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O fenômeno da antinomia jurídica

O fenômeno da antinomia jurídica

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1.1. Desenvolvimento conceitual - Da antigüidade à contemporaneidade

A tragédia grega sobre Antígona, filha de Édipo, tratou da idéia de contradição entre as Leis do direito natural e do direito positivo, escrita por Sófocles provavelmente no ano de 442 a.C. A peça gira em torno da antinomia entre um édito baixado por Creonte – rei de Tebas, norma esta que proibia a celebração fúnebre em honra de Polinicies (irmão de Antígona), morto em combate em defesa de Argos e uma Lei universal-divina de que a família tinha o dever de enterrar piedosamente os familiares. Antígona entendia que tal Lei universal transcendia o poder de um soberano, aquela não passava de um decreto de um titular do Poder proibindo que se enterrasse determinada pessoa, pois ela teria agido em traição à Pátria. Antígona se levantou contra o chefe do governo perguntando: "De onde vem a tua ordem? Ela nasceu ontem. Enquanto o princípio que eu defendo é imemorial, não tem data. A tua ordem se dirige a um caso particular, mas o princípio comanda todas as nossas consciências". [1] A antinomia neste caso solucionou com Antígona aplicando o Direito natural e enterrando o irmão com as devidas honrarias e cerimônias fúnebres tradicionais, porém arcou com a condenação provinda de seu tio, o Rei Creonte, de viver sozinha em uma caverna.

A origem histórica do vocábulo antinomia, propriamente dita, nos remete ainda para a Antigüidade, foi Plutarco de Queronéia, autor de Dilações sobre a Justiça Divina, e de diversas bibliografias, entre elas, a de Alexandre Magno.

Mas a aparição de maior destaque eclode em Gloclenius (1613), datado do século XVII, em sua obra Lex philosophicum quotanquan clave philosophiae fores aperiuntur. Este autor distinguiu a antinomia tanto em sentido amplo, que ocorria entre sentenças e proposições, quanto a sentido estrito, existente entre leis.

Já no século XVIII, J.H. Zedler (1732), na sua obra Grosses vollstaendiges Universallex, a define como conflito de leis que ocorrem quando duas leis se opõem ou mesmo se contradizem. Em 1770, Baumgarten, faz menção à antinomia entre direito natural e direito civil, no seu livro Philosophia generalis.

A idéia do conflito normativo como premissa do conceito adotado modernamente surgiu no período de consolidação de idéias políticas e jurídicas da Revolução Francesa, através de John Gilissen, que firmou a preponderância da lei enquanto fonte do direito, o controle da legalidade das decisões judiciárias e principalmente, a concepção do direito como sistema, imprescindíveis para o contato com a problemática da antinomia jurídica em termos de profundidade.

Devemos também ressaltar o trabalho de J.E.M. Portalis, teórico constitucionalista francês da época revolucionária e pós-revolucionária, que na responsabilidade de dirigir a Comissão elaboradora do Código Civil Francês evidenciou a necessidade de ordenamento sistemático do direito, tendo como base fundamental deste sistema a Constituição do Estado. A doutrinadora francesa Simone Goyard-Fabre (2002) leciona:

"A idéia-força que domina essa concepção jurídica é a afirmação da supremacia do texto constitucional que é visto como o fundamento de toda a ordem jurídica. Sob a Constituição, a catedral jurídica se organiza em sistema; este, em seu significado filosófico, é a expressão jurídica de uma racionalidade lógico-formal; em sua eficiência prática, a ordem constitucional é portadora de normatividade, de modo que as regras de direito ganham figura, no âmbito estatal, de modelos de diretividade.

(...)

Os trabalhos de Portalis, cuja missão era dirigir a Comissão encarregada de preparar o Código Civil, evidenciam claramente a necessidade de ordenamento sistemático do direito". [2]

Classificar o direito como sistema é atualmente encarado como um leve equivoco semântico, pois é a ciência do direito que deve ser estudada de modo sistemático, esta sistematização é um método para facilitação do conhecimento e manejos daqueles que a aplicam.

Mas a caracterização da ciência do direito como sistema jurídico é classificá-la como algo ordenado por regras próprias, coordenadas e sem arbítrios com intuito de exemplificar e projetar ao homem o sentido da vida social harmônica.

Destaque-se também a crescente importância da lei como motivação para o homem moderno do século XIX positivar as normas, ou seja, a transcrição das normas em Leis escritas. Esta positivação do direito é a origem da pesquisa científica da problemática da antinomia jurídica, tratada com propriedade por Maria Helena Diniz (2001):

"Com a positivação cresce a disponibilidade espaço-temporal do direito, pois sua validade se torna maleável, podendo ser limitada no tempo e no espaço, adaptada a prováveis necessidades de futuras revisões.

Resta-nos, por derradeiro, assinalar que a teorização do problema do conflito normativo só surgiu no pleno domínio do positivismo jurídico, porque nos leva à concepção do direito como um sistema normativo.

Foi preciso que o direito fosse concebido como um sistema normativo para que a antinomia e sua correção se revelassem como problemas teóricos. A antinomia jurídica aparece como um elemento do sistema jurídico e a construção do sistema exigem a resolução dos conflitos normativos, pois todo o sistema deve e pode alcançar uma coerência interna.

O problema científico do conflito normativo é uma questão do século XIX, surgindo com o advento do positivismo jurídico e da concepção do direito como sistema, que criaram condições para o aparecimento de teses em torno da coerência ou incoerência (lógica) do sistema jurídico e da questão da existência ou inexistência de antinomias jurídicas". [3]

Esta positivação do direito faz parte da realidade jurídica brasileira, salienta-se a esta observação a existência de códigos em nosso ordenamento, um estado avançado na positivação das normas. O doutrinador Reis Friede (2002) retrata esta característica do direito no Brasil:

"Como, em nosso País, a realidade do direito se expressa, sobretudo, por sua inerente normatividade e esta, por seu turno, em forma de produção estatal, de cunho preponderantemente legislativo, é lícito deduzir que, embora reconhecidamente o direito transcenda á exclusiva existência normativa ( e a norma jurídica ao escopo restrito de atuação da lei), a maior parte do Direito se encontra necessariamente na norma e esta, ato contínuo, na lei, obrigando-nos, por efeito, a reconhecer que o Direito (no Brasil e na esmagadora maioria das nações ocidentais) se constitui em uma realidade essencialmente normativa e preponderamente legal". [4]

Assim sendo, a antinomia jurídica como fenômeno legal moderno surge como algo inerente ao sistema normativo em que se transformou o direito. É de suma importância caracterizar que justamente por ser o sistema normativo algo mutável de acordo com as situações fáticas da sociedade humana, motivo pelo qual as antinomias aparecem. Para tanto deve o jurista solucionar o conflito e sempre lutar pelo estabelecimento da unidade lógica do sistema. As palavras de Paulo Dourado de Gusmão (2000) nos tornam clarividentes estes ensinamentos:

"Pode-se dizer que um dos objetivos da ciência do direito é construir o ‘sistema jurídico’, por muitos denominado ordenamento jurídico. O direito encontra-se disperso em várias normas, aparecidas em épocas diferentes, destinadas a satisfazer necessidades criadas por variadas situações sociais e a solucionar os mais diversos conflitos de interesses.

(...)

Sistema jurídico é, pois, a unificação lógica das normas e dos princípios jurídicos vigentes em um país, obra da ciência do direito. Para obtê-la, elimina o jurista contradições porventura existentes entre normas e entre princípios; estabelece hierarquia entre as fontes do direito, escalonando-as; formula conceitos, extraídos do conteúdo das normas e do enunciado nos princípios, agrupa normas em conjuntos orgânicos e sistemáticos, levando em conta a função que devem elas cumprir, como é o caso das instituições; estabelece classificações, ou seja, aponta o lugar de cada norma no sistema.

(...)

A construção do sistema por objetivo, nota Cogliolo, descobrir os pontos obscuros e contraditórios ou incompletos contidos nos princípios e nas normas, bem como harmonizar e coordenar as finalidades opostas de dois ou mais institutos". [5]

O sistema é na tridimensionalidade jurídica de Miguel Reale, composta por três subsistemas, o da norma, o de fatos e de valores. Reis Friede (2002) nos apresenta esta teoria:

"Procurou o autor demonstrar, em sua tese, que o Direito é uma realidade tridimensional, compreendida através da soma de três fatores básicos: fato + valor + norma (como, a bem da verdade, muitos autores antecedentes já haviam defendido), associados, por seu turno, entretanto, não através de uma forma simplesmente abstrata, mas, sim, num contexto essencialmente dialético, compreendido pela própria dinâmica do mundo real. Em sua explanação teórica, Reale argumentou, com emérita propriedade, que os três elementos dimensionais do Direito estão sempre presentes na substância do jurídico, ao mesmo tempo em que são inseparáveis pela realidade dinâmica da essência do próprio Direito.

(...)

A produção do Direito, neste especial aspecto, não é um processo natural; a norma não projeta simplesmente o fato, mas, sempre e a todo instante, a norma valora o fato.

Esta é uma das principais razões que explicam o Direito como uma realidade que transcende o plano meramente normativo, situando-se também nas esferas do poder, da ideologia e do interesse e afastando o Direito da visão estreita da unidimensionalidade que o posiciona, de forma extremamente simplória, como uma realidade que se explica por si mesma". [6]

Caso a igualdade estrutural ou a isomorfia entre os elementos dos subsistemas for quebrada, ou seja, um elemento fático não ter correspondente normativo se terá uma lacuna. Porém quando tal quebra se dá entre as unidades dos elementos do subsistema normativo teremos a antinomia jurídica. A antinomia por si só é assim conceituada: "posição ou disposição totalmente contrária; oposição" [7], já a antinomia jurídica: "contradição real ou aparente entre leis, ou entre disposição de uma mesma lei, o que dificulta sua interpretação." [8] Maria Helena Diniz (1998) aprofunda tal conceito :

"Filosofia do direito. 1. Oposição existente entre normas e princípios no momento de sua aplicação. 2. Contradição inevitável a que, segundo Kant, chega o espírito quando se aplica a certos conceitos, ou melhor, ao empregar as concepções a priori ao transcendente e absoluto. 3. Reunião de proposições que parecem ser contraditórias e provadas, mas, na verdade, a contradição é apenas aparente ou a prova de uma daquelas é, no mínimo, não concludente". [9]


1.2. Antinomia como elemento inerente ao sistema jurídico

O sistema jurídico tem as suas características peculiares como todo sistema. Destacamos: a complexidade, a unidade, dinamicidade, a coerência tendencial e a completude tendencial.

O ordenamento jurídico é caracterizado por Bobbio (1999) como complexo, por ter múltiplas fontes geradoras de normas:

"A complexidade de um ordenamento jurídico deriva do fato de que a necessidade de regras de conduta numa sociedade é tão grande que não existe nenhum poder (ou órgão) em condições de satisfaze-la sozinho. Para vir ao encontro dessa exigência, o poder supremo recorre geralmente a dois expedientes:

1.A recepção de normas já feitas, produzidas por ordenamentos diversos e precedentes.

2.A delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores.

Por essas razões, em cada ordenamento, ao lado da fonte direta temos fontes indiretas que podem ser distinguidas nestas duas classes: fontes reconhecidas e fontes delegadas. A complexidade de um ordenamento jurídico deriva portanto da multiplicidade das fontes das quais afluem regras de conduta, em última analise, do fato de que essas regras são de proveniências diversas e chegam à existência (adquirem validade) partindo de pontos os mais diferentes". [10]

A unidade do sistema jurídico repousa na sua disposição de forma hierárquica. O sistema tem origem na norma fundamental, a qual num Estado Democrático é: "todo o poder emana do povo", descrito no parágrafo único do Art. 1º da Constituição Federal: "Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição". [11]

O sistema para ser considerado unitário, a norma fundamental deve ter poder normativo, a todas as outras normas do sistema, ou seja, a norma fundamental deve ter influência direta ou indiretamente em todas as outras normas. O poder constituinte originário deriva da norma fundamental, assim como a Constituição deriva do poder constituinte originário e assim sucessivamente. Esta forma hierárquica do sistema é a sua unidade. Bobbio (1999) assim leciona:

"Que seja unitário um ordenamento complexo, deve ser explicado. Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade do ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento tem uma norma fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado ‘ordenamento’.

A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um amontoado, não um ordenamento. Em outras palavras, por mais numerosas que sejam as fontes do direito num ordenamento complexo, tal ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indiretamente, com voltas mais ou menos tortuosas, todas as fontes do direito podem ser remontadas a uma única norma. Devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárquica. As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica". [12]

O sistema jurídico é dinâmico, mutável, pois as normas que o compõem tentam acompanhar as valorações do seu tempo sobre os fatos já vividos até então e sobre os novos fatos vivenciados pela sociedade humana. Os valores humanos se transmudam ao longo do tempo, pois a sociedade humana evolui no transcurso do aprofundamento das relações entre os indivíduos e destes com o meio. Antonio Carlos Wolkmer (2000) conceitua:

"O homem, enquanto realidade histórico-social, tende a criar e a desenvolver, no contexto de um mundo natural e de um mundo valorativo, formas de vida e de organização societária. A espécie humana fixa, na esfera de um espaço e de um tempo, tipos e expressões culturais, sociais e políticas, demarcadas pelo jogo dinâmico de forças móveis, heterodoxas e antagônicas. Cada indivíduo, vivendo na dimensão de um mundo simbólico, lingüístico e hermenêutico, reflete padrões culturais múltiplos e específicos. Sendo a realidade social o reflexo mais claro da globalidade de forças e atividades humanas, a totalidade de estruturas de um dado grupo social precisará o grau e modalidade de harmonização deste". [13]

Esta complexidade das relações humanas é causa do surgimento de novas relações e destas surgem novos fatos jurídicos a serem previstos pela norma jurídica e por fim, tais normas se transformam em elementos do sistema jurídico vigente.

O sistema jurídico é reflexo de sua ciência, a ciência do direito, que como todas as outras busca a verdade, mesmo sabendo que o alcance da verdade é utopia. Os seus elementos, normas, poderão ser revistas, pois a valoração dada como verdade no tempo em que foi elaborada poderá cair por terra, pois o direito como ciência não admite verdade absoluta. As palavras de Reis Friede (2002) ratificam:

"Por efeito, o direito - e, de forma especial, a ciência que o informa – nutre-se de suas próprias dúvidas e contradições, num genuíno exercício espiral e infinito – dentro de um contexto determinado, necessariamente dinâmico e com dialética própria – sem que tenha como fim último a busca de sua origem, de seu destino, de seu fundamento, e principalmente, de sua certeza, ainda que sabidamente seja impossível chegar a estes utópicos desideratos.

O cerne do direito, portanto, não se encontra propriamente em sua precisão que, em substância, inexiste; mas, ao contrário, na riqueza de suas inúmeras controvérsias (e, por extensão, de suas amplas dúvidas) que, embora aparentam conduzir a uma determinada solução que seja reputada como a "solução correta", em essência apenas traduzem a realidade limitada e imprecisa do Direito, a exemplo do que ocorre em todas as demais ciências". [14]

A coerência do sistema é representada pelo princípio da não-contradição ou da unicidade. Esta característica deve existir no sistema jurídico, pois é postulado essencial para a garantia do alcance da justiça pelo direito. A certeza de que o fato está regulamentado de uma só forma é primórdio para o direito, pois só assim o jurisdicionado estará possibilitado de prever a conseqüência jurídica para uma conduta própria ou de outrem. Os ensinamentos de Bobbio (1999) esclarecem:

"A coerência não é condição de validade, mas sempre condição para a justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados aplicá-las, são violadas suas exigência fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem á mesma categoria". [15]

Esta característica do ordenamento jurídico é teórica e tendencial. Devido à vivacidade do sistema, em que normas originam-se de diversas fontes (complexidade) e são valorações, estas modificam-se em conformidade com o espaço e o tempo evidenciados. Estas valorações incidem sobre os fatos jurídicos, que surgem ao longo da evolução da sociedade humana, apresentando a característica de dinamicidade do sistema. Devido a esses fatores, a coerência não pode ser atingida na prática.

Assim sendo o sistema tem como meta, objetivo ou tendência a disposição das normas em total harmonia. A importância desta característica reside na sua contraposição a arbitrariedade.

A completude é bem tratada por Bobbio (1999):

"Por ‘completude’ entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente ‘lacuna’ (num dos sentidos do termo ‘lacuna’), ‘completude’ significa ‘falta de lacunas’. Em outras palavras, um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema". [16]

O sistema jurídico tenta, mas não anda em compasso com a realidade fática vivida pela sociedade humana, assim poderá no caso concreto evidenciar-se fato jurídico não previsto por qualquer norma. Tal fenômeno é denominado de lacuna. Assim a completude do sistema é somente uma tendência do sistema, é sua força motriz para a normatização de novos fatos jurídicos.

A antinomia jurídica, devido a esta dinamicidade e complexidade, é um elemento inerente ao sistema jurídico. Não há como a ciência do direito prever em seus escopos toda a complexidade das relações humanas que se modificam e se aprofundam cotidianamente.

Este elemento, antinomia jurídica, existe dentro do sistema jurídico e coexiste com o sistema, à medida que o mesmo prevê critérios para sua solução, por ser a coerência do sistema jurídico algo tendencial e não pressuposto da existência do sistema. Mister se faz ressaltar que por isso, e outras características, o direito não é propriamente um sistema, mas sim uma ciência sistematizada como método, pois sendo assim o seu estudo se torna mais próspero.


1.3. A problematização entre o princípio da coerência do sistema jurídico e a antinomia jurídica

O fenômeno jurídico da antimonia, conforme já ressaltado, é algo inerente ao sistema jurídico. Porém tal contradição deverá ser suprida, pois o princípio da unidade do sistema jurídico formula a idéia teórica da coerência, ou seja, o antagonismo entre as normas deste sistema deve ser solucionado. A professora Maria Helena Diniz (2001) aponta com maestria:

"A antinomia é um fenômeno muito comum entre nós ante a incrível multiplicação das leis. É um problema que se situa ao nível da estrutura do sistema jurídico (criado pelo jurista), que, submetido ao princípio da não-contradição, deverá ser coerente. A coerência lógica do sistema é exigência fundamental, como já dissemos, do princípio da unidade do sistema jurídico. Por conseguinte, a ciência do direito deve procurar purgar o sistema de qualquer contradição, indicando os critérios para solução dos conflitos normativos e tentando harmonizar os textos legais". [17]

A essência da relevância do princípio da unicidade, também chamado de princípio da não–contradição, para o direito é configurada ao sabermos que o fato não será analisado sob a ótica de uma norma, mas sim sobre o conjunto de normas formadoras do sistema jurídico. Assim sendo o fato é regulamentado pelo sistema de uma maneira global. É o sistema jurídico em sua totalidade que normatiza o fato e não apenas uma lei em específico. O doutor João Baptista Machado (1998) é contundente ao descrever tal assertiva:

"O caso é que o interesse tutelado por uma norma não pode ser isolado da totalidade dos interesses considerados e tutelados pelo sistema jurídico global. O ordenamento jurídico só pode ser entendido como um sistema de valores tomado como unidade e totalidade, dentro do qual se coordenam e hierarquizam os diferentes valores parciais afirmados pelas diferentes normas. Portanto, qualquer problema jurídico só pode ser adequadamente resolvido em função do ordenamento jurídico global – ou, para usar de novo palavras de Falzea, ‘o efeito determina-se cumpridamente, não em função de cada norma específica (o quer que isso seja), mas em função de todo o sistema’". [18]

A relevância é tamanha que alguns doutrinadores entendem que é inconcebível a idéia da existência do sistema jurídico sem o cumprimento integral do princípio da não-contradição, ou seja, não poderia haver antinomias jurídicas sem solução. Tal pensamento é descartado ao encaramos o sistema como algo mutável e a nova valoração do fato sob ótica condizente com o pensamento vigente no tempo será, em sua grande maioria, antagônica a velha vontade, ali representada pela norma anterior. O desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e aclamado doutrinador, Paulo Gusmão (2000), discorre com propriedade a obrigatoriedade da resolução da antinomia jurídica, quando se trata de análise de um determinado caso concreto, esta sim plausível:

"(...) os casos de antinomia, que, segundo Bobbio ("Sui criteri pre risolvere le antinomie" nos Studio in Onore di Antoniom Segni), é a incompatibilidade entre duas normas pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico.

(...)

Não sendo possível, do ponto de vista lógico, a aplicação de normas incompatíveis entre si, pois uma só delas deve reger o caso a ser julgado (...)

Ditos procedimentos visam a restabelecer a harmonia que deve haver entre os direitos e, em cada direito, entre suas normas, bem como manter a hierarquia das regras de direito, sem qual inexiste ordem jurídica". [19]

Assim sendo toda e qualquer contradição, utilizando os procedimentos via critérios pré-definidos, deverá ser eliminada para manutenção da aplicação do direito, via interpretação. Porém caso o intérprete e aplicador da lei seja submetido a uma antinomia jurídica real, não terá como conciliar a aplicação das duas normas válidas e muito menos autonomia de ab-rogar definitivamente a sua escolha, uma das leis confrontantes. Assim sendo o sistema existe mesmo com antinomia jurídica real, porém a permanência de tal fenômeno é contrária a um dos princípios basilares (o da não-contradição) da idéia de sistema jurídico e por isso deverá ser eliminada. A antinomia deverá ser suprida primeiramente, pelo caminho da invalidez de eficácia de uma das Leis e assim estará a aplicação justa do direito resguardada. Estamos diante das classificações da antinomia jurídica, aparente (conciliável solucionada via interpretação) ou real (inconciliável solucionada via retirada de validade de uma das normas).


1.4. A caracterização da real antinomia

O tipo de solução usada para o conflito normativo nos traz a antinomia real ou a antinomia aparente, dependendo da casuística. Antinomia aparente é introdutoriamente tratada por Kelsen (1997):

"Como ciência jurídica procura conhecer o direito como um todo de sentido, deve descrevê-lo em proposições isentas de contradição lógica, partindo do pressuposto de que os conflitos normativos podem e devem ser resolvidos pela via interpretativa". [20]

Caracteriza-se como aparente, a antinomia que é conciliável ao conceito de sistema jurídico do direito, pois a mesma não fere, essencialmente, o princípio da unidade do sistema e idéia da coerência entre os elementos normativos. A conciliação se dá por via interpretativa, buscando qual entre as Leis em questão deve ser aplicada ao caso concreto. O apontamento de uma Lei em detrimento de outra será por critérios preexistentes (cronológico, hierárquico e da especialidade).

O conceito de antinomia jurídico real é tratado com propriedade por Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1978):

"A oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado". [21]

Para a configuração de uma antinomia como real é necessário o preenchimento das seguintes condições:

- Ambas as normas sejam jurídicas; ou seja é inconfrontável legislações de gêneros distintos; não se caracteriza antinomia real um antagonismo entre uma lei físico – natural e uma norma jurídica ou ainda, uma norma moral e uma norma jurídica.

- Ambas sejam vigentes e pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico; nesta pesquisa estamos tratando do ordenamento jurídico brasileiro, não há antinomia real entre norma jurídica deste ordenamento com a norma jurídica do ordenamento português.

- Ambas devem emanar de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, prescrevendo ordens ao mesmo sujeito;

- Ambas devem ter operadores opostos (uma permite e outro obriga) e os seus conteúdos (atos e omissões) devem ser a negação interna um do outro; a contradição deve ser caracteriza na atitude exigida pelas normas conflitantes, assim são antinômicas a norma A que prescreve é permitido fumar neste recinto e a B, que estatui é obrigatória a omissão de fumar neste recinto.

- O sujeito, a quem se dirigem as normas conflitantes, deve ficar numa posição insustentável; quando a antinomia se dá entre normas cronológica, hierárquica e especialmente semelhantes e não há nos critérios existentes solução capaz de desvendar qual a norma deve ser aplicada.

Assim sendo tais condições podem ser resumidas em três: incompatibilidade entre as normas, indecibilidade do sujeito e necessidade de decidir qual norma a ser aplicada.

A antinomia real merece um aprofundamento em seu mérito. A questão pertinente em alguns doutrinadores é o reconhecimento da existência deste tipo de antinomia. Estes acreditam que não é possível o sistema jurídico existir com antinomias reais, pois estas, mesmo sendo solucionadas em determinado caso concreto, continuaram a existir dentro do sistema. Assim sendo a existência de antinomia real é algo inconcebível para o princípio da unicidade do sistema jurídico e não para o sistema propriamente dito, e deverá ser suprida.


1.5. Classificação das antinomias jurídicas

As antinomias jurídicas podem ser classificadas em conformidade com os seguintes critérios: solução, conteúdo, âmbito e extensão da contradição.

1.5.1. Quanto à solução

Critério de solução: já foi evidenciado, pois quanto a este critério a antinomia poderá ser aparente ou real. Aparente quando os critérios para solucioná-la forem normas integrantes do ordenamento jurídico e real quando estiverem presentes as condições supra-citadas (incompatibilidade, indecibilidade do sujeito e necessidade de decisão).

1.5.2. Quanto ao conteúdo

Critério de conteúdo: a antinomia será classificada em própria e imprópria. A antinomia imprópria poderá se apresentar como: de princípios, valorativa e teleológica.

A Antinomia própria acontece quando uma norma é a negação da outra. As atitudes exigidas pelas normas são inconciliáveis, pois uma proíbe e a outra autoriza. Exemplificando, uma norma determina a proibição do aborto e outra permite tal prática. A aqui se trata de antinomia em razão formal e não propriamente do seu conteúdo material. Uma norma poderá advir de uma Lei sobre matéria completamente diferente da outra e mesmo assim serem contraditórias.

Um exemplo é o caso de um soldado membro das Forças do Exército Brasileiro que recebe uma ordem de seu comandante para fuzilar um prisioneiro de guerra. O Estatuto dos Militares assim prescreve o dever do militar de obedecer a ordens de seu comandante:

"Art. 35 - Os deveres militares emanam de um conjunto de vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, e compreendem, essencialmente:

(...)

IV - a disciplina e o respeito à hierarquia;

V - o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens;" [22]

Antagônico ao prescrito no Estatuto está o Código Penal que estabelece em seu artigo 121 a tipificação do ato de matar alguém como crime de homicídio. A antinomia reside na razão formal. Formal entende-se por "3. que diz respeito mais a aparência do que o conteúdo. 18. relativo a uma relação generalizável e paradigmática entre termos em um enunciado, a despeito de qualquer conteúdo empírico ou material". [23] Assim sendo na antinomia própria não se leva em consideração o conteúdo material propriamente, mas sim a conduta distinta exigidas pelas normas.

A antinomia própria, em virtude de sua razão formal, é solucionada com objetividade, ou seja, com a aplicação de um dos critérios de solução objetivos: o cronológico ou o hierárquico. Esta objetividade é tratada com maestria pelo Dr. João Baptista Machado (1998):

"Os dois mencionados critérios (o cronológico e o hierárquico) têm de característico referirem-se a dados (de facto ou de direito) facilmente verificáveis, a poderem ser aplicados sem a intervenção de valorações pessoais do julgador – pelo que os podemos apelidar, neste sentido, de critérios "objetivos", como faz Bobbio (op. cit., p.239). Mas isto significa também, por outro lado, que eles são essencialmente critérios de justiça formal. Quer dizer: em vez de se procurar estabelecer qual das regras antinômicas è a "mais justa", através de um processo de justificação que no caso, teria de ser altamente subjetivo, utilizam-se critérios fixos e susceptíveis de fácil determinação, por amor da certeza do direito.

(...)

Só pelo recurso a critérios deste tipo se poderá, como diz Bobbio, ‘garantir uma objectividade que baste para satisfazer a necessidade social de uniformidade das decisões’ (op. cit., p.240)". [24]

Neste caso exemplificado, o critério cronológico é o solucionador, pois quando a antinomia é parcial, uma norma limita a validade da outra. A limitação no exemplo se evidencia na realidade do espaço temporal que o soldado comandado vive, caso seja de paz aplica-se à norma penal, ou de guerra à lei militar.

A antinomia imprópria ocorre em virtude de conteúdo material das normas evidenciadas, podendo ser: de princípios, valorativa ou teleológica.

Primeiramente ao conceito de antinomia imprópria de princípios, se faz mister apresentar a acepção de princípios. O doutrinador De Plácido e Silva (2001) assim transcreveu:

"No sentido, notadamente no plural, significa as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas. (...)". [25]

Os princípios são axiomas basilares da ciência do direito. Os princípios gerais fundamentam todos os ramos do direito e os específicos giram em torno dos seus respectivos ramos do direito. Antinomia imprópria de princípios se dá quando estas idéias norteadoras do direito entram em contradição. Vale ressaltar que tal antinomia pode ser aparente, pois é passível a co-existência entre princípios, que em dado fato concreto se contradizem. A solução do aplicador e intérprete deverá ser sempre guiada pela opção mais socialmente aceita e a mais moralmente justa, conforme a interpretação sociológica. Em um singelo artigo Renato Zugno (2004) esboça a hierarquização axiológica, da interpretação sistemática, dos princípios como método de solução entre conflito destes:

"Estes, que estão expressos ou implícitos no ordenamento jurídico, sobremaneira na Constituição, devem guiar e conduzir qualquer averiguação jurídica, pois, posicionam-se no ápice do sistema jurídico iluminando os caminhos possíveis de percorrer sem que se fira a ética, a moral, a liberdade, a igualdade, a segurança jurídica e a dignidade humana, por exemplo.

Tais princípios que, segundo o jurista italiano Francesco Carnelutti, são as leis das leis, devem ser manejados conforme à predominância axiológica apreendida pelo intérprete numa determinada época e situação quando analisar um caso concreto, eis que não há antinomia de princípios porque podem perfeitamente conviver harmonicamente dentro de um mesmo sistema. O que acontece, é que em virtude de peculiariedades, o intérprete obrigatoriamente tem que hierarquizá-los * axiologicamente (vide Juarez Freitas in A Interpretação Sistemática do Direito, ed. Malheiros) ou dar-lhes precedência (Robert Alexy, El Concepto y la Validez del Derecho ed. Gedisa), de forma que um sobreponha outro para solver adequadamente um litígio, sem olvidar que o princípio preterido não só não é excluído do sistema como, poderá num outro momento e em idêntico caso, ser alojado no cume hierárquico". [26]

O artigo também nos traz um brilhante exemplo de antinomia imprópria de princípios do doutrinador Robert Alexy e a sua sucessiva solução:

"Para ilustrar, Robert Alexy na mesma obra antes citada, menciona o caso de um Tribunal que deveria realizar uma audiência oral contra um acusado que corre o perigo de um ataque cerebral ou de um infarto. O Tribunal constata que em tais casos existe uma relação de tensão entre o dever do Estado de garantir uma aplicação efetiva do Código Penal (princípio da prestação e eficácia do direito) e o direito do acusado a sua vida e a sua integridade física (princípio do direito à vida). Esta relação teria que ser solucionada de acordo com a máxima de proporcionalidade (outro princípio não menos relevante). Ou seja, qual dos dois interesses (ou princípios), abstratamente do mesmo nível, deveria ter um peso maior no caso concreto. Pois, no caso que tinha que decidir, se tratava de perigo real e provável de que o acusado, caso se realizasse a audiência oral, poderia morrer ou sofrer graves danos à saúde. Sob estas circunstâncias, o Tribunal aceitou a precedência do direito à vida e a integridade física do acusado. Este é um exemplo, no qual o princípio da prestação judiciária cedeu ao princípio do direito à vida sem que um excluísse o outro do ordenamento jurídico, apenas, num caso concreto, um Tribunal entendeu de adotar um em detrimento do outro". [27]

O doutrinador Reis Friede (2002) nos traz um outro exemplo de antinomia imprópria dos axiomas basilares do direito. Neste caso o embate apresentado era entre a "segurança jurídica" e a "justiça":

"Não é por outra razão que, após duas horas acaloradas de debates, o Superior Tribunal de Jusdiça tomou uma decisão inédita no Brasil. Negou o cancelamento do registro de paternidade, mesmo após um exame de DNA comprovar que um pediatra de Goiás não era o pai biológico de uma criança. A razão: a sentença já havia transitado em julgado.

O STJ optou por manter a sentença para preservar a "segurança jurídica" no campo do Direito Civil. A ação foi julgada em primeira instância em 1993 e a decisão, à base de provas testemunhais, foi pelo reconhecimento da paternidade. Em segunda instância, manteve-se a decisão. E, em grau de recurso, chegou o caso ao STJ, que não julgou a ação por se tratar de matéria de prova (é conveniente lembrar que o STJ só tem competência para julgar matéria de direito).

Só depois de vencidos os prazos legais em que podia recorrer, o pediatra entrou com uma ação de negação de paternidade, exigindo o exame de DNA e pedindo o cancelamento do registro civil.

O exame provou que não era ele o pai. Mas aos olhos da lei era tarde demais.

Prevaleceram no STJ os argumentos de que a matéria julgada deveria ser preservada, sob pena de abrir um precedente que determinaria a possibilidade de reavaliação constante de ações já julgadas, fazendo, desta feita, pois, prevalecer o princípio de segurança jurídica sobre o valor da justiça, como valor axiológico básico inerente ao Direito, considerando, sobretudo, a natureza não penal do Direito Processual vertente à hipótese". [28]

Os princípios do direito poderão receber diferente valoração, de acordo com o ramo do direito em estudo. No caso supra apresentado a coisa julgada prevaleceu sobre a segurança jurídica no ramo do direito civil, mas o mesmo não acontece no campo do direito penal. Reis Friede (2002) discerne:

"Segundo este prisma, o Direito Processual, ao se subdividir nos ramos processual penal e processual não penal (civil lato sensu), por exemplo, procurou, acima de tudo, estabelecer um diferente equilíbrio entre os fatores axiológicos da justiça e da segurança, favorecendo o primeiro em detrimento do segundo no caso do Direito Processual Penal (DPP), em contraposição crítica à inversa situação existente no direito Processual Civil (DPC).

Um dos resultados práticos, facilmente observados, com esta medida foi particularmente a imposição do prazo decadencial de dois anos para a interposição da competente ação autônoma de impugnação no cível (ação rescisória), em contraste com a ausência de qualquer prazo para o ajuizamento de equivalente ação na esfera penal (revisão criminal), demonstrando, claramente, a intenção de privilegiar no DPP, por versar este ramo sobre aspectos instrumentais associados à liberdade do indivíduo, o valor da justiça em questões de natureza patrimonial, ao contrário, o valor da segurança sobre eventuais considerações alusivas à justiça no sentido axiológico". [29]

A antinomia imprópria valorativa se dá quando o legislador não for fiel a uma valoração por ele próprio realizada, pondo-se em conflito com as próprias valorações. Um exemplo bem nítido quando uma norma prescreve pena mais leve para um delito considerado como mais grave ou ainda quando no sistema encontram-se normas que transcrevem penas diferentes para condutas iguais. Um exemplo é dado pelo artigo 303 do Código Brasileiro de Trânsito e pelo § 6º do artigo 129 do Código Penal, assim descritos:

"Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor". [30]

"Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem.

(...)

§ 6º Se a lesão é culposa:

Pena – detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano". [31]

Maria Helena Diniz trata tal antinomia como algo aceitável ou tolerado para o aplicador: "não podendo ser removida pela ciência do direito, mas deve constituir um estímulo ao aplicador para ver se ela pode ser eliminada por meio de técnica interpretativa". [32]

A antinomia imprópria poderá ainda ser da forma teleológica quando se apresentar incompatibilidade entre os fins propostos por certa norma e os meios previstos por outra para consecução daqueles fins. O legislador quer alcançar um determinado fim com uma norma, porém em outra rejeita os meios para obter tal finalidade. Um exemplo à citação postal na Lei de Execução Fiscal está prevista na Lei 6.830/80, artigo 8°, incisos I e II, e é aplicada, via de regra, caso a Fazenda Pública não a requeira de outra forma, in verbis:

"I - a citação será feita pelo correio, com aviso de recebimento, se a Fazenda pública não a requerer por outra forma;

II - a citação pelo correio considera-se feita na data da entrega da carta no endereço do executado; ou, se a data for omitida, no aviso de recebimento, 10(dez) dias após a entrega da carta na agência postal; ". [33]

A finalidade da citação em uma execução é dar ao executado a oportunidade de nomeação de bens a penhora ou o pagamento de tal dívida (cristalizado nos artigos 10 e 11 da L.E.F.), porém isto não acontecerá caso a pessoa que receba a citação via postal não entregar a mesma ao seu real destinatário. Ainda a citação defeituosa em questão prejudica o direito nas hipóteses de defesa indireta, tais como alegação de nulidade dos embargos, ou exceção de pré-executividade em que o devedor nem precisaria penhorar seus bens ou pagar para se defender.

1.5.3. Quanto ao âmbito

Critério quanto ao âmbito, ter-se-á como referência a esfera que a norma se apresenta. Podendo ser antinomia de direito interno, antinomia de direito internacional ou antinomia de direito interno-internacional.

A antinomia de direito interno, ocorre entre normas dentro de um ramo do direito (norma de direito civil conflita com outra de direito civil) ou entre normas de diferentes ramos jurídicos (norma de direito constitucional conflita com norma de direito administrativo). Já a antinomia de direito internacional aparece entre normas de direito internacional público, como: tratados ou convenções internacionais, costumes internacionais, princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas, decisões judiciárias, opiniões dos publicistas mais qualificados como meio auxiliar de determinação de normas de direito (art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça), normas criadas pelas organizações internacionais e atos jurídicos unilaterais.

A antinomia de direito interno-internacional merece um destaque, pois sua solução surge não tal somente dos critérios solucionadores, os quais serão devidamente estudados, mas sim através da filiação das teorias específicas sobre o assunto. Tal antinomia surge entre norma de direito interno e norma de direito internacional público. Um exemplo é a convenção Dos Direitos Humanos intitulada de Pacto San José da Costa Rica, tratado internacional o qual o Brasil é signatário. A antinomia interno-internacional dá-se ente o Pacto, artigo 13 do tratado, e o 223 da Constituição Federal:

"Art.13 - Liberdade de Pensamento e de Expressão.

1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda a natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

(...)

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controle oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos usados na difusão da informação, nem por obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões." [34]

"Art. 223: Compete ao poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observando o princípio da complementaridade dos sistemas privados, públicos e estatal". [35]

O tratado prescreve que o direito da comunicação será exercido sem prévia licença do Poder Estatal, porém a Constituição estabelece que o Poder Executivo através do Ministério das Comunicações concederá concessão para os interessados no serviço de radiodifusão comunitária.

A solução desta espécie de antinomia não depende tão somente da utilização dos critérios solucionadores, mas sim da ótica da teoria utilizada pelo aplicador. A corte Suprema Brasileira, o Supremo Tribunal Federal, assim como a grande maioria dos magistrados, utiliza a teoria dualista nacionalista moderada como resposta às antinomias apresentadas neste âmbito. Dualista por considerar que o ordenamento jurídico internacional e o ordenamento nacional são independentes. Nacionalista por acreditar que o ordenamento Estatal prevalece sobre o internacional adotado. E moderada pelo tipo de procedimento adotado para incorporação do tratado, ou seja, somente exige-se a formulação de um decreto-lei pelo Congresso e depois promulgado pelo Presidente e não a formalização através de Lei ordinária.

Esta teoria prescreve que os acordos internacionais assinados pelo Brasil são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro como lei infraconstitucional.

Tratar o Pacto San José da Costa Rica como Lei infraconstitucional é colocá-lo abaixo da Constituição Federal. Assim sendo a solução é a utilização da norma advinda da C.F. em detrimento ao do Pacto.

1.5.4. Quanto à extensão

Critério quanto à extensão da contradição. Em relevância a este critério a antinomia poderá se apresentar de maneira total-total, total-parcial e parcial-parcial.

A antinomia total-total é a incompatibilidade absoluta entre duas normas, ou seja, entre uma norma e outra não poderá haver conciliação na aplicação. Uma norma não poderá ser aplicada em nenhuma circunstância sem conflitar com a outra. Maria Helena Diniz (2001) cita a ilustração feita por Hans Kelsen quanto a esta espécie de antinomia:

"A esse respeito bastante interessante é a posição de Hans Kelsen. Para ele, haverá conflito entre duas normas quando o que uma estabelecer como certo for inconciliável com o que outra estatuir como devido, e a observância ou aplicação de uma delas comportaria, necessária ou possivelmente, a violação da outra". [36]

Um exemplo bem didático para a antinomia total-total é o caso hipotético de uma norma estatuir: norma 1 – a bigamia deve ser punida; e uma outra norma prescrever: norma 2 – a bigamia não deve ser punida. Ora o dispositivo normativo advindo da norma 1 é contrário em totalidade em relação ao dispositivo da norma 2. A aplicação da norma 1 necessariamente entrará em conflito com a norma 2 e vice-versa.

A questão é saber se há a conciliação da aplicação das normas. Tal conciliação deve sempre se ater às finalidades para quais as normas foram criadas e o conteúdo material das mesmas. Caso seja possível a conciliação entre as normas, dependendo da abrangência desta conciliação teremos a antinomia total-parcial ou antinomia parcial-parcial. Anteriormente a disposição destas duas classificações mister se faz evidenciar as palavras de João Baptista Machado (1998) sobre a matéria:

"No caso de as normas em concurso prescreveram diferentes conseqüências jurídicas, temos que encarar as seguintes possibilidades:

a)Ou há uma aplicação cumulativa das duas normas produzindo-se tanto a conseqüência jurídica de uma com a da outra;

b)Ou o indivíduo cuja esfera jurídica é afectada pelas conseqüências jurídicas das duas normas pode optar por uma delas (aplicação alternativa);

c)Ou conseqüências jurídicas das duas normas se excluem reciprocamente, pelo que apenas uma das normas em concurso pode ser aplicada.

Neste último caso – o único que aqui nos interessa – existe uma ‘contradição’ da lei que é uma contradição ou um ‘conflito de normas’: uma norma, quer expressamente, quer pelo seu sentido, exclui a aplicação da outra quando ambas ‘concorrem’ sobre a mesma situação concreta.

Quando as conseqüências jurídicas de duas regras cujas hipóteses se encontram realizadas na mesma situação concreta não são entre si contraditórias (ou seja, quando elas não imponham condutas antagônicas – contradição lógica), é muito difícil saber se aquelas conseqüências jurídicas podem produzir-se conjuntamente (cumulativa ou alternativamente) ou se, diversamente, uma das regras jurídicas é excluída pela outra – ou seja, se elas estão efectivamente em conflito. Não é uma questão que possa ser respondida logo com base na simples lógica formal, como à primeira vista poderia supor-se. Antes, só lhe poderemos responder através de considerações de natureza teleológica, deixando-nos determinar pelo fim da lei e pela inserção de cada norma do seu verdadeiro contexto material". [37]

A possibilidade da cumulação normativa ou alternativa do mesmo fato latu senso é representada pelas antinomias total-parcial e parcial-parcial.

A antinomia total-parcial é visível quando uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra, enquanto a outra tem um campo de aplicação que conflita com a anterior apenas em parte. Nas palavras magistrais de Norberto Bobbio (1999):

"Se, duas normas incompatíveis, uma tem um âmbito de validade igual ao da outra, porém mais restrito, ou em outras palavras, se o seu âmbito de validade é, na íntegra, igual a uma parte do da outra, a antinomia é total por parte da primeira norma com respeito à segunda, e somente parcial por parte da segunda com respeito à primeira, e pode-se chamar total-parcial. A primeira norma não pode ser em nenhum caso aplicada sem entrar em conflito com a segunda; a segunda tem uma esfera de aplicação em que não entra em conflito com a primeira.

Exemplo: ‘É proibido, aos adultos, fumar das cinco às sete na sala de cinema’ e ‘É permitido, aos adultos, fumar, das cinco às sete, na sala de cinema, somente cigarros.’

(...)

A situação antinômica, criada pelo relacionamento entre uma lei geral e uma lei especial, é aquela que corresponde ao tipo de antinomia total-parcial. Isso significa que quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de uma das normas incompatíveis mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial. Por efeito da lei especial, a geral cai parcialmente". [38]

A especificidade apresentada pela norma derrogadora é uma exceção à norma derrogada. A extensão da antinomia se dá quando as duas normas tiverem um campo de aplicação que em parte um entre em conflito com o da outra e em parte não entra se define como sendo parcial-parcial. As duas normas apresentam tanto uma parte conflitante entre elas e uma outra parte conciliável. O exemplo de Norberto Bobbio (1999) esclarece: "É proibido, aos adultos, fumar cachimbo e charuto das cinco às sete na sala de cinema" e "É permitido, aos adultos, fumar charuto e cigarro das cinco às sete na sala de cinema". [39]

A simples leitura do exemplo nos traz, indubitavelmente, a acepção desta antinomia, pois a primeira norma e a segunda se contradizem na permissibilidade da conduta: fumar charuto, porém se conciliam sobre o cachimbo e o cigarro.


1.6. Critérios solucionadores das antinomias jurídicas

Os critérios solucionadores das antinomias jurídicas são pressupostos implícitos colocados na legislação pelo legislador para a manutenção da coerência tendencial do sistema, da necessidade social de uniformidade das decisões e também como uma via de saída para o aplicador e interprete das normas. Os critérios ou também chamados de regras fundamentais para solução de antinomia são de três tipos: o cronológico, o hierárquico e o da especialidade.

A necessidade social de uniformidade das decisões é tratada por João Baptista Machado (1998):

"Se fôssemos a atender aqui aos critérios de justiça material do sistema, não poderíamos escapar à consideração de que as normas incompatíveis como que mutuamente se anulam, deixando uma lacuna em aberto: uma ‘lacuna de colisão’. Ora, para o preenchimento desta lacuna, teria necessariamente de recorrer-se a valorações altamente subjetivas (a subsistência da antinomia normativa vem afinal a traduzir uma antinomia de valores ou de princípios no sistema positivo), e é precisamente isso que se pretende evitar através dos referidos critérios tradicionais de resolução das antinomias. Só pelo recurso a critérios deste tipo se poderá, como diz Bobbio, ‘garantir uma objectividade que baste para satisfazer a necessidade social de uniformidade das decisões." [40] (grifos nossos).

Esta objetividade é mantenedora da segurança jurídica, assim aqueles que buscam a justiça estão, teoricamente, afastados de uma subjetividade extrema capaz de criar soluções para uma mesma antinomia a cada caso concreto.

1.6.1. Cronológico

O cronológico tem a sua idéia expressa no brocardo jurídico: lex posterior derogat legi priori. Assim sendo a lei posterior derrogará a lei anterior dando ao sistema jurídico a sua característica dinâmica. O preceito do presente critério é, justamente, a possibilidade da transmudação das normas componentes do sistema, passando de velhas e não eficazes, para novas e realmente reguladoras, no sentido da visão social atual ou pelo menos mais contemporânea, quando o processo legislativo não obstaculiza por tempo demais. A respeito deste aspecto do critério vale mencionar as palavras de Norberto Bobbio (1999):

"Quantas são as normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico italiano ? [ou brasileiro?] Ninguém sabe. Os juristas queixam-se que são muitas; mas assim mesmo criam-se sempre novas, e não se pode deixar de cria-las para satisfazer todas as necessidades da sempre mais variada e intrincada vida social.

(...)

Existe uma regra geral no Direito em que a vontade da mesma pessoa vale o último no tempo. Imagine-se a Lei como expressão da vontade do legislador e não haverá dificuldade em justificar a regra. A regra contrária obstaria o progresso jurídico, a adaptação gradual do Direito às exigências sociais. Pensemos, por absurdo, nas conseqüências que derivariam da regra que prescrevesse ater-se á norma precedente. Além disso, presume-se que o legislador não queria fazer coisa inútil e sem finalidade: se devesse prevalecer a norma precedente, a lei sucessiva seria um ato inútil e sem finalidade." [41]

O critério cronológico dá ao sistema a sua dinamicidade, mas em nome desta não se pode legislar afoitamente. Em tempos de Bobbio o problema do chamado "turbilhão de leis" não tinha a desenvoltura dos tempos de Luiz Flávio Gomes (2004):

"Acabou, há muito tempo, a sábia lentidão do legislador (que demorava para fazer uma lei, para que ela fosse bem feita). La sage lenteur foi substituída por um turbilhão de leis mal elaboradas, retóricas, demagógicas, desconexas e puramente simbólicas (só são aprovadas para enganar a população). O caos normativo a que chegamos não tem nada de similar na nossa História.

Pior é que, nesta era da descodificação, as leis vão sendo ‘fabricadas’ diuturnamente (dessa linha de produção estão saindo 41 normas a cada dia) e nem sequer codificadas são. São leis esparsas (especiais), que estão se amontoando sem nenhuma organização. Há tempos (nós, professores críticos) estamos denunciando esse descalabro no nosso país e cada vez mais nos estão dando razão". [42]

O caráter da dinamicidade do sistema é essencial, mas não podemos, sem preparo e estudo, seguindo interesses de pequenos grupos, juntarmos a vontade de sermos vanguardistas com a vontade e facilidade de legislarmos, sob o risco de tornamos dúbios e não coerentes. A professora Maria Helena Diniz (2001) apresenta uma outra importante ressalva, a da irretroatividade relativa:

"Não se pode aceitar a retroatividade e a irretroatividade como princípios absolutos. O ideal seria que a lei nova retroagisse em alguns casos e em outros não. Foi o que fez o direito pátrio no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e no art. 6º, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil ( § 3º com a redação da Lei n. 3.238/57, ao prescrever que a nova norma em vigor tem efeito imediato e geral, respeitando sempre o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Logo, sob a égide da lei nova, cairiam os efeitos presentes e futuros de situações preteridas, com exceção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, pois a nova norma, salvo situações anormais de prepotência e ditadura, não pode e não deve retroagir atingindo fatos e feitos já consumados sob o império da antiga lei". [43]

1.6.2. Critério hierárquico

O segundo dos critérios é o hierárquico, o seu comando é lex superiori derogat legi inferiori. O uso deste critério para solução de antinomia remeterá o aplicador ou intérprete ao uso da norma hierarquicamente superior, quando se tratar de normas de diferentes níveis. Maria Helena (2001) assim exemplifica: "a Constituição prevalece sobre uma lei. Daí falar-se em inconstitucionalidade da lei ou ilegitimidade de atos normativos diversos da lei, por a contrariarem". [44] A norma é inferior ou superior devido ao seu poder normativo. E isto é bem retrato por Bobbio (1999):

"Consideremos qualquer ato com o qual Fulano executa a obrigação contraída com Sicrano e chamemos de ato executivo. Esse ato executivo é o cumprimento de uma regra de conduta derivada do contrato. Por sua vez o contrato é executado em cumprimento às normas legislativas que disciplinam os contratos. Quantos às normas legislativas, foram formuladas segundo as regras estabelecidas pelas leis constitucionais para a formulação das leis. Paremos aqui.

O ato executivo, de que falamos, está ligado, ainda que mediatamente, às normas constitucionais, que são produtoras, em diversos níveis, das normas inferiores. Esse ato executivo pertence a um sistema normativo dado, na medida em que, de norma em norma, ele pode ter sua referência última nas normas constitucionais. O cabo recebe ordem do sargento, o sargento do tenente, o tenente do capitão até o general, e mais ainda: num exército fala-se de unidade de comando porque a ordem do cabo poder ter origem no general. O exército é um exemplo de estrutura hierárquica. Assim é o ordenamento jurídico". [45] ( grifos nossos).

O poder normativo da Constituição é mais abrangente, e por isso é superior a uma lei ordinária, assim como o poder normativo de uma lei é superior ao poder normativo de um ato normativo. O doutrinador Reis Friede (2002) apresenta os níveis hierárquicos da norma jurídica, descrevendo, respectivamente, o nível hierárquico, ou seja, sua posição na unidade do sistema, o tipo normativo, ou seja, a espécie da norma e finalmente, o poder responsável pela elaboração da norma:

Nível hierárquico

Tipo Normativo

Poder responsável por sua elaboração

Supra Constitucional.

1.Norma fundamental.

Expressão do próprio Poder Constituinte originário ou de 1º grau.

Nível Constitucional.

2.Disposição fixa.

Disposição insuperável do Direito Natural.

 

3.Cláusula pétrea (norma materialmente constitucional fixada por imperativo do Direito Positivo).

Poder Constituinte originário.

 

4.Norma materialmente constitucional.

Poder Constituinte originário.

 

4a.Norma materialmente constitucional derivada de processo revisional.

Poder Constituinte Derivado (reformador).

 

4b.Norma materialmente constitucional derivada do processo de emenda constitucional.

Poder Constituinte Derivado (reformador).

 

5.Norma formalmente constitucional.

Poder Constituinte Originário.

 

5a.Norma formalmente constitucional derivada de processo revisional.

Poder Constituinte Derivado (reformador).

 

5b.Norma formalmente constitucional oriunda de emenda constitucional.

Poder Derivado (reformador).

Nível Infraconstitucional.

6.Lei complementar*

Poder Legislativo.

 

7.Lei ordinária.

Poder Legislativo.

 

7a.Media provisória (antigo decreto-lei).

Poder Executivo – Legislativo.

 

7b.Lei delegada.

Poder Legislativo.

 

7c.Decreto legislativo.

Poder Legislativo.

 

7d.Resolução.

Poder Legislativo.

Nível Infra-legal.

8.Atos administrativos normativos.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

8a.Decreto.

Poder Executivo.

 

8b.Regimento.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

8c.Instrução normativa.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

8d.Regulamentação, portaria etc.

Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

"(*) Para alguns autores inexiste hierarquia normativa entre a lei complementar e a lei ordinária existindo apenas diferentes competências (veja a respeito nosso trabalho: ‘A Relação entre Lei Complementar e Lei ordinária: Hierarquia e Competência’, in Questões de Direito Positivo, 1ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Thex, p.45).

Obs.: Os números referem-se aos níveis hierárquicos. Quando inexiste nível hierárquico ou o tipo normativo em destaque se encontra em idêntico nível hierárquico em relação a outro tipo normativo distinto, ao número de seu nível é acrescentada uma vogal ou consoante diferenciadora". [46]

1.6.3. Critério da especialidade

Lex specialis derogat legi generali descreve o critério da especialidade. A norma é considerada especial, em seu sentido de especificidade, quando possuir todos os elementos típicos da norma geral e ainda acrescentar outros, tanto de natureza objetiva ou subjetiva. Estes elementos acrescidos pela norma especial são denominados, pela doutrina, de especializantes.

Estes elementos especializantes trazidos pela norma especial aprofundam na situação fática evidenciada pela norma geral. Bobbio (1999) chama este aprofundamento de diferenciação gradual:

"A passagem da regra geral à regra especial corresponde a um processo natural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categoria diferentes, e, portanto, numa injustiça. Nesse processo de gradual especialização, operado através de lei especiais, encontramos uma das regras fundamentais da justiça, que é a do suum cuique tribuere (das cada uma o que é seu). Entende-se, portanto, por que a lei especial deva prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significaria paralisar esse desenvolvimento". [47] (grifos nossos).

O doutor João Baptista Machado (1998) nos traz uma classificação destes critérios, conforme transcrito a seguir. O mesmo acredita que os critérios cronológico e hierárquico são de natureza formal, pois ignoram como método de solução a natureza material das normas antinômicas. Já o critério da especialidade levaria em consideração a natureza material das normas e por isso seria um critério interpretativo e não simplesmente formal.

"Atentemos na natureza dos critérios acima referidos como critérios de resolução das antinomias. O critério cronológico e o hierárquico caracterizam-se, como bem salienta Bobbio, pelo facto de ‘deixarem completamente de lado toda a consideração da matéria regulada’, por ‘ de modo algum se referirem à disposição contida nas regras’ antinômicas. Quer isto dizer, pois, que, do ponto de vista da questão jurídica material a resolver e, portanto, do ponto de vista do conteúdo da norma que a vai resolver, o critério de resolução da antinomia ou concurso pe critério puramente formal: algo de todo alheio à justiça material da solução e, portanto, algo de extrínseco e indeferente ao conteúdo-resposta das normas em concurso aparente.

(...)

É claro que o mesmo já se não pode dizer do terceiro critério, o da especialidade. Este já contende com o sentido e, portanto, com o conteúdo das normas que se diriam em concurso aparente, já tem algo a ver com a justiça material da solução, já impõe, como atrás sugerimos e como diz Bobbio, o recurso à interpretação jurídica. Mas, por isso mesmo, nós cremos que, contra o que parece ser a opinião corrente, este critério não é um simples critério formal de resolução de concursos, mas um critério interpretativo". [48]

A classificação do Doutor João Machado não é reconhecida pela doutrina majoritária. O critério da especialidade, até mesmo por ser um critério pré-formalizado, ainda contém amarras formais e estas restringem o intérprete ou o aplicador na sua busca por uma resposta. A interpretação pelo uso deste critério será simplesmente o enquadramento das normas salientando qual é a geral e qual é a especial e nada mais. Tendo esta visualização de maneira formal, o intérprete descobrirá, pelo uso do critério da especialidade, qual é a norma que prevalecerá.

1.6.4. O critério suplementar: a interpretação corretivo-eqüitativa

Os critérios apresentados até então (cronológico, hierárquico e da especialidade) trazem respectivamente soluções quando houver choque de conflito entre normas de tempos diferentes, de níveis hierárquicos diferentes e de poderes normativos diferentes. Um sistema dinâmico, mutável e complexo não apresentaria outras espécies de conflitos de normas? Indubitavelmente, como ressaltamos alhures, há antinomias, quanto à extensão, do tipo total-total, parcial-total e parcial- parcial. Esta última não nos interessa, pois já foi apresentado o critério usado como resposta, o da especialidade. Os outros tipos (total-total e parcial-total) são insolucionáveis levando-se em consideração os critérios restantes (cronológico e hierárquico), quando antinomias destes tipos se apresentarem entre normas contemporâneas ou do mesmo nível ou, ainda, ambas gerais.

A doutrina majoritária denominada o efeito provocado, no sistema jurídico, por estas antinomias reais de lacuna de colisão. A lacuna como sabemos é o elemento do subsistema fático do direito sem o devido reflexo no subsistema normativo. As normas conflitantes caracterizadas como antinomia real, não podem, teoricamente, serem aplicadas, nem uma e nem a outra. Assim sendo o fato que era duplamente reflexionado normativamente é colocado, pela colisão das normas reguladoras, numa situação de lacuna. As palavras do Dr. João Batista Machado (1998) fazem-se necessárias:

"Nos casos em que as duas normas não podem, sem contradição, ser simultaneamente aplicadas, temos um conflito de normas. Este conflito deverá ser resolvido segundo uma das regras clássicas: lex posterior derogat legi priori, lex specialis derogat legi generali, lex superior derogat legi inferiori, etc. Se o conflito não puder ser resolvido por nenhuma destas regras, ficaremos perante a figura da ‘lacuna de colisão’. Esta, segundo é doutrina corrente, verifica-se sempre que duas normas entre si contraditórias se apresentem como aplicáveis ao mesmo caso e não pode determinar-se, no plano da simples interpretação, e nem mesmo pelo recurso às regras sobre a prevalência da lex specialis, da lex posterior, da lex superior, etc., qual delas deva prevalecer. Nestes termos, em sede de interpretação, a aplicação de qualquer da normas em concurso com exclusão da outra seria arbitrária – pelo que, nesse plano, as duas se mostra absurda. E, assim, achamo-nos afinal perante uma lacuna: um espaço jurídico que se apresentava à primeira vista ‘duplamente ocupado’, fica a constituir um ‘espaço juridicamente desocupado’. Mas continua a existir um ‘espaço jurídico’ em aberto, isto é, uma lacuna, pois que a questão posta pela lei nas duas normas continua o ser uma questão jurídica. Portanto, o julgador tem de responder a essa questão, ou seja, tem de integrar a lacuna, sob pena de incorrer em denegação de justiça". [49]

As antinomias insolucionáveis, conforme já evidenciado, são antinomias reais. Assim sendo deveriam ser extirpadas pelo legislador do sistema para a manutenção da coerência. Muitas vezes isto não acontece com a rapidez exigida e o aplicador (juiz) e o intérprete (jurista) são surpreendidos pela casuística com tais antinomias. É justamente, nesta analise do caso concreto que o quarto critério deverá ser usado, não se pode ficar inerte e a espera de solução legislativa, sob pena da Justiça inadimplir com sua obrigação de julgar o pedido de tutela do jurisdicionado.

Bobbio (1999) elucubra sobre um quarto critério que levaria em consideração as formas das normas (imperativas, proibitivas e permissivas), porém é descartado pelo próprio pela falta de legitimidade do critério. O mesmo disserta que caso os três critérios não trouxerem a solução para a antinomia, deve-se confiar ao intérprete uma certa liberdade:

"Isso significa, em outras palavras, que, no caso de um conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete; poderíamos quase falar de um autêntico poder discricionários do intérprete, ao qual cabe resolver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando aplicar uma só regra. Digamos então de uma maneira mais geral que, no caso de conflito entre duas normas, para o qual não valha nem o critério cronológico, nem o hierárquico, nem o da especialidade, o interpretem seja ele o juiz ou o jurista, tem à sua frente três possibilidade:

1.eliminar uma;

2.eliminar as duas;

3.conservar as duas". [50]

Vale lembrar que tais possibilidades também foram retratadas neste presente trabalho, quando transcrevemos sobre o critério quanto a extensão na classificação das antinomias. Naquele momento se seguiram os ensinamentos de João Batista Machado e se deu ênfase somente a última hipótese.

Esta incompletude dos meios de solução das antinomias jurídicas também é retratada por Maria Helena Diniz (2001). Tal incompletude seria resolvida pela supressão de uma das normas pelo legislador. Mas é o caso concreto apresentado, com colisão normativa, ao Poder Jurisdicional ou ao intérprete da lei? Este, conforme lição da mestra, seria corrigido por meio de uma interpretação corretivo-eqüitativa ou correção. Nada mais e nada menos do que o critério da liberdade da interpretação apresentado por Bobbio (1999). Vejamos:

"Essa incompletude dos meios de solução de antinomias jurídicas conduz à conclusão de que o conflito normativo não poderá ser solucionado por critérios lógicos, ou por procedimentos hermenêuticos, mas poderá ser suprimidos pela edição de uma norma derrogatória, que opte por uma das normas antinômicas, ou resolvido pelo emprego de uma interpretação corretivo-eqüitativa ou correção.

(...)

De modo que entre duas normas plenamente justificáveis deve-se opinar pela que permitir a aplicação do direito com sabedoria, justiça, prudência, eficiência e coerência com seus princípios.

(...)

O juiz deverá, portanto, ante o non liquet, havendo real antinomia normativa, optar pela norma mais justa ao solucionar o conflito, orientando-se por critérios seguros, podendo até servir-se de critérios meta-normativo, superior à norma, mas contido no ordenamento jurídico, afastando a aplicação de uma das normas em benefício do fim social e do bem comum.

È preciso deixar bem claro que essa interpretação corretivo-eqüitativa do órgão judicante lhe confere poder discricionário e não uma arbitrariedade. É uma permissão de apreciar, eqüitativamente, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto. Mas esse poder não quer dizer, em absoluto, decisão contra legem. A eqüidade não é, portanto, uma licença para o arbítrio puro, mas uma atividade jurisdicional condicionada às valorações positivas do ordenamento jurídico, ou seja, relacionando sempre os subsistemas normativos, fáticos e valorativos que compõem o sistema jurídico". [51](grifos nossos).

Primeiramente a analise das possibilidades apresentados pelo quarto critério, mister se faz ressalvar que o disposto neste critério não é livre interpretação, conforme Maria Helena Diniz (2001). O critério estatui a liberdade de interpretação com limites e estes são estabelecidos pelo próprio direito. A interpretação sem o devido respeito aos liames do direito será repudiada ao extremo, pois sendo assim o intérprete abandona o direito e passa a ter a arbitrariedade como caminho. Assim Maury R. de Macedo (1981) nos ensina:

"As partes querendo prevaleça o que lhes convém; os aplicadores, o direito que melhor atenderia ao seu desejo de fazer justiça, e em meio a tudo o texto da lei, alvo de todas as críticas, justas e injustas, permanentemente ameaçado pelo implacável inimigo maior do Direito – o arbítrio.

(...)

Aos que pretendem mais para o juiz, com permitir que crie direito, lembramos que não isso demonstração de reconhecimento de competência e probidade do aplicador. Porque é muito fácil criar direito para resolver caso concreto, do que resolve-lo com o direito existente, cuja inteligência, não raro, não está ao alcance de qualquer um. E ai é que o Juiz tem oportunidade de revelar a sua inteligência, todo o seu preparo cultural, a sua experiência de vida, e de jurista em particular, começando por dar o exemplo de respeito à lei, ao texto da lei expresso, para encontrar, dentro do seu âmbito, a solução que lhe pareça melhor ao ideal de Justiça, que tem a obrigação de perseguir.

E sem pôr em risco a segurança do sistema e dos jurisdicionados que querem, a todas as luzes, o prevalecimento, sempre, do direito escrito". [52]

A arbitrariedade, mesmo de maneira superficial, ficou mencionada, pois a utilização do critério da interpretação tem o seu limite, e a resposta deve ser sempre encontrada, prevista dentro do direito, ou seja, deve ser seu meio. O intérprete assim procedendo, estará resguardando o fim maior do direito, a justiça.

As possibilidades do intérprete em busca da solução do conflito normativo pela utilização do critério interpretativo, conforme supra mencionado, são: eliminar uma das normas; eliminar as duas normas ou conservar as duas normas.

A primeira das possibilidades, eliminar uma das normas, se trata da chamada interpretação ab-rogante imprópria. Recorremos aos ensinamentos de Bobbio (1999):

"Mas trata-se, na verdade, de ab-rogação em sentido impróprio, porque, se a interpretação é feita pelo jurista, ele não tem o poder normativo e portanto não tem o poder ab-rogativo (o jurista sugere solução aos juízes e eventualmente também ao legislador); se a interpretação é feita pelo juiz, este em geral (nos ordenamentos estatais modernos) tem o poder de não aplicar a norma que considerar incompatível no caso concreto, mas não o de expeli-la do sistema (de ab-rogá-la), mesmo porque o juiz posterior, tendo que julgar o mesmo caso, poderia dar ao conflito de normas uma solução oposta e aplicar bem aquela norma que o juiz precedente havia eliminado". [53]

A interpretação terá o efeito de revogar uma das normas em conflito, somente em consideração ao determinado caso analisado. Não é propriedade do juiz e nem do jurista o poder de extirpar uma norma do sistema jurídico, e sim do legislador. Por isso a caracterização como imprópria à interpretação ab-rogante realizada pelo jurista ou juiz.

A segunda possibilidade, a de eliminar as duas normas em questão, Bobbio (1999) relata que se dá quando a questão do conflito é de contrariedade e não de contradição. As normas seriam objurgadas pela o axioma maior do direito, sua real finalidade de existência, a justiça. Não tendo como aplicar caso concreto a justiça pela escolha de uma das normas, deve o interprete "ab-rogar" as duas normas.

A última possibilidade considerada por Bobbio (1999) é descartada pela doutrina pátria moderna. Pois para o mestre ítalo a conservação das normas e não a ab-rogação se daria por processo interpretativo criterioso e descobriria que as duas normas não estão em condição de antinomia real, mas sim de antinomia aparente. Neste critério se busca solução para os casos de normas inconciliáveis, mesmo para os critérios objetivos e lógicos.

A professora Maria Helena Diniz (2001) trata do assunto com a maestria que lhe é própria:

"O reconhecimento da lacuna dos critérios de resolução da antinomia não exclui, como já dissemos alhures, a possibilidade de uma solução efetiva por meio de uma interpretação corretivo-eqüitativa.

(...)

Como em caso de lacuna de conflito, de antinomia de segundo grau, ou mesmo de simples conflito entre duas normas, existem várias soluções incompatíveis, não há solução unívoca, por isso há discricionariedade do órgão aplicador que, hoje, pode aplicar uma delas, amanhã, outra. Assim, o magistrado, ao compreender as normas antinômicas, deverá refazer o caminho da fórmula normativa ao ato normativo, tendo presente fatos e valores, para aplicar, em sua plenitude, o significado nelas objetivado, optando pela que for mais favorável". [54] (grifos nossos).

Esta interpretação corretivo-eqüitativa pode ser estabelecida como critério suplementar interpretativo. Primeiramente todo critério jurídico de solução de antinomia jurídica é uma regra já pré-definida, dentro da lógica interna do sistema jurídico, para que através dele se julgue qual a lei a ser aplicada. Ora, o critério interpretativo é uma regra, pois evidencia valores a serem seguidos como vimos, sob pena de incorrer em arbitrariedade e também apresenta qual a situação fática em que deverá ser aplicado, mesmo sendo esta suplementar, mas apresenta.


1.7. Efeito do conflito entre os critérios: a antinomia de segundo grau

Os critérios de solução das antinomias jurídicas podem apresentar conflitos. Estes conflitos são evidenciados quando uma mesma antinomia jurídica poderia, teoricamente, ser solucionada não por um critério somente, mas sim por dois critérios. Um exemplo clarividente é o caso de uma norma constitucional anterior entrar em conflito com uma norma ordinária posterior. A antinomia sendo solucionada pelo critério hierárquico encaminharia como norma ab-rogadora a constitucional, já o critério cronológico apresentaria como resposta a norma ordinária, pois esta é posterior. Norberto Bobbio (1999) define que o efeito deste conflito de critérios é o surgimento das chamadas antinomias de segundo grau:

"Não se podem aplicar ao mesmo tempo dois critérios: os dois critérios são incompatíveis. Aqui temos uma incompatibilidade de segundo grau: não se trata mais da incompatibilidade de que falamos até agora, entre normas, mas da incompatibilidade entre os critérios válidos para a solução da incompatibilidade entre as normas. Ao lado do conflito entre as normas, que dá lugar ao problema das antinomias, há o conflito dos critérios para a solução das antinomias, que dá lugar a uma antinomia de segundo grau". [55]

Os conflitos entre critérios podem apresentar as seguintes formas:

- Hierárquico conflitando com o cronológico: quando uma norma anterior-superior é antagônica a uma norma posterior-inferior;

- De Especialidade conflitando com o cronológico: quando uma norma anterior-especial é antagônica a uma norma posterior-geral;

- Hierárquico conflitando com o de especialidade: quando uma norma superior-geral é antagônica a uma norma inferior-especial.

O critério da interpretação pela sua natureza suplementar, ou seja, só será aplicado quando nenhum dos outros solucionar a antinomia jurídica, não entra em conflito.

No primeiro caso, temos que a aplicação do critério hierárquico como caminho revelará a norma superior como solução e usando o critério cronológico teremos a norma posterior. Está instaurado o conflito entre os critérios solucionadores. A resposta a esta antinomia de segundo grau é simples, o critério hierárquico prevalecerá em detrimento ao critério cronológico. Isto se deve a dois elementos, o primeiro da relevância fundamental do princípio da ordem hierárquica para o sistema jurídico, tal relevância baseia-se na unidade das normas como já vimos, o segundo elemento é que o critério cronológico é solucionador para caso de antinomia entre normas do mesmo nível hierárquico ou no mesmo plano. Tal procedimento constitui a regra lex posterior inferior non derogat priori superiori.

No segundo critério há uma ressalva entre os doutrinadores. A norma anterior-especial prevaleceria sobre a posterior-geral se usássemos o critério da especialidade e caso o uso do critério cronológico, a norma posterior-geral seria a escolhida. A ressalva doutrinária nasce quando a regra estabelecida, lex posterior generalis non derogat priori speciali, não é absoluta como solução para este conflito. Em determinados casos a regra estabelecida poderá ser usada de maneira inversa.

No último caso também temos alguma controvérsia entre qual deverá ser a solução adequada. Adotando o critério hierárquico, chegaremos a norma superior-geral como solução e adotando o critério de especialidade a norma inferior-especial. A controvérsia é bem tratada por Bobbio (1999):

"A gravidade do conflito deriva do fato de que estão em jogo dois valores fundamentais de todo ordenamento jurídico, o do respeito da ordem, que exige o respeito da hierarquia e, portanto, do critério da superioridade, e o da justiça, que exige a adaptação gradual do Direito às necessidades sócias e, portanto, respeito do critério da especialidade". [56]

Não tendo como se estabelecer uma regra, propriamente dita, a solução será sempre buscar a Justiça ao caso concreto, conforme leciona Maria Helena Diniz (2001):

"Num caso extremo de falta de um critério que possa resolver a antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para solucionar o conflito normativo seria o princípio supremo da justiça: entre duas normas incompatíveis dever-se-á escolher a mais justa. Isso é assim porque os referidos critérios não são axiomas, visto que gravitam na interpretação ao lado de considerações valorativas, fazendo com que a lei seja aplicada de acordo com a consciência jurídica popular e com os objetivos sociais. Portanto, excepcionalmente, o valor justum deve lograr entre duas normas incompatíveis". [57]


Notas

1 SIMON, Henrique Smidt. Sófocles e a Democracia em "Antígona". Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=3855>. Acesso em: 17 de maio de 2004.

2 GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 111-113.

3 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 5-6.

4 FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 127.

5 GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao estudo do direito. 27.ed.rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 11-12.

6 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 105-106.

7 HOUAISS, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 236.

8 IbIdem 10.

9 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. V. I. p. 211.

10 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução: Maria Celeste C. J. Santos. 10.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 38.

11 BRASIL. Constituição, código penal, código de processo penal. Organização de texto e índice por Luiz Flávio Gomes. 2.ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 1.

12 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 49.

13 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 64.

14 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 14-15.

15 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 113.

16 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 115.

17 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 15.

18 MACHADO, João Baptista Âmbito de eficácia e âmbito de competência das leis: limites das leis e conflitos de leis. Coimbra – Portugal: Livraria Almedina, 1998. p. 213.

19 GUSMÃO, Paulo Dourado. Ob. cit. p. 214.

20 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 29.

21 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 14.

22 SENADO FEDERAL. Subsecretaria de informações. Disponível em: < http://www.dgp.eb.mil.br/dip/LEI- 005774%20de%2023-12-1971.htm>. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.

23 HOUAISS, Antonio. Ob. cit. p. 236

24 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 237-238.

25 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 639.

26 ZUGNO, Renato. À interpretação sistemática à luz de princípios. Disponível em <http://www.clicdireito.com.br/clicdir/jurib.asp?codigo=4>. Acesso em: 23 de agosto de 2.004.

27 IbIdem, p.27.

28 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 42.

29 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 118.

30 RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao código de trânsito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 769.

31 BRASIL. Constituição, código penal, código de processo penal. Ob. cit. p. 257.

32 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p.2728.

33 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Subchefia para assuntos jurídicos. Lei n.º 6.830, de 22 de setembro de 1.980. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6830.htm >. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.

34 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Subchefia para assuntos jurídicos. Decreto n.º 678, de 6 e novembro de 1.992. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.

35 BRASIL. Constituição, código penal, código de processo penal. Ob. cit. p.105.

36 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 30.

37 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 216.

38 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 89, 96 e 97.

39 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 89.

40 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 238.

41 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 37 e 93.

42 GOMES, Luiz Flávio. Existe um turbilhão de leis mal elaboradas e desconexas. Disponível em: <http://www.speretta.adv.br/pagina_indice.asp?iditem=450>. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.

43 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 37.

44 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 34.

45 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 49-50.

46 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 126.

47 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 96.

48 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 237-239.

49 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 217-218.

50 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 100.

51 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 53, 58 e 60.

52 MACEDO, Maury R. de. A Lei e o arbítrio à luz da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 7 e 231.

53 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 101.

54 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 55-56.

55 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 107.

56 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 109.

57 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p.52.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOAVENTURA, Bruno José Ricci. O fenômeno da antinomia jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 678, 14 maio 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6707. Acesso em: 18 abr. 2024.