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Os restos a pagar de final de mandato

Os restos a pagar de final de mandato

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Desde a implantação no País do denominado regime de Gestão Fiscal Responsável, uma questão tem atormentado os intérpretes da Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF (Lei Complementar nº 101/00), bem como do Código Penal, com as alterações da Lei nº 10.028/00. Afinal, o gestor público, no último ano do mandato diante da existência de despesa empenhada e liquidada, mas sem suficiente provisão de caixa para pagá-la, se inscrever tal empenho em restos a pagar, cometerá infração em face da LRF? Incorrerá ou não, em crime contra as finanças públicas?

O ponto de partida para a compreensão do problema é o exame da concepção dessas duas leis. O projeto de lei complementar, que resultou na LRF, previa duas regras com o objetivo de garantir o equilíbrio entre receitas e despesas públicas: a) impedia a inscrição de despesa em restos a pagar sem reserva necessária de disponibilidade de caixa; b) vedava, no último ano do mandato, que se contraísse obrigação de despesa que não pudesse ser paga dentro do exercício financeiro. Por outro lado, o Projeto de Lei nº 621/99, que originou a Lei nº 10.028/00, trazia a tipificação de três condutas relacionadas com o déficit nas contas públicas: a) inscrever em restos a pagar despesa que excedesse limite estabelecido em lei; b) contrair obrigação, no último ano do mandato ou legislatura, cuja despesa não pudesse ser paga no mesmo exercício financeiro; c) deixar de promover o cancelamento do montante de restos a pagar inscrito em valor superior ao permitido em lei. Estava, assim, idealizado o cerco contra o desequilíbrio fiscal.

Sucede que o art. 31, § 2º, do projeto de lei complementar, o qual estabelecia que, no encerramento do exercício financeiro, o montante das inscrições em restos a pagar ficaria limitado, em relação a cada um dos Poderes, de cada ente da Federação, ao valor resultante da soma do saldo da disponibilidade financeira do respectivo Poder, existente no último dia útil do exercício, foi substancialmente alterado no Poder Legislativo. O texto relativo à matéria aprovado no Congresso Nacional estabelecia (art. 41, I), em resumo, que seriam inscritos em restos a pagar todas as despesas legalmente empenhadas e liquidadas, mas não pagas no exercício, ficando condicionadas à existência de suficiente contrapartida de disponibilidade de caixa apenas as despesas empenhadas e não liquidadas (§ 2º).

Levado o texto à sanção presidencial, o art. 41 foi vetado sob o argumento de que "o sentido original da introdução de uma regra para Restos a Pagar era promover o equilíbrio entre as aspirações da sociedade e os recursos que esta coloca à disposição do governo, evitando déficits imoderados e reiterados. Neste intuito, os Restos a Pagar deveriam ficar limitados às disponibilidades de caixa como forma de não transferir despesa de um exercício para outro sem a correspondente fonte de despesa. A redação final do dispositivo, no entanto, não manteve esse sentido original que se assentava na restrição básica de contrapartida entre a disponibilidade financeira e a autorização orçamentária. O dispositivo permite, primeiro, inscrever em Restos a Pagar várias despesas para, apenas depois, condicionar a inscrição das demais à existência de recursos em caixa. Tal prática fere o princípio do equilíbrio fiscal, pois faz com que sejam assumidos compromissos sem a disponibilidade financeira necessária para saldá-los, cria transtornos para a execução do orçamento e, finalmente, ocasiona o crescimento de Restos a Pagar que eqüivale, em termos financeiros, a crescimento de dívida pública" (transcrito do original). Registre-se que o veto presidencial foi mantido no Poder Legislativo.

Sobreviveu o art. 42 da LRF vedando ao gestor público, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito. Cabe assinalar que, no projeto original, tal proibição se estendia a todo o exercício financeiro referente ao último ano do mandato (art. 31, §4º).

Desse modo, a Seção VI – Dos Restos a Pagar – do Capítulo VII da LRF ficou apenas com art. 42, já que o art. 41, que disciplinava a inscrição em restos a pagar, foi vetado.

Entretanto, a Lei nº 10.028/00 foi aprovada, e o Congresso Nacional não retirou as restrições referentes à inscrição em restos a pagar sem suficiente provisão de caixa presentes no projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo. Desse modo, o Código Penal passou a contar com o art. 359-B, que proíbe que se ordene ou autorize a inscrição em restos a pagar, de despesa que não tenha sido previamente empenhada ou que exceda limite estabelecido em lei, e com o art. 359-F, que pune o fato de se deixar de ordenar, de autorizar ou de promover o cancelamento do montante de restos a pagar inscrito em valor superior ao permitido em lei.

O problema reside no fato de o Código Penal ter condicionado a eficácia dos arts. 359-B e 359-F à existência de limite estabelecido em lei. Resulta, então, a dúvida: pode-se extrair do ordenamento jurídico brasileiro esse valor permitido em lei? Está-se, nesse caso, diante de norma penal em branco?

Tratando-se de aplicação de Direito Penal, existe o apego ao emprego literal da lei. Daí pode-se argumentar que, se a LRF não trouxe expressamente esse limite fixado – pelos motivos acima relatados –, os arts. 359-B e 359-F do Código Penal não podem incidir, estando com sua eficácia suspensa até que lei determine literalmente esse valor.

No entanto, não se pode negar que a inscrição em restos a pagar, sem cobertura financeira, afronta o princípio do equilíbrio orçamentário, que foi o grande mote da LRF e está espraiado em todo o seu texto.

Logo no art. 1º, § 1º, da LRF, que fixa o conceito de responsabilidade na gestão fiscal, constata-se que o novo regime pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas. Além disso, estabelece que a lei de diretrizes orçamentárias disporá sobre o equilíbrio entre receitas e despesas (LRF, art. 4º, I, a). Ainda em favor do equilíbrio fiscal, fixa regras rígidas para as previsões de receita (art. 12), restringe a concessão de renúncia de receita (art. 14), e disciplina a geração de novas despesas (arts. 15, 16, 17, 21, 24). Como se vê, a LRF está sempre voltada a combater o déficit público.

Agora cabe uma análise apurada nos termos do art. 42 presente na LRF. Lá está dito que é vedado ao agente público, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser paga integralmente dentro dele. Pergunta-se então: em que momento se pode considerar consumado o ato de contrair obrigação de despesa? Acredita-se que tal ato só estará perfeito e acabado quando ocorrer a liquidação da despesa,vale dizer, quando acontecer a verificação do direito adquirido pelo credor, na forma do art. 63 da Lei nº 4.320/64. No decorrer das fases anteriores – licitação, contrato e empenho –, o poder público pode desistir do dispêndio, em face do princípio da supremacia do interesse público. Isso produziria, para efeitos criminais, a denominada desistência voluntária (Código Penal, art. 15). Assim sendo, é bastante improvável que uma despesa pública seja liquidada até abril de um ano para ser paga no exercício subseqüente - principalmente se tratando de fim de mandato -, hipótese em que se escaparia do prazo de dois quadrimestres previstos no artigo acima mencionado.

Portanto, vê-se que, nesse dispositivo, a lei tenta impedir o déficit fiscal na sua origem, ou seja, na ocasião do aparecimento da obrigação líquida, certa e exigível que não pode ser paga até o final do mandato. Nesse sentido, J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis, comentando o art. 42 da LRF, observam que "em realidade é uma questão de programação de caixa, cujo objetivo é o de manter os seus níveis com suficiência para atender a essas obrigações" [1]. Nessa programação, serão considerados, na determinação da disponibilidade de caixa, os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício (LRF, art. 42, parágrafo único).

É importante lembrar que os recursos legalmente vinculados à finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso (LRF, art. 8º, parágrafo único). Por isso, a disponibilidade de caixa constará, na escrituração das contas públicas, de registro próprio, de modo que os recursos vinculados a órgão, fundo ou despesa obrigatória fiquem identificados e lançados de forma individualizada (LRF, art. 50, I).

Como corolário, tem-se que os fluxos financeiros elaborados até o final do exercício, para efeito de se apurar a capacidade de pagamento necessária para que se possa contrair novas obrigações de despesa, dentro dos oito últimos meses do mandato, devem ser feitos isoladamente, ou seja, um para cada natureza de recurso, sendo que os saldos deles não se podem compensar. Diga-se, ainda, que essa programação financeira deve ser feita por cada um dos Poderes e órgãos referidos no art. 20 da LRF. Eis o planejamento exigido pelo regime de Gestão Fiscal Responsável.

Ressalte-se a relação de causa e efeito entre o ato de contrair obrigação de despesa que não possa ser paga e a inscrição em restos a pagar sem suficiente provisão de caixa. Pode-se até se falar em excesso de zelo do projeto original a LRF para com o equilíbrio fiscal quando se pretendia considerar como infração duas situações intrinsecamente correlacionadas, quais sejam, contrair obrigação de despesa sem previsão de pagamento (causa) e inscrever em restos a pagar sem a correspondente reserva financeira (efeito).

A relação da conduta descrita no art. 42 com a má inscrição em restos a pagar está expressa na própria LRF, quando coloca tal artigo na Seção VI do Capítulo VII – DA DÍVIDA E DO ENDIVIDAMENTO – intitulada DOS RESTOS A PAGAR.

Desse modo, pode-se dizer que os elementos históricos presentes na formulação da LRF, bem como sua interpretação lógico-sistemática, conduzem à idéia de que não é possível o gestor público, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, inscrever despesas em restos a pagar sem suficiente provisão de caixa. Aliás, a aceitação de tal prática negaria toda a finalidade da LRF.

Bom, se não é possível inscrever despesas em restos a pagar nessas condições, como ficaria a situação do fornecedor de bens ou serviços que, de boa fé - mas nessa situação -, negociou com o ente da Federação? Na hipótese de persistir o interesse do poder público ou o direito do credor, a despesa será regularmente orçada e empenhada no exercício subseqüente à conta da rubrica DESPESAS DE EXERCÍCIOS ANTERIORES (Lei nº 4.320/64, art. 37). Desse modo, fica preservado o equilíbrio nas contas públicas. Assim, a LRF quer também que aqueles que contratam com o governo atuem como fiscais da aplicação do dinheiro público no último ano do mandato do governante. Nessa época, por força do período eleitoral, a propensão a gastos imoderados tende a crescer.

Na prática, não será possível a aplicação simultânea dos arts. 359-B, 359-C e 359-F do Código Penal contra o mesmo agente (hipótese que poderia ocorrer no caso de Prefeito reeleito, por exemplo). Isso porque as condutas descritas em tais dispositivos são dependentes umas das outras, representando verdadeiro encadeamento de fatos. Nesse caso, aplica-se a sanção mais grave. É o princípio da consunção.

Pelo exposto, conclui-se que o operador do direito pode, por vários argumentos de interpretação da LRF, concluir que os termos do art. 42 da LRF servem para indicar o valor permitido em lei, a que se referem os arts. 359-B e 359-F do Código Penal.

Como se não bastasse toda essa complicação, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) editou a Portaria nº 447, de 13 de setembro de 2002, na qual define regra segundo a qual, por ocasião do encerramento de cada exercício, o beneficiário de transferência intergovernamental, observando o roteiro contábil contido no quadro anexo à citada portaria, deve contabilizar os Restos a Pagar registrados pela União – relativos a tributos já arrecadados e que comporão transferências constitucionais no ano seguinte - como RESTOS A RECEBER (ATIVO FINANCEIRO) em contrapartida a TRANSFERÊNCIAS INTERGOVERNAMENTAIS (RECEITAS). O neologismo RESTOS A RECEBER desafia o regime de caixa imposto para a contabilização das receitas públicas, segundo o art. 35, I, da Lei nº 4.320/64.

Em conseqüência, no final do ano de 2004, a Gerência de Apoio às Relações Federativas (GEARF), pertencente à Coordenação-Geral de Operações de Crédito de Estados e Municípios (COPEM), integrante da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), emitiu um comunicado, que não tem número nem data, segundo o qual "com vistas ao cumprimento do disposto na Portaria nº 447, de 13 de setembro de 2002, publicada no DOU de 18/09/2002, informamos que o repasse dos Fundos de Participação a ser creditado no dia 10 de janeiro de 2005 deverá ser contabilizado como receita orçamentária do exercício de 2004" (grifou-se). O fato curioso é que o mesmo órgão da STN, intitulado COPEM, através do Boletim – Ano VIII, nº 12, p.1, de dezembro de 2003, assinala que "com vistas ao cumprimento do disposto na Portaria nº 447, de 13 de setembro de 2002-DOU de 18/09/2002, informamos que o repasse dos Fundos de Participação creditado no dia 09 de janeiro de 2004 deverá ser contabilizado como receita do exercício de 2004"(grifou-se). Como se depreende, a COPEM repete os termos nas duas informações, mas utiliza critérios diferentes e contraditórios.

Pode-se concluir que, pelo conjunto da obra, a posição da COPEM/STN afronta expressamente dois dispositivos da Lei nº 4.320/64. O art. 34 que diz que o exercício financeiro coincidirá com o ano civil (1º de janeiro a 31 de dezembro). Mas, para aquele órgão, o ano de 2004 teve 366 dias para os Municípios empenharem despesas e 376 dias para arrecadarem receitas. O art. 35, I, determina que pertencem ao exercício financeiro as receitas nele arrecadadas (regime de caixa). Aquele órgão, porém, informa aos Municípios que devem contabilizar o repasse dos Fundos de Participação creditado no dia 10 de janeiro de 2005 como receita orçamentária de 2004, tendo como contrapartida uma tal conta RESTOS A RECEBER (sic), supostamente constante do ATIVO FINANCEIRO. Esse registro contábil só faz sentido quando se trata do regime de competência, segundo o qual as receitas são contabilizadas não em função da arrecadação, mas do fato gerador.

Pior que os arroubos da COPEM/STN, foi o estardalhaço promovido pelas Federações de Municípios de todo o País que, confundindo os denominados valores a receber com disponibilidade de caixa, orientaram os Prefeitos, com mandato em 2004, a inscrever empenhos em restos a pagar até o limite dos repasses das transferências constitucionais a serem creditados no dia 10 de janeiro de 2005.

Espera-se que os Tribunais de Contas, órgãos responsáveis pelo controle externo das contas públicas, e o Ministério Público, como fiscal da lei, tomem providências no sentido de rechaçar os malsinados atos da COPEM/STN.


Nota

1 MACHADO JR., José Teixeira, REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 comentada. 30 ª ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2000/2001, p. 137.


Autor

  • José de Ribamar Caldas Furtado

    José de Ribamar Caldas Furtado

    conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, mestre em Direito pela UFPE, professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário da UFMA, instrutor da Escola do Ministério Público do Maranhão

    foi auditor-fiscal da Receita Federal, analista de Finanças e Controle da União e auditor substituto de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURTADO, José de Ribamar Caldas. Os restos a pagar de final de mandato. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 607, 7 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6414. Acesso em: 19 abr. 2024.