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Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado

Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado

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No âmbito da segunda etapa da Reforma do Judiciário, prevê-se a instituição de foro privilegiado para o processo e julgamento de determinadas autoridades superiores em sede de ação popular, ação civil pública e ação de improbidade administrativa.

1 O foro privilegiado na Reforma do Judiciário

No âmbito da Reforma do Judiciário, prevê-se a instituição de foro privilegiado para o processo e julgamento de determinadas autoridades superiores em sede de ação popular, ação civil pública e ação de improbidade administrativa [1]. A proposta é estender o privilégio – que fora originalmente outorgado pela Constituição de 1988 apenas quanto às ações penais [2] – à seara cível, assegurando com isso maior independência a essas autoridades para o desempenho de suas funções.

Além disso, o proposto art. 97-A intenta, em seu caput, estender o privilégio a ex-autoridades, ao estabelecer que o foro privilegiado subsistirá, com relação a atos praticados no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, ainda que o inquérito ou a ação judicial venham a ser iniciados após a cessação do exercício da função.

O texto que contém essas inovações já foi aprovado em segundo turno pelo Senado Federal, encontrando-se atualmente na Câmara dos Deputados, para deliberação final [3].


2 O foro privilegiado na história constitucional brasileira

No constitucionalismo brasileiro, o foro privilegiado, não obstante muitas vezes tolerado, em caráter excepcional, para o processo e julgamento de determinadas autoridades públicas na esfera penal, sempre foi objeto de forte repulsa, desde a nossa primeira Constituição. Com efeito, mesmo no período imperial, em que vigorava o princípio monárquico, a Constituição de 1824 já dispunha, em seu art. 179, XVII: "À excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem commissões especiaes nas causas cíveis, ou crimes".

A proibição de foro privilegiado nas Constituições brasileiras – sempre expressa no capítulo dedicado aos direitos e garantias individuais – prosseguiu após a instauração da República. "À excepção das causas, que, por sua natureza, pertencem a juízos especiaes, não haverá foro privilegiado", prescrevia, de forma taxativa, o art. 72, § 23, da primeira Constituição republicana, de 1891.

A Constituição de 1934, por sua vez, inovou, agregando à cláusula proibitiva, no art. 113, nº 25, a vedação de tribunais de exceção: "Não haverá foro privilegiado nem tribunaes de excepção; admittem-se, porém, juízos especiaes em função da natureza das causas".

Percebe-se que as primeiras Constituições brasileiras excepcionavam da cláusula vedatória de foro privilegiado as causas que, por sua natureza, pertenciam a juízos especiais. Na verdade, do ponto de vista da teoria processual, a ressalva seria despicienda, pois a previsão de juízos especiais em razão da matéria não configura foro privilegiado, porquanto este é fixado com base em critérios pessoais e não materiais [4]. Exceção propriamente dita à regra proibitiva, encontrada nos diversos textos constitucionais brasileiros, é a previsão de hipóteses de foro privilegiado, sempre restritas ao âmbito penal, para o processo e julgamento de crimes, comuns ou de responsabilidade, imputados a determinadas autoridades públicas superiores. A ressalva mencionada tinha a virtude, porém, de enfatizar que somente a "natureza da causa", e não a qualidade da parte, poderia servir de critério para definição da competência de juízos especiais.

Todavia, a partir da Constituição de 1946 – que restabeleceu a garantia proibitiva, omitida na carta totalitária de 1937 – tem prevalecido o rigor técnico, mediante proibição vazada em fórmula concisa, sem a aludida ressalva, que passou a se considerar implícita. Dessa forma, preceituava o art. 141, § 26, daquela Constituição que "não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção".

O art. 153, § 15, da Constituição de 1967, inalterado pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969, manteve a proibição, nos seguintes termos: "A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção".

Já a Constituição de 1988, embora considerada a mais democrática de todas as Constituições brasileiras, não previu expressamente a vedação de foro privilegiado. Apesar disso, o seu art. 5º, XXXVII, dispõe que "não haverá juízo ou tribunal de exceção".

Carece de maiores investigações o alcance da proibição de juízo ou tribunal de exceção no art. 5º, XXXVII, da Constituição de 1988. No caso, cabe perquirir se a cláusula proibitiva abrange o foro privilegiado. Mais especificamente, deve-se apurar se houve uma evolução conceitual, de modo a incluir o foro privilegiado no conceito de juízo ou tribunal de exceção. Outra hipótese provável é a omissão deliberada da garantia proibitória de foro privilegiado na Constituição de 1988.

O exame dessas hipóteses, entretanto, far-se-á em tópico específico. Merecerá um tópico à parte, também, a pesquisa da contribuição do Supremo Tribunal Federal para a ampliação do foro privilegiado no Direito brasileiro.

Outro aspecto interessante a ser ressaltado no momento, pertinente ao desenvolvimento histórico da disciplina constitucional do foro privilegiado, concerne à terminologia do instituto. Consoante visto, adotou-se, durante toda a história constitucional brasileira, a expressão "foro privilegiado". A despeito disso, constata-se, na doutrina e na jurisprudência, uma preferência pelo emprego, em relação a autoridades públicas, da expressão "foro especial por prerrogativa de função", o que sugere uma interpretação restritiva, destinada a afastar do âmbito de proibição da norma as autoridades públicas, para as quais a previsão de foro especial não caracterizaria foro privilegiado.

Trata-se, sem dúvida, de entendimento discutível, pois conduz ao esvaziamento do conteúdo normativo da proibição, excluindo do seu âmbito de incidência os potenciais beneficiários, por excelência, desse tipo de privilégio, quais sejam, as autoridades públicas. Com efeito, a possibilidade prática de criação de foro privilegiado para particulares e servidores públicos subalternos é simplesmente impensável.

Na Reforma do Judiciário ora em trâmite, porém, intenta-se legitimar constitucionalmente esse entendimento, mediante a introdução da expressão "foro especial por prerrogativa de função" no texto da Constituição de 1988 [5].

Por último, registra-se neste escorço histórico que, paradoxalmente, em que pesem as já enaltecidas qualidades da Constituição de 1988, foi ela a mais generosa em conceder foro privilegiado a autoridades públicas, registrando dezenove hipóteses do privilégio em seu texto (arts. 29, X; 102, I, b e c; 105, I, a; e 108, I, a) [6].


3 A contribuição do Supremo Tribunal Federal para o alargamento do foro privilegiado

O Supremo Tribunal Federal tem desempenhado papel decisivo para o alargamento do foro privilegiado no Direito brasileiro.

Jurisprudência secular da Corte Suprema, consolidada na Súmula 394, editada em 03/04/1964, estendera, em exegese ampliativa, o foro privilegiado a ex-autoridades, na hipótese em que cometido o crime durante o exercício funcional, o inquérito ou a ação penal fossem iniciados após a cessação daquele exercício. Em 1999, contudo, o STF, em decisão exarada no Inquérito nº 687-SP, cancelou a súmula em questão, ao argumento principal de que a Constituição não foi explícita em atribuir o privilégio a ex-autoridades [7].

Outrossim, a Suprema Corte vislumbra, no § 1º do art. 125 da Constituição da República [8], a existência de autorização constitucional aos Estados-membros para inclusão, nas constituições estaduais, de novas hipóteses de foro privilegiado perante os respectivos Tribunais de Justiça.

No julgamento de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2587/GO, entendeu o STF que essa autorização era limitada, porquanto se exigia, para a outorga, pela constituição de Estado-membro, de foro privilegiado a determinada autoridade estadual, a previsão, na Constituição da República, do mesmo privilégio em favor de autoridade que lhe fosse correspondente no plano federal (critério da simetria com o modelo federal). Por conseqüência, o Tribunal suspendeu, até decisão final da ação, a eficácia de dispositivo constitucional estadual que incluíra, na competência penal originária por prerrogativa de função do Tribunal de Justiça, os delegados de polícia, os procuradores de Estado e da Assembléia Legislativa e os defensores públicos, tendo em vista que delegados federais, advogados da União e defensores públicos federais não gozam de privilégio de foro na Constituição Federal [9].

Todavia, no julgamento definitivo da citada ADIn, em 01/12/2004, o STF abandonou o critério de simetria em apreço. De fato, o Tribunal, por maioria, acompanhando a divergência iniciada pelo Ministro Carlos Britto, julgou constitucional a previsão, em constituição de Estado-membro, de foro privilegiado para defensores públicos e procuradores de Estado e de Assembléia Legislativa. Apenas quanto aos delegados de polícia, deixou-se de reconhecer o privilégio, sob o fundamento de que este seria incompatível com outras regras constitucionais, em especial a que trata do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público [10].

Uma prática comum do Governo Federal, chancelada pelo STF [11], consiste em atribuir "status" de ministro de Estado a determinadas autoridades – sem a correspondente transformação dos órgãos por elas titularizados em ministérios –, com o propósito, quando não exclusivo, ao menos principal, de resguardá-las, por meio do foro privilegiado assegurado na Constituição Federal aos ministros de Estado, da atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário federais de 1ª instância [12].

Em que pese o precedente do STF, entendemos que a atribuição dessa condição a quem não titulariza ministério deve ter repercussão apenas na esfera administrativa, financeira e protocolar, não atraindo a incidência do regime constitucional próprio dos Ministros de Estado [13].

A leniência da Suprema Corte no trato da matéria fez surgir um quadro de escárnio: proposta de anteprojeto de lei apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina, ao Colégio de presidentes de seccionais da OAB prevê foro privilegiado para advogados [14]. A idéia da proposta é estender aos advogados o mesmo tratamento dado a magistrados e membros do Ministério Público. Cremos, porém, que a Ordem dos Advogados do Brasil melhor cumpriria o seu papel, honrando uma rica história de defesa do regime democrático, se, ao invés de transigir com privilégios antidemocráticos, propusesse a extinção do foro privilegiado para magistrados e membros do Ministério Público.

Tradicionalmente, o STF negava a existência de foro privilegiado na seara cível – inclusive ação popular, ação de improbidade administrativa e ação civil pública –, sob o argumento de que o privilégio só fora previsto expressamente na Constituição Federal para o processo e julgamento de crimes [15].

A consolidação da jurisprudência do STF em relação a essa questão ensejou a propositura, pelo Ministério Público, de ações de improbidade administrativa contra diversas autoridades, em todas as esferas de governo. Em muitas dessas ações, o Poder Judiciário de 1ª instância decretava, a requerimento do Ministério Público, a indisponibilidade liminar de todos os bens dos acusados. Estavam postas, destarte, as condições históricas que resultariam no estabelecimento do foro privilegiado em ações de improbidade administrativa. Entretanto, far-se-ia necessário contornar a antiga jurisprudência do STF. Para tanto, só havia duas formas imagináveis: transmudar ato de improbidade administrativa em crime; ou emendar a Constituição Federal, instituindo expressamente foro privilegiado em ação de improbidade administrativa.

Embora não pareça crível, o próprio Tribunal, de início, encarregou-se da primeira alternativa, empreendendo a estranha metamorfose: assentou que, em relação aos agentes políticos, os atos de improbidade administrativa correspondem a crimes de responsabilidade.

Na Reclamação n º 2.138-DF, o Ministro-relator Nelson Jobim, em decisão liminar, suspendeu a eficácia de sentença condenatória proferida pela Justiça Federal de 1ª instância em ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal contra o então Ministro da Ciência e Tecnologia Ronaldo Sardenberg. Inicialmente, o Ministro Jobim fez distinção entre os regimes de responsabilidade político-administrativa previstos na Constituição Federal: o previsto no art. 37, § 4º, e regulado pela Lei 8.429/1992; e o regime do crime de responsabilidade, fixado no art. 102, I, c, e disciplinado pela Lei 1.079/1950. Em seguida, concluiu que os agentes políticos, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade, não respondem por improbidade administrativa com base na Lei 8.429/1992, mas por crime de responsabilidade, em ação a ser proposta perante o STF, nos termos do art. 102, I, c, da CF [16].

A decisão proferida na Reclamação nº 2.138-DF foi, conforme registrou Cassio Scarpinella Bueno [17], uma das peças chaves para a publicação da Lei 10.628/2002, que, modificando a redação do art. 84 do Código de Processo Penal, estendeu às ações de improbidade o foro privilegiado. Segundo o autor "[...] o contexto em que promulgada a Lei 10.628, de 2002, é bastante rico no sentido de que tudo se fez para deslocar para o Supremo Tribunal Federal o julgamento de ações de improbidade administrativa que envolviam o chamado ‘primeiro escalão do Executivo Federal’, para empregar o jargão jornalístico" [18].

Atualmente, a constitucionalidade da referida lei é apreciada pelo STF em ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB.

No julgamento da ADIn nº 2.797/DF, o relator, Ministro Sepúlveda Pertence, votou pela procedência das mencionadas ações, salientando que a ação de improbidade é de natureza civil, conforme se depreende do § 4º do art. 37 da Constituição Federal, e que o STF jamais entendeu ser competente para o conhecimento de ações civis, por ato de ofício, ajuizadas contra as autoridades para cujo processo penal o seria [19]. Em seguida ao voto do relator, o julgamento foi suspenso, em razão de pedido de vista do Ministro Eros Grau.

A outra estratégia cogitável, para instituição do foro privilegiado em ação de improbidade administrativa, é objeto da Reforma do Judiciário, ainda em curso no Congresso Nacional. Eis o fruto final da jurisprudência do STF em matéria de foro privilegiado: a tentativa de constitucionalização do privilégio não apenas em ação de improbidade administrativa, mas também em ação popular e ação civil pública.

No que tange à ação de improbidade administrativa, o Constituinte Derivado, buscando afastar qualquer questionamento judicial, tendo em vista os limites materiais ao poder de reforma constitucional estipulados no art. 60, § 4º, da Constituição, tenta, socorrendo-se ao recurso hermenêutico engendrado na Reclamação n º 2.138-DF, imprimir à alteração um caráter meramente explicitador de um regime supostamente instituído pelo Constituinte Originário. Nessa linha, o Congresso Nacional, em interpretação autêntica do texto constitucional originário, almeja transformar ato de improbidade administrativa em crime de responsabilidade, nos seguintes termos:

"Art. 97-A. A ação de improbidade de que trata o art. 37, § 4º, referente a crime de responsabilidade dos agentes políticos, será proposta, se for o caso, perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de função, observado o disposto no caput deste artigo".


4 A Proibição de foro privilegiado na Constituição de 1988

Como visto, a Constituição de 1988 não trouxe expressa em seu texto a proibição de foro privilegiado.

A princípio, experimenta-se certa perplexidade ao se constatar que a mais democrática e republicana de todas as Constituições brasileiras tenha, quebrando uma tradição que remonta à primeira Constituição pátria, e perpassa toda a nossa história constitucional, com exceção do curto período em que vigorou a Carta fascista de 1937, excluído do rol de direitos e garantias individuais a proibição do foro privilegiado.

Esse sensação se desfaz, contudo, quando se observa que, no estágio atual da doutrina e da jurisprudência brasileiras, essa proibição configura decorrência necessária do Princípio do Juiz Natural, extraído do art. 5º, incisos XXXVII ("não haverá juízo ou tribunal de exceção") e LIII ("ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente"), da Constituição. Nesse contexto, a magistratura de 1º grau constitui o juiz natural dos brasileiros.

Na lição de Alexandre de Moraes, a Constituição Federal, ao consagrar, no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, o Princípio do Juiz Natural, não permite a criação de novas hipóteses de foro privilegiado, além das já previstas em seu texto [20].

Na jurisprudência, colhe-se a posição do ex-Ministro Moreira Alves, que, durante o debate travado no STF por ocasião do julgamento de questão de ordem suscitada no Inquérito nº 687-SP, assentou que "a prerrogativa de foro é, sem dúvida, excepcional. Ela afasta o Juiz natural nos termos estritos da Constituição [...]" [21].

No mesmo diapasão, o Ministro Carlos Velloso, em voto-vista proferido no referido julgamento, asseverou, após acentuar que "o foro por prerrogativa de função é tributo que pagamos pelo fato de termos sido Império": "Os cidadãos devem ser julgados pelo juiz natural de todos eles. Assim, as normas que estabelecem foro privilegiado, que é o nome correto do foro por prerrogativa de função, devem ser interpretadas em sentido estrito, sem possibilidade de ampliação [...]".

A seu turno, o Ministro Celso de Mello frisou, em recente despacho, que o foro privilegiado constitui "derrogação extraordinária aos postulados da igualdade e do juiz natural" [22].

Pode-se dizer que a proibição de foro privilegiado representa uma garantia inibitória de tratamento privilegiado; nesse sentido, é um desdobramento natural do princípio isonômico. Mais do que isso, consoante observou Fábio Konder Comparato, é inerente ao regime político modelado pela Constituição Federal [23].

Prescreve a Constituição, logo em seu art. 1º: a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Resultam claros, pois, os pilares que sustentam a ordem estatal da federação brasileira: república, democracia e Estado de Direito; todos convergindo para o tratamento igualitário entre os cidadãos brasileiros, sem distinção entre governantes e governados. Desse modo, é sob o prisma dessa ordem estatal que deve ser interpretado o princípio insculpido no art. 5º da Constituição: a isonomia constitucional não se esgota em uma igualdade jurídica formal, apolítica; antes, é uma igualdade viva, republicana, democrática.

Diante dessas considerações, carece de importância jurídica perquirir se o Constituinte de 1988 excluiu deliberadamente a vedação de foro privilegiado do texto constitucional; porquanto a garantia proibitória permaneceu incólume, conquanto implícita e não mais expressa, como corolário dos mencionados dispositivos constitucionais, bem como do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal [24]. Cuida-se de uma garantia clássica, de conteúdo negativo, que impede seja o indivíduo tratado como cidadão de segunda classe.


5 Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado

O foro privilegiado, como o próprio nome indica, significa o privilégio assegurado a determinadas pessoas, em geral autoridades públicas [25], de apenas serem submetidas a julgamento em instâncias especiais, de grau superior, ao contrário do cidadão comum, sujeito a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante magistrados de carreira de 1ª instância.

No Brasil, predomina o entendimento, tanto em sede doutrinária [26], quanto jurisprudencial [27], de que o foro privilegiado não configura um privilégio pessoal outorgado à autoridade, mas uma prerrogativa funcional destinada a resguardar o regular exercício do cargo público; daí a preferência, nesses meios, pela expressão "foro por prerrogativa de função", cuja matiz ideológica, todavia, não se deixa ocultar; ou que, pelo menos, mal consegue dissimular um certo desconforto em se admitir a verdadeira natureza jurídica do instituto: um privilégio – previsto em sede constitucional, é verdade, mas um privilégio, isto é, mera exceção a um regime jurídico geral ao qual se submetem todos, governantes e governados [28]. Não se trata, pois, de prerrogativa, porquanto esta atende a especificidades próprias das diferentes funções estatais: a inviolabilidade assegurada aos parlamentares por suas opiniões, palavras e votos (CF, art. 53) [29]; e a independência funcional dos magistrados, são exemplos clássicos de prerrogativas.

Não se nega, porém, que o foro privilegiado, a par de configurar um privilégio para os seus titulares, cumpra uma finalidade reconhecida pela ordem constitucional; ao revés, reconhece-se, na opção do constituinte de 1988, o interesse em garantir o livre exercício dos mandatos político-representativos e das funções superiores do Estado, para o qual, segundo essa opção, é indispensável a previsão de foro privilegiado, nos termos definidos pela Constituição.

Nesse contexto, resta claro um conflito entre valores de dignidade constitucional: a submissão igualitária de todos, autoridades e cidadãos comuns, ao império do direito; e a estabilidade necessária ao exercício das funções públicas.

Esse conflito, como qualquer outro de natureza constitucional, somente se resolve mediante a compatibilização dos interesses em antagonismo. Essa harmonização, contudo, não resulta de uma pura teoria geral, vale dizer, não se infere do Direito Constitucional Geral; ao contrário, é objeto do Direito Constitucional Positivo. Assim sendo, deve-se perquirir como a ordem constitucional da República Federativa do Brasil soluciona o conflito entre esses valores. Enfim, cumpre delinear os limites traçados para o foro privilegiado pela Constituição de 1988.

Conforme assentado, no regime constitucional brasileiro a proibição de foro privilegiado é uma garantia individual. Em consonância com essa premissa, a Constituição conferiu disciplina restritiva ao privilégio: limitou-o ao âmbito penal, de onde partem as mais graves ameaças impostas pelo Estado à liberdade humana; vale dizer, não transigiu com a garantia senão o estritamente necessário à estabilidade almejada para o exercício dos mandatos político-representativos e das funções estatais superiores [30]. Destarte, ressalvada a previsão de foro privilegiado para o processo e julgamento de determinadas autoridades pela prática de crime, vigora a submissão igualitária de todos os cidadãos brasileiros ao Poder Judiciário. Nas palavras do Ministro Carlos Velloso, anteriormente citadas, "as normas que estabelecem foro privilegiado [...] devem ser interpretadas em sentido estrito, sem possibilidade de ampliação [...]".

Pretende-se, agora, com a Reforma do Judiciário, substituir essa ponderação de valores do Poder Constituinte Originário – assentada em princípios basilares do Estado brasileiro –, ampliando o foro privilegiado para ações populares, ações civis públicas e ações de improbidade; e, o que é pior, reconhecendo-o em favor de ex-autoridades.

Ocorre que, de acordo com o art. 60, § 4º, IV, da Constituição, a proibição de foro privilegiado encontra-se albergada por cláusula pétrea, que representa verdadeira barreira ao poder de reforma constitucional. Por força do mencionado dispositivo, somente o Poder Constituinte Originário pode prever, seja criando ou ampliando, exceções a direitos e garantias individuais [31].

Na doutrina, o constitucionalista luso Jorge Miranda, embora adote uma posição restritiva quanto ao alcance das cláusulas pétreas [32], reconhece:

"II – É inconstitucional – materialmente inconstitucional, e com gravidade crescente – uma lei de revisão que:

a)Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais que devam reputar-se limites materiais da revisão, embora implícitos (por exemplo, uma lei de revisão que estabeleça discriminação em razão da raça, infringindo, assim o princípio da igualdade);

b)Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materias expressos (por exemplo, uma lei de revisão que estabeleça censura à imprensa, afectando, assim, o conteúdo essencial de um direito fundamental de liberdade);

c)Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos, com concomitante eliminação ou alteração da repectiva referência ou cláusula;

d)Estipule como limites mareriais expressos princípios contrários a princípios fundamentais da Constituição" [33].

Na jurisprudência, o próprio STF já decidiu, na ADIn nº 939/DF, que o estabelecimento de exceção a garantia individual pelo Constituinte Derivado viola cláusula pétrea da Constituição Federal [34].

Em voto proferido na citada ação, o Ministro-relator Sydney Sanches frisou:

"12. Nem me parece que, além das exceções ao princípio da anterioridade, previstas expressamente no § 1º do art. 150, pela Constituição originária, outras pudessem ser estabelecidas por emenda constitucional, ou seja, pela Constituição Derivada.

13. Se não se entender assim, o princípio e a garantia individual tributária, que ele encerra, ficariam esvaziados, mediante novas e sucessivas emendas constitucionais, alargando as exceções, seja para impostos previstos no texto originário, seja para os não previstos" [35].

No mesmo julgamento, o Min. Marco Aurélio, após assentar que o principio da anterioridade é uma garantia constitucional, afirmou que as exceções ao princípio foram taxativamente fixadas pelo legislador constituinte de 1988, o que impede a ampliação desse rol de exceções por emenda constitucional [36].

Igualmente, anotou o Min. Carlos Velloso que "[...] a Emenda Constitucional nº 3, desrespeitando ou fazendo tábula rasa do princípio da anterioridade, excepcionando-o, viola limitação material ao poder constituinte derivado, a limitação inscrita no art. 60, § 4º, IV, da Constituição" [37].

O Min. Celso de Mello também perfilhou o mesmo entendimento:

"O princípio da anterioridade da lei tributária, além de constituir limitação ao poder impositivo do Estado, representa um dos direitos fundamentais mais relevantes outorgados pela Carta da República ao universo dos contribuintes. Não desconheço que se cuida, como qualquer outro direito, de prerrogativa de caráter meramente relativo, posto que normas constitucionais originárias já contemplam hipóteses que lhe excepcionam a atuação.

Note-se, porém, que as derrogações a esse postulado emanaram de preceitos editados por órgãos exercentes de funções constituintes primárias: a Assembléia Nacional Constituinte. As exceções a esse princípio foram estabelecidas, portanto, pelo próprio poder constituinte originário, que não sofre, em função da natureza dessa magna prerrogativa estatal, as limitações materiais e tampouco as restrições jurídicas impostas ao poder reformador"

[...]

A reconhecer-se como legítimo o procedimento da União Federal de ampliar a cada vez, pelo exercício concreto do poder de reforma da Carta Política, as hipóteses derrogatórias dessa fundamental garantia tributária, chegar-se-á, em algum momento, ao ponto de nulificá-la inteiramente, suprimindo, por completo, essa importante conquista jurídica que integra, como um dos seus elementos mais relevantes, o próprio estatuto constitucional dos contribuintes" [38].

Em síntese, considerando-se a ordem constitucional concreta da República Federativa do Brasil, somente o Constituinte Originário pode instituir foro privilegiado; e este só o fez em matéria penal.

Na verdade, o art. 60, § 4º, IV, traça os limites intransponíveis do regime funcional especial dos agentes políticos como um todo – o qual abrange tanto os privilégios quanto as prerrogativas: assim como não se permite estender o foro privilegiado a ações cíveis, é inadmissível, por exemplo, abrigar, sob o manto da imunidade parlamentar material, outras espécies de crimes, que não os de opinião, palavra e voto; tampouco se concebe outorgar prerrogativas previstas para os membros do Poder Legislativo – imunidades parlamentares materiais e processuais – a autoridades de outros Poderes. Em todos esses casos, a modificação do regime funcional especial encontra óbice incontornável no princípio da isonomia [39].


6 Natureza jurídica do ato de improbidade administrativa

Conforme consignado linhas atrás, o legislador da Reforma do Judiciário, buscando afastar qualquer questionamento judicial quanto ao proposto art. 97-A, tendo em vista o art. 60, § 4º, IV da Constituição, intenta transformar ato de improbidade administrativa em crime de responsabilidade.

A tese da natureza de crime de responsabilidade do ato de improbidade administrativa foi suscitada por Ives Granda da Silva Martins em parecer sobre questões relacionadas às denúncias que culminaram no "impeachment" do então Presidente da República Fernando Collor de Melo [40].

Partindo da falsa premissa de que o ato de improbidade administrativa configura crime, chega a afirmar o eminente constitucionalista que "o crime de improbidade administrativa não é um crime comum, mas um crime de responsabilidade" [41]. Não existiria, assim, o ato de improbidade administrativa como figura autônoma. Essa confusão, contudo, é compreensível se atentarmos para o fato de que o parecer em questão foi elaborado poucos meses após a publicação da Lei nº 8.492/1992 – que, pela primeira vez no Direito brasileiro, disciplinou de forma sistemática os atos de improbidade administrativa.

Desenvolvendo essa tese, Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes, em artigo acerca da competência em ação de improbidade administrativa [42], tendo destacado que a possibilidade de suspensão de direitos políticos e decretação de perda da função pública faz da ação de improbidade uma "ação civil de forte conteúdo penal", com incontestáveis aspectos políticos, asseveram:

"Se os delitos [sic] de que trata a Lei nº 8.492/92 são, efetivamente, ‘crimes de responsabilidade’, então é imperioso o reconhecimento da competência do Supremo Tribunal Federal toda vez que se tratar de ação movida contra Ministros de Estado ou contra integrantes de Tribunais Superiores (CF, art. 102, I, c)".

Em que pese a excelência dos seus expositores, é impossível deixar de reconhecer que a doutrina em referência não encontra apoio no texto constitucional. De fato, salvo quanto ao Presidente da República (art. 85, V), não há um dispositivo constitucional sequer que autorize a equiparação entre ato de improbidade administrativa e crime de responsabilidade. Ao revés, a Constituição de 1988 é precisa ao fixar, em seu art. 37, § 4º, a natureza civil do ato de improbidade administrativa: "Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível" (43).

Interpretando esse dispositivo, conclui Fabio Konder Comparato: "Se, por conseguinte, a própria Constituição distingue e separa a ação condenatória do responsável por atos de improbidade administrativa às sanções por ela expressas, da ação penal cabível, é, obviamente, porque aquela demanda não tem natureza penal" [44].

Como visto, a Constituição não deixa dúvida quanto à natureza civil do ato de improbidade; acrescendo a isso a previsão de sanções tipicamente judiciais – em especial, ressarcimento ao erário e indisponibilidade de bens –, tem-se o caráter específico do regramento constitucional conferido à improbidade administrativa, que revela o claro propósito de submetê-la a processo e julgamento essencialmente jurídicos [45].

É, pois, sob o prisma do due process of law que devem ser interpretadas as sanções de perda do cargo público e de suspensão dos direitos políticos. Note-se, a propósito, que a aplicação dessas sanções somente produz efeitos após o trânsito em julgado da sentença condenatória [46]. De resto, a medida cautelar de indisponibilidade de bens e a sanção de ressarcimento do dano causado ao erário sequer se compadecem com a natureza e dinâmica de processo e julgamento políticos [47]. Enfim, a Constituição de 1988, prestigiando o critério técnico-jurídico, resguardou o processo e julgamento dos atos de improbidade administrativa das indesejadas injunções políticas.

Diante dessas observações, não cabe, mediante burla ao sistema de privilégios instituído pelo Constituinte Originário, transformar improbidade administrativa em crime de responsabilidade – que ostenta forte conotação política. Com efeito, é inconcebível que o Poder Constituinte Derivado altere a natureza jurídica de instituto criado pelo Poder Constituinte Originário, se dessa alteração resulta a vulneração de cláusula pétrea; em outras palavras, o próprio art. 60, § 4º, da Constituição, obsta que, por meio de construções normativas fraudulentas, sejam contornados os limites materiais impostos ao poder de reforma constitucional.

No tocante ao entendimento firmado na Reclamação n º 2.138-DF, cumpre objetar que é inadmissível restringir o âmbito normativo do art. 37, § 4º, dele excluindo os agentes políticos, dado que o referido dispositivo constitucional dispôs amplamente em perda da "função pública", não limitando os seus efeitos aos ocupantes de cargo ou emprego público.

Em resumo: 1) ato de improbidade administrativa não se confunde com crime de responsabilidade; 2) o regime constitucional da improbidade administrativa abrange os agentes políticos; 3) a Constituição não previu foro privilegiado para o processo e julgamento de ato de improbidade administrativa; 4) O art. 60, § 4º, da Constituição veda a criação de novas hipóteses de foro privilegiado pelo poder de reforma constitucional.


7 Alcance das cláusulas pétreas

A tese defendida no presente artigo suscita o problema do alcance das cláusulas pétreas, uma vaexata quaestio na Teoria da Constituição [48].

A principal objeção aos limites materiais de reforma constitucional é a de que "um povo tem sempre o direito de rever, reformar e modificar a sua constituição. Uma geração não pode sujeitar a suas leis as gerações futuras" [49]; outrossim, argumenta-se que as cláusulas pétreas não podem conter o evolver dos valores sociais, sob pena de fomentar "o seu descumprimento ou adulteração mediante uma interpretação mutativa contra constitutionem, e até a sua derrogação pelo direito constitucional consuetudinário (desuetudo)" [50], bem como ensejar a ocorrência de golpe revolucionário, como último recurso à sua superação.

Sem perder de vista a relevância dessas objeções, cumpre ressaltar que, do ponto de vista normativo, não há como negar eficácia a cláusulas que prevêem expressamente limitações materiais ao poder de reforma constitucional: como qualquer outra norma constitucional, ostentam força normativa [51]; tanto maior quanto se verifica que esses limites constituem o cerne de juridicidade da ordem constitucional, que não pode ficar ao sabor de oscilações das maiorias legislativas [52]. Sob outro prisma, tendo em vista a concepção moderna de poder constituinte, de nada adianta postular a participação direta do povo no estabelecimento da constituição, se os princípios fundamentais que a informam puderem ser livremente alterado pela via democrática indireta – que nem sempre traduz as legítimas aspirações populares. Por essa razão, o jurista alemão Friedrich Müller assinala que, além de "procedimentos democráticos de elaboração e/ou entrada em vigor da Constituição", "[...] os textos de norma sobre o poder constituinte do povo exigem também que todo o poder do Estado e seu sistema jurídico nunca se afastem do cerne material do ordenamento democrático", identificando no art. 79, III, da Lei Fundamental alemã – referente aos limites do poder de reforma constitucional naquele país – o "efeito jusmaterial do poder constituinte do povo" [53].

Nessa linha de raciocínio, sustentamos que a interpretação conjugada dos arts. 1º, parágrafo único ("todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" [54]), e 60, § 4º, da Constituição ("não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir [...]") leva à conclusão de que qualquer restrição a normas pétreas reclama a participação direta do povo, de acordo com procedimentos os mais democráticos possíveis [55]. Dessa forma, concordamos com a assertiva de que uma geração não pode submeter as gerações posteriores aos seus valores de vida; porém, entendemos que somente o titular do poder constituinte originário pode dispor do cerne material da Constituição [56].

Diante do exposto, conclui-se que, em respeito ao princípio democrático, a eficácia das cláusulas pétreas deve ser ampla, de modo a possibilitar o controle popular das propostas de reforma constitucional que possam restringir o âmbito normativo de dispositivos constitucionais petrificados [57].


8. Conclusão

Não são desprezíveis as preocupações daqueles que defendem o foro privilegiado em ações cíveis, especialmente ações de improbidade. Impressiona, cumpre admitir, o argumento de que o exercício de elevadas funções públicas pressupõe um grau de estabilidade que não se compadece com a permanente sujeição a acusações temerárias. À primeira vista, também, parece realmente absurda a possibilidade de um juiz de 1º grau decretar, a pedido de um procurador da República, a perda do cargo de um ministro do Supremo Tribunal Federal.

Um exame mais acurado da questão, entretanto, revela que o Constituinte Originário, sopesando essas preocupações com o clamor da sociedade por um combate efetivo ao mal da corrupção [58] – que tanto aflige o Brasil –, optou nitidamente, como visto, por resguardar o processo e julgamento dos atos de improbidade das indesejadas injunções políticas, ao mesmo tempo em que assegurou aos acusados todas as garantias inerentes ao processo judicial. Ora, como é cediço, descabe, nesse âmbito, falar em relação hierárquica entre tribunais superiores e juízes, o que só seria apropriado caso se tratasse de processo administrativo disciplinar.

Desse modo, nada recomenda substituir, nessas ações, o Poder Judiciário de primeira instância – integrado por magistrados de carreira, concursados, e por isso menos suscetíveis a vinculações políticas –, por órgãos jurisdicionais de cúpula, como o Supremo Tribunal Federal, cujos membros são todos nomeados pelo Presidente da República, predominantemente com base em critérios políticos. Muito pior, ainda, é concentrar em uma única pessoa, o Procurador-Geral da República, o poder soberano de decidir pelo exercício ou não da acusação contra as elevadas autoridades da República. Note-se que, de acordo com o art. 128 da Constituição, o senhor absoluto da acusação no Estado brasileiro é de livre nomeação do Presidente da República, dentre integrantes da carreira do Ministério Público da União, após aprovação de seu nome pelo Senado Federal; depende, ainda, do mesmo procedimento para a sua recondução ao cargo; e, o que é mais grave, pode ser destituído a qualquer momento, também mediante indicação do Presidente da República e autorização do Senado Federal. Diante dessa disciplina constitucional, o que esperar da independência funcional do Procurador-Geral da República? No mínimo, uma certa afinidade ideológica com o Governo.

Por óbvio, não se afasta a atuação ideológica de um membro do Ministério Público com atuação na primeira instância; todavia, esta é meramente eventual; não decorre do sistema em si mesmo. Nesse caso, os "abusos" e "arroubos" da acusação serão prontamente corrigidos pelo Judiciário, seja de primeira instância ou de instâncias superiores, incluindo o próprio Supremo Tribunal Federal. Enfim, a própria evolução da jurisprudência dará a maturidade necessária ao manejo dessas ações. Nesse sentido, já se reconhece a aplicação do princípio da proporcionalidade às ações de improbidade, o que permite ao aplicador dosar as sanções previstas em lei, até mesmo para deixar de decretar a sanção de perda do cargo, que deve ficar reservada aos casos mais graves.

Em remate, constitui máxima de hermenêutica não omitir os efeito sociais da interpretação. As ações de improbidade, bem como as ações populares e ações civis públicas, quase sempre envolvem aspectos fáticos de alta complexidade. Por isso, não parece viável substituir a atuação de centenas de procuradores da República, promotores de Justiça e magistrados nessas ações, pela luta quixotesca de doze homens: um Procurador-Geral da República e onze ministros do Supremo Tribunal Federal.


Notas

1 Quanto ao foro para ação popular e ação civil pública, as alterações propostas, segundo o texto da Proposta de Emenda à Constituição nº 358/05, em trâmite na Câmara dos Deputados, são as seguintes: 1) "julgamento do Prefeito, por atos praticados no exercício da função ou a pretexto de exercê-la, perante o Tribunal de Justiça" (art. 29, X); 2) competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente, "[...] a ação popular e a ação civil pública contra atos do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal" (art. 102, I, d ); 3) competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, "[...] as ações populares e as ações civis públicas contra ato de Ministro de Estado, dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica ou do próprio Tribunal" (art. 105 I b). No que concerne à ação de improbidade, propugna-se pela inclusão no texto constitucional do art. 97-A, cujo parágrafo único estatui que "A ação de improbidade de que trata o art. 37, § 4º, referente a crime de responsabilidade dos agentes políticos, será proposta, se for o caso, perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de função, observado o disposto no caput deste artigo" (Cf. BRASIL. Câmara dos Deputados. Consulta Tramitação das Proposições. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2005).

2 Somente é apropriado falar em foro privilegiado no tocante a ação de que possa resultar aplicação de sanção ao acusado; por conseguinte, não se deve incluir nessa categoria a previsão de competência originária dos tribunais para o processo e julgamento dos seguintes remédios constitucionais: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança e mandado de injunção.

3 Parte da Reforma do Judiciário, aprovada em segundo turno pelo Senado Federal sem modificações ao texto aprovado pela Câmara dos Deputados, foi promulgada como Emenda Constitucional nº 45, em 8 de dezembro de 2004.

4 Entendemos que a competência hierárquica ou funcional no fundo resulta em uma competência pessoal, sobretudo quando protege a autoridade beneficiária contra qualquer tipo de acusação, ainda que fundada em fatos estranhos ao exercício da função púbica.

5 cf. nota 1 supra.

6 Desenvolvimento singular apresenta o privilégio de foro para deputados federais e senadores, contemplado no art. 102, I, b, da vigente Constituição. Instituído em 1824, pela Constituição do regime monárquico, fora extinto pela primeira Constituição da República, de 1891, somente voltando a obter consagração constitucional em 1969, com a publicação da Emenda Constitucional nº 01 à Constituição de 1967.

Em voto-vista proferido no julgamento do Inquérito nº 687-SP, o Ministro Sepúlveda Pertence anotou, após pesquisa de Direito Constitucional Comparado, que somente encontrara regra semelhante à que estipula privilégio de foro para membros do Congresso Nacional nas Constituições da Espanha (art. 71, 4) e da Venezuela (art. 215, 1º e 2º). Com relação à Constituição da Venezuela, assentou o Ministro que "a competência da Suprema Corte é restrita a ‘declarar se há procedência ou não para o julgamento’ e, em caso afirmativo, remeter o caso ao tribunal comum competente, onde, no entanto, a instauração do processo contra membro do Congresso dependerá da licença da sua Câmara (Const., art. 144)" (Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 179, p. 934, jan/mar 2002).

7 "EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. PROCESSO CRIMINAL CONTRA EX-DEPUTADO FEDERAL. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA. INEXISTÊNCIA DE FORO PRIVILEGIADO. COMPETÊNCIA DE JUÍZO DE 1º GRAU. NÃO MAIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CANCELAMENTO DA SÚMULA 394. 1. Interpretando ampliativamente normas da Constituição Federal de 1946 e das Leis nºs 1.079/50 e 3.528/59, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, consolidada na Súmula 394, segunda a qual, ‘cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício’. 2. A tese consubstanciada nessa Súmula não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, ‘b’, estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar ‘os membros do Congresso Nacional’, nos crimes comuns. Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, ‘b’ e ‘c’). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato. Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita pelo Tribunal. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos. 3. Questão de Ordem suscitada pelo Relator, propondo cancelamento da Súmula 394 e o reconhecimento, no caso, da competência do Juízo de 1º grau para o processo e julgamento de ação penal contra ex-Deputado Federal. Acolhimento de ambas as propostas, por decisão unânime do Plenário [...]" (RT J, v. 179, p. 912 e ss.).

8 "Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 1º - A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.

[...]".

9Informativo STF, nº 286, 14 a 18 out. 2002. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2005.

10 Considerou-se, nos termos dos fundamentos do voto do Min. Gilmar Mendes, a necessidade de se garantir a determinadas categorias de agentes públicos, como a dos advogados públicos, maior independência e capacidade para resistir a eventuais pressões políticas, e, ainda, o disposto no § 1º do art. 125 da CF, que reservou às constituições estaduais a definição da competência dos respectivos tribunais (Informativo STF, nº 372, 29 nov. a 3 dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2005).

11 O Tribunal, em questão de ordem no Inquérito 1.660-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, reconheceu a sua competência para conhecer e julgar queixa-crime contra o Advogado-Geral da União, tendo em vista a edição da Medida Provisória 2.049-22, de 28.8.2000, que transformou o cargo de Advogado-Geral da União, anteriormente de natureza especial, em cargo de ministro de Estado, atraindo a incidência do art. 102, I, c, da CF, de acordo com o qual compete ao STF processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de Estado (cf. Informativo STF, nº 201, 4 a 8 set. 2000. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2005). Posteriormente, no Inq. 2.044 QO/SC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, o Tribunal reafirmou a dicotomia entre os cargos de Ministro de Estado, atualmente fixados pelo art. 25, parágrafo único, da Lei nº 10.863/2003 ("São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, o Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Chefe da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República, o Advogado-Geral da União, o Ministro de Estado do Controle e da Transparência e o Presidente do Banco Central do Brasil"), e os de natureza especial que conferem prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos primeiros, constantes no art. 38, § 1º, da mesma lei ("Art. 38. São criados os cargos de natureza especial de Secretário Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, de Secretário Especial de Agricultura e Pesca, de Secretário Especial dos Direitos Humanos e de Secretário Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. § 1º. Os cargos referidos no caput terão prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado"). Entendeu-se, no caso, que o secretário especial de agricultura e pesca, por não ser ministro de Estado, não possui a prerrogativa de foro estabelecida no parágrafo único do art. 25, da Lei 10.683/2003, e que a extensão de prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos ministros de Estado a que alude o §1º do art. 38 da referida lei repercute somente nas esferas administrativa, financeira e protocolar, mas não na estritamente constitucional (cf. Informativo STF, nº 374, 13 a 17 dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2005).

12 O caso mais recente, a espelhar fraude manifesta à Constituição Federal, foi o reconhecimento, por Medida Provisória (Medida Provisória nº 207/2004 – a "MP do Meireles", como ficou conhecida, em alusão ao beneficiário direto da medida –, convertida na Lei nº 11.036/2004), do "status" de ministro de Estado a presidentes e ex-presidentes do Banco Central, com o objetivo confesso de "blindar" – conforme amplamente noticiado pela imprensa – o atual presidente da autarquia, Henrique Meireles, de investigação promovida pelo Procuradoria da República no Distrito Federal. Ressalta-se de pitoresco no caso, além da espécie legislativa empregada, o fato de o Banco Central, cujo presidente foi agraciado com o "status" de ministro de Estado, estar vinculado a um ministério, qual seja, o Ministério da Fazenda (Decreto nº 5.136/2004, art. 2º, IV, a).

13 Em despacho prolatado na Petição nº 1.199-6/SP, o Min. Celso de Mello, em percuciente análise, salientou os preceitos constitucionais que compõem o estatuto jurídico concernente ao ministro de Estado: (a) competência para referendar atos e decretos do presidente da República (art. 87, parágrafo único, I); (b) definição do órgão judiciário competente para apreciar mandados de segurança e habeas corpus (art. 105, I, b e c); (c) prerrogativa de foro ratione numeris perante o STF, nas infrações penais comuns (CF, art. 102, I, c), ou perante o Senado Federal, na hipótese de crime de responsabilidade conexo com ilícito da mesma natureza praticado pelo presidente da República (art. 52, I); (d) regramento pertinente à remuneração funcional (CF, art. 49, VIII); e (e) direito de comparecer, por sua iniciativa, perante as casas do Congresso ou qualquer de suas comissões (art. 50, § 1º) (apud Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 1273-1274). A natureza específica do estatuto constitucional do ministro de Estado não passou despercebida ao Min. Carlos Brito, que, após sublinhá-la, em decisão proferida na Rcl. 2.417/SC, pontificou: "V- Esse vínculo funcional que a Magna Carta estabelece entre ministro e ministério não pode sofrer desfazimento por conduto de lei. A lei menor não pode desenlaçar os dois termos. São coisas inapartáveis, por definição, pois o regime jurídico de uma e de outra figura, à semelhança do enlace operacional entre Presidência e Presidente, decorre é do Texto Magno mesmo. [...] VI - É nessa constitucional condição de titular de um ministério – unidade mais importante de toda a Administração Pública Federal – que o Ministro de Estado desfruta de foro especial. Foro especial por prerrogativa de função... ministerial. Tudo resultante de comando ainda uma vez emitido pela Constituição Republicana, diretamente. Insuscetível de remodelagem por outro cinzel legislativo que não seja daquela mesma estirpe constitucional. 16. Este encadeado raciocínio não recusa à lei menor a força de conferir ‘status’ de ministro, para certos efeitos, a quem ministro não é. São os contraídos efeitos a que se refere o percuciente Ministro Celso de Mello, já mencionados linhas atrás. Modo criativo e pragmático de sobrevalorizar determinadas funções e autoridades, mas sem aquela plenitude eficacial que implicaria até mesmo ampliar o rol das competências do Supremo Tribunal Federal. 17. Esclareça-se que esta mesma lucubração não importa desconhecer que é próprio da lei menor criar ministérios e os cargos de Ministros de Estado. Evidente. O que se está a negar é a possibilidade de a lei infraconstitucional separar o que a Constituição uniu. Tal como se diz na liturgia católica dos casamentos, com a frase altissonante: ‘O que Deus uniu, o homem não separe’" (Informativo STF, nº 376, 14 a 18 fev. 2005. Disponível em: . Acesso em: 2 mar 2005).

14 De acordo com a notícia da proposta, publicada no sítio Consultor Jurídico (), em 26 de novembro de 2004, "o anteprojeto prevê que, nos crimes comuns, praticados no desempenho da profissão perante juízos federais de primeira instância, o advogado será processado e julgado pelos Tribunais Regionais Federais. Quando o crime comum for praticado no desempenho profissional, perante juízes de primeira instância estadual, o advogado será processado e julgado pelos tribunais de justiça".

Consta das justificativas da proposta:

"[...] a Constituição Federal, secundada pelas constituições estaduais e por leis infra-constitucionais, dentre essas as leis e códigos de organização judiciária dos diversos Tribunais de Justiça do país, consagra aos magistrados e membros do Ministério Público o foro especial por prerrogativa de função, sendo que a esses dois órgãos fica garantido o postulado do juiz natural ‘diferenciado’ (CF, art. 5º, LIII), na forma dos diplomas legais mencionados.

Por outro lado, o arcabouço legal pátrio não deu o mesmo tratamento aos advogados, não obstante tenha preceituado o artigo 133 da Constituição da República que ‘O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei’.

Na mesma linha de entendimento, o artigo 2º da Lei n. 8.906/94 estabelece que ‘O advogado é indispensável à administração da justiça’ e em seu Parágrafo 1º acentua que ‘no seu ministério privado, o advogado contribui na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem munus público’.

[...]

Pois bem, sendo o advogado ‘indispensável à administração da justiça’; prevendo a lei que mesmo ‘no seu ministério privado’ ‘seus atos constituem munus público’, portanto exercente de função pública, nada há a impedir que aos advogados seja atribuído o mesmo privilégio de foro decorrente da prerrogativa de função dispensado aos magistrados e membros do Ministério Público".

15 Cf. a decisão proferida no Agravo Reg. em Reclamação nº. 1.110-1/DF, Relator Min. Celso de Mello, na qual se mencionam vários precedentes da Suprema Corte (In: Informativo STF, nº 172, 22 a 26 nov. 1999. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2005).

16Cf. Informativo STF, nº 291, 18 a 22 nov. 2002. Disponível em: . Acesso em: 2 mar 2005. Na sessão de julgamento da reclamação, acompanharam o relator os Ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Maurício Corrêa e Ilmar Galvão. Após, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Carlos Velloso, não havendo reiniciado até o presente momento.

17 O foro especial para as Ações de Improbidade Administrativa e a Lei 10.62/02. In: BUENO, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (Coords.). Improbidade Administrativa – questões polêmicas e atuais. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 457.

18 BUENO, C. S. Idem, p.440.

19 Cf. Informativo STF, nº 362, 20 a 24 set. 2004. Disponível em: . Acesso em: 2 mar 2005.

20 Op. cit., p. 2681-2682. Nessa esteira, lembra Fábio Konder Comparato que "a vedação de prerrogativa de foro costuma, com muito boa razão, vir expressa juntamente com a proibição de se criarem tribunais de exceção. E a razão é intuitiva. A livre instituição de privilégios jurisdicionais, se levada às suas últimas e naturais conseqüências, acabaria por revogar todo o ordenamento da competência judiciária e, por eliminar, em conseqüência, juntamente com a submissão de todos, sem discriminações, aos mesmos juízes e tribunais, a regra de que os órgãos do Poder Judiciário devem ser, pela sua própria natureza, permanentes e não circunstanciais" (Ação de Improbidade: Lei 8.429/92. Competência ao Juízo do 1º grau. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n. 9, p. 6, jan. 1999).

21 RTJ, v. 179, p. 943.

22 Despacho proferido na Pet-3270/SC, em 18 de novembro de 2004 (In: Informativo STF, nº 370, 15 a 19 nov. 2004. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2005).

23 "A vedação de privilégio pessoal não decorre apenas do princípio da isonomia, mas também da natureza republicana do regime adotado. Na República, como ninguém ignora, nenhum particular é dono do poder, mas todos os que o exercem devem ser considerados meros funcionários ou servidores do bem comum (res publica)" (Ação de Improbidade..., cit., p. 7).

24 "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (Constituição Federal, art. 5º, § 2º).

25 A Lei nº 10.628/2002, fonte de inspiração da Reforma do Judiciário, no que concerne às inovações sob análise, modificou a redação do art. 84 do Código de Processo Penal, para conferir foro privilegiado a ex-autoridades – que são cidadãos comuns –, em relação a atos administrativos praticados durante o exercício da função pública.

26 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 2. ed. rev. e atual. por Eduardo Reale Ferrari. Campinas: Millennium, 2000. v. 1, p. 220-224; MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 5 ed. São Paulo: Editora Atlas, 1997, p. 161; TOJAL, Sebastião Botto de Barros; CAETANO, Flávio Crocce. In: BUENO, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (Coords.). Improbidade Administrativa – questões polêmicas e atuais. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 393 e ss; TOURINHO FILHO, Fernando. Da competência pela prerrogativa de função. Revista dos Tribunais, ano 92, vol. 809, p. 397 e ss., mar. 2003; WALD, Arnold; MENDES, Gilmar. Ação de improbidade administrativa – competência. Revista Jurídica Consulex, São Paulo, ano I, n. 5, maio 1997.

27 No julgamento do Inquérito nº 687-SP, acima referido, foi citado trecho do voto do Ministro Victor Nunes Leal, proferido na Reclamação nº 473, que sintetiza bem o entendimento da Corte: "A jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas é, realmente, instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuam contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado" (RTJ, v. 179, p. 927-928).

28 Nas palavras do Min. Carlos Velloso: "O foro por prerrogativa de função constitui, na verdade, um privilégio, que não se coaduna com os princípios republicanos e democráticos. O princípio da igualdade é inerente à República e ao regime democrático" (Inquérito nº 687-SP. RTJ, v. 179, p. 946). Digno de menção é o desabafo do Min. Celso de Mello na citada Pet. 3270/SC: "A evolução histórica do constitucionalismo brasileiro, analisada na perspectiva da outorga da prerrogativa de foro, demonstra que as sucessivas Constituições de nosso País, notadamente a partir de 1891, têm se distanciado, no plano institucional, de um modelo verdadeiramente republicano. Na realidade, as Constituições republicanas do Brasil não têm sido capazes de refletir, em plenitude, as premissas que dão consistência doutrinária, que imprimem significação ética e que conferem substância política ao princípio republicano, que se revela essencialmente incompatível com tratamentos diferenciados, fundados em ideações e em práticas de poder que exaltam, sem razão e sem qualquer suporte constitucional legitimador, privilégios de ordem pessoal ou de caráter funcional, culminando por afetar a integridade de um valor fundamental à própria configuração da idéia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade" (Informativo STF, nº 370).

29 Em sentido contrário, João Barbalho, em seu clássico Constituição Federal Brasileira, reputa a inviolabilidade por opiniões palavras e votos um privilégio, e não uma prerrogativa, chegando a afirmar: "Liberdade e responsabilidade são termos correlatos; e pode-se discutir muito livremente sem abusar da palavra" (Apud FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997, v. 1, p. 320).

30 Fábio Konder Comparato, após ressaltar que os privilégios de foro representam uma exceção ao princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, assevera: "Em conseqüência, tais prerrogativas devem ser entendidas à justa, sem a mais mínima ampliação do sentido literal da norma. Se o constituinte não se achar autorizado a conceder a alguém mais do que a consideração de utilidade pública lhe pareceu justificar, na hipótese, seria intolerável usurpação do intérprete pretender ampliar esse benefício excepcional" (Ação de Improbidade..., cit., p. 9).

31 Isso não impede, evidentemente, a tarefa de mera concretização de reservas legais pelo próprio poder de reforma, pois, nesse caso, cuida-se apenas de disciplinar exceção já prevista expressamente no texto constitucional. Cabe frisar, também, que as exceções a direitos e garantias constitucionais podem vir expressas no mesmo preceito que os assegura ou em outro dispositivo da Constituição. A leitura do art. 5º da Constituição fornece vários exemplos da primeira hipótese, contribuindo ainda para a compreensão do regime de restrição de direitos e garantias individuais: "VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei"; "XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial"; "XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal"; "XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição"; "XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado"; "XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"; "XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX... "; "LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei"; "LX - a lei poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem"; "LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei"; "LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel".

32 Na visão do autor, as cláusulas pétreas podem ser revistas pelo poder constituinte derivado, o que permite, em um subseqüente processo de revisão, a modificação das relações por elas protegidas (teoria da dupla revisão); contudo, adverte Jorge Miranda, essas cláusulas, enquanto não forem revistas, vinculam o poder reformador (MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 418). No Brasil, comunga da mesma tese FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Significação e Alcance das Cláusulas Pétreas. Revista de Direito Administrativo, v. 202, p. 14-15, out./dez. 1995.

33 MIRANDA, J. Idem, p. 426. Vale rememorar, também, a clássica lição de José Afonso da Silva: "É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’, ‘fica abolido o voto direto... ’, ‘passa a vigorar a concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação...’, ou o habeas corpus, o mandado de segurança... ’. A vedação atinge a pretensão de mofificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou o voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendente, diz o texto) para a sua abolição" (Curso de Direito Constitucional Positivo, 13 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 69).

34 "Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e Lei Complementar. IPMF. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – IPMF. Artigos 5º, § 2º, 60, § 4º, incisos I e IV, 150, incisos III, b, e VI, a, b, c e d, da Constituição Federal.

I – Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da CF).

II – A Emenda Constitucional nº 3, de 17-3-1993, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2o desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica ‘o art. 150, III, b e VI’, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros):

1º – o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5º, § 2º, art. 60, § 4º, inciso IV, e art. 150, III, b, da Constituição);

2º – o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, § 4º, inciso I, e art. 150, VI, a, da CF);

3º – a norma que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre:

b) templos de qualquer culto;

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e

d) livros, jornais, periódicos e o papel destinados a sua impressão..." (Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 151, p. 755-756, out. 1996).

35 RT J, v. 151, p.812.

36 Idem, p.823.

37 Idem, p.827.

38 Idem, p.830-831.

39 Francisco Campos já defendia a interpretação restritiva dos privilégios, nestes termos: "As Assembléias democráticas tem uma tendência muito pronunciada a exagerar o sentimento de sua própria importância, o que as conduz, muitas vezes, a estender, além do limite razoável, as prerrogativas e privilégios que elas julgam essenciais à garantia e defesa de sua independência. Tanto quanto, porém, matéria tão plástica e difusa, própria a ser afeiçoada ao capricho das oportunidades e ao sabor do sentimento e emoções, a que se acham tão expostas as Assembléias Legislativas, comporta regras e princípios, o princípio que dever presidir à interpretação ou construção dos privilégios parlamentares é o de que devem ser entendidos nos seus termos estritos, como toda exceção às regras gerais de imputabilidade e de responsabilidades, particurlamente em regimes democráticos, em que o postulado da igualdade perante a lei só deve declinar em casos absolutamente excepcionais e por motivo de rigorosa necessidade ou utilidade pública" (Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, vol. II, p. 107. Apud FIGUEIREDO, Marcelo. Improbidade Administriva – Comentários à Lei 8.429/92 e legislação complementar. 5 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 20).

40 Aspectos procedimentais do instituto jurídico do "impeachment" e conformação da figura da improbidade administrativa. Revista dos Tribunais, ano 81, vol. 685, p. 286-289, novembro de 1992.

41 Idem, p. 292.

42 Ação de improbidade administrativa – competência. Revista Jurídica Consulex, ano I, n. 5, maio 1997.

43 Sobre a natureza penal do crime de responsabilidade na jurisprudência do STF, cf. MORAES, op. cit., p. 1245.

44 Ação de Improbidade..., cit., p. 7. No mesmo sentido, MORAES. A. de, op. cit., p. 2648. Acrescenta, ainda, Marcelo Figueiredo: "Do mesmo modo é a exegese do art. 15, III e V, da CF, onde se vê que ‘é vedada a casssação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (...) III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos’. A hipótese de improbidade está alojada em outro dispositivo, no inciso V desse mesmo artigo, tudo a indicar que se trata de um instituto e de uma ação, de uma categoria (improbidade) autônoma, que não se confunde com a outra, o crime, ou com os meios de combate à imoralidade administrativa, tais como a indisponibilidade de bens etc." (Op. cit., p. 25). Conforme verberou Renato Flávio Marcão, confundir improbidade administrativa com ilícito penal "constitui erro grosseiro" (Foro Especial por Prerrogativa de Função: o novo artigo 4 do Código de Processo Penal. Revista Jurídica, Ano 51, n. 306, p. 71, Abril de 2003).

45 Acerca da distinção entre ato de improbidade administrativa e crime de responsabilidade, é bastante esclarecedor o artigo de Jonas Sidnei Santiago de Medeiros Lima, intitulado "Ato de improbidade administrativa não é de competência originária do STF nem do STJ" (In: Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 61, jan. 2003. Disponível em: jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=3633>. Acesso em: 10 dez. 2004).

Observa o autor que na justificação do projeto de Lei nº 23/1948, que deu origem à Lei nº 1.079/1950 (Lei dos Crimes de Responsabilidade), já constava o entendimento de que o "impeachment" é um instituto de direito constitucional, de natureza "eminentemente política", cujo objetivo histórico é o afastamento definitivo de determinados agentes políticos acusados de crime de responsabilidade. Tendo em vista a finalidade do instituto, dispôs o art. 42 da mencionada lei que a denúncia por crime de responsabilidade "só poderá ser recebida se o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo". Outrossim, a Lei nº 1.079/1950 ressalvou, em seu art. 3º, que o processo por crime de responsabilidade, a cargo especialmente do Senado Federal e das Assembléias Legislativas, não excluiria o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal.

Prosseguindo a análise, registra Jonas Lima que a idéia de estatuir um procedimento judicial para punição dos agentes públicos em geral – com desdobramentos não apenas funcionais, mas também cíveis, conforme requerido pelo artigo 37, § 4º, da Constituição Federal – somente veio com a Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa). Instituiu-se, assim, em consonância com a Constituição Federal – que não previu foro privilegiado em ação de improbidade – "um procedimento judicial, de natureza cível, a tramitar na Justiça Comum ou Federal de Primeira Instância, independente da autoridade envolvida, seguindo o rito ordinário do Código de Processo Civil". Nesse contexto, estabeleceu a referida lei: "Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, [...] serão punidos na forma desta lei" (art. 1°, caput); "Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior" (art. 2°); "Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos" (art. 4°).

Segundo o autor, portanto, o julgamento político de um agente, por crime de responsabilidade, não exclui o julgamento do mesmo na esfera judicial, por ato de improbidade administrativa; além disso, entende, não há razão para qualquer distinção, nem na Constituição, nem na Lei de Improbidade, entre ato de improbidade administrativa cometido por agente político e por agente público comum.

No mesmo sentido, esclarece Mônica Nicida Garcia que, em relação aos agentes políticos, a responsabilização puramente administrativa, apurada mediante processo disciplinar, é substituída pela político-administrativa, relativa aos crimes de responsabilidade. A sujeição a essa esfera, todavia, não exclui a incidência das demais esferas a que estão sujeitos todos os agentes públicos: a penal, a civil e a da improbidade administrativa (Agente Político, Crime de Responsabilidade e Ato de Improbidade, in Boletim dos Procuradores da República, Ano V, nº 56, p. 15, dez. 2002).

46 Consoante sublinhado por Jonas Lima, enquanto a lei antiga, dos crimes de responsabilidade, permite a perda do cargo pelo julgamento político, sem maiores desdobramentos, a lei nova, que criou um procedimento judicial para apuração de atos de improbidade, somente permite a perda do cargo após o trânsito em julgado da sentença condenatória (Ato de improbidade administrativa não é..., cit.). Discordamos, portanto, de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem a aplicação da Lei de Improbidade, apenas com relação a alguns agentes políticos, deve limitar-se às sanções de caráter indenizatório, já que a perda do mandato desses agentes estaria disciplinada por dispositivos constitucionais específicos (Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 663).

47A prevalecer a tese da equiparação entre improbidade administrativa e crime de responsabilidade, pois, resta admitir que os agentes políticos sujeitos a processo e julgamento perante o Senado Federal, por crime de responsabilidade, estão imunes a tais medidas – as quais, em virtude de sua própria natureza, sequer constam da Lei nº 1.079/50.

48 MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 413.

49 Constituição Francesa de 1793, art. 28. Apud FERREIRA FILHO, M. G. Significação e Alcance..., cit., p.12.

50 SAGÜÉS, Néstor Pedro. Teoría de la Constitución. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2004, p.311.

51 Não é por outra razão que alguns autores, embora céticos quanto ao alcance das cláusulas pétreas, reconhecem que elas são eficazes enquanto vigorarem. Cf. nota 32, supra.

52 "Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Os limites são limites do poder de revisão como poder constituído não são ‘limites para sempre’, vinculativos de toda e qualquer manifestação do próprio poder constituinte. Em sentido absoluto, nunca a ‘geração’ fundadora pode vincular eternamente as gerações futuras. Esta é uma das razões justificativas de previsão, em algumas constituições, de uma revisão total. Caso contrário, a falta de alternativa abriria o campo da Revolução Jurídica. Mas há também que assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa e esta não é compatível com a completa disponibilidade da constituição pelos órgãos de revisão, designadamente quando o órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário. Não deve banalizar-se a sujeição da lei fundamental à disposição de maioria parlamentares ‘de dois terços’. Assegurar a continuidade da constituição implica, necessariamente, a proibição não só de uma revisão total (desde que isso não seja admitido pela própria constituição), mas também de alterações constitucionais aniquiladoras da identidade de uma ordem constitucional histórico-concreta. Se isso acontecer é provável que se esteja perante uma nova afirmação do poder constituinte mas não perante uma manifestação do poder de revisão. Mas se é de poder constituinte originário que se trata, então este tem de tornar transparente as novas pretensões legitimatórias de desencandeamento de um novo poder constituinte e a conseqüente instauração de uma nova ordem constitucional" (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 1.065). Cf. a mesma lição em HESSE, Konrad, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução da 20ª edição alemã por Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 511-512.

53 Fragmentos (sobre) o Poder Constituinte do Povo. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 128.

54 Sobre a necessidade de imprimir máxima eficácia jurídica à cláusula, destaca-se a advertência de Friedrich Müller: "As legitimações extramundanas (por conseguinte, supramundanas) das pessoas/dos grupos dominantes, por meio da afirmação de governar para o povo e no seu melhor interesse, foram formuladas a serviço da boa moral dos donos do poder diante de Deus. Desde que eles foram substituídos pela coação intramundana das pessoas/dos grupos dominantes, de invocar ‘o povo’ – agora, portanto, a serviço da posição real de poder dos donos do poder, diante dos por eles dominados –, desde então existem textos sobre um ‘poder constituinte’ [...] Com vista a uma sistemática das locuções ideológicas, ‘poder constituinte’ aparece como ponto inicial de uma deformação de Constituições, cujo ponto terminal pode ser reconhecido no discurso sobre a ‘unidade da constituição’. Na prática, os dois padrões de texto são utilizados como elementos exordiais e terminais de ideologia constitucional aplicada. Em vez disso, a expressão ‘poder constituinte’ interessa-nos aqui como texto jurídico (não como texto ideológico); e isso quer dizer, como parte integrante normal dos documentos constitucionais nos quais ela aparece. Por que essa opção? Conceitos não são usados gratuitamente. Diplomas constitucionais não falam impunemente do ‘poder constituinte’; e se o fazem, deveríamos puni-los por isso – tomando a expressão do poder constituinte ao pé da letra" (Idem, p. 19-20).

55 "En consecuencia, la manera de salvar el principio proclamado, de que el poder constituyente debe ejercerlo el pueblo de un modo directo, consiste en someter la sanción de las constituciones y de las reformas constitucionales al voto popular, es decir, al referéndum plebiscitario, que en realidad reemplaza práticamente y en la única forma posible a la apella espartanta, a la ecclesia ateniense, a los comicios romanos, al witenagemot teutón y al landsgemeinde suizo. Claro está que la celebración de tales consultas populares debe hacerse com tanta honradez y lealtad que no quepa duda alguna respecto a la autenticidad del resultado. De lo contrario, se convertiría en un arma muy peligrosa. En manos de gobernantes arbitrarios y despóticos, llegaría a ser un indsperable instrumento de opresión, com la ventaja de la irresponsabilidad" (SÁNCHEZ VIAMONTE, Carlos. El poder constituyente. Buenos Aires: Editora Omeba, p. 114. Apud VANOSSI, Jorge Reinaldo A. Teoría Constitucional. 2. ed. atual. Buenos Aires: Depalma, 2000, v. 1, p. 312, nota 45).

56 Certamente, essa posição levanta dificuldades no tocante aos direitos das minorias, que não podem ser olvidados; mas essas dificuldades, que invariavelmente confluem para as grandes questões do Estado e do Direito, não diferem das que se apresentam na elaboração de uma constituição.

57 Discordamos, pois, de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que defende a interpretação restritiva das cláusulas pétreas, ao argumento de que a limitação ao poder de reforma constitucional não é a regra, mas a exceção (Significação e Alcance..., cit., p. 17). Ora, sob outro ângulo de análise, vê-se que essas cláusulas compõem o núcleo material da constituição, ou seja, a própria essência desta, o que impede sejam as mesmas tratadas de forma meramente acidental.

58 "O regular funcionamento da economia exige transparência e estabilidade, características de todo incompatíveis com práticas corruptas. A ausência desses elementos serve de desestímulo a toda ordem de investimentos, que serão direcionados a territórios menos conturbados, o que, em conseqüência, comprometerá o crescimento, já que sensivelmente diminuído o fluxo de capitais" (GARCIA, Emerson. A corrupção – uma visão jurídico-sociológica. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 323, 26 maio 2004. Disponível em: http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=5268. Acesso em: 14 dez. 2004. p. 11).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROLIM, Luciano. Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 629, 29 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6510. Acesso em: 19 abr. 2024.