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Violações de direitos humanos na história da psiquiatria no Brasil

Violações de direitos humanos na história da psiquiatria no Brasil

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Como a história da Psiquiatria no Brasil foi marcada por muitas violações de Direitos Humanos com anuência do Estado.

 RESUMO O presente trabalho tem como escopo resgatar à memória acontecimentos trágicos que marcaram a história da psiquiatria no Brasil. Neste sentido, resgatar a memória é como prestar uma espécie de tributo às vítimas, que não devem sumir no esquecimento da memória coletiva. É não somente um tributo, mas um legado à saúde, à justiça e à dignidade que os atores merecem. A ciência, em particular a medicina, visa trazer bem-estar social e sanar problemas inerentes à vida do ser humano em geral. Parece, portanto, paradoxal, que em nome da mesma haja tantos desacertos e erros no seu processo de evolução, como no caso em tela. O Estado, por sua vez, tem como uma de suas funções principais, zelar pela saúde do seu povo. No entanto, ele também pode falhar em busca de promover a saúde, ou ser omisso na tentativa de trazer o bem-estar social, dirimindo conflitos coletivos. Na conjuntura das primeiras instituições psiquiátricas do Brasil, pode-se, portanto, observar que a omissão do Estado, a falha da ciência, e a fragilidade dos doentes psiquiátricos atuaram em conjunto e contribuíram assim para diversas violações de direitos humanos, o que gerou cenas inimagináveis de sofrimento, degradação e massacre de milhares de pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; violações; história da Psiquiatria no Brasil.

ABSTRACT The presente article has the scope to bring to mind tragic events that markes the history of psychiatry in Brazil. In this sense, to make these reflections represents to render a kind of tribute to the victims, who should not disappear in the forgetfulness of the collective memory. Science, in particular medicine, aims to contribute to social well-being, solve problems and treat the suffering of individuals. Therefore it seems paradoxical that, in the name of it, there are so many mistakes and failures, in its process of evolution as in the case in hand. The State has as one of its main functions to care for the health of its citizens, however it may fail in this purpose, or be ommitted to bring social welfare. Thus, in the context of Brazil’s first psychiatric hospitals, it can be observed that the State’s omission, the failure of science and the weakness of the psychiatric patients contributed together to the many human rights violations that led to degradation, loss of dignity and death of thousands of people. KEYWORDS: Human rights ; violations ; history of Psychiatry.

INTRODUÇÃO O doente mental tem características peculiares e, devido às sequelas da doença, pode ser um alvo fácil de abusos e violações: na sua fragilidade, não tem a capacidade mental nem civil para se auto afirmar e se defender; falta-lhe a coerência das palavras, faltam a lucidez, a lógica e até a linguagem; A doença mental pode chegar a tal gravidade que o ser humano perde as habilidades peculiares à sua humanidade. Na sua degradação física e mental reside a perda da própria identidade, da saúde, da dignidade e da vida. Levando-se em conta o fato de que, nos seus primórdios, a psiquiatria ainda não estava suficiente desenvolvida para cuidar do doente, o Estado não estava preparado para amparar este cidadão, e o processo de adoecimento, de declínio cognitivo do indivíduo acabou resultando em torturas, privações, maus tratos, até culminar no genocídio institucionalizado de cerca de sessenta mil pessoas. O percurso histórico da psiquiatria no Brasil se iniciou com a criação dos primeiros manicômios na época da segunda guerra mundial. A maioria deles era destinada a substituir a cadeia pública, recinto que era utilizado para recolher os “alienados” das ruas, onde ficavam perambulando. Desta forma os primeiros hospitais eram apenas um depósito de gente, ou “casa de loucos”, como eram chamados. Infelizmente na época não havia qualquer tentativa de se desenvolver uma terapia para amenizar o sofrimento dos internos. Vale aqui ressaltar que o objetivo das instituições era segregar os “alienados” do resto do mundo, ou impedi-los de ficarem perambulando nas ruas. Com o aumento da demanda a situação piorou, e os manicômios ficaram superlotados, de modo que muitos doentes dormiam em colchões ou no chão, onde devido ao frio e às privações, encontravam a morte. O quadro de degradação e penúria não era muito diferente de um Estado para outro no território brasileiro. As violações de direitos humanos eram rotina. Inicialmente privados da liberdade, eram isolados de tudo e de todos. Não tinham alimentação, roupas, água, higiene, enfim não viviam em situações compatíveis com a vida.

MÉTODOS Para ilustrar esse quadro de horror, foi feita uma revisão de literatura, de forma narrativa, em diferentes bases de dados, como Scielo, google acadêmico; sendo analisados artigos, depoimentos, livros e sites. Desta forma pode-se estudar duas instituições: a maior do Brasil, o Hospital Colônia de Barbacena, e o Hospital Colônia Sant’Ana de Santa Catarina. Ambas espelham a triste realidade do sistema manicomial no Brasil, no início de suas criações, até a década de 1970, quando se iniciou a reforma psiquiátrica. Tem como objetivo demonstrar à memória acontecimentos trágicos que marcaram a história da psiquiatria no Brasil através de relatos de casos demonstrarem a realidade do sistema manicomial no Brasil, no início de suas criações, até a década de 1970, quando se iniciou a reforma psiquiátrica

. AS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS NO BRASIL Segundo Oda, A. M. G. e Dalgalarrondo, P. (2005), os primeiros registros conhecidos e que serviram de fontes de pesquisas sobre as primeiras instituições psiquiátricas brasileiras datam do sec. XVIII, entre 1846 e 1889. Estes documentos foram confeccionados na forma de relatórios por políticos das províncias brasileiras. Estes relatórios costumavam ser lidos nas Assembleias Legislativas, ocasião em que cada presidente provincial prestava contas aos deputados, ou ao sucessor, dos feitos do governo no ano anterior, e em que se faziam considerações sobre as necessidades orçamentárias para o ano vindouro. São Paulo, Rio Grande do Sul, Maranhão, Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará eram as primeiras províncias que buscavam angariar recursos para a institucionalização de seus alienados. “História das primeiras instituições para alienados no Brasil” (ODA, A. M. G., 2005). Ainda neste sentido, os autores relatam também a ajuda das associações religiosas (Santas casas de Misericórdia), que estavam sob a jurisdição dos respectivos governos provinciais aos quais prestavam contas do funcionamento dos estabelecimentos que lhes pertenciam, e de suas atividades filantrópicas; em contrapartida as mesmas recebiam dos governos as subvenções. Vale ressaltar que as Irmandades Santa Casa de Misericórdia, fundada em Lisboa em 1498, pela coroa de Portugal, desempenharam um papel importante na assistência aos alienados, mesmo antes da fundação de qualquer Instituição manicomial do Estado nas províncias. A partir do século XVIII já se tinha notícia de que a Santa Casa da Bahia reservava acomodações para doentes mentais e que esses espaços eram conhecidos como “casinha de doudos”. A Santa Casa de São Paulo, na primeira metade do sec. XIX chegou a alugar um imóvel exclusivo para cuidar dos alienados (Figueiredo,2000). A capital do Império, o Rio de Janeiro, era palco em suas ruas de muitos pedintes, bêbados, prostitutas e alienados. Isso causava ás autoridades especial preocupação e a Sociedade de Medicina na época via a necessidade de se tomarem medidas higiênicas em relação a esta população marginalizada. A Academia Imperial de Medicina julgava haver certas peculiaridades nesta população e almejava o tratamento da classe desamparada dos “loucos”. Desta forma começou a se cogitar a necessidade da criação de um manicômio para tal fim; O intuito era evitar que estes fossem com frequência recolhidos à cadeia pública ou às enfermarias da Santa Casa de Misericórdia, onde recebiam um leito para dormir provisoriamente. Em ambos locais, os loucos eram encarcerados em cubículos pequenos em condições desumanas, insalubres; podiam ficar todo o tempo amarrados, eram agredidos na hora da contenção. Diante do quadro dantesco foram surgindo defensores da criação de um manicômio na Corte. Os doentes de famílias abastadas eram escondidos em casa pela família. No entanto os pobres, ou viviam perambulando pelas ruas, ou eram encarceradas na cadeia pública em condições não condizentes com suas necessidades. Nesta conjuntura, através da Irmandade de Misericórdia, com a ajuda de famílias abastadas da cidade, houve a união de esforços para a construção do primeiro asilo de alienados brasileiro, o qual foi destinado, sobretudo aos “loucos pobres”. Em 1841 foi promulgado o decreto de fundação do Hospício de Alienados D Pedro II, no Rio de Janeiro. O mesmo foi inaugurado em 1852. Além do Hospício dos Alienados Pedro II, durante o Segundo Reinado foram também criadas instituições que se denominavam exclusivas para alienados nas províncias de São Paulo, Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará, Tabela 1. Instituições exclusivas para alienados Hospício Provisório de Alienados de São Paulo, São Paulo, 1852 Hospício de Alienados de Recife-Olinda, Pernambuco, 1864 Hospício provisório de alienados Belém, Pará, 1873 Asilo de Alienados São João de Deus, Bahia, 1874 Hospício de Alienados São Pedro, Rio Grande do Sul, 1884 Asilo de Alienados São Vicente de Paulo, Ceará, 1886 Tabela 1: Cita as instituições que se denominavam exclusivas para alienados Todos os asilos se situavam nas capitais das províncias e atendiam as demandas vindas do interior, de forma que não cobriam todas as necessidades de vagas e ficavam sempre superlotados. Segundo os autores citados, nestes hospícios não havia presença significativa de médicos, até o fim do Império. E somente no início do século XX, com algum custo, os médicos conseguiram mobilizar as burocráticas administrações das Santas Casas, bem como as ordens religiosas que trabalhavam nos locais, e conseguiram se instalar na direção das instituições asilares. No entanto, a intervenção médica somente passaria a ser observada no Hospício da capital paulista depois de mais de 40 anos da sua fundação, marcada com a entrada de Franco da Rocha em seu corpo Clínico, em 1893. Depois de 1895, com o início das obras do Hospital Juquery, se iniciaria uma nova etapa na história da assistência psiquiátrica em São Paulo. Os autores relatam dados das pesquisas em relatórios da administração da época, onde os administradores tentavam angariar recursos para melhorar as instalações precárias onde funcionavam, ilustrando a situação política: “urge que tomeis consideração, que os infelizes recolhidos neste denominado Hospício, sem as precisas condições de higiene, sem um tratamento conveniente, como aconselham os especialistas, dificilmente poderão recobrar a razão” (São Paulo, 1870). Outro relato documentado pelos autores retrata as precárias condições dos estabelecimentos. Antônio Costa Pinto e Silva, o presidente seguinte, é igualmente incisivo no relatório: “Este estabelecimento não corresponde às vistas humanitárias de seus instituidores. Parece que um mau fado, tendo presidido sua criação, ainda até agora não deixou de acompanha-lo...É verdadeiramente contristador o aspecto desse edifício público, que já teria desabado sobre os infelizes que ali existem reclusos, se não estivesse cheio de escoras” (São Paulo, 1871). Diante das precárias condições de vida, observava-se um aumento na mortalidade dos internos: dos 140 alienados tratados no ano, 45% faleceram. Assim a justificativa: “a mortalidade havida é devida à inevitável aglomeração, grande número de enfermos no ambiente, sem acomodações adequadas suficientes. No estado morboso em que se encontravam ao entrarem no Hospício, logo adoeciam ou pegavam varíola e não suportavam. Faleciam logo depois que chegavam. ” Assim mais um relato da época já atestava as condições precárias e desumanas em que viviam os internos dos hospícios, tendo grande índice de mortalidade. Ainda no documento, aduzem: “O administrador indica a conveniência de haver dois médicos, e parece-me razoável, pois é bem difícil poder um só tratar regularmente de 70 enfermos também são dignos de melhor retribuição os enfermeiros, que tem um serviço pesado, e que estão inibidos de ter algumas horas de repouso” (São Paulo, 1876). Outro relato pede “melhorias nos compartimentos do hospício, para que o mesmo deixe de ser simplesmente uma hospedaria de infelizes para tornar-se verdadeiro hospício em que os enfermos possam recuperar a saúde e com esta o uso da razão” (São Paulo, 1881). Os autores trazem diversos relatórios da época que ilustram a situação precária das instituições e a falta de recursos e investimentos nas mesmas, retratando assim a falta de interesse político para amparar estes cidadãos. Um dos documentos pontua: ” requer melhorias e lembra que o Hospício havia 27 anos vinha tratando um avultado número de enfermos afetados da mais triste das enfermidades, como é a loucura, contribuindo ao mesmo tempo para a paz e bem-estar das famílias dos mesmos, e para a ordem e tranquilidade da sociedade em geral” (São Paulo, 1881). No ano seguinte, o vice-presidente Souza Aranha, Conde de Três Rios, diz do estado precário do Hospício: “Os intuitos de uma sociedade civilizada não ficam satisfeitos com a detenção destes infelizes em número superior à lotação do edifício, presos à mais perigosa melancolia, sem trabalho apropriado e sem possibilidade de cura quando a anormalidade mental chega a um certo grau. Pode haver egoísmo, mas não há caridade. Se ainda não existe classificação dos alienados, oficinas de trabalho, lugar para recreio, enfermarias higiênicas, casas para banho, duchas, aparelhos e instrumentos que a ciência médica manda aplicar, qual seria o meio de tratamento empregado anteriormente? ” (São Paulo, 1882). Pelo exposto pode-se concluir que os primeiros manicômios no Brasil tinham grande precariedade em todos os sentidos: falta de pessoal, edifícios inadequados, falta de médicos, falta de higiene, superlotação etc. Os autores relatam também a falta de vagas. Cada hospital tinha em média 70 a 100 internos, mas recusavam outras demandas, que vinham também do interior da Província. Os enfermos do interior não tinham senão a capital onde buscar tratamento. Tal tratamento era, no entanto, ironicamente, mais voltado para amparar os familiares do doente e para livrar a sociedade do estorvo dos “infelizes”, como eram tratados, do que para ajudar o doente em si. Desta forma o alienado não era o centro do problema, onde deveriam se concentrar esforços para a cura, mas sim a família do mesmo e a comunidade em que este vivia. Ao sair do convívio social ele deixava de ser um estorvo e assim era facilmente esquecido. De tal forma, ao sair da cadeia pública ele foi levado a um outro “depósito de gente”, de onde quase nunca saía curado ou melhorado. O tratamento sem terapia ocupacional, sem as medicações novas que foram desenvolvidas na era moderna, sem psicoterapia e em condições precárias era desumano e ineficaz. Nestas condições, não condizentes com as necessidades humanas, a taxa de óbitos era muito alta; em alguns casos poderia chegar perto de 50%, quando a varíola veio atingir essa população já fragilizada, mal alimentada, mal vestida, vivendo em situações muitas vezes não compatíveis com a vida. De acordo com os autores, pode-se observar que o Estado, na época ainda Império, não dava o suporte adequado para a manutenção das “casas para alienados”, assim as Santas Casas de Misericórdia tentaram amparar e ajudar esta população, mas estes esforços não foram suficientes. Nas outras províncias como Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, dentre outras, a situação não era diferente, as condições não eram melhores e havia muita carência de recursos. O objetivo principal da intervenção junto aos alienados era na verdade retirá-los das ruas, impedindo que se tornassem um estorvo para a comunidade local e um problema para as autoridades, que eram cobradas para dar uma solução ao problema; os hospícios vieram assim substituir a cadeia pública, para o confinamento dos mesmos, numa simples de redução de danos. Pode-se concluir que a ciência psiquiátrica e a política assistencial no Brasil andaram em descompasso desde a fundação das primeiras instituições psiquiátricas. Apesar da cooperação filantrópica das Santas Casas, os esforços não foram suficientes para a realização de uma assistência médica e social adequadas a estes indivíduos. Eram desamparados pela sociedade e rejeitados pela família. Só lhes restava o confinamento, situação que não lhes trazia qualquer benefício mental, nem social ou moral e perdiam a dignidade humana. Viviam isolados de tudo e de todos; e as famílias mais ricas preferiam o confinamento de seus doentes em casa, do que buscar ajuda nos ‘hospícios”, que eram chamados “depósitos de loucos” ou “casa de doudos”.

O HOLOCAUSTO BRASILEIRO: HOSPITAL COLÔNIA DE BARBACENA E O GENOCÍDIO DE SESSENTA MIL PESSOAS Este capítulo é baseado no livro homônimo “O Holocausto brasileiro”, Arbex, Daniela (2013). Ao analisar as origens da história do nascimento da psiquiatria no Brasil, observa-se que o intuito de internar estes pacientes era, inicialmente, escondê-los da vergonha de sua exposição nas ruas e impedir que fossem recolhidos à cadeia pública. O confinamento tinha o intuito de esconder os alienados e segrega-los de qualquer convívio social, pois eram um estorvo na família e nas suas comunidades. Esconder o problema iria trazer alívio às famílias e bem-estar na sociedade, como registravam os relatórios pesquisados. Para os doentes ainda não haviam encontrado um tratamento adequado, como se pode constatar. As reivindicações das autoridades e diretores dos hospitais eram, portanto, angariar fundos para melhorar as condições de vida no estabelecimento e introduzir métodos de cura, e tratamento adequado; afinal os hospícios eram assim alcunhados de depósito de loucos porque nada ofereciam para o tratamento da doença, pelo contrário, submetiam os indivíduos já fragilizados, a situações desumanas de existência, como foi relatado nos relatórios e documentos da época Imperial. Apesar de todos os relatórios apontarem para denúncias da precariedade da vida dos internos e reivindicarem investimentos e melhorias, isso infelizmente não aconteceu no território nacional e nenhuma mudança significativa ou positiva houve nestas instituições. Podemos observar na evolução desse quadro é, pelo contrário, a ocorrência da maior violação de direitos humanos na história do Brasil, que se desenvolveu no Hospital Colônia de Barbacena, MG, este trágico episódio que se iniciou no início do sec. XX e se arrastou por décadas foi documentado no livro reportagem da jornalista Daniela Arbex, de onde serão feitas as análises e reflexões a seguir. A saúde mental na época do Império, e o Estado começou de forma superficial a lidar com o problema da precariedade das instalações psiquiátricas. Apesar dos diversos pedidos para melhoria da situação, estes relatórios foram simplesmente ignorados, não havia vontade política, não havia, portanto, verbas para tal fim. Ironicamente parecia que enquanto os alienados estivem reclusos e não incomodassem ninguém, o problema estaria resolvido! Afinal estes cidadãos não iriam ter poder de voto, não seriam economicamente ativos, não poderiam constituir uma família ou contribuir de alguma forma para o bem-estar da sociedade, eram apenas um estorvo. Com sua morte, ninguém iria sentir sua falta. Tal raciocínio não era consciente, não era proposital que eram vítimas de tantos maus tratos, mas isso era associado ao infeliz aparecimento da doença, para a qual a medicina ainda não tinha tratamento adequado. Neste contexto, o ser humano perde aos poucos a sensibilidade para o que é adequado. E a situação de precariedade foi só piorando, como retrata a autora: “Holocausto é uma palavra assim. Em geral, soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra. Neste livro, porém, seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maioria, enfiadas nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças” (Arbex, D. 2013). Cabe-se observar que a política de saúde mental do Império, de segregar os doentes, escondê-los, retirar do convívio social, era um padrão que se perpetuou no Hospital Colônia Barbacena, isso já no final de sec. XIX. O mesmo padrão de esconder o doente que incomoda, ao invés de trata-lo, ou de tirar da sociedade aquele que se torna inadequado, veio se repetindo até início do sec. XIX. Agora não somente os doentes mentais seriam encarcerados, mas também epilépticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, esposas rejeitadas, filhas que engravidavam solteiras e qualquer que fosse um “estorvo” para o sistema poderia ser vítima da segregação e do banimento da sociedade. Toda essa classe de minorias era eventualmente enviada para o Hospital Colônia de Barbacena ou outros “hospícios”. A autora relata os horrores que documentou no local e dedica sua obra a milhares de homens, mulheres, e crianças que perderam a vida num campo de concentração chamado Colônia: “Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs. Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo — e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida. Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Este foi o destino de Débora Aparecida Soares, nascida em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”. Só muito mais tarde, depois de adulta, Débora descobriria sua origem. Ao empreender uma jornada em busca da mãe, alcançou a insanidade da engrenagem que destruiu suas vidas”. Esta é uma das narrativas que Arbex (2013) documenta e transforma em memória, no seu livro-reportagem, cuja leitura se torna fundamental para maior compreensão de todo processo. Ao expor a anatomia do sistema, a repórter ilumina um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade. É importante destacar que, infelizmente, no período em que ocorreram os fatos era ditadura militar, e não havia liberdade de expressão: quem denunciava o Estado ficava sujeito a retaliações. Isso dificultou que os acontecimentos se tornassem públicos de início. Cabe aqui pontuar, fazendo um paralelo com o holocausto nazista, que este estava inserido num contexto de guerra e violência, em que havia luta de todos pela sobrevivência, numa situação hostil e incomum. O que não justifica mas explica a origem das atrocidades na segunda guerra. No entanto no holocausto brasileiro, não havia situação de guerra. Era paz, eram acontecimentos rotineiros, e os fatos ocorreram dentro de uma instituição pública, com o apoio da Igreja Católica, e criada com o intuito de curar doentes mentais: um hospital, como palco de tortura, violações graves de direitos humanos e genocídio! Tal paradoxo merece uma reflexão profunda de como os propósitos de humanização e cura na medicina podem se perder, tomando o rumo oposto de sofrimento e morte. Aquilo na época do Império parecia omissão dos poderes públicos para com os hospícios, foi tomando progressivamente uma dimensão generalizada em todo o território brasileiro, chegando às dimensões de genocídio um século depois, no caso em tela. A anatomia do sistema de saúde mental precária da época do Império tornou-se, como se observa, um padrão que ia se repetindo nas gerações seguintes: rejeição do doente mental, segregação e confinamento do mesmo, falta de recursos para seu tratamento, submissão destes aos maus tratos, e a morte dentro das instituições, ou graves sequelas psicológicas dos doentes e de seus familiares. Não houve registro de que o Brasil sofreu algum tipo de denúncia ou sanção nos Organismos Internacionais defensores dos Direitos Humanos, por conta do genocídio e tortura de aproximadamente sessenta mil pessoas. Havia censura a tudo que podia ser crítica ao Estado, o qual enfrentava a resistência de grupos que lutavam pela democracia. Nesta conjuntura havia muita dificuldade para se fazer qualquer ato de protesto contra essa violação de direitos humanos, sem sofrer punições ou retaliações. O mundo iria ser palco de duas grandes guerras mundiais, em que a violência e a morte seriam corriqueiras, de tal forma que casos pontuais, como no Brasil eram esquecidos, ficavam ofuscados pelos horrores da guerra na Europa, ficavam fora dos “holofotes” e não tiveram a atenção que mereciam. Assim, esse genocídio pouco foi propagado ou conhecido fora do Brasil. Mas em território brasileiro, começaram a se levantar denúncias contra os horrores no hospital Colônia: “O psiquiatra Ronaldo Simões Coelho, no final da década de 70, então chefe do Serviço Psiquiátrico da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) realizou o gesto mais ousado: denunciar, no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, as atrocidades cometidas no Colônia. — Lá, existe um psiquiatra para 400 doentes. Os alimentos são jogados em cochos, e os doidos avançam para comer. O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma. Seria de desejar que o Hospital Colônia morresse de velhice. Nascido por lei, em 16 de agosto de 1900, morreria sem glórias. E, parafraseando Dante, poderia ser escrito sobre o seu túmulo: quem aqui entrou perdeu toda a esperança. Estas declarações tiveram o efeito de impactar o meio médico. Mas por causa delas o médico perdeu o emprego na Fhemig. A demissão de Simões foi o primeiro ato de perseguição aos que romperam a cultura do silêncio” (Arbex, D. 2013). Assim, a semente estava lançada e as estruturas do modelo manicomial já não se sustentavam e começaram paulatinamente a ruir. Por sua vez, o médico italiano F. Basaglia fazia na época um trabalho voltado para uma política antimanicomial e, ao tomar ciência do caso em tela no Brasil, veio aqui fazer uma inspeção no hospital de Barbacena: “Em 1979, o psiquiatra italiano, que era pioneiro na luta contra os manicômios, esteve no Brasil para visitar a Colônia. Em seguida chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. “Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa” (Arbex D. 2013). Por ocasião da visita ao hospital Colônia do médico italiano Franco Basaglia, pontua a autora: “É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta” (Arbex, D. 2013). No decorrer do seu trabalho de pesquisa, Arbex escutou o depoimento de funcionários e médicos que haviam trabalhado na Colônia; um dos médicos, Ronaldo Simões, expressou para ela: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro” (Arbex, D, 2013) No final dos anos 70, o Psiquiatra Ronaldo Simões havia denunciado o Colônia e reivindicado sua extinção, mas em consequência perdeu o emprego. Cabe aqui observar que o Brasil vivia na época dos anos de chumbo da ditadura e era muito difícil fazer protestos ou denúncias contra o Estado. O processo de abertura e redemocratização só veio acontecer décadas depois, no fim da década de 80. No início dos anos 60, a rotina do hospício veio finalmente a público: depois de conhecer o Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe: “Aquilo não é um acidente, mas um assassinato em massa”. Em 1961 a rotina do hospício foi narrada na revista o Cruzeiro, de maior circulação nacional na época, pelo repórter José Franco e pelo fotógrafo Luis Alfredo. O título da matéria era “A Sucursal do Inferno”, que causou grande comoção na sociedade. Em 1979 o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem “Os Porões da loucura” no Estado de Minas. No mesmo ano foi filmado o documentário “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton, que também se tornou marcante na luta antimanicomial. Daniela Arbex publicou uma série de reportagens na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora. Seguiu investigando e compilou material para a confecção do livro “Holocausto Brasileiro”, o mais completo sobre o assunto. Para este trabalho ela viajava de Juiz de Fora a Barbacena todos os dias, noventa e cinco quilômetros. Voltava a tarde, exausta, tendo entrevistado mais de cem pessoas. Seu trabalho teve o mérito, segundo Eliane Brum, que fez o prefácio do livro, de “salvar do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou”, conclui. Duas décadas mais tarde, a partir dos anos 80, quando a reforma psiquiátrica ganhou força, essa realidade começou a mudar. Restaram menos de 200 sobreviventes da Colônia, parte deles morreria internada. Outros seriam instalados em residências terapêuticas, com supervisão de funcionários, pois nunca ficaram autônomos e capazes de autodeterminação. Como farrapos humanos se destacavam os olhos mudos, sem brilho, sem identidade; restos de humanidade na história do holocausto brasileiro. Em Barbacena existe, para que a memória deste massacre não seja esquecida, o “Museu da Loucura”, o qual foi inaugurado em 1996 no torreão do antigo Hospital Colônia. O mesmo pretende ser um tributo às dezenas de milhares de vítimas da lendária instituição. Dos cinco museus de Barbacena, ele é o mais visitado por turistas. Neste sentido, Botti et al (2006) fizeram um trabalho de campo, em que visitaram o local, e realizaram uma compilação de reflexões sobre a importância da preservação da memória do Colônia: “A importância do Museu da Loucura é levar a pensar como tantos sofredores mentais foram marginalizados e excluídos e a partir dessa reflexão tentar ver o portador de uma outra maneira, porque o Museu da Loucura não deixa que a história da Psiquiatria em Minas e no Brasil fique arquivada num passado distante” (Botti et al,2006).

AS MARCAS DO SOFRIMENTO NO ANTIGO HOSPITAL SANT’ANA As violações de direitos humanos nas instituições psiquiátricas do Brasil não se resumiram apenas no caso isolado de Barbacena, mas o desamparo, o sofrimento do doente mental institucionalizado era disseminado em todo o território nacional. Neste sentido, Borges (2013) observa: Na década de 70, o antigo hospício catarinense, O Hospital Colônia Sant’Ana vivia o ápice de sua superlotação”. Para coletar dados sobre a situação precária da época, a autora analisa entrevistas pertencentes ao Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital Colônia Sant’Ana, realizadas com profissionais da instituição no período, além de pesquisar outras fontes. As memórias das falas tecem assim a história do lugar por meio das lembranças marcadas pelo sofrimento. Assim o sofrimento será também entendido como um catalisador de mudanças e novos arranjos sociais na história do desenvolvimento da saúde mental no Brasil. A autora reporta o relato do enfermeiro Wilson de Paula que em 1971 iniciou suas atividades no Sant’Ana, onde trabalhou até 1977. Sua primeira visita ao local é assim descrita: (...) à primeira visita … foi uma coisa horrorosa. Comecei a conhecer a Colônia levado pelo administrador, que foi me dando as explicações mais absurdas. … uma das primeiras coisas que ele me mostrou foi um pedaço de pau que ele tinha guardado ao lado da mesa dele na sala da administração e que, segundo ele, às vezes ele precisava usar. Foi terrível: aquela visão dele me mostrando o pedaço de madeira, falando da loucura como um analfabeto (Paula, jan. 2009). Tais relatos são todos marcados pela perplexidade diante da realidade de um espaço que deveria ser na verdade terapêutico. Os registros da autora traduzem a realidade triste da instituição, que foi criada em novembro de 1941, no auge da tendência à institucionalização da loucura. Localizada no município de São José, surge para atender as políticas de saúde pública deste período, que visava implantar um serviço de assistência à saúde mental no Estado. Sua existência é, portanto, fruto de uma demanda ligada ao sofrimento, a fim de retirar do convívio social aqueles tidos como loucos. O intuito seria evitar a reclusão nas imundas cadeias situadas nos baixos das Câmaras Municipais. Relata a autora que para lá eram levados os alienados, igualmente a outros estados do Brasil, amarrados solidamente, depois de violência e lutas físicas. Desde sua fundação até trinta anos depois a situação não havia mudado. Os tratamentos e cuidados nunca foram tentados, e os alienados deixaram simplesmente a reclusão das prisões para a dos hospícios. Estes tinham inicialmente o intuito de dar um tratamento mais humano aos privados da razão, no entanto, como em outros casos, falharam no seu objetivo, tendo-se tornado um “depósito de gente”, um espaço superlotado, marcado pelo descaso: Uma característica que define grande parte dos hospitais psiquiátricos brasileiros em diferentes épocas, conclui a autora. Um dos relatos no seu trabalho de pesquisa ilustra de forma clara os vários tipos de violações aos direitos humanos a que os internos eram submetidos: O hospital que eu encontrei em 1971 era um hospital com seis ou sete médicos e com 2.156 pessoas. Havia lugares onde os doentes eram lavados em grupo, lugares onde os pacientes passam o dia inteiro dando volta numa estrutura que a gente chamava de sombrinha, onde havia enfermarias que, para você entrar, você tinha que chamar os guardas para ir junto, onde os pacientes estavam entregues à própria sorte. Era algo muito feio, muito triste, muito doloroso. Então se entrar em uma instituição com 2.156 pessoas hospitalizadas, onde só tinha cama para 1.200, onde havia beliches em que um deitava por cima do outro, e onde dado o fato que aquilo existia por tanto tempo, então se observava que aquilo era visto como natural, que as pessoas dormissem no chão, naquela condição. Isto só acontecia na psiquiatria (Gonçalves, mar. 2009). Este quadro de horror foi também amplamente documentado por registros fotográficos. A coleção de imagens foi realizada entre 1970 e 1978, possui um caráter de denúncia e marcam a entrada de novos profissionais na instituição; hoje faz parte da coleção da Cedope, HCS, em Santa Catarina. As imagens potencializam as falas e relatos dos depoentes, corroborando suas narrativas. Segundo a autora, é importante observar que o sofrimento não deve ser entendido como algo inerente exclusivamente à realidade das instituições psiquiátricas. Nem sempre e nem para todos os seus habitantes o cotidiano dentro destes espaços institucionais foi sinônimo de sofrimento (Wadi, 2004), ao estudar os prontuários de internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, problematizou “a perspectiva de vida de alguns habitantes de instituições psiquiátricas, que a despeito de quão nefandas podiam ser consideradas, buscaram nas mesmas encontrar um lugar para si. A autora também cita Borges (2006), o qual problematiza o desejo de permanência na instituição por parte de internos do Centro Agrícola de Reabilitação em Viamão (RS), documentando falas e vestígios deixados por pacientes, que revelavam que alguns passavam a se identificar com o local, e suas atividades agrícolas propostas, encontrando espaço na instituição. Assim pode observar que nem todas as memórias a respeito de instituições psiquiátricas da época são marcadas por lembranças ligadas ao sofrimento e maus tratos. Conforme Duarte (1998, p.13), apud Borges não se deve considerar o sofrimento uma simples consequência da internação ou mera criação desta, mas uma dessas formas inevitáveis para lidar com a dimensão entranhada do adoecimento. O que faz o essencial da doença, ou seja, a experiência de uma disrupção das formas e funções regulares da pessoa, implica necessariamente o “sofrimento”, quer seja entendido no sentido físico, restrito, quer no sentido moral, abrangente, que inclui também o sentido físico. O sofrimento tem algo de subjetivo, pessoal, que não pode ser mensurado ou comparado por fatores externos. É no foro íntimo do ser, dentro da alma, que ele é vivenciado e só pode ser mensurado por quem o vive. Contudo, o sofrimento físico e moral causado pela própria doença, anterior à internação pode, por vezes, ser potencializado por este. Contudo, nos depoimentos, as condições desumanas da instituição são atribuídas principalmente à superlotação, a qual atingiu seu ápice na década de 1970, problema que atormentou, tal como já abordado, todas as instituições psiquiátricas brasileiras nas diferentes regiões do país. Nas falas as condições desumanas da instituição são atribuídas sobretudo à sua superlotação: A Sant’Ana era um depósito de pacientes. Havia mais de 2.000 pacientes internados e lá existiam os chamados leitos-chão. Não sei se usa essa expressão, mas era uma pilha de colchões, cujas pessoas excedentes ali dormiam. Durante o dia, os colchões ficavam empilhados num canto e à noite eram colocados entre as outras camas. Aquilo precisava mudar a Colônia não ia ser mais um depósito (Paraíso, mar. 2009). De acordo com Santos (set. 2009), um dos depoentes entrevistados por Borges (2013): Aqui também tinha o quinto, que era um pavilhão chamado de geladeira, e era insuportável. Tinha na época, uma base de trezentos e cinquenta pacientes todos juntos.... No inverno, não é contar história, não é querer exagerar para ilustrar as coisas, mas eu cansei de recolher os mortos pela manhã quando chegava.... Tinha dia, no inverno forte daquela época, que nós chegávamos de manhã e recolhíamos quatro, cinco mortos, eram então colocados no necrotério, vestidos, porque eles estavam na maioria do tempo pelados. Eram levados para o cemitério no famoso carretão, quatro, cinco caixões no fundo da carreta, amarrados. Era assim, todo inverno eu acho que morriam uma série de vinte, trinta pacientes, por aí, na beira do rio, no inverno constante e forte, sem roupa, no piso, sem cobertor, colchão ou capim, sem medicação apropriada para dormir e para sedar. O que é que podia dar uma situação dessa. Era só morte, só morte, só morte! Concluindo, Borges, apud Farge (2011) observa: Trabalhar sobre sofrimento e crueldade em história é também querer erradicá-los hoje. Explicando os dispositivos e os mecanismos de racionalidade que os fizeram nascer, o historiador pode fornecer os meios intelectuais de suprimi-los ou de evitá-los. No cotidiano superlotado, a morte é colocada como algo sempre à espreita, perpassando as diferentes falas. Nesse sentido, outras narrativas impactantes são trazidas pelo enfermeiro Wilson de Paula e pelo médico doutor Ribeiro: Havia uma enfermaria que era chamada de geladeira, porque era muito fria e úmida. Lá tinha vários cubículos onde eram colocados os pacientes mais graves. Um dia eu cheguei lá e encontrei uma mulher agonizante com uma vela acesa na mão, e um monte de moscas em volta. Então, eu perguntei para a freira: o que é isso irmã? Aí ela disse: aqui é o quarto das moribundas, quando as doentes estão muito mal a gente coloca aqui para não morrerem nas enfermarias. (Paula, jan. 2009). Tínhamos que sair pelo hospital para preencher os atestados de óbitos dos pacientes que haviam falecido na noite anterior. Eu e meu colega clínico geral, Aluísio Bonrart, preenchíamos os atestados de óbito com base no que estava escrito no prontuário e nas informações que os atendentes nos davam... Às vezes nós íamos atender pacientes naquela unidade lá atrás que era chamada de “geladeira”; às onze horas da noite aquilo era terrível, era escura, a expressão correta era tétrica. Mas sempre que possível o paciente era trazido até o consultório. Os psiquiatras também não atendiam nas enfermarias. (Ribeiro, abr. 2009). Na Instituição superlotada, alguns tratamentos eram realizados sem atender as normativas, colocando a vida dos internos em risco. Era também feito muito eletrochoque. Havia dois funcionários que eram os encarregados de fazer o choque. Era uma seção horrível. Colocavam o colchão no chão, e, aí, quatro pacientes seguravam um outro para que eles aplicassem o choque, e depois seriam os outros que segurariam que iriam sofrer a mesma prática. Isso era terrível (Paula, jan. 2009). O enfermeiro Santos (set. 2009) relata ter sido um dos responsáveis por aplicar o eletrochoque nos internos. Eu acho que morreu muita gente, era feito muito eletrochoque. Começava às oito da manhã e ia até ao meio-dia, era a manhã toda, só fazendo choque. No dia que eu fazia eletrochoque, à tarde eu chegava em casa tremendo. A gente imobilizava o paciente, e ficava um homem na parte do joelho, um na bacia, e um na parte dos ombros. Se tu mostra aquela valise preta do eletrochoque que vocês guardaram no museu, tem paciente dos mais antigos que vai sair correndo. Eu fui responsável pelo eletrochoque por três anos. O aparelho de eletrochoque foi criado no final da década de 1930, sendo utilizado muitas vezes sem atender a critérios básicos, como o uso de anestesia, conforme evidenciam os depoimentos citados. Na perspectiva de reestruturação do HCS, em 1973 foi instituída a exigência de uma sala apropriada para a realização do eletrochoque, com material para reanimação respiratória, prescrição médica, bem como a presença de um médico e de um enfermeiro durante sua realização. Conforme Costa (2010, p.172), a partir desse período, a utilização de tal procedimento foi progressivamente abandonada até ser completamente extinta como prática institucional em 1985. Portanto, as entrevistas que trazem os fatos acima narrados servem de um ponto de reflexão, trazendo à tona o sofrimento de testemunhas e entrevistados; o que pode ser interpretado como uma tentativa de buscar tempos mais humanos na história da psiquiatria no Brasil. Reviver estas memórias é trazer à luz uma realidade que se fez presente não somente em Santa Catarina, mas também em outros Estados brasileiros; é criar resistência ao horror, à violação de direitos humanos a que as vítimas eram submetidas. Paralelo à indignação dos depoentes renasce, assim, a esperança de resistência, e do repúdio à tudo que fere a dignidade humana do cidadão brasileiro frágil e dependente dos cuidados da sociedade, dos recursos de Estado. Renasce assim a esperança de melhorias no trato do doente psiquiátrico nas décadas seguintes. DISCUSSÃO E CONCLUSÃO A era de horror da história da psiquiatria no Brasil veio paulatinamente perdendo sua força à medida que, com as denúncias dos maus tratos em diversos manicômios, tornou-se pública a situação desumana, que resultou em genocídio nas diversas instituições distribuídas pelo território nacional. Segundo Hirdes (2009) a superação do modelo manicomial encontra ressonância nas mudanças das políticas de saúde do Brasil, que tiveram um marco na 1 Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), à qual se seguiram outras, culminando nas últimas décadas (1980 e 90) na intensificação das discussões e do surgimento de novos serviços e programas. Segundo a autora um marco histórico para o setor da saúde mental, facilitador de mudanças ao nível do Ministério da Saúde, foi a Conferencia Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, realizada em Caracas, em 1990. Neste encontro, no qual o Brasil foi representado e signatário, foi promulgado o documento final intitulado: “Declaração de Caracas”. No mesmo, os países da América Latina, inclusive o Brasil, comprometem-se a promover a reestruturação da assistência psiquiátrica, rever criticamente o papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico, salvaguardar os direitos civis, a dignidade da pessoa humana, os direitos humanos dos usuários e propiciar a sua permanência em seu meio comunitário e familiar (Organização PanAmericana de Saúde, 1990). Em 2005 foi retomada a “ Declaração de Caracas” sob a forma de um documento intitulado “Princípios Orientadores para o Desenvolvimento da Atenção em Saúde Mental nas Américas”, a “Carta de Brasília”, a qual tinha o objetivo de avaliar os resultados obtidos desde 1990. Neste documento os organizadores reconhecem os avanços que se produziram nos últimos quinze anos na reestruturação da atenção psiquiátrica, constatam que existem experiências exitosas em vários países, assim como obstáculos e dificuldades. Reafirmam a validade dos princípios contidos na “Declaração de Caracas” em ralação à proteção dos direitos humanos e da cidadania dos portadores de transtornos mentais e a necessidade da construção de redes de serviços alternativos aos hospitais. Advertem para o aumento da vulnerabilidade psicossocial e das diferentes modalidades de violência. Convocam todos os atores envolvidos para a implementação dos princípios éticos, políticos e técnicos da “Declaração de Caracas” (Ministério da Saúde, 2005). Aos poucos a superação o modelo manicomial vai encontrando ressonância nas políticas de saúde do Brasil. As décadas de 1980 e 1990 foram marcos significativos nas discussões pela reestruturação da assistência psiquiátrica. Mudanças para a reversão do modelo manicomial inaugurou a era da política antimanicomial no Brasil. A partir de então passou-se a privilegiar a criação de serviços substitutos ao hospital psiquiátrico, como redes de atenção à saúde mental, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), leitos psiquiátricos em hospitais gerais, oficinas terapêuticas, residências terapêuticas, respeitando-se as necessidades das demandas locais. As iniciativas dos municípios, a depender da vontade política dos seus gestores, eram ressarcidas através das portarias ministeriais, objetivando o deslocamento dos recursos para modalidades alternativas à internação psiquiátrica, compatibilizando os procedimentos das ações de saúde mental com o modelo assistencial. A luta animanicomial, ou a desinstitucionalização, objetiva deslocar o centro da atenção da instituição hospitalar para a comunidade, município ou território. Atualmente almeja incluir o tratamento também nas esferas da Estratégia de Saúde da Família. Esta tendência tem origem no movimento italiano de reforma psiquiátrica, segundo as pesquisas de Rotelli et al (1990), apud Hirdes. Assim, para os autores italianos o mal obscuro da psiquiatria estaria em haver separado um objeto fictício (a doença), da existência global e complexa dos pacientes e do corpo social. Sobre essa dissociação artificial se construía um aparato científico, legislativo, administrativo voltados para a doença isoladamente e em descompasso com as necessidades do indivíduo. Entende-se, portanto, que, a desinstitucionalização é concebida além do entendimento da não hospitalização, mas antes é entendida como o processo de desconstrução do ideal terapêutico do confinamento. Este já havia sido provado ineficaz, fonte de maus tratos e palco de genocídios! Inverte-se o paradigma asilar, o sujeito é visto agora como um conjunto de vínculos, de relações compartilhadas, e não poderia ter vida plena se estivesse confinado, impedido de suas funções sociais. Há que que se criar mudanças políticas e, portanto, profundas transformações nas práticas de saúde do Estado, evitando o recrudescimento da institucionalização do doente. Tal prática já foi comprovadamente, antes uma mera tentativa de esconder a doença, do que um esforço verdadeiro de se curar o doente, devolvendo-o funcional à sociedade, restaurando sua cidadania de forma completa. Segundo a agencia Saúde do Portal de notícias do Ministério da Saúde, os novos desafios da rede de Atenção Psicossocial vêm se ampliando com a necessidade da criação de unidades para o tratamento de dependentes químicos, os CAPS AD. Os novos modelos incluem drogas como o crack e funcionarão 24h, em equipes multiprofissionais, e serão instaladas em regiões metropolitanas (acima de 500 mil habitantes). Estes CAPS serão construídos para oferecer apoio em saúde mental em regiões conhecidas como cracolandias, por exemplo. O plano é que estes vão atuar junto a consultórios na rua e integrados a outros pontos de atenção à Rede de Apoio Psicossocial, de forma intersetorial, juntamente com a Assistência social e outras áreas. Ainda como parte do fortalecimento da desinstitucionalização e promovendo mais dignidade aos atuais moradores dos hospitais psiquiátricos, o Ministério da Saúde planeja habilitar, no próximo ano, 200 serviços de residência terapêutica (SRT), no valor de cerca de RS 50 milhões. A intenção é qualificar o serviço para promover cada vez mais a reinserção dos pacientes na sociedade. O Programa de Volta Para Casa, que hoje possui 4.3 mil beneficiários, também deverá ser aprimorado. O governo também pretende ampliar o percentual de ocupação dos leitos em hospitais gerais, qualificar uma equipe multiprofissional neste sentido. O governo pretende atualizar também a diária nos hospitais psiquiátricos, sendo que a meta será trabalhar com hospitais de pequeno porte para internações breves e pacientes agudos. O Plano Estratégico de Prevenção ao Suicídio deverá ser lançado ainda este ano. As ações serão mais intensas nos Estados prioritários: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Roraima e Piauí. Ainda neste sentido o governo vai repassar verba para o Centro de Valorização da Vida, implementando o programa de prevenção ao suicídio, que deverá ser expandido até 2020. Ao observar as ações governamentais no âmbito de melhorias da saúde mental, que inclui também prevenção de uso de substancias, pode-se entender que esta área sempre vai carecer de estratégias, recursos e mudanças, acompanhando as necessidades da sociedade contemporânea. Uma das maiores dificuldades em relação à criação de vagas em hospitais gerais, é que os mesmos não possuem estrutura de segurança e de suporte adequado para atender as necessidades do interno. Caso seja uma tentativa de suicídio, por exemplo, o doente precisa de proteção nas janelas, para que não venha a saltar. O que nem sempre existe. As vagas destinadas aos mesmos precisam, portanto de adequação. Caso estejam agitados, podem também tumultuar o ambiente de um hospital geral, não especializado. Outro ponto que precisa ser discutido é que, com a luta antimanicomial, o doente enfrenta escassez de vagas para o atendimento de emergência. Falta também nos Hospitais gerais uma equipe especializada para atender as necessidades dos doentes. Assim, portanto não parece o ideal inserir o doente mental num ambiente que não foi preparado para tal. Há, portanto, escassez de recurso, faltam vagas, e neste sentido é preciso que se unam esforços na busca de soluções mais eficazes e adequadas às necessidades peculiares destes internos. Infelizmente os atores da área ainda encontram grandes barreiras e dificuldades na luta para o tratamento eficaz e reinserção na sociedade dos usuários. Ainda existem famílias e instituições que precisam de apoio na luta contra o confinamento, no esforço para resgatar seus doentes para a comunidade: pode-se ainda observar doentes que vagueiam sem rumo e moram nas ruas, viram pedintes. Outros são usuários de drogas e afligem-se a si mesmos, à família, e não se adequam aos tratamentos. Apesar das dificuldades, a sociedade, o Estado, as famílias unem esforços para resgatar a cidadania e a dignidade dos enfermos, e reinseri-los na vida social. Muitas vezes conseguem, muitas vezes trabalham em vão. Cabe aqui pontuar, portanto, que o sofrimento causado pela doença mental não atinge somente o portador, mas seus conviventes, família, comunidade, e a sociedade que busca o equilíbrio, o bem geral. Grandes são, portanto, os desafios: Do genocídio dos primeiros hospitais, até os dias de hoje. O sofrimento do doente mental, ou do drogadicto, ainda perfaz a fronteira entre o massacre da dura realidade e o sonho de um tratamento digno e eficaz, numa caminhada que parece ser ainda muito longa. Neste percurso, vale aqui ressaltar o legado do aprendizado nas noites frias de confinamento e morte, que nunca mais deverá fazer parte do tratamento do doente psiquiátrico. Neste sentido, resgatar os erros históricos, traze-los à memória, é uma tentativa da sociedade de se redimir, evitando que tais horrores se repitam em nome da ciência.

REFERÊNCIAS Brasil. Ministério da Saúde, Portal de notícias MS Disponível em http://portalms.saude.gov.br/ Acesso em 28 dez. 2017 Figueiredo, Gabriel. As origens da assistência psiquiátrica no Brasil: O Papel das Santas Casas. Revista Brasileira de Psiquiatria, vol. 22 n.3, 2000. ODA, Ana Maria Galdini Raimundo; DALGALARRONDO, Paulo. História das primeiras instituições para alienados no Brasil. Hist. cienc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 983-1010, dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2017. ARBEX, D. Holocausto Brasileiro 1.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013. BORGES, Viviane Trindade. Um “depósito de gente”: as marcas do sofrimento e as transformações no antigo Hospital Colônia Sant’Ana e na assistência psiquiátrica em Santa Catarina, 1970-1996. História, Ciências, Saúde – Manguinhos 2013, 20 (Octubre-Diciembre). Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2017. ARBEX, D. Holocausto Brasileiro 1.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013. BORGES, Viviane Trindade. Um “depósito de gente”: as marcas do sofrimento e as transformações no antigo Hospital Colônia Sant’Ana e na assistência psiquiátrica em Santa Catarina, 1970-1996. História, Ciências, Saúde – Manguinhos 2013, 20 (Octubre-Diciembre). Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2017. ARBEX, D. Holocausto Brasileiro 1.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013. BORGES, Viviane Trindade. Um “depósito de gente”: as marcas do sofrimento e as transformações no antigo Hospital Colônia Sant’Ana e na assistência psiquiátrica em Santa Catarina, 1970-1996. História, Ciências, Saúde – Manguinhos 2013, 20 (Octubre-Diciembre). Disponível em:


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