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A (in)constitucionalidade do art. 165-A do Código de Trânsito Brasileiro em face do direito a não-autoincriminação

A (in)constitucionalidade do art. 165-A do Código de Trânsito Brasileiro em face do direito a não-autoincriminação

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Examina-se a constitucionalidade da infração consistente na negativa do condutor a submeter-se a teste que determine a alteração de sua capacidade psicomotora em razão da influência de álcool ou qualquer outra substância capaz de causar dependência física ou psíquica.

1 INTRODUÇÃO

Com o advento da Lei n.º 13.281 de 4 de maio de 2016, diversas mudanças foram realizadas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) – Lei n.º 9.503/97. Dentre tantas, visada, se fez a implantação do artigo 165-A em referida legislação, o qual aplica multa ao condutor que se recuse a passar pelo teste do etilômetro, perícia, exame clínico, ou qualquer outro procedimento que vise a constatação de substâncias psicoativas no sangue do condutor.

Desta feita, ao condutor que negar-se a realização das condutas acima mencionadas, poderão ser-lhe aplicadas penalidades administrativas, tais como infração gravíssima, multa e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. Como medida instantânea, caberá também a retenção administrativa do veículo, bem como da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do condutor.

Por sua vez, a Constituição Federal de 1988, por intermédio do artigo 5º, inciso LXIII, traz ao direito brasileiro a aplicação do conhecido direito de não produzir provas contra si mesmo, ou, em latim, princípio do Nemo Tenetur se Detegere. Em que pese o fato de constar, na Carta Magna, apenas o direito ao silêncio, doutrina e jurisprudências brasileiras são pacíficas ao destacar que tal direito não se restringe unicamente ao silêncio, mas sim a todo e qualquer direito de não produzir provas contra si mesmo.

Assim sendo, dois direitos são colidentes: o jus puniendi do Estado, para que detecte a influência de substância psicoativa no sangue dos condutores, podendo processá-los pelo crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, e o direito de não produzir provas contra si mesmo, o qual é previsto não apenas na Constituição Federal, mas também em tratados e pactos internacionais sobre direitos humanos que o Brasil é signatário.

Diante de tais pontos, é necessário compreender os elementos inerentes a este relevante tema, tendo como objetivo o presente trabalho analisar a constitucionalidade do artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro, em face do direito a não-autoincriminação, trazido pelo artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal.


2 O ARTIGO 165-A DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO E SEU OBJETIVO ENQUANTO NORMA

Inicialmente, necessária a exposição da legislação. O artigo 165-A do CTB que assim dispõe:

Art. 165-A. Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270.

Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses        

Posto isso, o artigo prevê a aplicação de diversas penalidades ao condutor que infringir suas normas.

Passada a exposição ipsis literis do artigo em questão, é necessário que seja compreendido o que o legislador quis ao acrescentar referida penalidade administrativa à legislação do trânsito.

A República Federativa do Brasil possuí elevados índices de mortes no trânsito ocasionadas por condutores muitas vezes irresponsáveis, que ingerem bebidas alcoólicas e prosseguem na direção de veículo automotor. Nesse sentido, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF), obtidos on-line (Disponível em: <https://www.prf.gov.br/portal/estados/parana/noticias/apos-queda-de-25-em-2015-mortes-em-rodovias-federais-no-parana-sobem-12-em-2016>. Acesso em: 21 ago. 2017.), o número de acidentes causados pela ingestão de álcool, no ano de 2016 e no Estado do Paraná é de 15,6%. Ao longo do mesmo ano, a PRF flagrou cerca de 3.567 motoristas dirigindo sob a influência de álcool.

O Estado, portanto, viu-se ineficaz perante a política de trânsito aplicada na época e, neste passo, editou a Medida Provisória n.º 699/2015, que, quando em tramitação para conversão de lei (Projeto de Lei de Conversão n.º 4/2016), durante a discussão do projeto, o deputado Hugo Leal (PROS/RJ) apresentou proposta de emenda ao projeto, ali solicitando que fosse incluído o artigo 165-A no Código de Trânsito Brasileiro. Em sua justificativa, assim postulou:

Um dos dispositivos incluídos pela “Lei Seca” no CTB foi exatamente o que prevê a multa administrativa ao condutor que se recusar a realizar os testes e exames para verificação de sua condição no momento da fiscalização, com a inclusão do § 3º ao art. 277 do CTB. Esse foi mais um instrumento para impedir que o condutor que tivesse ingerido bebida alcoólica utilizasse esse artifício da recusa para se livrar da autuação e continuar a dirigir sob influência de álcool, colocando em risco a segurança das demais pessoas.

Não obstante o grande benefício dessa alteração, verificou-se que não bastava a previsão da recusa no § 3º do art. 277 do CTB, com menção ao art. 165 do mesmo diploma legal, tendo em vista que este artigo refere-se ao condutor que efetivamente se encontra sob influência de álcool, não o que se recusou. Como a infração deve estar capitulada no “Capítulo XV - Das Infrações”, faz-se necessária a inclusão de um artigo específico para enquadrar administrativamente a recusa dando sustentação ao § 3º do art. 277. Ressalte-se que não existe previsão de qualquer  sanção penal  ao condutor  que  se  recusar  a  realizar  os  testes  e  exames,  mas  tão  somente  a  sanção administrativa.

Desta forma, inclui-se o art. 165-A, com adequação da redação do § 3º do art. 277 para que faça referência aquele artigo e não ao 165, conforme explicitado acima.

Entende-se que tais alterações darão mais eficácia ao combate ao consumo de álcool na direção de veículos e contribuirão para a redução dos acidentes, mortos e feridos no trânsito.

Desta maneira, o artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) prevê que o condutor envolvido em acidente de trânsito poderá ser submetido à testes que visem indicar a presença de álcool ou qualquer outra substância psicoativa em seu sangue. Mencionado artigo, assim dispõe:

Art. 277.  O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.

§ 1º (Revogado)

§ 2º A infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas.

§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165-A deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

Percebe-se, pois, que o artigo não obriga o condutor a cooperar na realização dos testes, entretanto, com a aplicação do parágrafo terceiro, remeterá a aplicação das sanções administrativas previstas no artigo 165-A do CTB. Desta maneira, retoma novamente a obrigação implícita ao condutor, sob pena deste sofrer as punições administrativas elencadas no artigo 165-A do CTB.

Ainda, anteriormente à inclusão do artigo 165-A no Código de Trânsito Brasileiro, diversas eram as tentativas de penalizar administrativamente o motorista que se negava a realizar o teste do etilômetro, aplicando-se, todavia, o artigo 165 do Código de Transito Brasileiro, que aplica a multa ao motorista que é flagrado em estado de embriaguez ou sob a influência de qualquer outra substância que reduza a capacidade psicomotora. Referido artigo menciona:

Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.

Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro.

Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.

Entretanto, insurgiram diversas decisões judiciais contrárias a este entendimento, dispondo que a mera recusa à realização do teste do bafômetro não incidiria na presunção de que o motorista estivesse sob a influência de álcool. Nesse sentido decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO ORDINÁRIA. AUTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. TESTE DO BAFÔMETRO. RECUSA. NECESSIDADE DE OUTROS MEIOS DE PROVA. ANULAÇÃO. - O art. 277 do CTB dispõe que a verificação do estado de embriaguez, ao menos para cominação de penalidade administrativa, pode ser feita por outros meios de prova que não o teste do etilômetro. A despeito das discussões acerca do art. 277, §3º, CTB, a jurisprudência exige que a embriaguez esteja demonstrada por outros meios de prova, não podendo ser decorrência automática da recusa em realizar o teste. - Hipótese em que embora o agente de trânsito tenha feito referência no auto de infração e no boletim de ocorrência a que o demandado apresentaria sinais de embriaguez, não preencheu o termo de constatação ou fez constar no auto de infração ou no próprio boletim de ocorrência qualquer das informações acima referidas. Ao contrário de outras irregularidades suscitadas pela parte autora, a falta de exame, teste, perícia ou termo de constatação que aponte a embriaguez do autor constitui falta grave e insanável, que diz respeito à própria prova da materialidade do ato infracional e cuja ausência torna insubsistente o auto de infração.

(Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Acórdão proferido na Apelação n.º 5006245-46.2013.404.7110. Relator: Desembargador Fernando Quadros da Silva. Julgado em 11 fev. 2015. Disponível em: <https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/imprimir.php?selecionados='TRF408136814'&pp;=&cp;=>. Acesso em: 22 ago. 2017.)

Assim, conclui-se que a inclusão do artigo 165-A no Código de Trânsito Brasileiro tem por principal objetivo combater o alto índice de prática dos delitos tipificados no artigo 306 do mesmo códex, de modo a visar diminuir efetivamente a violência nas estradas brasileiras, bem como a criminalidade no trânsito. Ademais, tal artigo também foi incluso numa espécie de presunção de culpabilidade do autor – vale lembrar a máxima “quem não deve, não teme” -, pois pune aquele que unicamente não se submete ao teste do etilômetro.


3 BREVES APONTAMENTOS ACERCA DO DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE

O delito é tipificado no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro e prevê a seguinte conduta:

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1o  As condutas previstas no caput serão constatadas por:

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.

§ 2º A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

§ 3º O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia ou toxicológicos para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

Assim, o principal objeto jurídico do delito é garantir e defender que todos os cidadãos, condutores de veículos ou não, possuam trânsito seguro. Trata-se de tipo penal que protege a segurança pública. Ainda, a penalização desta conduta é de perigo abstrato, ou seja, não é necessário ser comprovada a potencialidade lesiva da conduta. Nesse sentido é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

APELAÇÃO CRIME. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO. INVALIDADE DO TESTE ETILOMÉTRICO. INACOLHIMENTO. CERTIFICADO DE VERIFICAÇÃO DE ETILÔMETRO ACOSTADO POR OCASIÃO DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA, BEM COMO, O EXTRATO DO TESTE DANDO CONTA DO ESTADO DE EMBRIAGUEZ EM QUE O ACUSADO SE ENCONTRAVA. CALIBRAGEM E VERIFICAÇÃO ANUAL QUE DEVEM CONSTAR DO APARELHO ETILÔMETRO. PROVAS SUFICIENTES A DELINEAR A MATERIALIDADE E A AUTORIA DO DELITO.PALAVRA DOS POLICIAIS MILITARES COERENTES.FÉ PÚBLICA. CRIME DE MERA CONDUTA E DE PERIGO ABSTRATO. RECURSO DESPROVIDO, COM A SUBSTITUIÇÃO, EX OFFICIO, DA RESTRITIVA DE DIREITOS, CONSISTENTE EM PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE, POR PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. ARTIGO 46 DO CÓDIGO PENAL.

(Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - 2ª C.Criminal – Acórdão proferido na Apelação Crime n.º 1603766-8 - Curitiba - Rel.: Laertes Ferreira Gomes - Unânime - Julgado em 01.06.2017.)

Por sua vez, a doutrina (DELMANTO, 2013) é clara ao destacar os objetos jurídicos defendidos pela lei, sendo a incolumidade pública, bem como o direito ao trânsito seguro. Referido delito possui intrínseca ligação com a penalidade administrativa prevista no artigo 165-A do mesmo Código, pois, como se expôs, a comprovação da materialidade deste delito pode ser realizada por intermédio do teste do etilômetro.

Nesse aspecto, o artigo 165-A do CTB surgiu como maneira a amparar e ajudar o Estado no tocante à prova de materialidade do delito, pois atribui sanção administrativa ao motorista que negar-se a realização de testes que atestem a utilização de substâncias que alterem a capacidade psicomotora do condutor.

Entretanto, o referido delito possui diversos meios de prova, inclusive previstos no próprio artigo 306. Desta feita, o inciso II do §2º do artigo 306 dispõe que a conduta será considerada comprovada quando houverem “sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora”. Referida regulamentação veio por intermédio da Resolução n.º 432/2013, a qual estipula diversas condutas que possam vir a caracterizar sinais de alteração da condição psicomotora do motorista, estipulando sinais quanto à aparência, atitude, orientação, memória e capacidade verbal do condutor, as quais deverão ser reduzidas a termo.

A jurisprudência confirma que, quando preenchidos os requisitos da resolução do Contran, a materialidade do crime pode ser constatada por intermédio do termo de constatação. Nesse sentido:

APELAÇÃO CRIME. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (ART. 306 DO CTB). CONDENAÇÃO. PRETENSA ABSOLVIÇÃO FUNDADA EM AUSÊNCIA DE PROVAS A ENSEJAR A CONDENAÇÃO. INOCORRÊNCIA. EMBRIAGUEZ ATESTADA POR TERMO DE CONSTATAÇÃO DE SINAIS DE EMBRIAGUEZ E PELA CONFISSÃO DO ACUSADO DE TER FEITO INGESTÃO DE BEBIDA ALCOÓLICA. TESTEMUNHOS DE POLICIAIS MILITARES SEGUROS ACERCA DA EMBRIAGUEZ DO APELANTE, QUE POSSUÍA TODOS OS SINAIS VISÍVEIS DE EMBRIAGUEZ, TAIS COMO FALA CONFUSA, ODOR ETÍLICO, AUSÊNCIA DE ESTABILIDADE, ENTRE OUTROS. ADEMAIS, O RECORRENTE ABALROOU UM VEÍCULO QUE SE ENCONTRAVA PARADO, O QUE ENSEJOU A OCORRÊNCIA POLICIAL. AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS BEM DEMONSTRADAS. IMPOSSIBILIDADE DE SE APLICAR A EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE DESCRITA NO ART. 28, INC. II, § 1º DO CP. CONDENAÇÃO MANTIDA. IMPOSIÇÃO DA PROIBIÇÃO DE FREQUENTAR CERTOS LUGARES COMO CONDIÇÃO AO REGIME ABERTO. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA Nº 493 DO C. STJ. RECURSO DESPROVIDO, COM A RETIRADA DE OFÍCIO DE UMA DAS CONDIÇÕES AO REGIME ABERTO.1. O estado de embriaguez restou demonstrado pelo auto de constatação de sinais de alteração da capacidade psicomotora. Aliado a isso, o testemunho dos milicianos, e também, o fato de ter o acusado se envolvido em acidente de trânsito, além de sua confissão de ter ingerido bebida ensejam ao decreto condenatório. 2. A embriaguez não é motivo para excluir a imputabilidade, justamente por ser prevista no tipo penal do art.306 do CTB como conduta criminosa dirigir embriagado. 3.Somente a embriaguez decorrente de um caso fortuito ou força maior pode ser utilizada para sustentar a imputabilidade penal.

(Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - 2ª C.Criminal – Acórdão proferido na Apelação Crime n.º 1638050-4 - Campo Mourão - Rel.: José Mauricio Pinto de Almeida - Unânime – Julgado em 22.06.2017)

Desta forma, o crime exposto pelo artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro é de fácil comprovação de materialidade, sendo perfeitamente dispensável a realização de quaisquer testes que venham a detectar presença de álcool no sangue.


4 O DIREITO A NÃO-AUTOINCRIMINAÇÃO

4.1 CONCEITO

Consagrado pelo artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal, o direito a não-autoincriminação, também chamado de princípio do nemo tenetur se detegere visa garantir ao cidadão que não seja compelido à realização ou produção de quaisquer provas que possam lhe prejudicar, especialmente no que toca ao âmbito do processo criminal. O texto constitucional assim dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

Inobstante o texto constitucional, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporado ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto 678/92, também assegura o direito a não-autoincriminação. Nesse contexto, revela em seu artigo 8, seção 2, “g” o seguinte conteúdo:

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

g. Direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;

Em que pese prever unicamente o direito de permanecer em silêncio, doutrina e jurisprudência tem afirmado que referido direito abrange diversas outras garantias, especialmente no que toca à produção de provas. Ademais, é derivado da junção da presunção de inocência e da ampla defesa, sendo de extrema relevância sua inclusão no direito brasileiro. Nesse sentido, NUCCI:

Trata-se de decorrência natural da conjugação dos princípios constitucionais da presunção de inocência (art. 5º, LVII) e da ampla defesa (art. 5º, LV), com o direito humano fundamental que permite ao réu manter-se calado (art. 5º, LXIII). Se o indivíduo é inocente, até que seja provada sua culpa, possuindo o direito de produzir amplamente prova em seu favor, bem como se pode permanecer em silêncio sem qualquer tipo de prejuízo à sua situação processual, é mais do que óbvio não estar obrigado, em hipótese alguma, a produzir prova contra si mesmo. (2011, p. 86)

Na mesma estreita, QUEIJO, acerva:

O princípio nemo tenetur se detegere tem sido considerado direito fundamental do cidadão e, mais especificamente, do acusado. Nesse sentido, Vassali, Grevi e Zuccalà já se manifestaram. Cuida-se do direito à não auto-incriminação, que assegura esfera de liberdade ao indivíduo, oponível ao Estado, que não se resume ao direito ao silencia.

Parece acertado referido entendimento, de acordo com as notas características dos direitos fundamentais. Nelas se dá ênfase à proteção do indivíduo contra excessos e abusos por parte do Estado. Em suma: é resguardada, nos direitos fundamentais, a dignidade humana, sendo que ganha relevo a esfera atinente às ingerências do Estado.

Nessa ótica, o princípio nemo tenetur se detegere, como direito fundamental, objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como contra métodos proibidos de interrogatório, sugestões e dissimulações. (2014, p. 54-55)

Ainda, referido princípio está intrinsicamente ligado a diversos outros princípios inseridos no direito brasileiro, conforme afirma QUEIJO (2014, p. 1), se relaciona com outros também já consagrados direitos, dentre eles o da intimidade, liberdade moral, dignidade e intangibilidade corporal.

O direito a não-autoincriminação possui, ainda, relevante valoração no que toca as provas que precisam ser produzidas com intervenção corporal no acusado, de modo que há possibilidade do mesmo negar-se a cooperar com a produção desta prova. O Estado, por sua natureza de órgão que detém maior controle sobre os meios de prova, ao menos em tese, não poderia compelir a parte ré em ações penais à produção de provas em seu próprio prejuízo.

A jurisprudência, por sua vez, vem aplicando com sabedoria o direto a não-autoincriminação. Desta forma, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, de maneira que, no caso concreto, concedeu liberdade a réu que teve sua prisão decretada no âmbito de processo penal pelo fato de ter se negado a responder questionamentos no interrogatório. Vejamos:

EMENTA: “HABEAS CORPUS” - DENEGAÇÃO DE MEDIDA LIMINAR - SÚMULA 691/STF - SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE AFASTA, NO CASO, A RESTRIÇÃO SUMULAR - RETARDAMENTO EXCESSIVO (UM ANO E 2 MESES) DO JULGAMENTO, PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DO MÉRITO DO “WRIT” LÁ IMPETRADO - PRISÃO CAUTELAR DECRETADA COM FUNDAMENTO NA GRAVIDADE OBJETIVA DO CRIME E NA RECUSA DA PACIENTE EM RESPONDER AO INTERROGATÓRIO JUDICIAL A QUE FOI SUBMETIDA - INCOMPATIBILIDADE DESSES FUNDAMENTOS COM OS CRITÉRIOS FIRMADOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL - DIREITO DO INDICIADO/RÉU AO SILÊNCIO - DIREITO, QUE TAMBÉM LHE ASSISTE, DE NÃO SER CONSTRANGIDO A PRODUZIR PROVAS CONTRA SI PRÓPRIO - DECISÃO QUE, AO DESRESPEITAR ESSA PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL, DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA DA ACUSADA - INADMISSIBILIDADE - NECESSIDADE DE RESPEITO E OBSERVÂNCIA, POR PARTE DE MAGISTRADOS, TRIBUNAIS E ÓRGÃOS DE PERSECUÇÃO PENAL, DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ASSEGURADOS A QUALQUER INVESTIGADO, INDICIADO OU RÉU - “HABEAS CORPUS” CONCEDIDO DE OFÍCIO. ABRANGÊNCIA DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW”, QUE COMPREENDE, DENTRE AS DIVERSAS PRERROGATIVAS DE ORDEM JURÍDICA QUE A COMPÕEM, O DIREITO CONTRA A AUTOINCRIMINAÇÃO. (...)

(Supremo Tribunal Federal. Acórdão lavrado no Habeas Corpus nº 99289. Paciente: Maria Aparecida Dambrós de Castilhos. Impetrante: Marcelo Mayora e outros. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, DF, Julgamento em 23 de junho de 2009. Publicação no Diário da Justiça em 04 de agosto de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(99289.NUME.+OU+99289.ACMS.)&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/hykq7nd>. Acesso em: 27 abr. 2017.)

Posto isso, o princípio do nemo tenetur se detegere possui imensurável validade no âmbito processo penal brasileiro, sendo garantia constitucional, indispensável para o respeito ao devido processo legal e demais garantias, inclusive a da presunção de inocência e da ampla defesa.

4.2 APLICAÇÃO AO DIREITO ADMINISTRATIVO

Em suma, no presente artigo, estamos diante de uma infração administrativa, unicamente por meio da negatória do condutor a submeter-se a teste ou prova que determine a alteração de sua capacidade psicomotora em razão da influência de álcool ou qualquer outra substância capaz de causar dependência física ou psíquica.

Desta feita, é necessário compreender se o mesmo princípio aplicado ao direito processual penal abrangerá o direito administrativo, garantindo ao possível infrator as mesmas garantias opostas ao acusado da prática de determinado delito. Assim, insurge na jurisprudência nacional diversas decisões favoráveis a aplicação do nemo tenetur se detegere no âmbito administrativo. O Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDORA PÚBLICA ESTADUAL. DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CITAÇÃO. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DAS ACUSAÇÕES FEITAS. NULIDADE. INTERROGATÓRIO DA INVESTIGADA. COMPROMISSO DE DIZER A VERDADE. PRERROGATIVA CONTRA AUTO-INCRIMINAÇÃO. ART. 5º, LXIII, DA CF/88. INFRINGÊNCIA. ANULAÇÃO DO PROCESSO QUE SE IMPÕE DESDE O ATO CITATÓRIO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. SEGURANÇA CONCEDIDA.

1. (...)

2. De outra parte, no caso em comento, a servidora foi interrogada por duas vezes durante o processo administrativo disciplinar, e, em ambas as oportunidades, ela se comprometeu "a dizer a verdade das perguntas formuladas".

3. Ao assim proceder, a comissão processante feriu de morte a regra do art. 5º, LXIII, da CF/88, que confere aos acusados o privilégio contra a auto-incriminação, bem como as garantias do devido processo legal e da ampla defesa. Com efeito, em vez de constranger a servidora a falar apenas a verdade, deveria ter-lhe avisado do direito de ficar em silêncio.

4. Os interrogatórios da servidora investigada, destarte, são nulos e, por isso, não poderiam embasar a aplicação da pena de demissão, pois deles não pode advir qualquer efeito. Como, na hipótese em comento, o relatório final da comissão processante que sugeriu a demissão e a manifestação da autoridade coatora que decidiu pela imposição dessa reprimenda se valeram das evidências contidas nos interrogatórios, restaram contaminados de nulidades, motivo pelo qual também não podem subsistir.

5. Recurso ordinário provido. Segurança concedida, em ordem a anular o processo administrativo disciplinar desde a citação.

(Superior Tribunal de Justiça. Acórdão proferido no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n.º 14.901/TO. Relatora: Ministra Maria Thereza De Assis Moura. Brasília, DF, julgado em 21 de outubro de 2008. Diário da Justiça Eletrônico datado de 10 novembro de 2008.)

Por sua vez, a doutrina também se manifesta favoravelmente à aplicação do nemo tenetur se detegere no âmbito dos inquéritos policiais, os quais também possuem um caráter administrativo, não sendo encaixados como procedimentos judiciais. Nesta lógica, LOPES JUNIOR e GLOECKNER acervam:

Submeter o sujeito passivo a uma intervenção corporal sem seu consentimento é o mesmo que autorizar a tortura para obter a confissão no interrogatório quando o imputado cala, ou seja, um inequívoco retrocesso. Junto ao direito de defesa, existem outros direitos fundamentais que dispõem sobre a tutela da integridade física e que impedem as intervenções corporais sem o consentimento do imputado. (2014, s.p.)

Doutra banda, como demonstrado anteriormente, na exposição de motivos da emenda que deu origem ao artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro, o autor destacou que “não existe previsão de qualquer sanção penal ao condutor que se recusar a realizar os testes e exames, mas tão somente a sanção administrativa”.

Nessa espreita, o legislador entende, a princípio, que a garantia a não-autoincriminação pode ser ignorada quando se trata de procedimento administrativo, pois, ao colocar em prática referido artigo, o motorista que negar-se à realização do teste do etilômetro, por exemplo, sofrerá as sanções administrativas ali aplicadas.

A recusa à realização do referido teste, outrossim, pode estar abrangida pelo nemo tenetur se detegere, eis que, caso o teste constate que o condutor está com mais de 0,1% de álcool no sangue, pode vir a sofrer sanções administrativas. Ademais, caso o condutor possua 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou 0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar, poderão ser-lhe aplicadas as penas do artigo 306 do CTB.


5 ENTEDIMENTOS INERENTES À CONSTISTUCIONALIDADE OU NÃO DO ARTIGO 165-A DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

As mudanças trazidas pela Lei n. 13.281/2016 causaram grande repercussão no mundo jurídico, especialmente no tocante à questionável constitucionalidade do novel artigo 165-A inserido no Código de Trânsito Brasileiro. Nesta espreita, diversos autores manifestaram-se pela inconstitucionalidade do referido artigo.

Por este ângulo optou BARBOZA que assim se manifestou:

Em que pese os motivos ensejadores da referida legislação, especialmente a fim de coibir a falta de provas materiais acerca da influência de álcool ou outras substâncias psicoativas, temos que padece de constitucionalidade.

Isto se deve ao fato de que, conforme determina o artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal de 1988, não há, no ordenamento pátrio, possibilidade jurídica da autoincriminação, bem como reproduzido no artigo 186 do Código de Processo Penal. (2016, s.p.)

E nesse mesmo sentido manifestou-se GOMES, assim delineando:

Dirigir embriagado é uma atitude gravíssima de alguns motoristas e deve ser condenada e combatida ao extremo. A imprudência, nesse caso, pode levar a acidentes violentos e à perda de vidas humanas, muitas vezes inocentes. Mas o legislador há que estar atento ao que propõe, porque, acima de qualquer lei, existe a lei maior, a Constituição, e ela deve sempre ser respeitada e nenhuma outra lei pode atentar contra ela.

O que se conclui, nesse caso específico, que o novo artigo 165-A é inconstitucional, pois atenta contra um princípio basilar inscrito no artigo 5º, inciso LXIII de nossa Constituição. Atenta também contra um tratado internacional (Pacto de São José da Costa Rica) — que nossa Carta Magna entende como uma emenda constituição — e contra o artigo 186 do Código de Processo Penal, já que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. (2016, s.p.)

Notadamente, é notório o fato de que a tese basilar acerca da inconstitucionalidade do referido artigo é fulcrada na garantia constitucional da não-autoincriminação. Da mesma maneira, é perfeitamente questionável a constitucionalidade do artigo 165-A, pois pode ferir a garantia da não-autoincriminação.

É fato que mencionado artigo não dispõe explicitamente acerca da obrigatoriedade do condutor em realizar o teste do bafômetro. Entretanto, ao prever graves penalidades àquele que rejeita a realização do teste, deixa ao condutor uma obrigação tácita, de maneira a persuadir o motorista à realização do teste. E é assim que violaria, em tese, o direito a não-autoincriminação.

Em que pese recente, o artigo 165-A já tem sido objeto de disputa nas cortes brasileiras. Recentes, os julgamentos ainda não são uniformes, pois existem dois entendimentos sobre a constitucionalidade do referido artigo. Acerca do entendimento que é cabível a aplicação do artigo 165-A do CTB, assim se manifestou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

MANDADO DE SEGURANÇA – LIMINAR – Pretensão ao sobrestamento de auto de infração – Autuação por recusa a se submeter ao exame de etilômetro – Infração prevista no art. 165-A do CTB – Ausentes os requisitos do art. 7º, III, da Lei nº 12.016/2009 – Presunção de legitimidade dos atos administrativos – Inexistência de vícios ou de ilegalidade ou ainda de arbitrariedade na decisão agravada – Recurso não provido.

(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Acórdão proferido no Agravo de Instrumento n.º 2038754-84.2017.8.26.0000. Relator: Desembargador Reinaldo Miluzzi. São Paulo, SP, julgado em 10 de abril de 2017. Publicado no Diário da Justiça Eletrônico de São Paulo em 26 abr. 2017. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=10375014&cdForo=0>. Acesso em: 21 ago. 2017)

É notório, pois, que no caso em baila o tribunal paulista negou liminar ao cidadão que invocou inconstitucionalidade do artigo 165-A do CTB. Em seu voto, o relator Desembargado Reinaldo Miluzzi invocou a presunção de legitimidade dos atos administrativos, bem como aliado ao fato de que reconhecer em sede de liminar em Mandado de Segurança (procedimento adotado para questionar a aplicação do art. 165-A no caso em questão) acarretaria prévio acolhimento dos fatos narrados, de modo que prejudicaria o julgamento da causa.

Em outro viés, durante decisão monocrática, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), decidiu contrariamente ao decidido pelo tribunal paulista. Nesse aspecto, a lide julgada era parecida. O motorista negou-se a realizar o teste do etilômetro em abordagem perante a Polícia Rodoviária Federal, sendo que lhe foram aplicadas as sanções previstas no artigo 165-A do CTB. A decisão judicial, entretanto, optou por realizar controle de constitucionalidade em face do artigo questionado, tendo assim declarado:

No entanto, entendo que, em que pese haver a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos, esta não inibe o juízo de constitucionalidade a ser realizado sobre a norma invocada como fundamento da lavratura do auto de infração e da penalidade imposta.   Imputar ao condutor uma infração de trânsito cuja tipificação consiste no exercício de um direito, além de abusivo, é inconstitucional, pois pune o cidadão pelo simples exercício daquilo que lhe é assegurado pelo ordenamento jurídico, qual seja, o de não produzir prova contra si mesmo ("nemo tenetur se detegere"), previsto no art. 5º, inciso LXIII, da CF/88, cuja exegese deve dar-se de forma sistemática e extensiva. Tal direito tem seu núcleo essencial fundado em uma inatividade, um non facere, constitucionalmente tutelado, conforme já decidido pelo STF (...).  

Em continuidade, o ilustre julgador também abarcou a aplicação de diversos direitos e princípios, dentro os quais, o direito a não autoincriminação. Vejamos:

Ademais, o direito administrativo também é expressamente abarcado pelo Princípio do Devido Processo Legal (art. 5º, inciso LV da CF), comando constitucional do qual derivam a Presunção de Inocência (art. 5º, inciso LVII) e o Direito a Não Auto-incriminação (art. 5º, inciso LXIII).    Com efeito, o art. 165-A do CTB possui as mesmas consequências sancionatórias do art. 165, que penaliza o condutor que dirigir sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que cause dependência e, desse modo, inviabiliza o direito do condutor de não produzir prova contra si.    Cabe ressaltar, neste ponto, que impor ao cidadão que se submeta ao teste do etilômetro (que é a real finalidade que decorre dessa nova norma oriunda das inovações decorrentes da Lei nº 13.281/2016), exige dele uma conduta ativa na produção da prova, qual seja, e de soprar o equipamento, uma conduta equiparada a uma confissão ou mesmo a uma intervenção médica, que dependem única e exclusivamente da ação do sujeito, razão pela qual essa prova não pode ser imposta, mas sim facultada.  (...).

Em suma, o eminente julgador da causa concluiu que o artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro é um atentado ao direito a não autoincriminação, de maneira que deve ser afastada a sua aplicação. Na decisão, assim consignou:

Admitir a constitucionalidade dessa norma, significaria, legitimar o constrangimento do condutor e inibir o exercício de um direito, transferindo o ônus da prova acerca da infração e sua autoria, ao suposto infrator, quando esse ônus, conforme deveras já ressaltado ao longo desta decisão, inclusive pelo que dispõe o art. 277, §2º, do próprio CTB, é do Estado.   (...). Nesse contexto, é de se concluir - em juízo de cognição sumária - que inexistem elementos probatórios idôneos a infirmar a presunção de legitimidade do ato administrativo impugnado, pois, em abordagem policial, o autor recusou-se a produzir a prova que poderia beneficiá-lo e tal conduta é tipificada como infração administrativa (e não penal). Ante o exposto, defiro o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao agravo de instrumento.   Intimem-se, sendo o agravado para contrarrazões. ISSO POSTO, defiro o pedido de tutela de urgência para o fim de suspender os efeitos decorrentes do Auto de Infração n. T098725987

(Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Decisão monocrática proferida no Agravo de Instrumento n.º 5028759-41.2017.404.0000. Agravado: Luis Henrique De Almeida Ferrari. Agravante: União - Advocacia Geral Da União. Relatora: Vivian Josete Pantaleão Caminha. Porto Alegre, RS, julgado em 23 de junho de 2017. Porto Alegre/RS. Disponível em: <https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/citacao.php?doc=TRF413081316>. Acesso em: 22 ago. 2017.)

Desta forma, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região valeu-se do controle difuso de constitucionalidade, visando afastar a aplicação do artigo 165-A do CTB, afirmando que o mesmo vai contra o direito a não autoincriminação. Mais curioso, é que o mesmo TRF-4 julgou outro caso, porém de maneira completamente diferente, não analisando a constitucionalidade do artigo 165-A do CTB, mas valendo-se de argumentos procedimentais para a não análise do pedido. Nesse sentido é a decisão prolatada em 24/02/2017:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. AUTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. EXAME DO ETILÔMETRO. - Os elementos trazidos aos autos até o presente momento não são suficientes à concessão de medida antecipatória, não sendo possível aferir, em sede de cognição sumária, qualquer ilegalidade no procedimento administrativo instaurado contra o autor, ou mesmo a inexistência da infração questionada. - Deve prevalecer, assim, o auto de infração lavrado pela autoridade policial, porquanto constitui ato administrativo dotado de imperatividade e de presunção relativa de legitimidade e de veracidade, admitindo prova em contrário, que, por ora, não foi produzida. - Cumpre destacar que a recusa em se submeter ao exame do etilômetro (teste do bafômetro) caracterizaria, em tese, infração administrativa autônoma, tendo o agravante admitido que deixou de realizar o referido procedimento por receio da medicação que utiliza.

(Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Acórdão no Processo n.º 5005705-46.2017.404.0000. Agravante: Moacir Vitorio Mafissoni. Agravado: União - Advocacia Geral Da União. Relator: Ricardo Teixeira Do Valle Pereira. Porto Alegre, RS, julgado em 16 de maio de 2017. Disponível em: <https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/imprimir.php?selecionados='TRF412920484'&pp;=&cp;=>. Acesso em: 22 ago. 2017)

em razão de todo o exposto é evidente a confusão causada pela aplicação das sanções previstas no artigo 165-A, onde em nossos tribunais, alguns juízes já optaram pela aplicação do controle concentrado de constitucionalidade, argumentando que o artigo é conflitante com o direito a não-autoincriminação e suspendendo sua aplicação, enquanto outros optam por não analisar a tese em sede de pedido de antecipação de tutela, pois é de extrema complexidade e poderia causar análise antecipada da lide.


CONCLUSÃO

Em razão dos argumentos expostos, concluímos que o recém-criado artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro padece de inconstitucionalidade, pois colide diretamente com o direito a não autoincriminação, previsto constitucionalmente e também em tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário.

Nesse sentido, o artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal, por deter maior força normativa, deve liquidar o artigo 165-A do CTB, pois não pode o legislador, em hipótese alguma, obrigar o cidadão a produzir provas incriminadoras contra si mesmo. Em que pese não seja atribuído expressamente ao condutor o dever de realizar os testes previstos no artigo 277 do CTB, aplicar penalidades administrativas ao condutor que não o faz é exigir-lhe tacitamente que o faça.

Assim, sendo vedada constitucionalmente a obrigação de produzir provas contra si mesmo, não pode o Estado aplicar quaisquer sanções ao condutor que se negar a realizar o teste do etilômetro ou qualquer outro, pois, quando o cidadão se nega, está usufruindo de um direito constitucionalmente previsto, não podendo ser penalizado por isso. A penalização administrativa desta conduta acarreta grave violação aos direitos fundamentais.

O erro legislativo deve ser suprido mediante nova alteração legislativa, ou, em caso de omissão, com a competente ação perante o Supremo Tribunal Federal. Como medida emergencial, devem os juízes adotar a aplicação do controle difuso de constitucionalidade, afastando a aplicação do artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro, pois sofre de patente inconstitucionalidade.


REFERÊNCIAS

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Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - 2ª C.Criminal – Acórdão proferido na Apelação Crime n.º 1638050-4 - Campo Mourão - Rel.: José Mauricio Pinto de Almeida - Unânime – Julgado em 22.06.2017

Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - 2ª C.Criminal – Acórdão proferido na Apelação Crime n.º 1603766-8 - Curitiba -  Rel.: Laertes Ferreira Gomes - Unânime -  Julgado em 01.06.2017.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Alaor Carlos de Oliveira; SICBNEIHLER, Edinéia. A (in)constitucionalidade do art. 165-A do Código de Trânsito Brasileiro em face do direito a não-autoincriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5657, 27 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67769. Acesso em: 19 abr. 2024.