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Limites de sindicabilidade da valoração de conceitos indeterminados:o controle de legalidade, legitimidade e constitucionalidade da valoração de conceitos indeterminados

Limites de sindicabilidade da valoração de conceitos indeterminados:o controle de legalidade, legitimidade e constitucionalidade da valoração de conceitos indeterminados

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A essência do artigo é expor os rigores metodológicos necessários para a devida intervenção judicial na análise da concretização de conceitos jurídicos indeterminados.

INTRODUçÃO

O artigo destina-se a analisar a sindicabilidade da valoração de conceitos indeterminados com intuito de definir a possibilidade e a medida de controle de atos interpretativos e os limites e parâmetros mais adequados, em termos compatíveis com os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito. O trabalho adota como vetor, especialmente, os limites de controle da valoração realizada pelo administrador-gestor, em que pese a construção argumentativa e as conclusões apresentadas possam ser aplicada também à atividade de verificação da correção interpretativa realizada em sede judicial, quando a matéria for objeto de recurso.

Tal discussão se presta a pautar a atuação do Estado e frear abusos interpretativos na aplicação do direito, reforçando a submissão da Administração Pública, dos gestores públicos e dos aplicadores do direito vinculação aos mandamentos constitucionais.


O CONTROLE DE LEGALIDADE, LEGITIMIDADE E CONSTITUCIONALIDADE DA VALORAÇÃO DE CONCEITOS INDETERMINADOS

A questão a respeito do controle da valoração administrativa dos conceitos jurídicos indeterminados, e seus limites, passa, necessariamente, pela discussão sobre se tratar a concretização de tais conceitos de ato discricionário ou vinculado. Quanto a esse ponto, sem adentrar a polêmica existente, o melhor entendimento aponta no sentido de que o espaço de tomada de decisão conferido ao interprete não o põe diante de uma verdadeira liberdade, e sim, de um juízo de estrita vinculação, o que traz repercussões diretas no espectro de sindicabilidade.

Como é cediço, no exame de atos administrativos que digam respeito ao poder discricionário, em princípio, qualquer das opções dadas ao administrador, dentro do espaço conferido pelo legislador, será incensurável e inexaminável[1]. Nesses casos, conforme tradicional doutrina[2], o julgador somente entenderá uma medida como ilegal quando verificar a incompetência da autoridade, a irregularidade da forma empregada ou o excesso de poder[3].

Por outro lado, quando a análise se pauta em juízo vinculado o julgador realizará juízo de adequação do fato apresentado às finalidades da norma que se pretende cumprir para determinar a correção da conduta administrativa, pois não resta espaço ao administrador no seu atuar em qualquer dos elementos do ato administrativo. Assim sendo, permite-se as possibilidades de exame quanto à correção ou incorreção da escolha realizada.

Uma vez franqueada a possibilidade de controle da escolha do interprete, cumpre verificar quais os seus limites. Ou seja, é necessário determinar em que hipóteses e de que forma o juiz poderá afirmar que a interpretação conferida por terceiros se prestou a atender o comando legal, tal como, de que forma ele mesmo, ao interpretar conceitos indeterminados, deverá agir.

Em determinadas hipóteses, a verificação a respeito da regular concretização de um conceito jurídico indeterminado é facilmente aferida. O problema surge justamente nos casos em que não é possível afirmar, de imediato, que determinada aplicação é adequada aos fins que se propõe. É de se notar que, embora quem possua oito anos de idade possa se inserir no conceito de jovem e quem possua oitenta não o possa, suscitaria dúvidas definir se um indivíduo de quarenta anos se enquadraria no conceito, o que dependeria da análise de diversos aspectos, muitas vezes externos ao próprio termo, mas necessários a contextualizar o âmbito em que se empregaria a afirmativa.

É por isso que surgem os conceitos de zonas de certeza positiva, negativa e de incerteza[4], sendo esta a que traz maior dificuldade ao julgador. Isso, pois trata de hipóteses que não estão claramente incluídas ou excluídas na subsunção de uma determinada realidade ao conceito proposto.

É nessa área de penumbra que ganha importância a atuação dos órgãos de controle externo da administração, tal como dos órgãos judiciais que atuam em grau recursal, visto que aferirão, no caso concreto, se a atuação do interprete se deu de forma legítima, de acordo com as finalidades legais e em conformidade com os princípios constitucionais que regem a matéria.

Por mais tormentosa e difícil que seja a questão, em que pese o que afirma parte da doutrina[5], é majoritário o entendimento de que o julgador não pode deixar de decidir sob a alegação de inexistência de norma adequada ao caso, ante o mandamento do non liquet. Nesse sentido, ressaltam-se os dizeres de Fredie Didier Jr.:

[...] todo problema que for submetido ao Tribunal precisa ser resolvido, necessariamente. É dizer: ainda que a situação concreta não esteja prevista expressamente na legislação, caberá ao magistrado dar uma res posta ao problema, classificando-a como lícita ou ilícita, acolhendo ou negando a pretensão do demandante.[6]

Percebe-se, portanto, que, mesmo nas situações em que não seja possível extrair uma nítida resposta jurídica sobre o acerto ou desacerto da atividade interpretativa que se questiona, o julgador não pode, nem deve, se abster do dever de julgar. Nesses casos, portanto, para que se possa estabelecer critérios decisórios, deve-se observar o contexto em que está inserido o conceito indeterminado, a finalidade perseguida pela norma em que se encontra inserido e os objetivos buscados pelo interlocutor, no caso, o legislador.

O fruto de tal análise deve ser interpretado sistematicamente, à luz das normas principiológicas incidentes sobre o caso. Somente dessa forma o julgador poderá formar seu convencimento, por meio de decisão motivada, sobre a adequação da concretização aos mandamentos legais e a consequente regularidade ou irregularidade de sua atuação, como decorrência do enquadramento em uma zona positiva ou negativa.

O que se busca aqui evidenciar como parâmetro de concretização, portanto, que, diante de conteúdo periférico vago e impreciso, com alto grau de controvérsia e incerteza, deve tanto o interprete, quanto o administrador ou julgador sempre interpretar os elementos do caso concreto em consonância com vetores constitucionais que pautam a atuação estatal para guiar seu juízo, de modo que qualquer opção ilegítima seja efetivamente excluída. 

Ainda que não se possa afirmar categoricamente que a concretização inseriu-se em uma zona de certeza positiva, caso a análise realizada não o leve a aferir qualquer desconformidade com os postulados do bloco de juridicidade (zona de certeza negativa), deve-se preserva-la como legítima.

Em adição, quanto à atividade de controle, destaca-se que se a Administração ou julgador firmou uma intelecção comportada pelo conceito no caso concreto –­ ainda que outra também pudesse sê-lo –, seu ato deve, em primeira análise, ser preservado, uma vez que ele está mais perto dos problemas e, de regra, mais bem aparelhado para resolvê-los, uma vez que em contato direto com os fatos e provas que fundamentaram a escolha. Assim, caberá a eventual revisor – seja a própria Administração, o juízo de primeiro grau ou a instância jurisdicional recursal – a postura de autocontenção, deixando de intervir na decisão.

Percebe-se, portanto, que, além de desejável, é exigível que se imponha como balizas interpretativas das escolhas a submissão aos princípios constitucionais norteadores do Estado Democrático de Direito e às garantias dos jurisdicionados.

A função de controle nesse aspecto é a de fiscalizar o processo decisório e orientar o direcionamento do vetor interpretativo, valendo-se, para tanto, na esfera administrativa, dos mecanismos de revisão ou anulação dos atos e da punição dos agentes e na esfera judicial da reforma ou anulação de decisões. Tal atuação visa, sobretudo, a oferecer diretrizes para o aperfeiçoamento da atividade administrativa.


CONCLUSÃO

A solução do legislador, de empregar conceitos jurídicos indeterminados que lhe possibilitem conferir maior aplicabilidade e efetividade aos textos normativos, encontra óbices em sua aplicação. O artigo voltou-se, especialmente, à premente necessidade de se traçar parâmetros para a concretização de tais conceitos de forma a se afastar, de um lado, arbitrariedades e injustiças decorrentes de interpretações ilegais, mas, de outro, a impedir a interferência indevida na atividade do intérprete.

Para tanto, necessário se faz perceber que os conceitos fluidos, também chamados de conceitos indeterminados, podem se situar numa zona de certeza, positiva; numa zona de certeza negativa; e, por fim, na zona de incerteza em que se deve perquirir se a sua concretização, diante do caso concreto e das finalidades inerentes ao dispositivo legal, prestou-se ao atendimento do interesse público e, cumulativamente, não violou nenhum dos princípios constitucionais, mormente a isonomia; impessoalidade; moralidade; publicidade; eficiência; e a própria noção de legalidade.

Desse modo, o dever do interprete de realizar, e do julgador de aferir, a adequada concretização dos conceitos fluidos, passa pela transposição da mencionada zona de incerteza que lhe é apresentada, para a zona de certeza, seja positiva, seja negativa, uma vez que tal intervenção é necessária para que o ato praticado em desacordo com a finalidade legal cesse seus efeitos.

Nota-se, portanto, que a tarefa de interpretação legal e aplicação dos conceitos indeterminados deve ser feita com organização e rigor metodológicos, diante das balizas aferidas no caso concreto, sendo certo que determinadas matérias devem ser continuamente debatidas e aperfeiçoadas, de modo que os jurisdicionados possam conhecer e aplicar os entendimentos que melhor atendam às finalidades de interesse público perquiridas pelo legislador.

Tal noção quando aplicada ao controle sobre a concretização dos conceitos jurídicos indeterminados revela a fundamental importância de que as decisões sejam fundamentadas e que os critérios de orientação para apreciação do tema sejam conhecidos, mormente diante das diretas repercussões no interesse público e na necessidade de fortalecimento da confiança depositada nas instituições do Estado.


REFERÊNCIAS.

DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. rev., atual. e ampl. V. 1. Salvador: Juspodivum, 2015.

ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Tradução Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1990.

FRANÇA, Vladimir da Rocha. Vinculação e discricionariedade nos atos administrativos. Revista de Informação Legislativa. v. 38. n. 151. Senado Federal, jul./set. 2001. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/703>. Acesso em: 11 out. 2017.

MEIRELLES, Hely Lopes de. Direito Administrativo Brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SILVA, Almiro do Couto e. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n. 179/180, jan./jun. 1990.


Notas

[1] SILVA, Almiro do Couto e. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n. 179/180, jan./jun. 1990, p. 60.

[2] “Erro é considerar-se o ato discricionário imune à apreciação judicial, pois só a Justiça poderá dizer da legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de opção do agente administrativo. O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo do administrador pelo do juiz. Não pode, assim, `invadir opções administrativas ou substituir critérios técnicos por outros que repute mais convenientes ou oportunos, pois essa valoração’ é privativa da Administração. Mas pode sempre proclamar as nulidades e coibir os abusos da Administração.” (MEIRELLES, Hely Lopes de. Direito Administrativo Brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 120.).

[3] Destaca-se que essa tradicional visão sobre os limites do controle judicial, restrito à análise de legalidade, encontra ampliada diante do princípio da juridicidade, que amplia o espectro de controle, uma vez que leva em consideração para análise de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, ainda que discricionários, a conformidade deles não apenas com a lei, mas também com os princípios norteadores do atuar administrativo. Sem embargo, o mérito continua indevassável ao controle pelo Poder Judiciário, mas, então, já se está em uma esfera além da legalidade e da juridicidade.

[4] “Na estrutura do conceito indeterminado, é identificável um núcleo fixo (Begriffkern) ou ‘zona de certeza’, configurado por dados prévios e seguros, uma zona intermédia ou de incerteza ou ‘halo do conceito’ (Begriffhof), mais ou menos imprecisa, e, finalmente, uma ‘zona de certeza negativa’, também certa quanto à exclusão do conceito.” (ENTERRÍA; Eduardo García de; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Tradução Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 396.).

[5] Há entendimento doutrinário no sentido de que quando verificada a impossibilidade de determinar se a interpretação dada a determinado conceito atendeu ou não os fins leis, o magistrado deveria deixar de apreciar o acerto ou erro por não saber como decidir: “O exame judicial dos atos administrativos de aplicação de conceitos jurídicos indeterminados não está sujeito a um limite a priori estabelecido na lei. O próprio julgador, no instante de decidir, é que verificará se há um limite, ou não, ao controle judicial. Haverá limite se, em face da complexidade do caso, da diversidade de opiniões e pareceres, não podendo ver com clareza qual a melhor solução, não lhe couber outra alternativa senão a de pronunciar um non liquet, deixando intocada a decisão administrativa.” (SILVA, Almiro do Couto e. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n. 179/180, jan./jun. 1990. p. 58.).

[6] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. rev., atual. e ampl. V. 1. Salvador: Juspodivum, 2015. p. 160/161.


Autor

  • Renan de Freitas Ongaratto

    Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ. Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Faculdade Cândido Mendes e especialista em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

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