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Jurisdição constitucional dos Estados-membros quanto às normas repetidas

Jurisdição constitucional dos Estados-membros quanto às normas repetidas

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SUMÁRIO: I – Considerações gerais. II – Conceito de normas repetidas. 2.1 – Normas de reprodução.III – Jurisdição constitucional dos Estados-membros. 3.1 Abrangência da competência do Tribunal de Justiça. 3.2 O controle da constitucionalidade das normas de reprodução. 3.3 Eficácia das normas de reprodução no âmbito do Estado-membro. 3.4 Competência recursal do STF. IV – Alcance dos efeitos da decisão do Tribunal de Justiça quanto às normas de reprodução. V – Controle da constitucionalidade das leis municipais frente à Constituição estadual. VI – Conclusões.


I. Considerações Gerais

As normas jurídicas que compõe a ordem jurídica de determinado Estado são postas em diferentes níveis, de forma escalonada. Neste esquema, a Constituição surge como lei maior de uma ordem jurídica estatal, devendo as demais normas ser produzidas conforme o processo constitucionalmente previsto e de forma que o conteúdo das normas produzidas não venha a confrontar-se com as normas constitucionais. [1] No dizer de Canotilho: "A Constituição é a fonte da produção normativa, pois a ela é reconhecido um valor normativo superior, a superlegalidade material". [2]

Como meio adequado para invalidar as normas eventualmente produzidas em desconformidade com a Constituição, criou o constituinte, no âmbito federal, a ação direta de inconstitucionalidade, adequada para a decretação de inconstitucionalidade in abstracto, cuja principal conseqüência consiste na retirada da norma do sistema jurídico, face ao caráter preponderantemente constitutivo negativo da decisão de procedência proferida nesse tipo de processo. [3]

Dentro do sistema federativo brasileiro, o princípio da supremacia da constituição também serve de esteio à estruturação da ordem normativa dos Estados-membros, situando-se a Constituição estadual, dentro do ordenamento jurídico local, por conseqüência, no nível normativo mais elevado em relação às demais regras que nela retiram seu fundamento de validade. Por imposição da Carta Magna, os Estados componentes da federação também criam mecanismos de controle de constitucionalidade contra normas que venham a ferir algum preceito contido na ordem constitucional estadual.

A problemática em torno da jurisdição constitucional dos Estados-membros é recente; sob a égide da Constituição de 1967/69, pouco se discutia na doutrina sobre o assunto. O princípio erigido na nossa Constituição de 1988 é de que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar as ações diretas de inconstitucionalidade quando a norma impugnada for estadual ou federal (art. 102, I, "a" da CF).

De outro lado, compete aos Tribunais de Justiça dos Estados-membros processar e julgar as ações de inconstitucionalidade, quando as normas impugnadas forem municipais ou estaduais, tendo-se nesse caso unicamente como paradigma a violação da Constituição estadual (art. 125, § 2º da CF). Algumas questões, contudo, cercam o problema: há determinadas normas as quais, a despeito de se encontrarem inseridas no corpo da Constituição estadual, possuem conteúdo idêntico ou mesmo similar ao de certas normas constitucionais federais.

O objeto deste trabalho, portanto, consiste em analisar a amplitude, assim como os limites da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem como dos Tribunais de Justiça dos Estados-membros, quanto às chamadas normas de repetição.


II. Conceito de normas repetidas

As normas constitucionais federais modelam, por ser da essência do sistema federativo, a estruturação da Constituição do Estado-membro. Por conseqüência, o constituinte estadual não poderá desenvolver, quanto a determinadas matérias, tratamento diverso do que fora dado na Constituição Federal. Surge, assim, a categoria das normas repetidas (ou normas de repetição), as quais podem ser definidas, em linhas gerais, como aquelas normas constitucionais estaduais que possuem idêntico teor ao de determinada regra jurídica contida na Constituição federal. Não é necessário que o texto legislativo dentro do qual se inserem as normas estaduais seja literalmente idêntico ao texto que contém a norma constitucional federal; para haver a repetição de normas, não é necessário existir a identidade dos textos legais através dos quais elas se exprimem, pois as regras jurídicas não podem ser confundidas com o texto legal por meio do qual se expressam.

As normas repetidas são gênero do qual as normas de reprodução e as normas de imitação são espécie, conforme será tratado a seguir.

2.1 Normas de reprodução e normas de imitação

Segundo Raul Machado Horta, há determinadas normas cuja inserção na Constituição estadual se faz compulsória; são as denominadas normas de reprodução obrigatória. Segundo a lição do citado jurista, "as normas de reprodução refletem a expansividade do modelo federal, que atraiu para seu campo matéria anteriormente entregue à revelação originária do constituinte estadual. A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional de um Estado, por um processo de transplantação". [4]

Ao lado das normas de reprodução obrigatória, segundo o citado jurista, há também aquelas normas que, conquanto idênticas a determinadas regras constitucionais federais, a sua inserção no texto constitucional estadual não se faz compulsoriamente. O constituinte as introduz na Carta estadual por adesão voluntária a determinados dispositivos constitucionais. Assim, a diferença entre as duas classes de normas residiria no caráter obrigatório da repetição, presente nas normas de reprodução e ausente nas de imitação. [5]

Malgrado a lição do jurista mineiro seja hoje a mais difundida na doutrina nacional e na jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal, a classificação merece maiores precisões.

Conforme ensina Pontes de Miranda, [6] há três classes de princípios encontrados na Constituição federal:

a) princípios constitucionais sensíveis, que são aqueles cuja inobservância desencadeia a intervenção federal nos Estados componentes da federação;

b) princípios constitucionais comuns, que são aqueles que se tornam obrigatórios em todos os níveis da federação (União, Estados e Municípios); e

c) princípios constitucionais federais, que apenas são obrigatórios no plano federal.

Essa classificação, ao nosso ver, é exaustiva. Não há qualquer princípio, no texto da Constituição federal, que não se enquadre em uma das três categorias. Os princípios referidos nas letras a) e b), em última análise, é que vão delinear toda a competência do poder constituinte decorrente, pois representam limites à atuação do constituinte estadual. Quanto ao terceiro, este se mostra irrelevante para o constituinte estadual; a sua repetição no seio da Constituição estadual apenas acarretará na existência de "normas de imitação", como será visto adiante.

Quando se fala em normas de reprodução obrigatória, ao nosso ver, cai-se em imprecisão. Analisando-se o nosso sistema jurídico, não é difícil perceber a inexistência na Constituição federal de alguma norma ou princípio que obrigue a inserção de qualquer norma repetida no seio das Constituições estaduais, donde ser inadequada a expressão "normas de reprodução obrigatória", pois não há efetivamente obrigatoriedade na reprodução. O que a nossa Magna Carta estabeleceu, em verdade, foi a necessidade de que haja, nas Constituições estaduais, a observância de alguns princípios constitucionais. Tanto que o art. 25 da CF dispõe: "Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição".

Tal "observância" a que faz alusão o art. 25 da CF, contudo, não redunda na obrigatoriedade de reproduzir-se normas idênticas. A esse respeito é precisa a lição de Gabriel Ivo:

"De pronto concluímos que para observar um princípio constitucional não precisa o constituinte estadual repeti-lo no texto da Constituição do Estado-membro (...)".

Observar e obedecer a um princípio constitucional significa abster-se de emitir regras que com ele sejam incompatíveis ou, de um modo positivo, a emissão de regras que venham a imprimir-lhe eficácia. Não se cumpre um princípio repetindo no texto da Constituição estadual o seu enunciado". [7] (g.n.)

Portanto, entendemos ser equívoco falar-se na existência de normas de reprodução obrigatória. O correto seria chamá-las de normas de observância obrigatória, em face do dever dos Estados-membros em observar os princípios constitucionais comuns, assim como os princípios constitucionais sensíveis, a que antes aludimos.

Assim, ao longo deste trabalho, usaremos a expressão "normas de reprodução" sempre para designar aquelas normas repetidas que são de observância compulsória pelo Estado-membro.

Ao lado das normas de reprodução, como já dito, há aquela classe de normas constitucionais estaduais, as quais embora idênticas a certas normas da Constituição federal, não são de observância compulsória pelo Estado-membro. Como exemplo dessa categoria de normas podemos citar o parágrafo único do art. 70 da Constituição de Alagoas, que estabelece:

"Art. 70... .................................................

Parágrafo único - Os membros da Mesa Diretora cumprirão mandato de dois anos, vedada a reeleição, para o mesmo cargo, na eleição imediatamente subseqüente".

O constituinte estadual se inspirou no paradigma federal [8] com o fito de vedar a recondução para o mesmo cargo da Mesa da Assembléia na eleição subseqüente. Tal vedação, contudo, não é estendida aos Estados-membros, conforme, inclusive, já decidira o próprio STF. [9] O legislador constituinte fê-la norma constitucional estadual e o fato de norma idêntica constar na Constituição Federal aqui se torna irrelevante, pois o constituinte alagoano poderia até mesmo consagrar a possibilidade de reeleição para os membros da Mesa Diretora da Assembléia Legislativa na eleição subseqüente, o que não redundaria em qualquer inconstitucionalidade, justamente pelo fato de não se constituir regra de observância compulsória.

A distinção entre as normas de reprodução e normas de imitação, insista-se, reside unicamente no caráter obrigatório de sua observância (não de sua reprodução) na Constituição estadual, presente nas primeiras e ausente nas segundas. Tal diferenciação é de grande relevo para o estudo da jurisdição constitucional do Estado-membro.


III. Jurisdição constitucional dos Estados-membros

O princípio geral consagrado na nossa Constituição de 1988, como evidente decorrência do sistema federativo, é de que os Estados deverão instituir o controle de constitucionalidade das leis municipais e estaduais que contrariem normas da Constituição estadual (art. 125, § 2º da CF), paralelamente ao controle exercido pelo STF com relação às leis estaduais ou federais que ofendam dispositivo da Constituição federal. Por simetria, o órgão encarregado de processar a ação direta de inconstitucionalidade no âmbito estadual será o Tribunal de Justiça do respectivo Estado-membro.

Nos itens anteriores, tratamos das normas de repetição e a tarefa agora consiste em analisar a quem compete processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade relativa a essa classe de normas. Seria do Tribunal de Justiça, por se tratar de regras insertas no texto da Constituição estadual? ou seria do STF, pois a ofensa à norma repetida, em última análise, representaria de certo modo, uma violação a dispositivo contido na Lex Mater?

Buscaremos, a partir de agora, obter as respostas para as indagações.

3.1.Abrangência da competência do Tribunal de Justiça

Conforme já tratado, as normas repetidas podem ser normas de imitação ou normas de reprodução. Independente de qual das duas categorias se esteja a tratar, são elas normas estaduais, ensejando, portanto, a competência do Tribunal de Justiça para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade respectiva.

O que se deve ter em mira para se precisar a competência, primordialmente, é o "parâmetro de controle". Assim, quando se propõe ação direta de inconstitucionalidade de norma estadual ou municipal que viole preceito contido na Constituição do Estado-membro, a causa petendi da ação direta será a violação da constituição estadual, mesmo que a norma impugnada seja idêntica à norma federal. Não haverá, outrossim, prejuízo da competência do Supremo, que poderá processar e julgar a mesma ADIn (caso a norma impugnada seja estadual), pois a causa petendi, nesta última hipótese agora é outra: a ofensa à Constituição federal. [10]

Portanto, ao Tribunal de Justiça local caberá sempre o controle da constitucionalidade das leis estaduais e municipais mesmo quando venham a ferir preceitos constitucionais estaduais, independentemente do fato de ser a norma violada reprodução ou imitação do texto federal, pois o parâmetro de controle será sempre a Constituição estadual, em outras palavras: a causa petendi da ADIn deverá ser a ofensa à Constituição estadual. [11]

3.2 O Controle da constitucionalidade das normas de reprodução

Já tratamos da distinção entre as normas de imitação e de reprodução. No que concerne às normas de imitação, não há problemas a se levantar: a competência é única e exclusiva do Tribunal de Justiça.

Todavia, quando a norma impugnada for de reprodução (=observância obrigatória pelos Estados), a competência para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade será definida pelo parâmetro de controle: será do Tribunal de Justiça, por se tratar de regra estadual, se o parâmetro de controle for a violação de norma da Constituição estadual; em sendo o dispositivo ofendido apontado da Constituição federal, apenas poderá conhecer da ação o STF.

Embora hoje prevaleça o entendimento segundo o qual os Tribunais de Justiça podem reconhecer a inconstitucionalidade das normas de reprodução, nem sempre se entendeu desta forma.

O STF, ao primeiro se defrontar com o problema, firmou entendimento, na RCL 370-1, em voto proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, segundo o qual sempre que se estivesse a tratar de normas de reprodução, a competência seria exclusivamente do Supremo, pois tais normas seriam "ociosas" e a reprodução, desnecessária, por se tratar de normas eminentemente federais, de modo que a lei violadora estaria, na verdade, ofendendo a Constituição federal e não a estadual. Segundo o Ministro Pertence, "as normas de reprodução só aparentemente são normas estaduais". [12]

Com o julgamento da RCL 383/SP, o entendimento no Supremo foi modificado. Não se pode afirmar, de fato, que as normas de reprodução não sejam normas jurídicas estaduais. Se assim não o fosse, uma das possibilidades de intervenção dos Estados no Município estaria excluída, conforme asseverou o Ministro Moreira Alves no seu voto:

"A prevalecer a tese de que as normas estaduais de reprodução obrigatória dos preceitos da Carta Magna federal não são normas jurídicas também estaduais, mas exclusivamente estaduais, e estando todos os princípios constitucionais sensíveis previstos na Constituição federal, a intervenção no município, que se faz também por meio da representação de inconstitucionalidade pelo parâmetro da Constituição estadual(e representação que acarreta a suspensão com eficácia erga omnes da execução da norma municipal impugnada como providência preliminar), ou não se poderá fazer, porque as normas de reprodução são ociosas e sem qualquer eficácia, ou –ilogicamente- poderá ser feita, controlando-se, por via dela, a constitucionalidade das leis municipais em face de todos os princípios contidos na Constituição estadual(inclusive os federais obrigatórios inocuamente reproduzidos) e por ela tidos como sensíveis".

De fato, o art. 35, IV da CF prevê a intervenção dos Estados, nos seus respectivos municípios, "quando o Tribunal de Justiça der provimento à representação para observância dos princípios indicados na Constituição Estadual". Levando-se em conta que os princípios constitucionais sensíveis estão todos positivados na Constituição federal, jamais, caso se admitisse o entendimento de não serem as normas de reprodução regras jurídicas estaduais, os Estados-membros poderiam vir a intervir nos municípios, contradizendo, assim, o texto da Carta Magna.

3.3 Eficácia das normas de reprodução no âmbito do Estado-membro

As normas de reprodução são normas jurídicas e produzem seus efeitos na órbita estadual. O argumento segundo o qual a eficácia da norma federal existe independente da reprodução e, conseqüentemente, o controle da constitucionalidade das normas de reprodução pertenceria exclusivamente ao STF, não nos parece acertado.

O fato de ser obrigatória a sua observância não torna a norma reproduzida, por isso, ineficaz. Imagine-se uma lei federal que reproduz em si dispositivos constitucionais. De acordo com raciocínio adotado na RCL 370-1, tais dispositivos repetidos na legislação ordinária seriam ineficazes, pois a eficácia verdadeira seria a irradiada pela norma constitucional, não dando margem, assim, à interposição de recurso especial perante o STJ, caso restasse pré-questionada a matéria federal, o que evidentemente não se coaduna com o nosso sistema jurídico, conforme bem salientou o Ministro Moreira Alves:

"Se verdadeira a tese de que as normas de reprodução não têm eficácia jurídica como tais, mas têm, verdadeiramente, a natureza das normas, de hierarquia superior, reproduzidas, ter-se-á de concluir que a norma federal ordinária, que reproduza preceito da Constituição federal, não tem eficácia jurídica, não dando margem, portanto, à interposição de recurso especial, pois ela dissimula uma norma constitucional que é juridicamente eficaz, que também não dá azo à interposição do recurso extraordinário, porque a questão constitucional não foi prequestionada" [13].

Não se pode olvidar, outrossim, que, segundo o nosso modelo federativo, cada Estado–membro possui não apenas o dever de se abster de violar os princípios cuja observância por cada componente seja obrigatória, mas também o dever de realizar os fins eleitos na Constituição federal, assim como assegurar que os seus princípios sejam observados pela comunidade estadual, na sua esfera de vigência. Uma das formas de garantir esta observância, sem dúvidas, consiste em possibilitar a fiscalização, pelo Estado-membro, da constitucionalidade das normas eventualmente contrárias a princípios constitucionais comuns. Deste modo, a reprodução consiste, muitas vezes, em instrumento eficiente para o Tribunal de Justiça decretar a inconstitucionalidade de normas violadoras de ambas as constituições (federal e estadual).

3.4 Competência recursal do STF

Conforme já anteriormente salientado, o Tribunal de Justiça possui competência para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade quando a norma estadual ou municipal vier a ofender uma norma de reprodução inserida na Carta do Estado-membro.

A jurisdição constitucional para aquela classe de normas, no entanto, não se esgota com o pronunciamento do Tribunal local; o Supremo pode conhecer da questão de inconstitucionalidade, mediante a interposição de recurso extraordinário, com fulcro no art. 102, III, a) ou c) da CF, conforme o caso.

À diferença do que se dá com as normas de imitação, nas quais a jurisdição constitucional do Tribunal de Justiça é exclusiva, as normas de reprodução dão ensejo ao reexame da questão de inconstitucionalidade pelo STF, pois com relação a esta classe de normas há dever por parte dos Estados-membros em observá-las, donde ser necessário que o Supremo verifique se a norma de reprodução fora aplicada devidamente, isto é, se a aplicação ou até mesmo a sua positivação da não se revela incompatível com a Constituição federal.

Há determinadas normas constitucionais estaduais que se mostram incompatíveis com a Constituição federal; neste caso, eventual lei ordinária que viole a Constituição estadual não poderá ser reputada inconstitucional, conforme salienta Gabriel Ivo: "Se a Constituição Estadual tratar de matéria típica de lei ordinária estadual e sobrevier lei estadual dispondo contrariamente à Constituição Estadual, não será a norma inconstitucional em relação à Constituição Estadual, posto que inconstitucional será a Constituição Estadual em relação à Constituição Federal". [14]

Não se pode afirmar, por outro lado, ser vedado ao Tribunal de Justiça decretar, incidentemente, a inconstitucionalidade da norma constitucional estadual em relação à Constituição federal; se assim o fosse, seria admitir que o Tribunal de Justiça estaria obrigado a reconhecer constitucional o que na verdade não o seria. E mais: estaria compelido a decretar a inconstitucionalidade de lei ordinária que, na verdade, não padecia de vício. O Tribunal de Justiça pode, incidentemente, reconhecer a inconstitucionalidade de norma da Constituição estadual, sem que este reconhecimento venha a produzir eficácia vinculante com relação ao Supremo, tal como normalmente ocorre no controle difuso, em que qualquer juiz ou tribunal poderá decretar a inconstitucionalidade de norma (estadual ou federal), sem que haja a retirada desta do ordenamento jurídico. Na verdade, a inconstitucionalidade da norma da Constituição estadual é aqui questão prejudicial, sendo a questão principal o reconhecimento da constitucionalidade da lei ordinária impugnada. Tal pronunciamento, por parte do Tribunal de Justiça, mesmo em sede de controle abstrato, embora aqui não se cogite de norma de reprodução, dá ensejo à interposição do recurso extraordinário, [15] a fim de possibilitar ao STF o conhecimento da questão, posto que o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma da Constituição do Estado-membro em face da Constituição federal é sempre uma questão constitucional federal.


IV.

Alcance dos efeitos da decisão do Tribunal de Justiça quanto às normas de reprodução

O processo de controle de constitucionalidade da lei em tese, em face da Constituição federal, possui a peculiaridade de que suas decisões definitivas de mérito irradiam eficácia erga omnes e ainda, consoante a disciplina adotada pela lei 9.868/99, produzem efeito vinculante, com relação aos demais órgãos de Poder Judiciário.

Simetricamente, as decisões proferidas em sede de jurisdição constitucional dos Estados-membros são também capazes de produzir eficácia erga omnes. Sempre que o Tribunal de Justiça acolher ou rejeitar a argüição de inconstitucionalidade de norma estadual ou municipal com relação à Constituição do Estado-membro, sua decisão produz eficácia erga omnes, donde ser desnecessária a comunicação à Assembléia Legislativa para a suspensão de sua eficácia, como eventualmente ocorre no controle difuso.

A regra, porém, comporta maiores elucidações, especificamente quando o parâmetro de controle consistir em norma de reprodução.

Sempre que o parâmetro de controle, em uma ação direta no âmbito estadual, fosse uma norma de reprodução, não se poderia admitir, de modo absoluto, a eficácia erga omnes da decisão. Imagine-se que na hipótese referida, por qualquer motivo, não houvesse a interposição do recurso extraordinário; ficaria o Supremo impedido de conhecer da questão de inconstitucionalidade?

A matéria foi bem tratada mais uma vez pelo Ministro Moreira Alves, na RCL 383/SP. Quando o parâmetro de controle for norma de reprodução, e não houver a interposição do recurso extraordinário, duas hipóteses hão de ser consideradas: a) a procedência da ação, com o conseqüente reconhecimento da inconstitucionalidade do ato atacado; e b) a improcedência da ação declarando-se, por conseguinte, a constitucionalidade da norma impugnada.

Na primeira hipótese, a omissão de qualquer das partes quanto à interposição do recurso importa no trânsito em julgado da decisão do Tribunal de Justiça, que, como já visto, é de natureza constitutiva negativa, retirando do sistema a norma atacada. Neste caso, o STF não mais poderá conhecer de eventual argüição de inconstitucionalidade, seja por via do controle difuso ou concentrado, da norma cuja nulidade fora decretada. A decisão de procedência importa na retirada da norma viciada do ordenamento jurídico, ficando, após o trânsito em julgado da decisão, sem objeto eventual argüição, pois seria ilógico aferir-se a inconstitucionalidade de lei inexistente.

Diferente é o que ocorre na segunda hipótese. Aqui a eficácia da decisão, após o trânsito em julgado, não atinge a jurisdição constitucional do STF, embora seja imponível no âmbito do Estado-membro, conforme precisou o Ministro Moreira Alves, em seu voto:

"(...)se a decisão do Tribunal de Justiça, na ação direta, for pela sua improcedência – o que vale dizer que a lei municipal ou estadual foi tida como constitucional-, embora tenha ela também eficácia erga omnes, essa eficácia se restringe ao âmbito da Constituição estadual, ou seja, a lei então impugnada, aí, não poderá mais ter sua constitucionalidade discutida em face da Constituição estadual, o que não implicará que não possa ter sua inconstitucionalidade declarada, em controle difuso ou em controle concentrado(perante esta corte, se se tratar de lei estadual), em face da Constituição federal, inclusive com base nos princípios que serviram para a reprodução."

Deve-se ter em mente sempre que a causa petendi, nas argüições de inconstitucionalidade in abstracto perante o Tribunal de Justiça local, é a violação da Constituição do Estado-membro. É por isso que o STF poderá conhecer de argüição futura de inconstitucionalidade da mesma norma, posto que quanto a este, o parâmetro muda: a causa petendi, nas argüições de inconstitucionalidade perante o Supremo, é a inconstitucionalidade em face da Constituição federal.

As decisões do Supremo, quanto às normas de reprodução, seja por via originária, através da ADIn, seja por via recursal, por meio de recurso extraordinário, produzem eficácia erga omnes em nível nacional, impondo-se inclusive aos Estados-membros.


V. O controle da constitucionalidade das leis municipais frente à Constituição Estadal

Conforme previsão expressa do texto constitucional federal (art. 125, § 2º), as leis municipais inconstitucionais apenas podem ser atacadas, em abstrato, por meio de ação direta no âmbito estadual, com competência do Tribunal de Justiça, apenas e tão somente quanto ao parâmetro estadual.

Acaso a lei do Município venha a ferir preceito da Constituição federal, impõe-se-lhe o controle difuso, porquanto, segundo o nosso sistema, não há ação direta de inconstitucionalidade de ato municipal violador da Constituição federal, embora ainda haja quem defenda possibilidade de o Supremo conhecer de ADIn em que se impugne lei municipal inconstitucional. [16]

As leis municipais, assim, quando se estiver a tratar de controle concentrado, se submetem apenas à jurisdição constitucional do Estado-membro. Todavia, conforme já demonstrado, há possibilidade- diga-se não muito remota, em face da natureza analítica de nossa Constituição federal e do caráter ainda excessivamente centralizador do nosso federalismo- de o STF reconhecer e decretar a inconstitucionalidade de lei municipal em abstrato: basta para isso que a lei impugnada viole preceito contido na Constituição estadual que reproduza princípio constitucional federal de observância compulsória no Estado. Neste caso, deverá ser proposta ação direta por quem tenha legitimidade para tal perante o Tribunal de Justiça local, cabendo da decisão recurso extraordinário para o Supremo, que, após apreciar a questão, decidirá pela constitucionalidade da norma municipal, com efeitos erga omnes, ou a expurgará do mundo jurídico, decretando sua inconstitucionalidade, pois a eficácia da decisão de procedência é preponderantemente constitutiva negativa.


VI. Conclusões

Ao final do exposto, pode-se concluir que a distinção entre normas de reprodução e normas de imitação é de extrema relevância para se delimitar a competência dos Tribunais de Justiça para julgar as ações diretas de inconstitucionalidade no âmbito estadual.

Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado após o julgamento da RCL nº 383/SP, a norma da Constituição estadual que reproduz princípio contido na Constituição federal dá ensejo a duplo controle. Propõe-se a ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça, tendo como causa petendi a violação da Constituição estadual, cabendo da decisão recurso extraordinário para o Supremo. O controle da constitucionalidade das normas de imitação se dá exclusivamente no âmbito do Estado-membro, não cabendo qualquer recurso para o STF das decisões nas ações diretas propostas perante o TJ em que se impugne essas normas.

A decisão na RCL 383/SP trouxe novos paradigmas para o controle concentrado de constitucionalidade das leis, entre eles a possibilidade do STF vir a decretar a inconstitucionalidade in abstracto de normas municipais, através de recurso extraordinário, interposto em ação direta de inconstitucionalidade estadual, cujo objeto seja a ofensa pelo Município a normas de reprodução.


Notas

1 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, São Paulo, Martins Fontes, 1995, pp. 246.

2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 956.

3 PONTES DE MIRANDA, F. C., Comentários à Constituição de 1967 c/ a emenda nº 1 de 1969, I, São Paulo, RT, 1970, pp. 388.

4 HORTA, Raul Machado, Estudos de Direito Constitucional, Belo Horizonte, Del Rey, 1995, pp. 78.

5 Cf. HORTA, Raul Machado, op. cit., pp. 78.

6 PONTES DE MIRANDA, F. C., op. cit., II, pp. 254 e segs.

7 IVO, Gabriel, Constituição Estadual competência para elaboração da Constituição do Estado-membro, São Paulo, Max Limonad, 1997, pp. 141.

8 O referido dispositivo da Constituição alagoana representa a "imitação" da parte final do art. 57, § 4º da CF, que dispõe: "Cada uma das casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para a o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente".

9 ADIn nº 793/RO, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 16/05/97.

10 RCL 383/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 21/05/93.

11 Algumas Constituições estaduais (Rio Grande do Sul e Minas Gerais, e.g.) chegaram a consagrar a competência do Tribunal de Justiça para julgar ação direta de inconstitucionalidade de leis municipais em face da Constituição federal, o que se traduz em verdadeira anomalia jurídica. Não é o que se dá quanto às normas de reprodução: o Tribunal de Justiça não se substitui ao Supremo para controlar a constitucionalidade da norma impugnada; ao contrário, a competência do STF, neste caso, é preservada, pois nesta hipótese, diferentemente daquela, o parâmetro de controle será a Constituição do Estado-membro.

12 RCL 370-1, Rel. Min. Octavio Gallotti (acórdão não publicado).

13 RCL 383/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 21/05/93.

14 IVO, Gabriel, op. cit., pp. 196.

15 RCL 383/SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 21/05/93.

16 Cf. DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, O Controle de Constitucionalidade de Leis e Atos Normativos Municipais e o Princípio da Divisão das Funções Estatais, in Rev. Ciência Jurídica, nº 55, Jan/Fev/94.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Jurisdição constitucional dos Estados-membros quanto às normas repetidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 611, 11 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6413. Acesso em: 18 abr. 2024.