Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/68128
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O princípio da insignificância penal nos crimes contra a administração pública – questões controvertidas

O princípio da insignificância penal nos crimes contra a administração pública – questões controvertidas

Publicado em . Elaborado em .

Analisa-se a Súmula 599 do STJ, que nega a aplicação do princípio da insignificância penal nos crimes contra a administração pública.

A República Federativa do Brasil, por expressa previsão constitucional (art. 1º da CF/88), se constituiu como um Estado Democrático de Direito e, por tal razão, tem como fundamento a busca constante de um direito penal mínimo, fragmentário e subsidiário, onde a sua atuação pode se dar tão-somente naquelas situações em que outros ramos do direito não forem aptos a propiciar a pacificação social.

Na absoluta contramão desta orientação, o Superior Tribunal de Justiça editou na data de 20 de novembro de 2017 a Súmula 599 nos seguintes termos:

 “O princípio da insignificância penal é inaplicável aos crimes contra a Administração Pública”

O citado enunciado consolidou o entendimento naquela Superior Corte de que condutas formalmente típicas que foram praticadas contra a administração pública jamais deverão ser consideradas insignificantes, ainda que desprovidas de ofensividade, periculosidade social e reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, bem como o irrisório dano econômico suportado pelo Estado.

Pois bem, os citados crimes contra a Administração Pública são aqueles previstos no Título XI do Código Penal, os quais determinam punição a funcionários públicos e particulares que vierem a praticar condutas que afetem o regular funcionamento da administração pública em geral, incluindo a administração estrangeira, a administração da Justiça e ainda, das finanças públicas.

Neste rol de crimes, citamos como exemplo o peculato (artigo 312 e seguintes), o emprego irregular de verbas ou rendas públicas (artigo 315), a concussão (artigo 316), a corrupção passiva (artigo 317), o contrabando ou descaminho (artigo 334), o desacato (artigo 331), o favorecimento real e pessoal (artigos 349 e 349) entre outros.

 Sendo assim, nos termos do enunciado da Súmula 599, não deverão escapar de punição penal as pessoas envolvidas desde o emprego irregular de milhões de reais do dinheiro público até a irrisória subtração de um único “clips” de repartição pública, pois, no entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça,

"não se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, uma vez que a norma visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a moral administrativa" [1]

Por amor aos argumentos, cumpre aqui esclarecer o que vem a ser a moralidade administrativa e para tal, citamos a passagem clássica de Hely Lopes Meirelles ao tratar do princípio em comento citando a doutrina de Hauriou[2]:

“o agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o Honesto do Desonesto. E ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético da sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo do injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.”

Com o devido respeito àqueles que advogam a necessidade de proteção penal da citada moralidade administrativa, parece-nos que a Súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça é teratológica, causa insegurança jurídica, além de desrespeitar a verdadeira missão do Direito Penal.    

Primeiro, muito embora tratar-se de criação doutrinária, o Supremo Tribunal Federal reconhece a aplicação do princípio da INSIGNIFICÂNCIA PENAL para afastar o caráter criminoso da conduta desde que evidenciada: a) a mínima ofensividade da conduta; b) a ausência da periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica.[3]

Além de reconhecer a existência do principio da insignificância penal, o Supremo Tribunal Federal também o vem aplicando nos casos de crimes praticados contra a Administração Pública, onde já teria decidido que na apropriação por parte de funcionário público de um “farol de milha” que guarnecia motocicleta apreendida (peculato-furto), cujo valor era estimado em R$ 13,00 (treze reais), a absolvição do acusado naquele processo foi cabível em razão da insignificância penal, pois levou-se em consideração a ausência de periculosidade do agente e a irrelevância econômica envolvida na questão.[4]

Por consequência desta divergência de interpretações nas mais altas Cortes do Brasil, parece-nos que o PRINCÍPIO DA LEGALIDADE acabou sendo relativizado. Neste sentir, não é forçoso dizer que eventual conduta praticada contra o interesse da administração pública – no exemplo do furto de objeto no valor de R$ 13,00 – poderá ser considerada crime ou não a depender do Tribunal que vier a julgá-la.

Aliás, ao se falar em agressão ao PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, se torna obrigatória a citação do Ministro Rogério Schietti Cruz no julgamento do Recurso Especial 1.112.748, quando ali se discutia o valor de referência para aplicação do princípio da insignificância penal no crime de descaminho:

“Soa imponderável, contrária à razão e avessa ao senso comum uma tese que, apoiada em mera opção de política administrativo-fiscal, movida por interesses estatais conectados à conveniência, à economicidade e à eficiência administrativas, acaba por subordinar o exercício da jurisdição penal à iniciativa de uma autoridade fazendária”[5]

Segundo, a Súmula 599 carece de lógica porque o Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência pacífica admitindo a aplicação do princípio da insignificância penal no crime de descaminho (artigo 334 do Código Penal) qual seja, espécie de crime contra a Administração Pública onde o agente ilude, sonega, total ou parcialmente, tributo aduaneiro devido pela importação, exportação ou comercialização de mercadorias.

Nestas circunstâncias, verifica-se que recentemente (28/02/2018) a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça unificou o seu entendimento à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, por exceção, manteve a desconsideração do teor da Súmula 599 no crime aduaneiro ao revisar o Tema 157, o qual passou a ter a seguinte redação:

“Incide o princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00, a teor do disposto no artigo 20 da Lei 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda.”

 Extrai-se da Jurisprudência que o argumento utilizado na aplicação do princípio da insignificância penal no crime de descaminho é o seguinte: se administrativamente a Procuradoria da Fazenda Nacional não tem interesse nas execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União no valor de até R$ 20.000,00, não cabe ao Direito Penal, como ultima ratio, ser chamado a resolver a pretensão arrecadatória do Estado.[6]

 Logo, parece-nos totalmente teratológica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça porque, em sede de crimes contra a Administração Pública e ao teor da Súmula 599, não vem autorizando a desconsideração da punição penal de funcionário público envolvido na subtração de “farol de milha” avaliado em R$ 13,00 (treze reais), mas, ao mesmo tempo, é perniciosa em tolerar a impunidade do sonegador de tributo no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

A aberração acima apontada confere extrema gravidade no caso concreto em razão da nítida violação do PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, porque aquele funcionário público que subtraiu o “farol de milha” avaliado em R$ 13,00 (treze reais) estará sujeito a uma pena privativa de liberdade a qual varia de 02 (dois) a 12 (doze) anos de reclusão, enquanto o sonegador de tributo quantificado em R$ 20.000,00 (vinte mil reais) sequer responderá ao processo.

Destaque-se que o Superior Tribunal de Justiça já foi chamado a se manifestar a respeito de tamanha incongruência, onde, de maneira pouco convincente (com o devido respeito!), teria ficado assentado que

“(...) a divergência apresentada pelo recorrente não possui premissas fáticas equivalentes, pois o paradigma trazido cuida de situação ímpar, referente aos crimes de descaminho. Com efeito, a insignificância nos crimes de descaminho tem colorido próprio, diante das disposições trazidas na Lei n. 10.522/2002, o que não ocorre no caso dos autos que trata do crime de peculato. [7]

Enfim, acreditamos que o Superior Tribunal de Justiça ao tratar de condutas típicas praticadas contra a administração pública, sendo aquelas valoradas no Título XI do Código Penal, tem suscitado nítida situação de violação do princípio da legalidade, bem como daqueles limitadores do “ius puniendi”, eis que vem utilizando o Direito Penal de maneira ilegítima, injustificada e desproporcional para proteger bem jurídico que, no caso concreto, muitas vezes sequer foi exposto a qualquer ameaça de lesão, desconsiderando, ainda, que outros ramos do direito poderiam, por si só, solucionar a questão com maior adequação e eficiência.    


Notas

[1] STJ. AgRg no REsp n. 1.275.835⁄SC, Relator o Ministro Adilson Vieira Macabu, Desembargador convocado do TJ⁄RJ, DJe 1⁄2⁄2012.

[2] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª ed. São Paulo: Malheiros.1999.p.83.

[3] STF. Habeas Corpus. 84.412/SP. Ministro Celso de Mello.

[4] STF. Habeas Corpus 112388/SP .Relator Ministro Ricardo Lewandowski.

[5] STJ. Recurso Especial 1.112.748 TO. Min. FELIX FISCHER - QUINTA TURMA. Publicação 13/10/2009.

[6] STJ. Recurso Especial 1737343. Min. Ministro NEFI CORDEIRO. Julgamento 28/06/2018.

[7] STJ - AgRg no REsp: 1346879 SC 2012/0208646-5, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHES, Henrique Gonçalves. O princípio da insignificância penal nos crimes contra a administração pública – questões controvertidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5516, 8 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68128. Acesso em: 18 abr. 2024.