos, ao mesmo tempo em que permite definir o entrelaçamento desses mesmos elementos (que os qualificam).

Alguns elementos são selecionados pelo sistema nas suas operações fáticas de abertura ao ambiente ou aos outros sistemas, e sofrendo um processo de codificação, são incorporados ao corpo do sistema. Outros são abandonados, mas não ficam perdidos na sua totalidade, pois que podem ser, mais adiante, a partir do interesse do próprio sistema, selecionados para retornar ao sistema, pois o sistema tem a capacidade de recordar daquilo que já havia sido descartado.

Essa produção de operações fáticas do processo de seleção não significa o domínio de todas as causas do produzido, pois nem sempre são elas o foco principal do sistema. Somente quando essa disponibilidade da produção está no sistema é que se pode falar em autopoiesis. Isso porque é o sistema que seleciona aquilo que é o seu limite, pois somente assim ele resguarda a sua independência do ambiente, até porque, nenhum sistema pode controlar todas as causas, mas somente as que têm sentido em sua auto-reprodução.

O sistema se movimenta a partir da realização de suas operações fáticas, e esse agir comunicacional ocorre de forma simultânea, quer dizer, no tempo presente. O tempo futuro e o tempo passado somente têm sentido se simultâneos ao presente, tempo onde ocorre a ação da operação fática e isso porque o observador que observa essas operações compreende apenas aquilo que está no momento de sua observação, e somente aí ele percebe as mudanças nas estruturas.22

Uma observação é, portanto, uma operação que o próprio sistema descreve de si mesmo, e isso deve ser entendido como uma auto-observação sem a qual nada aconteceria, pois que senão, seria apenas a partir do ambiente que o sistema buscaria os elementos para a sua própria definição.23

A observação é uma operação que se vincula aos sistemas autopoiéticos. Essa ocorre como operação na medida em que ao observar descreve, e a descrição não parte de um espaço de normas determinadas a priori pelo observador afastado do sistema. A autopoiesis se auto-reflete, pois que toda operação, mesmo a da auto-observação é comunicação. Assim, a comunicação jurídica ocorre em uma dupla face: por um lado é fator de produção, por outro é conservação das estruturas.

Destarte, no caso de Alice, o País das Maravilhas estava contemplado pelo imaginário, entendido como a irrealidade da realidade, já em Luhmann, a autopoiesis é o reconhecimento de uma análise que busca superar aquelas marcadas pela tradição da dogmática jurídica: o sistema jurídico é um espaço da sociedade, pois está nela, já que ela é o entorno que o envolve. Mesmo em se reconhecendo esse aspecto, o sistema jurídico não pode ser um resultado, um mero aparelho de Estado ou apenas um instrumento de resposta aos inputs da sociedade.

Da mesma forma que é o líquido da garrafa que desperta a autoconsciência de Alice, liberando a dominação do programa pré-determinado, a autopoiesis, em sua capacidade de se autoproduzir, autorefletir, permite ao sistema jurídico entender-se como uma circularidade recursiva e comunicacional enclausurada em sua própria evolução.

O sistema jurídico, diferente dos personagens encontrados por Alice, não tem possibilidade de estabelecer de forma direta uma comunicação com a sociedade, mas essa comunicação somente é possível através da referência recursiva de suas operações jurídicas, com outras e outras operações jurídicas, permitindo, então, ao sistema eclodir como um sistema autopoiético em contato com ele mesmo, e dessa forma, com a sociedade, construindo o caminho para uma metalinguagem.


CONCLUSÃO

"O problema é que cada operação reproduz, a seu nível, seu oposto. Os sistemas e as sistemáticas nascem sobre o chão deste paradoxo... A sociedade é precisamente este sistema auto-referencial, em que a observação aparece como um paradoxo". NIKLAS LUHMANN.

"La descripción de los sistemas como enclausurados en su operación ofrece una imagen demasiado unilateral: debemos corregirla. Debido a clausura operativa, se constituye una unidad dentro de un ámbito. Luego ese ámbito se convertirá en el entorno de esa unidad. No se niega ni la existencia, ni la relevancia del entorno. Al contrario: la diferencia entre sistema y entorno es precisamente aquella forma que permite que tanto el sistema como el entorno se designen en referencia recíproca". NIKLAS LUHMANN.

A tradicional visão da dogmática jurídica do direito deve ser confrontada pela Teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Não porque essa teoria pretende ser a única verdade, mas porque tendo o vigor de atingir aos resistentes paradigmas solidificados desde Kant, ela permite ao direito, finalmente, redefinir-se.

É chegado o momento de se superar os efeitos das transformações vividas pelo século XVIII, já que muitos desses efeitos encontraram nos dois séculos seguintes o seu esgotamento discursivo.

Não por acaso vive-se nessa era de pós-modernidade um arrebatamento conceitual que, transmudando-se em estranhamento, parece querer congelar o pensamento que se seduz no conceito de crise, de ruptura, entendidos esses, comumente, como conceitos negativos e desconstrutivos. De fato, o conceito de crise é uma forma de desconstrução, mas não é compreendido aqui como um conceito de potencialidade negativa.

Entendendo-se o sistema jurídico como um sistema parcial e autopoiético, capaz de observar aquele que o observa, e nesse sentido não sendo mais por ele determinado, se abre a possibilidade de se alterar a ordem das coisas no direito desde que se aceite que o próprio sistema jurídico pode caminhar em prol de sua evolução.

Há muito ainda por realizar, pois que a teoria dos sistemas ainda é bastante recente em meio a nós, e "os próprios arautos reconheceram isto mesmo, ao expressamente afirmar que toda a construção foi deliberadamente estruturada como um ‘labirinto’, no qual os conceitos, problemas e ideais são explanados, não segundo uma lógica linear, mas segundo uma lógica policêntrica, da qual por vezes em vão se procurará retirar qualquer clareza conceitual ou ‘ordem teórica’ segundo as tradicionais categorias do conhecimento científico".24

Mesmo assim, é obrigatório resistir às ânsias cruzadistas daqueles que não podem se desprender de suas verdades, e que necessitam, ainda, buscar na figura do sujeito o ponto de referência de toda reflexão; o início e o fim de toda observação.

O indivíduo é aquilo que ele mesmo compreende como indivíduo, a partir daquele ponto em que se observa, mas também é o resultado de todas as forças que buscam defini-lo. Todavia, não pode ser tratado como centro potencializador de tudo o que o cerca e que mantém com ele alguma comunicação.

Todos conhecem a história sobre tudo aquilo que se apresenta como novo ou como espetacular. Sabemos portanto, que no caso de Alice, o seu mundo é o mundo da fantasia. Mas apesar do desconforto dos que repudiam esse mundo, é a possibilidade de pensar o imaginário fantástico que enfrenta e afronta a realidade empobrecida das verdades tradicionais e segura.

No caso de Luhmann, o espaço teórico que ele ocupa, após invadir sem a permissão dos tradicionalistas de plantão, é de aflição, pois ele não teme fragmentar o discurso milenar de certo dogma, que longe do romântico e sincero pensamento científico parece transformar-se, mais e mais, em manifestação de fé.

Não há que se amedrontar frente à viagem que a teoria dos sistemas nos conduz, mas presenciá-la, quebrando as amarras que não querem libertar o direito dos velhos institutos de dominação, e em agindo assim, afastá-lo de um espaço social que atualmente não cansa de se surpreender com a quebra daquelas verdades antes absolutas.

Aproximar é preciso, olhar sem receio é necessário, e como quer todo e qualquer olhar que é sempre um olhar engajado, admitir-se que cabe ao direito dizer-nos aquilo que o direito diz ser direito é uma imposição obrigatória.

Alice, desapontada e surpresa com o país das maravilhas retorna, ao acordar, para o mundo tradicional e regulado. O mundo continua sendo o mesmo para os que nele se mantiveram, mas ela e o seu olhar sobre o mundo estão definitivamente diferentes. As experiências que sorveu não podem ser abandonadas, fazem parte dela e do seu imaginário para sempre.

Da mesma forma com Luhmann, o direito não pode deixar de reconhecer que as explicações até então aceitas precisam ser revistas. Não se pode mais negar que até mesmo no campo do direito se faz necessário superar o discurso, romper com a linguagem tradicional e enfrentar uma visão mais incômoda na qual o indivíduo não é o agente principal, mas, apenas, um outro agente.


NOTAS

1LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise Sociológica do Direito. In: ARNAULD, André-Jean e JR., Dalmir Lopes (organizadores). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Lumem Júris Ltda, pág. 67, 2004.

2PAULINHO DA VIOLA.

3LUHMANN, Niklas. Idem nota 1, pp. 48.

4"Como sistema operativamente clausurado deben definirse los sistemas que, para la producción de sus propias operaciones, se remiten a la red de sus propias operaciones y en este sentido se reproducen a sí mismos. Con una reformulación un poco más libre se podría decir: el sistema debe presuponerse a sí mismo, para poner en marcha mediante iteraciones suyas su propia reproducción en el tiempo; o con otras palabras: el sistema produce operaciones propias anticipando y recurriendo a operaciones propias y, de esta manera, determina qué es lo que pertenece al sistema y qué al entorno". In: LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Barcelona: Antrophos, pp. 26.

5"No nos obstinamos en la absurdidad de afirmar que haya derecho sin sociedad, sin hombres, sin las condiciones físico-químicas de nuestro planeta. Únicamente afirmamos que el sistema produce las relaciones con dicho entorno a partir de sus propios esfuerzos, a partir de la efectuación de sus propias operaciones. Estas operaciones son posible gracias a la integración de una red que designamos como clausura. Más brevemente: la apertura es viable sólo sobre la base de la cerradura". LUHMANN, Niklas. Idem ibidem, pp.54.

6"Obsérvese que el concepto de producción presupone el control de determinadas causa de lo producido. Por ejemplo para efectuar una fotografiá – digamos de la torre Eiffel – lo más importante es la torre. Sólo la torre es necesaria en el sentido de que tanto la cámara fotográfica como el fotógrafo pueden ser cambiados. Por tanto, la causa más importante está colocada fuera del proceso de producción. El concepto de producción designa únicamente la necesaria divergencia para la producción y mantenimiento – divergencia necesaria para cada caso que se trate. Una característica típica también lo constituye la disponibilidad en el sistema. Sólo cuando de manera paralela se asegura que la disponibilidad en el sistema se produce por el mismo sistema, se puede hablar en sentido estricto de sistema autopoiético. Pero esto no es sino algo colateral, por tanto relimitaciones, que no cambian para nada el hecho de que ningún sistema puede controlar todas las causas, sino sólo aquellas que la misma autopoiesis sugiere. Por consiguiente la reproducción autopoiética es siempre reproducción de los límites del sistema, que separan precisamente las causas externas de las internas". In: LUHMANN, Niklas, idem nota 4, pp.29.

7LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, pág, 54.

8CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Ática, pág. 61, 1980.

9Idem nota 1, pág. 95.

10LUHMANN, Niklas. Idem nota 4, pp. 26.

11LUHMANN, Niklas. Idem nota 4, pp.33.

12"Desde el punto de vista objetual se pueden describir las operaciones como la producción de una diferencia. Algo se vuelve distinto después de una operación y, mediante la operación, ese algo es distinto que sin ella. Piénsese por ejemplo en la manifestación de una inconformidad ordinaria. Es en este efecto discriminatorio de la operación que se lleva al cabo en una duración y un enlazamiento recursito de las consecuencias de una operación, que se produce la diferencia entre sistema y entorno; o como nosotros diremos: que un sistema se diferencia". In: LUHMANN, Niklas. Idem nota 04, pp. 34.

13IZUZQUIZA, Ignácio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoria como escândalo. Barcelona: Antrophos, pág. 154, 1990.

14Idem nota 1, pág. 91.

15Carroll utiliza aqui uma metáfora importante: a rivalidade entre o leão e o unicórnio remonta a muitos séculos. Supõe-se em geral que surgiu no início do século XVII, quando a união da Escócia e a Inglaterra resultou num novo brasão britânico em que o unicórnio escocês e o leão britânico apareciam, como o fazem hoje, como os dois suportes das armas reais.

16"El que el código represente la unidad del sistema no está garantizado por la representación de una forma superior: esto terminaría en una regresión al infinito o, como todavía veremos, en una paradoja. El código mismo no es ninguna norma. No es otra cosa que la estructura de un mecanismo de reconocimiento y atribución de la autopoiesis de la sociedad. Siempre que se hace referencia al derecho y al no-derecho, este tipo de comunicación se adjudica al sistema jurídico. La comunicación jurídica no es reconocible sino perteneciendo a un código y siendo capaz de enlazarse a otras comunicaciones jurídicas gracias a ese código. El derecho de la sociedad se realiza en referencia a la efectuación de un código – y no sobre una regla (hipotética, categórica, razonable, fáctica)". In: Luhmann, Niklas. Idem nota 04, pp. 49.

17"La clausura operativa del sistema se confirma precisamente por el hecho de que existen diferentes perspectivas dentro del sistema y que por eso puede haber, en el interior, una observación organizada de los observadores. El sistema está, utilizando la expresión de Heinz Von Foerster acerca de la motivación, ‘codificado indeferenciadamente’; O tal vez mejor: ‘indiferentemente codificado’. No existe por lo tanto ningún input de comunicación jurídica en el sistema del derecho, porque no hay absolutamente ninguna comunicación jurídica fuera del sistema del derecho. Esta es una de las consecuencias de las transición de las input type descriptions hacia las closure type descriptions (Varela). Y, además, esta es una de las consecuencias de la tesis de que solamente el sistema del derecho puede originar su clausura, reproducir sus operaciones, definir sus limites...". In: LUHMANN, Niklas. Idem nota 04, pp. 49.

18LUHMANN. Niklas. Idem nota 04, pp.61.

19LUHMANN, Niklas. Idem nota 04, pp.55.

20Afirma Luhmann que "La clausura operativa del sistema del derecho en la sociedad se realiza únicamente en el nivel de segundo orden y sólo a través de un esquematismo que puede ser manejado exclusivamente en este nivel". Idem ibidem, pp.50.

21LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Barcelona: Antrophos, pp. 27.

22Em relação a esse tempo determinado pela simultaneidade entre presente-passado-futuro, está anotado um outro paradoxo na Teoria dos Sistemas. Isto é, se por um lado, o tempo é presente, por outro, reconhecendo-se que há a presença da memória que permite ao sistema selecionar aquilo que havia sido descartado, há uma ratificação de uma seleção já acontecida, portanto, deixada ao passado. Mas como o sistema é autopoiético, o tempo está subvertido nessa sua capacidade de se auto-reproduzir constantemente.

Também, é importante destacar que se o direito, e a teoria dos sistemas estão ao alcance das transformações históricas, há nesse sentido, uma múltipla implicação temporal que dá ao devir histórico um papel de destaque na capacidade mesma do sistema realizar a sua evolução. E, não se deixe de destacar que a própria idéia de evolução dá a entender, de forma subtendida que há uma relação significativa e importante com o tempo passado e com o tempo futuro.

Importa também destacar que nesse processo de autopoiesis, sobrevive alguma relevância do conceito de estrutura, que como já se afirmou, Luhmann não abandonou na sua completude. O conceito de estrutura se mantém necessário para que as operações fáticas possam ocorrer. Essas não são idéias abstratas e nem ocorrem no "nada". Há um tempo, e um espaço em que a autoreprodução acontece, e a presença das estruturas, que auxiliam ao sistema a reduzir a complexidade, se faz necessária, inclusive, para estabelecer as regras internas da codificação, estratégia pela qual se pode ver na prática, a vitória sobre a complexidade do processo de evolução/seleção.

23Segundo Luhmann, "Lo mismo es válido para cada una de las observaciones de este estado de cosas, y en verdad, tanto para las observaciones externas como para las internas. Puesto que las observaciones son operaciones, un observador observa sólo cuando observa (y cuando no, no). El puede distinguir estructuras constantes de operaciones del tipo acontecimientos, como se distingue lo inmóvil de lo móvil – pero sólo cuando el observador observa puede registrar cambios en las estructuras. El observador es pues un sistema atado al tiempo, y sobre todo atado al tiempo que él en el presente construye mediante distinciones que introduce como horizonte de su observación". In: LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Barcelona: Antrophus, pág. 30.

24ANTUNES, José Engracía. In: TEUBNER, Gunter. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. XXXI.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARNAUD, ANDRÉ-JEAN. Niklas Luhmann. Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Lúmen Júris Ltda, 2004.

CARROL, LEWIS. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Ática, 1980.

IZUZQUIZA, IGNÁCIO. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoria como escândalo. Barcelona: Antrophos, 1990.

LUHMANN, NIKLAS. El Derecho de La Sociedad. Barcelona: Antrophos.

TEUBNER, GÜNTHER. O Directo como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.


Autor

  • Antonio Marcelo Pacheco de Souza

    Antonio Marcelo Pacheco de Souza

    advogado criminalista do escritório Amadeu Weinmann, em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional em cursos preparatórios para exames de Ordem e concursos, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciado e bacharel em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio Marcelo Pacheco de. Alice e o Direito sem o império do indivíduo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 605, 5 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6360. Acesso em: 26 abr. 2024.