Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/66684
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Inconstitucionalidade da transferência de depósitos judiciais instituída pela Lei n. 13.463/2017

Inconstitucionalidade da transferência de depósitos judiciais instituída pela Lei n. 13.463/2017

|

Publicado em . Elaborado em .

A transferência do depósito judicial para a conta única do tesouro nacional é inconstitucional, pois é uma hipótese de intervenção do Estado na propriedade privada não autorizada expressamente pela Constituição.

INTRODUÇÃO: O trabalho critica as normas da Lei no 13.463, de 06.07.2017, que determinaram o cancelamento das Requisições de Pequeno Valor – RPV e dos precatórios cujos valores depositados há mais de dois anos não houvessem sido levantados pelos seus respectivos titulares. Mostra que essas normas são inconstitucionais, por resultarem em intervenção do Estado na propriedade privada em hipótese não prevista na Constituição Federal e por ofenderem os princípios da duração razoável do processo e da efetividade da jurisdição.           

PALAVRAS – CHAVE: TRANSFERÊNCIA – DEPÓSITOS – JUDICIAIS – LEI 13.463/2017


TRANSFERÊNCIA DE DEPÓSITOS JUDICIAIS INSTITUÍDA PELA LEI nº 13.463/2017

O artigo 2º da Lei no 13.463, de 06.07.2017, determinou o cancelamento das Requisições de Pequeno Valor – RPV e dos precatórios cujos montantes depositados há 02 (dois) anos ou mais não houvessem sido levantados pelos seus respectivos titulares.

O artigo 3º dessa mesma Lei estipula que poderá ser expedido nova Requisição de Pequeno Valor – RPV ou novo precatório, a requerimento do credor; essa nova requisição de pagamento, segundo o parágrafo único, “[...] conservará a ordem cronológica do requisitório anterior e a remuneração correspondente a todo o período”.

O artigo 1º, parágrafo único diz que as remunerações das disponibilidades dos recursos depositados constituirão “receitas”.

Tanto os depósitos para pagamentos de Requisições de Pequeno Valor – RPV, como de precatórios, e seus “rendimentos”, sendo “[...] transferidos para a Conta Única do Tesouro Nacional”, na dicção do art. 2º, parágrafo 1º daquela Lei.

A Lei no 13.463/2017 preocupou-se em assegurar que o credor poderia pedir nova Requisição de Pequeno Valor – RPV ou precatório, o que deixa claro que não é o direito ao crédito em si, mas o seu objeto material – os dinheiros depositados – que estão sendo incorporados ao Tesouro Nacional, como “receita” daqueles devedores.

Percebe-se, sem maior dificuldade, que há um apossamento, pela entidade de direito público interno – União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios – de dinheiros que, no todo ou em parte, não lhes pertencem, mas sim, aos credores da Fazenda Pública.

Os credores são privados de seus créditos por anos.

A farra dos devedores públicos apossarem-se do dinheiro pago aos seus credores via Requisições de Pequeno Valor – RPV ou precatórios começou com a Lei no 9.703/98, cujo artigo 1o, § 3o, I determinou a restituição àqueles, no prazo de vinte e quatro horas, depois de ordem judicial.

O Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade desse abuso, ora alegando que o depósito judicial seria uma “faculdade” do particular[2], ora que não haveria “empréstimo compulsório” ou “confisco” porque garantida a restituição, “inclusive melhorando as condições do depósito”[3], e sempre acentuando que o precatório é um procedimento administrativo, embora sujeito ao controle do juiz.

Por que a “melhoria das relações” entre a CEF e o Tesouro Nacional (Ministro Ilmar Galvão, ADI 1933-1-MC) deveria se dar com o apossamento do dinheiro que não pertenciam aos devedores (os entes públicos), mas aos seus credores, é que não se disse.

Como a Lei no 9.703/98 foi declarada constitucional, era previsível que o abuso se agigantasse.

Estados e Municípios entraram na festa, como era de se esperar depois de decisões como aquelas proferidas pelo STF.[4]

Como se costuma dizer, nada é tão ruim que não possa ficar ainda pior.

Se o abuso da Lei no 9.730/98 ainda podia ser relevado pelo Supremo Tribunal Federal por causa da garantia da restituição ao credor no prazo de 24 (vinte e quatro) horas do dinheiro transferido à Conta Única do Tesouro Nacional, o que dizer da Lei no 13.463/2017, que condiciona essa restituição à expedição de novo precatório, para pagamento em exercício financeiro subsequente – na melhor das hipóteses?

O problema nunca foi o depósito ser uma “faculdade” do particular, para suspender a exigibilidade do crédito impugnado e assim precaver-se contra juros, multas de mora, multas de ofício, correção monetária estratosférica, negativa de expedição de certidões de regularidade fiscal, e assim por diante.

A questão sempre foi a falta de justa causa – constitucional – para que a União Federal e os demais entes públicos – devedores contumazes e caloteiros históricos – se apossassem das quantias que não lhes pertenciam, no todo ou em parte.

Se o apossamento não caracterizaria “empréstimo compulsório” ou “confisco”, teria sido o caso de o STF esclarecer a que figura jurídica corresponderia, já que o Poder Público só pode se adentrar na propriedade particular nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal.

E pelo menos até a Emenda Constitucional no 94/2016, não havia qualquer autorização constitucional para que os depósitos que pertenciam aos credores das Administrações Públicas passassem a constituir-se em “receitas” delas.

Desde a decisão proferida na ADI 1933-1-MC, o STF argumenta que, com a “transferência”, o contribuinte e a Fazenda Pública seriam postos em “pé de igualdade”.

Se a Fazenda Pública também tivesse que depositar para garantia das ações fiscais e não fiscais que ajuizasse contra os particulares, até se poderia levar o argumento da equiparação mais a sério.

Mas, como a Fazenda Pública está dispensada por lei de proceder a depósitos para suspender a exigibilidade de créditos que lhe são exigidos, inclusive com base em decisões judiciais transitadas em julgado, a equiparação não se sustenta.

Se o Supremo Tribunal Federal quiser ser fiel à sua própria jurisprudência e às razões que a firmaram, terá que reconhecer a inconstitucionalidade material dessa modalidade de “transferência” criada pela Lei no 13.463/2017, se não pela absoluta ausência de justa causa para o ente público apossar-se do que não lhe pertence, mas sim ao seu credor, pelo fato de que a restituição só se dará anos depois, e isso se houver restituição – quantos Estados não têm vivido sob estado de greve de seus servidores, por incapacidade de lhes pagarem salários, aposentadorias e pensões?

A Lei no 13.463/2017 assegurou “a remuneração correspondente a todo o período” em seu artigo 3o, parágrafo único.

Mas, que “remuneração”? E quanto a que período?

Por exemplo: juros de mora e correção monetária entre a “data de realização dos cálculos e a da requisição ou do precatório”? Excetuando-se o período de tempo entre a requisição e o novo depósito?[5]

Sendo a “transferência” criada pela Lei no 13.463/2017 inconstitucional, seja pela absoluta falta de justa causa para que a “receita” do credor torne-se “receita” do devedor, seja porque a restituição, se houver, se dará depois de anos, e não em “vinte e quatro horas”, como dizia a Lei no 9.703/98, não é apenas de “remuneração” que se deve falar, mas sim em “indenização” – e a mais ampla possível, ou seja, englobando lucros cessantes, danos emergentes, correção monetária pelo índice que melhor reflita a inflação e juros de mora de 12% (doze por cento) ao ano (art. 406 CC).

Sob pena de, mais uma vez, privilegiar-se os entes públicos devedores e caloteiros históricos contra seus credores, é de justiça entender-se que o período deverá ser aquele durante o qual os dinheiros tiverem estado fora da disponibilidade do credor, ou seja, desde a data da “transferência” e até a efetiva restituição, e não apenas entre a data do cálculo e a nova requisição de pagamento, como é o entendimento do STF.

É ainda oportuno chamar a atenção para a falta completa de razoabilidade e a quebra da isonomia na “transferência”, uma vez que a Lei no 13.463/2017 trata do mesmo modo os depósitos judiciais não tenham sido movimentados por razões ligadas ao próprio processo, e não pela vontade do credor, e aqueles pelos quais o credor se desinteressou.[6]

Como adverte Perelman, “[...] uma regra justa não é arbitrária, deve possuir um fundamento justificativo em razão, mesmo que esse fundamento não suscite um acordo unânime.”[7]

Qual o fundamento da Lei no 13.463/2017? Apenas fazer caixa para o Governo? Com dinheiro que não é da União Federal, mas de seus credores?

Certamente essa não é uma hipótese de interferência do Estado na propriedade privada, ou na efetividade dos processos judiciais, autorizada pelo artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica.[8]

A Lei no 13.463/2017, assim, pode ser também submetida ao controle judicial difuso de convencionalidade,[9] além de passível de controles direto e difuso de constitucionalidade.

O absurdo da situação pode levar até ao ponto em que um depósito judicial, tornado herança jacente ou vacante por falta de herdeiros do credor falecido, tenha essa receita – no sentido próprio do termo – estadual “transferida” para a Conta Única do Tesouro Nacional, com evidente quebra do princípio federativo.

Também é merecedora de registro a transparência com que se conduziram Tribunais, como o TRF da 4a Região, que disponibilizou consulta pública dos RPVs e dos precatórios com saldos pendentes que sofreriam a “transferência”.[10]

Por fim, é importante observar que já foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5755, contra a Lei no 13.463/2017, que dispõe sobre os recursos destinados aos pagamentos decorrentes de precatórios e de Requisições de Pequeno Valor (RPV) federais.

Aguardemos a próxima interpretação do STF...


CONCLUSÕES

Com a Lei no 13.463/2017, os credores da Fazenda Pública serão desapossados do dinheiro que lhes pertence, com a justificativa de que não foram levantados depois de dois anos de depositados judicialmente.

Ocorre que o dinheiro depositado pertence ao credor (particular), não ao devedor (ente público).

A transferência do depósito judicial para a Conta Única do Tesouro Nacional é inconstitucional, pois é uma hipótese de intervenção do Estado na propriedade privada não autorizada expressamente pela Constituição Federal.

Essa farra começou com a Lei no 9.738/993, tolerada pelo Supremo Tribunal Federal porque o dinheiro transferido à Conta Única do Tesouro Nacional seria restituído ao particular, em vinte e quatro horas.

Com a Lei no 13.463/2017, esse prazo transformou-se em anos, já que todo o procedimento de execução contra a Fazenda Pública deverá recomeçar do zero.

O abuso chegou ao ponto de Estados buscarem transferir para seus Tesouros os depósitos judiciais feitos em processos judiciais envolvendo somente particulares.

Há falta completa de razoabilidade e a quebra da isonomia na “transferência”, uma vez que a Lei no 13.463/2017 trata do mesmo modo os depósitos judiciais não tenham sido movimentados por razões ligadas ao próprio processo, e não pela vontade do credor, e aqueles pelos quais o credor se desinteressou.

A Lei no 13.463/2017 atenta contra os princípios constitucionais da duração razoável do processo e da efetividade da execução, incorporados nos artigos 1o e 4o do CPC.

A Lei no 13.463/2017 também fere o artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Portanto, a Lei no 13.463/2017 é inconstitucional e anticonvencional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva,  2016.

BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). TRF4 disponibiliza consulta pública de precatórios e RPVs com saldo pendente. Disponível em: <http://boletimjuridico.publicacoesonline.com.br/trf4-disponibiliza-consulta-publica-de-precatorios-e-rpvs-com-saldo-pendente/>. Acesso em: 12 abr. 2018.

______. Superior Tribunal Federal. RE 579.431. Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. DJE 30 jun. 2017.

______. Superior Tribunal Federal. Súmula 456. ARE 638195. Pleno. Rel. Min. Joaquim Barbosa. julg. 29 mai. 2013.

CARPENA, Márcio Louzada. Da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional e o processo contemporâneo. In: PORTO, Sérgio Gilberto (Org.). As garantias do cidadão no processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso “Cinco Aposentados” vs. Peru, sentença de 28.02.2003. Disponível  em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/94e99edfc08ad3aa6a2b2cb5fed16fff.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2018.

GRECO, Leonard. Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2005.

KIDRICK, Tiago Beck. Lei de cancelamento de precatórios e RPV causa preocupação. Disponível em: <http://www.fetapergs.org.br/index.php/noticias/item/354-lei-do-cancelamento-de-precatorios-e-rpvs-federais-causa-preocupacao-por-tiago-beck-kidricki>. Acesso em: 12 abr. 2018.

LIMA, Georges Marmestein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4666/criticas-a-teoria-das-geracoes-ou-mesmo-dimensoes-dos-direitos-fundamentais>. Acesso em: 13 abr. 2018.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Controle concentrado de convencionalidade tem singularidades no Brasil. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-abr-24/valerio-mazzuoli-controle-convencionalidade-singularidades>. Acesso em: 13 abr. 2018.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de (Org.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PERLINGEIRO, Ricardo. A justiça administrativa brasileira comparada. Disponível em: <https://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/1646/1593>. Acesso em: 13 abr. 2018.

PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

SADEK, Maria Teresa Aina Sadek. Poder Judiciário. In: GIOVANNI, Geraldo di; NOGUEIRA, Marco Aurélio (Orgs.). Dicionário de Políticas Públicas. 2. ed. 1. reimp. São Paulo: Editora UNESP, 2015.


NOTAS

[1] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de (Org.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 02-03: “Significativamente, já no final do século XIX era presente entre nós a compreensão da influência da norma constitucional no processo, especialmente como meio para a efetividade e segurança dos direitos. Para João Mendes Júnior, o processo, na medida em que garante os direitos individuais, deita suas raízes na lei constitucional. Cada ato do processo ‘deve ser considerado meio, não só para chegar ao fim próximo, que é o julgamento, como ao fim remoto, que é a segurança constitucional dos direitos’. [...] Em obra diversa, adiantando lições de outras épocas, o grande mestre como que intuiu a íntima conexidade entre o direito processual e o constitucional, ao consignar que ‘as leis do processo são o complemento necessário das leis constitucionais. Se o modo e a forma da realização dessas garantias fossem deixados ao critério das partes ou à discrição dos juízes, a justiça, marchando sem guia, mesmo sob o mais prudente dos arbítrios, seria uma ocasião constante de desconfiança e surpresas’. Antecipa-se, assim, com grande descortino, futuras elaborações da doutrina europeia do século XX. Realmente, se o processo, na sua condição de autêntica ferramenta de natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social, não pode ser compreendido como mera técnica, mas, sim, como instrumento de realização de valores e especialmente de valores constitucionais, impõe-se considerá-lo como direito constitucional aplicado. Nos dias atuais, cresce em significado a importância dessa concepção, se atentarmos para a íntima conexidade entre a jurisdição e o instrumento processual na aplicação e proteção dos direitos e garantias assegurados na Constituição. Aqui não se trata mais, bem entendido, de apenas conformar o processo às normas constitucionais, mas de empregá-las no próprio exercício da função jurisdicional, com reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é decidido pelo órgão judicial e na maneira como o processo é por ele conduzido.” Márcio Louzada Carpena (Da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional e o processo contemporâneo. In: PORTO, Sérgio Gilberto (Org.). As garantias do cidadão no processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2003, p 28) diz que “[...] esse princípio não pode ser visto somente pelo prisma da mera impossibilidade de se afastar o cidadão de ingressar em juízo, mas também e principalmente, importa compreender que o mesmo repele toda e qualquer exigência que, direta ou indiretamente, acabe impedindo o cidadão de ter acesso à prestação jurisdição adequada, eficaz e efetiva. Segundo bem afirma Gomes Canotilho, ao analisar esse princípio no direito constitucional português, o mesmo dá ‘operatividade prática à defesa dos direitos’.” Rui Portanova (Princípios do processo civil. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 83) observa: “Como se vê com Sálvio de Figueiredo Teixeira (1993, p. 254), o princípio em comento toca dois dos temas mais relevantes da doutrina processual moderna: a efetividade do processo e a questão do acesso à justiça. Assim, restam viabilizados tanto a aplicação do direito material como o próprio funcionamento do regime democrático: ‘sabido ser a jurisdição uma das expressões da soberania e o processo instrumento dessa jurisdição, instrumento político de efetivação das garantias asseguradas constitucionalmente e até mesmo manifestação político-cultural’.” GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: GRECO, Leonard. Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2005, p. 261: “[...] o processo somente constituirá garantia da tutela efetiva dos direitos se for capaz de dar a quem tem direito tudo aquilo a que ele faz jus de acordo com o ordenamento jurídico. Por isso, a moderna concepção da efetividade do processo impõe o adequado cumprimento das sentenças judiciais, inclusive contra a Administração Pública, a oportuna proteção das situações jurídicas suficientemente fundamentadas contra os riscos da demora na prestação jurisdição (tutela da urgência ou tutela cautelar) e a tutela específica do direito material, especialmente no âmbito das obrigações de dar coisa certa, de fazer e não fazer.” O mesmo autor, à p. 263: “Quatro anos mais tarde, o mesmo COMOGLIO (reporta-se a Luigi Paolo Comoglio) referindo-se novamente à proteção constitucional do direito ao processo, repete: ‘ela consagra o direito de pedir e de obter do próprio juiz um resultado de efetividade contenutística e executiva, ou seja, o reconhecimento de uma forma de tutela, que seja adequada às características substanciais do direito a tutelar e, onde ocorra, seja suscetível de uma eficaz execução mesmo em via coativa ou forçada, com os instrumentos para tal fim predispostos pelo ordenamento jurídico’. [...] A garantia do cumprimento efetivo das decisões judiciais não exime a Administração Pública, que, como qualquer cidadão, ‘está submetida à lei e ao Direito e está obrigada por isso ao cumprimento das resoluções judiciais’.” SADEK, Maria Teresa Aina Sadek. Poder Judiciário. In: GIOVANNI, Geraldo di; NOGUEIRA, Marco Aurélio (Orgs.). Dicionário de Políticas Públicas. 2. ed. 1. reimp. São Paulo: Editora UNESP, 2015, p. 689: “[...] o direito de acesso à justiça é requisito primeiro, indispensável para a materialização de todos os demais direitos – civis, políticos e sociais. O Judiciário, segundo tais parâmetros, representa uma força de emancipação. Trata-se da instituição pública responsável por garantir que os preceitos da igualdade estabelecidos formalmente prevaleçam na realidade, assim como que os desvios sejam punidos. Tais qualidades, contudo, só se manifestam onde impera o Estado de direito, isto é, onde a lei tem valor universal e prepondere sobre o arbítrio.” BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 55: “[...] sem processo não há direito efetivo. A efetividade, destarte, é do direito e não do processo.”

[2] Veja-se ADI 1933-1-MC e ADI 2214.

[3] Voto do Exmo. Sr. Min. Ilmar Galvão na ADI 1933-1-MC.

[4] Veja-se, por exemplo: ADI 5679, tendo por objeto o artigo 2o da Emenda Constitucional no 94/2016, que permitiu aos Municípios utilizarem os depósitos judiciais para pagamento de precatórios; ADI 5353, para suspender a eficácia da Lei do Estado de Minas Gerais no 21.720/2015, que prevê a transferência de depósitos judiciais no âmbito do Tribunal de Justiça local (TJ-MG) para conta específica do governo local, com fim de custear gastos com a previdência social, pagamento de precatórios e assistência judiciária, além de amortização da dívida com a União, observando-se que a transferência se daria inclusive em processos nos quais o Estado nem fosse parte; ADI 5747, sendo objeto o  Decreto no 62.411/2017 do Estado de São Paulo, que determina transferência à conta única do tesouro de 75% do montante atualizado dos depósitos judiciais e administrativos, tributários e não tributários, em processos em que o estado, suas autarquias, fundações e empresas estatais dependentes sejam parte, em processos sob jurisdição de quaisquer tribunais, e de 10% do montante atualizado dos demais depósitos judiciais efetuados no estado, em processos do Tribunal de Justiça, excetuados os destinados à quitação de créditos de natureza alimentícia, sendo que previsões semelhantes constam dos Decretos nos 46.933/2002, 51.634/2007, 52.780/2008 e 61.460/2015, e a Portaria no 9.397/2017 regulamenta procedimentos internos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), no tocante à habilitação de entes federados ao recebimento de transferências de depósitos judiciais, bem como regulamenta as atribuições do Banco do Brasil, as providências a serem tomadas em caso de insuficiência de saldo do fundo garantidor e a exclusão de ente federado do regime da EC 94/2016 em caso de descumprimento por três vezes da recomposição do fundo. Já a Lei paulista 12.787/2007 autoriza a transferência ao tesouro estadual de 70% dos depósitos judiciais e administrativos referentes a processos judiciais e administrativos, de que seja parte o Estado. Muitos outros lamentáveis exemplos como esses poderiam ser dados, graças, sempre é o caso de lembrar, àquelas decisões primeiras do STF. Vale ainda observar que, na ADI 5679, DJE 24.10.2017, o Exmo. Sr. Ministro Luís Roberto Barroso concedeu medida liminar estabelecendo condições para a “transferência” dos depósitos aos Estados e Municípios – prévia constituição do fundo garantidor, destinação exclusiva a precatórios em atraso até 25/03/2015 (data prevista na emenda) e exigência de que os valores dos depósitos sejam repassados diretamente ao tribunal competente, sem passar pelo caixa dos tesouros locais. Se os Estados tivessem competência técnica para instituírem “fundos garantidores” sérios, não estariam sem dinheiro para pagar seus servidores aposentados. A “destinação exclusiva para pagamento de precatórios em atraso até 25.03.2015” mostra, ainda e sempre, o caráter endêmico de caloteiros de Estados e Municípios. O repasse direto aos tribunais não pode escapar do debate sobre até onde os tribunais de justiça são efetivamente independentes dos Executivos. Enfim, a melhor garantia dos credores da União Federal, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios é que esses sejam mantidos longe de suas propriedades.

[5] RE 579.431, STF, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE 30.06.2017, com eficácia de repercussão geral: “JUROS DA MORA – FAZENDA PÚBLICA – DÍVIDA – REQUISIÇÃO OU PRECATÓRIO. Incidem juros da mora entre a data da realização dos cálculos e a da requisição ou do precatório.” ARE 638195, STF, Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julg. 29.5.2013: “CONSTITUCIONAL. FINANCEIRO. REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA.APURAÇÃO ENTRE A DATA DE REALIZAÇÃO DA CONTA DOS VALORES DEVIDOS E A EXPEDIÇÃO DA RPV. RELEVÂNCIA DO LAPSO TEMPORAL. CABIMENTO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA QUANTO AO CABIMENTO DA APLICAÇÃO DE CORREÇÃO MONETÁRIA. 1. “O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, CONHECENDO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, JULGARÁ A CAUSA, APLICANDO O DIREITO À ESPÉCIE” (Súmula 456/STF). Aplicabilidade ao recurso extraordinário em exame. 2. É devida correção monetária no período compreendido entre a data de elaboração do cálculo da requisição de pequeno valor – RPV e sua expedição para pagamento. Recurso extraordinário conhecido, ao qual se dá parcial provimento, para cassar o acórdão-recorrido, de modo que o TJ/RS possa dar continuidade ao julgamento para definir qual é o índice de correção monetária aplicável em âmbito estadual.” Súmula Vinculante no 17: “Durante o período previsto no parágrafo 1º do artigo 100 da Constituição, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos.”

[6] KIDRICK, Tiago Beck. Lei de cancelamento de precatórios e RPV causa preocupação. Disponível em: <http://www.fetapergs.org.br/index.php/noticias/item/354-lei-do-cancelamento-de-precatorios-e-rpvs-federais-causa-preocupacao-por-tiago-beck-kidricki>. Acesso em: 12 abr. 2018: “Não há sentido em que contas bloqueadas ou contas de processos não terminados estejam contemplados na Lei nº 13.463/17. Isto, pois não se tratam de valores disponibilizados e não recebidos, mas de valores ainda não disponibilizados, e que o devem ser de forma imediata ao solucionar-se a lide. Aliás, a sociedade deve ficar atenta para qualquer ideia de utilização de depósitos judiciais. Estes estão ali para garantir rápido cumprimento do processo legal e não para financiar governos. É dinheiro do cidadão e deve ser tratado com todo o cuidado e respeito.”

[7] PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 76: “[...] pois uma regra justa não é arbitrária; deve possuir um fundamento justificativo em razão, mesmo que esse fundamento não suscite um acordo unânime”

[8] “Art. 25 - Protección judicial. 1. Toda persona tiene derecho a un recurso sencillo y rápido o a cualquier otro recurso efectivo ante los jueces o tribunales competentes, que la ampare contra actos que violen sus derechos fundamentales reconocidos por la Constitución, la ley o la presente Convención, aun cuando tal violación sea cometida por personas que actúen en ejerecicio de sus funcionaes oficiales. 2. Los Estados partes se comprometen: a) a garantizar que la autoridad competente prevista por el sistema legal del Estado decidirá sobre los derechos de toda persona que interponga tal recurso; b) a desarrollar las posibilidades de recurso judicial, y c) a garantizar el cumplimiento, por las autoridades competentes, de toda decisión en que se haya eestimado procedente el recurso.” Como decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso “Cinco Aposentados” vs. Peru, sentença de 28.02.2003. Disponível  em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/94e99edfc08ad3aa6a2b2cb5fed16fff.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2018: “[...] o cumprimento das sentenças não pode ficar ao arbítrio da parte que perdeu o litígio, muito menos quando quem perdeu o litígio é um órgão do Estado.”

[9] Valério de Oliveira Mazzuoli (Controle concentrado de convencionalidade tem singularidades no Brasil. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-abr-24/valerio-mazzuoli-controle-convencionalidade-singularidades>. Acesso em: 13 abr. 2018), informa que, como a Convenção Americana de Direitos Humanos não foi ainda submetida ao procedimento de internalização criado pelo art. 5o, § 3o da CF/88, com a redação dada pela Emenda no 45/2004, o Supremo Tribunal Federal não admite que sirva de base para uma ação direta de controle de convencionalidade, apenas para controle difuso. Segundo o autor: “O motivo para tanto liga-se à importância que atribuiu a Constituição Federal de 1988 ao controle abstrato de normas, invertendo a lógica dos textos constitucionais anteriores, nos quais a preponderância era para a fiscalização difusa de constitucionalidade. Prova disso é que a Carta de 1988 destinou legitimados específicos para o exercício do controle abstrato, dando particular ênfase à fiscalização concentrada de normas, em detrimento do controle de constitucionalidade difuso (veja-se, a esse respeito, todo o escólio doutrinário de Gilmar Mendes, explicando detalhadamente – com profunda visão histórica – essa evolução constitucional).” Ricardo Perlingeiro (A justiça administrativa brasileira comparada. Disponível em: <https://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/1646/1593>. Acesso em 13.4.2018), a respeito de previsão legal do “controle de convencionalidade” no Brasil: “A propósito da falta de lei nacional sobre o controle de convencionalidade, decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos: En relación con las prácticas judiciales, este Tribunal ha establecido en su jurisprudencia que es consciente de que los jueces y tribunales internos están sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermados por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, que desde un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer un “control de convencionalidad” ex officio entre las normas internas y la Convención Americana, evidentemente en el marco de sus respectivas competencias y de las regulaciones procesales correspondientes. En esta tarea, el Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana. De tal manera, es necesario que las interpretaciones constitucionales y legislativas referidas a los criterios de competencia material y personal de la jurisdicción militar en México, se adecuen a los principios establecidos en la jurisprudencia de este Tribunal, los cuales han sido reiterados en el presente caso. Bajo ese entendido, este Tribunal considera que no es necesario ordenar la modificación del contenido normativo que regula el artículo 13 de la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009)”. Não se pode esquecer o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, segundo o qual os direitos humanos são indivisíveis e reforçam-se em intensidade e abrangência mutuamente, do que resulta que, tendo um tratado ou convenção que proteja um determinado direito fundamental sido ratificado na forma do art. 5o, § 3o da CF/88, poderá transmitir sua força hierárquica normativa a outro direito fundamental que ainda não tenha sido objeto de semelhante retificação, dessa combinação surgindo a abertura da via constitucional objetiva de proteção também ao direito fundamental tutelado por aquele acordo ou tratado internacional ainda não internalizado na forma do art. 5o, § 3o da CF. A indivisibilidade dos direitos humanos é incompatível com a chamada “teoria das gerações dos direitos”, cuja dubiedade metodológica pode levar ao enfraquecimento de uns direitos e, por consequência, dos demais, quando de suas afirmações práticas. Para uma crítica à teoria das gerações dos direitos humanos, veja-se, dentre outros: LIMA, Georges Marmestein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4666/criticas-a-teoria-das-geracoes-ou-mesmo-dimensoes-dos-direitos-fundamentais>. Acesso em: 13 abr. 2018.

[10] Veja-se “TRF4 disponibiliza consulta pública de precatórios e RPVs com saldo pendente”. Disponível em: <http://boletimjuridico.publicacoesonline.com.br/trf4-disponibiliza-consulta-publica-de-precatorios-e-rpvs-com-saldo-pendente/>. Acesso em: 12 abr. 2018.


Autores

  • Alberto Nogueira Júnior

    juiz federal no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutor em Direito pela Universidade Gama Filho, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor dos livros: "Medidas Cautelares Inominadas Satisfativas ou Justiça Cautelar" (LTr, São Paulo, 1998), "Cidadania e Direito de Acesso aos Documentos Administrativos" (Renovar, Rio de Janeiro, 2003) e "Segurança - Nacional, Pública e Nuclear - e o direito à informação" (UniverCidade/Citibooks, 2006); "Tutelas de Urgência em Matéria Tributária" (Forum/2011, em coautoria); "Dignidade da Pessoa Humana e Processo" (Biblioteca 24horas, 2014); "Comentários à Lei da Segurança Jurídica e Eficiência" (Lumen Juris, 2019).

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

  • Kátia Saba Laranjeira

    Advogada, Analista de Sistemas e Matemática com pós graduação na área tributária, de sistemas e administração

    Textos publicados pela autora

    Fale com a autora


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA JÚNIOR, Alberto; LARANJEIRA, Kátia Saba. Inconstitucionalidade da transferência de depósitos judiciais instituída pela Lei n. 13.463/2017. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5536, 28 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66684. Acesso em: 25 abr. 2024.