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Lei nº 10.409/2002: competência para o processo e julgamento do crime de tráfico internacional de entorpecentes.

Art. 27 da Lei nº 6.368/76

Lei nº 10.409/2002: competência para o processo e julgamento do crime de tráfico internacional de entorpecentes. Art. 27 da Lei nº 6.368/76

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SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Competência. 2.1. Delegação constitucional de competência (art. 109, 3º, CF). 2.2. Delegação legal de competência (art. 27 da lei 6.368/76). 2.3 Delegação legal de competência (art. 56 do projeto de lei n. 1.873/1991 - n. 105/96 no Senado Federal, que originou a lei n. 10.409/2002). 3. Processo e procedimento. 4. Revogação. 5. Revogação do capítulo de procedimento da lei n. 6.368/76. 6. Veto presidencial. 7. O veto do artigo 56 do projeto de lei n. 1.873/1991. 7.1. O Capítulo IV da Lei n. 6.368/76 foi integralmente derrogado? 7.2. Razões de veto ao capítulo III do projeto de lei n. 1.873/1991. 7.3. Razões de veto ao art. 56 do projeto de lei n. 1.873/1991. 8. Vigência do artigo 27 da lei n. 6.368/76. 9. Conclusão. 10. Referências bibliográficas

RESUMO: Apresenta debate originado pela edição da Lei n. 10.409/02, que derrogou dispositivos da Lei n. 6.368/76, ambas cuidando, em suma, da prevenção e da repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes. Transita suavemente por vários institutos jurídicos e seus conceitos. Discute a vigência ou não do artigo 27 da Lei n. 6.368/76, que delega competência à Justiça Estadual para processamento do crime de tráfico internacional de drogas, quando inexistente Vara da Justiça Federal no Município. Conclui, com força na doutrina e na jurisprudência, que referido artigo 27 mantém-se em vigor, com plena aplicabilidade.

PALAVRAS-CHAVE: Competência - Delegação - Artigo 27 - Lei n. 6.368/76 - Lei n. 10.409/02 - Tráfico internacional - Entorpecentes - Justiça Federal - Justiça Estadual


1. INTRODUÇÃO

Em 11 de janeiro de 2002, foi promulgada a Lei Federal n. 10.409 (originada do Projeto de Lei n. 1.873/1991 - n. 105/96 no Senado Federal), dispondo, em resumo, sobre a repressão ao uso e ao tráfico de entorpecentes. A intenção legislativa era ab-rogar a Lei n. 6.368/76, de igual conteúdo, mas os vetos presidenciais a determinados artigos deram outros rumos à aplicação do novo diploma legal.

Nessa seara, deve ser verificada a permanência ou não da competência prevista no artigo 27 da Lei n. 6.368/76, para processar e julgar os acusados de crime de tráfico internacional de estupefacientes - recepcionado pela Constituição Federal de 1988 (CF) e consagrado pela Súmula 522 do Supremo Tribunal Federal -, diante do veto ao artigo 56 do projeto de lei que deu origem à Lei n. 10.409.

É esse o tema que se propõe, não exaustivamente, colocando-o à discussão entre os estudiosos e aplicadores do Direito. O estudo transitará por conceitos de competência, de processo, de procedimento, de veto e pela análise dos artigos em comento, constituindo interpretação que possibilitará sua harmônica aplicação.


2. COMPETÊNCIA

Competência, na doutrina tradicional, é o critério que define os limites jurisdicionais de cada órgão do Poder Judiciário. Nas palavras de THEODORO JÚNIOR (1999, p. 154), citando JOSÉ FREDERICO MARQUES, hoje em dia não mais se confunde competência e jurisdição, deixando claro que aquela é "apenas a medida de jurisdição, isto é, a determinação da esfera de atribuições dos órgãos encarregados da função jurisdicional".

Nas palavras do próprio FREDERICO MARQUES (1998, p. 220), "o poder de julgar, ou jurisdição, é distribuído entre os vários órgãos do Poder Judiciário, por meio da competência, que é a medida e o limite da jurisdição".

ARAÚJO CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO (1997, p. 230) lecionam no mesmo sentido: "Chama-se competência essa quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos (Liebman). Nessa mesma ordem de idéias é clássica a conceituação da competência como ''medida de jurisdição'' (cada órgão só exerce a jurisdição dentro da medida que lhe fixam as regras sobre competência)".

Corroborando o tema, FERNANDO CAPEZ (2001, p. 183), após enunciar entendimentos de LUCCHINI, ALTAVILLA e ESPÍNOLA FILHO, enfatiza que "competência é a delimitação do poder jurisdicional (fixa os limites dos quais o juiz pode prestar jurisdição). Aponta quais os casos que podem ser julgados pelo Poder Judiciário. É, portanto, uma verdadeira medida de extensão do poder de julgar".

A competência revela os limites de atuação do Juízo, em razão da matéria, do território, da função, entre outras, sendo determinada, primeiramente, pela Constituição Federal e derivadamente pelas Constituições Estaduais e pela legislação infraconstitucional.

2.1. DELEGAÇÃO CONSTITUCIONAL DE COMPETÊNCIA (ART. 109, 3º, CF)

A competência é distribuída por alguns critérios. FREDERICO MARQUES (1998, p. 235) explica (esclarecendo, quando o professor se dirige aos Tribunais Regionais Federais quis referir-se à competência da Justiça Federal em 1ª instância):

"A regra constitucional qualifica os crimes da competência dos Tribunais Regionais Federais não em função do interesse penalmente tutelado, e sim do titular desse interesse. Isso significa que o sujeito passivo do delito é que dá aos crimes em apreço o traço específico da qualificação constitucional, de forma que se fixe a competência funcional do órgão judiciário sempre que a infração penal atinja ''bens, serviços ou interesses da União''. Não é o objeto material do crime, mas o sujeito passivo da infração é que dá ao fato delituoso os traços característicos que o enquadram nas atribuições jurisdicionais dos Tribunais Regionais Federais".

A Constituição e as leis por vezes delegam competência a outros órgãos diferentes dos originários, ou seja, transferem de um juízo para outro, sempre que os atos processuais não puderem ou não tiverem de se realizar no foro originalmente competente (CAPEZ, 2001, p. 198).

O § 3º do artigo 109 complementa o seu caput - competência dos juízes federais -, ao dispor in verbis:

"Art. 109 (...) § 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual."

A própria Constituição prevê situações suscetíveis a delegação de competência, da Justiça Federal para a Justiça Estadual, tratando-se de regra especial em relação ao caput. Cuidando-se de demanda contra a Previdência Social Federal, a competência estadual está expressa. A lei infraconstitucional, contudo, poderá delegar outras competências à justiça local, nos municípios que não forem sede de Justiça Federal.

Desse modo, essa exceção constitucional do § 3º prevalece sobre o art. 109, caput, inciso V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional -, caso do tráfico internacional de entorpecentes, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente, tendo em vista o critério da especialidade, desde que haja lei regulando o assunto.

2.2 DELEGAÇÃO LEGAL DE COMPETÊNCIA (ART. 27 da lei 6.368/76)

Nesse contexto, o artigo 27 da Lei 6.368/76 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, dispondo:

"Art. 27 O processo e o julgamento do tráfico com o exterior caberão à justiça estadual com interveniência do Ministério Público respetivo, se o lugar em que vier a ser praticado, for município que não seja sede de vara da Justiça Federal, com recurso para o Tribunal Federal de Recursos".

Vale constar que o Tribunal Federal de Recursos foi extinto e que os recursos dessas causas deverão ser encaminhadas ao Tribunal Regional Federal que abrange o referido município, a teor do § 4º do art. 109 da CF.

Explica-se: a Constituição Federal autoriza que a lei estipule casos em que os crimes de competência da Justiça Federal sejam julgados pela Justiça Estadual, quando no forum comissi delicti não tiver sede sua, para facilitar sua repressão e julgamento. Ensina MIRABETE (1998, p. 173) que "como na Justiça Federal não há Juízo em todas as comarcas ou distritos, mas apenas nas capitais e grandes cidades, a competência pelo lugar da infração é resolvida nas leis de organização judiciária." É o que ocorre com tráfico transnacional de entorpecente, que o Brasil compromete-se, por tratados e convenções internacionais, a reprimir, atribuindo à Justiça Estadual do local do fato delituoso a competência para essa apreciação jurisdicional.

Nesse sentido, já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal (STF) em inúmeros julgados, consagrando o enunciado de Súmula n. 522: "Salvo ocorrência de tráfico com o Exterior, quando, então, a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e o julgamento dos crimes relativos a entorpecentes."

Nessa esteira, novamente sobrevem a aula de MIRABETE (1998, p. 197):

"Por força da Constituição Federal, compete ainda à Justiça Federal o processo e julgamento dos ''crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente'' (art. 109, V). Umas das hipóteses mais comuns nessa área de crimes à distância é a que refere às infrações de tráfico de entorpecentes e substâncias que causam dependência física ou psíquica, definidas na Lei Antitóxicos (lei n. 6.368, de 21-10-76). A respeito do assunto o enunciado da Súmula 522 do STF: ''Salvo ocorrência de tráfico para o Exterior, quando, então, a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e o julgamento dos crimes relativos a entorpecentes.'' Dispunha a Súmula 54 do TFR: ''Compete à Justiça Estadual de primeira instância processar e julgar os crimes de tráfico internacional de entorpecentes, quando praticado o delito em comarca que não seja de Vara do Juízo Federal.''" (Obs.: ressalte-se que o texto original da Súmula 522 menciona "tráfico com o Exterior" e não "tráfico para o Exterior".

Para afirmar a vigência da Súmula n. 522 do STF, basta compará-la com o Enunciado n. 183 do Superior Tribunal de Justiça, sobre o mesmo tema - competência delegada -, que foi cancelado pela sua Primeira Seção, em julgamento dos Embargos de Declaração no CC n. 27.676-BA, na sessão de 08.11.2000, e assim dizia: "Compete ao juiz estadual, nas comarcas que não sejam sede de vara da Justiça Federal, processar e julgar ação civil pública, ainda que a União figure no processo."

Atesta-se, portanto, que a delegação de competência à Justiça Estadual, prevista no art. 27 da Lei n. 6.368/76, é constitucional e válida.

2.3 DELEGAÇÃO LEGAL DE COMPETÊNCIA (ART. 56 DO PROJETO DE LEI N. 1.873/1991 - N. 105/96 NO SENADO FEDERAL, QUE ORIGINOU A LEI N. 10.409/2002)

O artigo 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991 - n. 105/96 no Senado Federal, que originou a Lei n. 10.409/2002, aprovava:

"Art. 56. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17, 18 e 19, se caracterizado ilícito transnacional, caberão à Justiça Federal.

''Parágrafo único. Se o lugar em que tiverem sido praticados for Município que não seja sede de vara da Justiça federal, o processo e julgamento referidos no caput caberão à Justiça Estadual, com interveniência do Ministério Público respectivo, com recurso para o Tribunal Regional Federal da circunscrição."

Assim, o projeto da nova lei antitóxicos previa a delegação de competência para a Justiça Estadual, desde que inexistisse no Município do lugar do delito sede de Justiça Federal, vale dizer, uma Vara Federal, reproduzindo o teor do artigo 27 da Lei n. 6.368/76, devidamente autorizada pela Constituição Federal (art. 109, § 3º, CF).

Logo, a intenção de agilizar o processamento de tráfico internacional foi mantida no projeto que daria lugar à Lei n. 10.409/2002.

Diria uma corrente, com louvável fundamento, que tal delegação não tem mais força em nosso ordenamento, eis que vetado pelo Presidente da República, aquiescendo sugestão do Ministério da Justiça, cujas razões encontram-se na Mensagem n. 25, de 11 de janeiro de 2002, enviada ao Presidente do Senado Federal (2005, <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/Mensagem_Veto/2002/Mv025-02.htm>). Assim, a vontade do artigo 56 do projeto estaria fulminada pela rejeição presidencial.

Cabe, porém, fazer um estudo mais aprofundado desse veto, a fim de se levantar a melhor exegese acerca do tema. Nesse caminho, seguem os capítulos seguintes, que servirão de orientação.


3. PROCESSO E PROCEDIMENTO

Para se chegar ao cerne da discussão proposta, faz-se necessário amealhar conceitos acerca de procedimento e, conseqüentemente, de processo.

O Prof. THEODORO JÚNIOR (1999, p. 45) lembra que o processo não é o único método para solucionar conflitos, "visto que, em determinados casos e circunstâncias, permite, a ordem jurídica, a auto-composição (transação entre as próprias partes) e a autotutela (legítima defesa ou desforço imediato)."

O processo, então, é um sistema que fixa a relação entre as partes e o Estado-Juiz, para se alcançar a solução de uma lide. Para CAPEZ (2001, p. 13), "o processo é o meio pelo qual o Estado procede à composição da lide, aplicando o direito ao caso concreto e dirimindo os conflitos de interesse."

Sabendo-se que o processo é a relação jurídica, cabe distinguir o que é procedimento ou rito. MIRABETE (1998, p. 475) comenta que processo, em seu sentido estrito, distingue-se de "''procedimento'', ou ''rito processual'', que é a sucessão, o ordenamento, a concatenação dos atos processuais do processo (interrogatório, ouvida de testemunhas, perícias, etc.)". Diz, ainda que o procedimento é um elemento do processo, visando ao provimento jurisdicional, através de uma sentença de mérito.

CAPEZ (2001, p. 508) invoca também conceitos mais célebres para esse distinção:

"Na feliz lembrança de Frederico Marques, ''... o processo é a soma e conjunto dos atos processuais interligados pelos vínculos da relação jurídico-processual, o procedimento consiste na ordem, forma e sucessão desses atos, conforme expõe Carnelutii (Tratado de direito processual penal, Saraiva, 1980, p. 195). Ou, como mais sucintamente lecionou João Mendes: processo é o movimento em sua forma intrínseca, e procedimento o é em sua forma extrínseca'' (apud Magalhães Noronha, Curso de direito processual penal, cit. p. 231)".

Conforme GRINOVER, SCARANCE FERNANDES e GOMES FILHO (2001, p. 249), são elementos fundamentais do procedimento: a idéia de que todos os atos contribuem substancialmente para o ato final (sentença) e a coordenação dos atos vinculados entre si.

Por seu turno, ARAÚJO CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO (1997, p. 279)aduzem que "a noção de procedimento é puramente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem. Conclui-se, portanto, que o procedimento (aspecto formal do processo) é o meio pelo qual a lei estampa seus atos e fórmulas da ordem legal do processo."

Enfim, processo é a relação estatal desenvolvida interpartes sob visão do Estado, enquanto que procedimento, ou rito, é o seu modo de desenvolver-se, de acordo com as exigências de cada caso, como THEODORO JÚNIOR (1999, p. 45) cita ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS (Estudos de Direito Processual Civil. Ed. 1975. p. 5).


4. REVOGAÇÃO

Para MARIA HELENA DINIZ (1989, p. 63/64), a norma de direito tem vigência para o futuro, durando até que seja modificada ou revogada por outra, confirmando o princípio da continuidade: não se destinando à vigência temporária, a norma estará em vigor enquanto não surgir outra que a altere ou revogue (Lei de Introdução ao Código Civil - LICC, art. 2º).

A revogação pode ser de duas espécies: a ab-rogação, que é a extinção total da norma anterior e a derrogação, que torna sem efeito uma parte da norma.

Continua CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2002, p. 19):

"A revogação pode ser expressa ou tácita. Expressa, quando a lei nova declara que a lei anterior, ou parte dela, fica revogada. Tácita, quando não traz tal declaração nesse sentido, mas mostra-se incompatível com a lei antiga ou regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (LICC, art. 2º, § 1º). Desse modo, se toda uma matéria é submetida a nova regulamentação, desaparece inteiramente a lei anterior que tratava do mesmo assunto."

A revogação parcial é também uma das formas legais de alteração de leis, conforme art. 12, II, da Lei Complementar (LC) n. 95/1998.


5. REVOGAÇÃO DO CAPÍTULO DE PROCEDIMENTO DA LEI N. 6.368/76

A Lei n. 10.409/02, após publicada, trouxe muita confusão e discordância sobre a aplicação ou não de seus dispositivos acerca do procedimento a ser adotado para o processo de crimes de tráfico de entorpecentes. Após citar doutrina e jurisprudência, o Juiz de Direito JAYME WALMER DE FREITAS (2005, http: //jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=4557) concluiu que o novo procedimento é aplicável aos crimes previstos na antiga Lei n. 6.368/76. Informa que a nova lei derrogou a lei velha no que tange ao procedimento.

O artigo 27 da nova legislação dispõe que seu procedimento será aplicado ao crimes previstos na mesma lei. Ocorre que o capítulo da Lei n. 10.409/02 que versava sobre os tipos penais foi vetado pelo Presidente da República, por vício de inconstitucionalidade. Esse veto indica que os crimes da Lei n. 6.368/76 não foram revogados e, conseqüentemente, são submetidos ao novo procedimento, conforme alude FREITAS (idem):

"Para Damásio Evangelista de Jesus, os artigos 27 a 34 revogaram parcialmente as disposições da Lei n. 6.368/76 que disciplinavam a parte inquisitiva do procedimento referente aos delitos de tráfico de drogas. Já, as disposições do Capítulo V da Lei n. 10.409/02 (artigos 37 a 45), que disciplinam a instrução criminal, revogaram parcialmente a mesma parte processual da Lei n. 6.368/76, (permanecendo as normas da lei anterior sobre institutos não regulados pela Lei n. 10.409/02). No mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes, Alice Bianchini e Willian Terra de Oliveira. (...) A implementação do diploma impõe o emprego de interpretação sistemática e teleológica, para o fito de se harmonizar aos diversos textos normativos vigentes, dando sentido e coerência ao sistema jurídico" e esclarece que o novo rito abrange "somente os crimes previstos nos artigos 12 a 14 da Lei 6.368/76, de vez que os crimes dos artigos 15, 16 e 17, por serem de menor potencial ofensivo, submetem-se aos ditames da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/95, modificada pela Lei n. 10.259/01)."

Corroborando sobre o tema, SIMONE MORAES DOS SANTOS (2005, http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=4689), refere que é preciso analisar a intenção do legislador e do Presidente, empregando uma interpretação sistemática da nova lei. Se os vetos foram somente parciais, é porque os dispositivos remanescentes devem ter eficácia. "O procedimento aplicável aos crimes de tóxicos deve ser o da nova Lei, por ser este mais amplo e benéfico ao acusado, e, no caso de lacuna, aplica-se disposições da Lei 6.368/76."

Entende a doutrina que deve ser dada uma interpretação sistemática ao art. 27 da Lei 10.409/02, uma espécie de "interpretação conforme" ao ordenamento vigente e à Constituição!! Aduz-se, assim, que, dentro dos conceitos de procedimento e de revogação já expostos, a nova lei derrogou somente os artigos da Lei n. 6.368/76 que tratam estritamente de procedimento, pois regula integralmente sobre a matéria.

Logo, deve ser avaliado se o art. 27 da lei antiga foi afetado ou não pela nova norma antitóxica, o que será realizado à frente. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tende a pacificar-se no sentido manifestado pela doutrina acima. Contrariamente, no HC 28300/RJ, Relator Ministro Paulo Medina, ficou decidido isoladamente:

"O rito especial previsto na Lei n. 10.409/02 aplica-se apenas aos crimes nela previstos, os quais, insertos nos artigos 14 a 26, que integram a seção única do Capítulo III, foram integralmente vetados, por vício de inconstitucionalidade. Inaplicabilidade de tais dispositivos no caso concreto, que continuam regidos pelo rito da Lei n. 6.368/76". (j. 16.12.2003, publ. 03.11.2004).

Por outro lado, resta pacífico que o procedimento da Lei n. 10.409/02 deve ser aplicado nos crimes dos artigos 12 a 14 da Lei de Tóxicos de 1976, pois em pleno vigor. O Superior Tribunal de Justiça, porém, trata o assunto com bastante moderação, ao afirmar que a inobservância do novo rito é causa de nulidade relativa, devendo ser alegada em momento oportuno e demonstrado o prejuízo sofrido pelo réu. Nessa linha de raciocínio registram-se os seguintes julgados da 5ª Turma, sempre com votação unânime: HC 32347/MS, Rel. Min. Felix Fischer, j. 06.05.2004; RHC 16336/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 17.08.2004; HC 37390/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 04.11.2004; HC 36474/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 14.12.2004; HC 39141, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 16.12.2004. Destacam-se os seguintes decisórios, de votação unânime, ambos proferidos recentemente e por Turmas diferentes da mencionada Corte Superior:

"HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. LEIS NS. 6.368/76 E 10.409/02. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DO ART. 2º, § 1º, DA LEI DE INTRODUÇÃO DO CÓDIGO CIVIL. INOBSERVÂNCIA DO NOVO RITO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO CAUSADO À DEFESA. NULIDADE INEXISTENTE.

1.A Lei n. 6.368/76 permanece em vigor naquilo em que não confronta com a Lei n. 10.409/02, não podendo o magistrado deixar de aplicar o novo rito procedimental, que não foi vetado, produzindo seus efeitos desde a sua edição. 2. A melhor solução para esse conflito aparente de normas encontra-se no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução do Código Civil, segundo o qual "a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule inteiramente toda a matéria de que tratava a anterior. 3. A alegação de nulidade pela não observância do novo rito há de ser avaliada a cada caso, sempre tendo em conta o prejuízo que possa ter advindo para o acusado, a ser objetivamente demonstrado. 4. Habeas corpus denegado." (HC 24779/MS, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti, j. 09.03.2004, publ. DJU 20.09.2004, p. 335, grifos do autor).

"HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO DA LEI 10.409/02. NULIDADE RELATIVA. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. PRECEDENTES DO STJ. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO. PRESSUPOSTOS DO ART. 312 DO CPP. AUSÊNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

2.O entendimento desta 5ª Turma se firma no sentido de que a nulidade decorrente da inobservância do procedimento da Lei n. 10.409/2002 é relativa, não havendo como reconhecê-la, se dela não resultar prejuízo comprovado para o réu, nos termos do art. 563 do CPP e da Súmula n. 523 do STF. (...) " (HC 30875/MG, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 05.10.2004, publ. DJU 08.11.2004, p. 255, grifos do autor).

Não é demais relembrar, que o conflito de leis federais é matéria infraconstitucional e, desse modo, a decisão final cabe ao Superior Tribunal de Justiça, conquanto a autorização para a delegação de competência venha prevista na Carta Maior (art. 109, § 3º).


6. VETO PRESIDENCIAL

Como garantia da tripartição e harmonia dos poderes (CF, art. 2º) e favorecendo o sistema de freios e contrapesos, permite Constituição brasileira que o Presidente da República participe do controle preventivo de constitucionalidade, autorizando-o a sancionar ou vetar projetos de lei aprovados pelo Congresso, por inconstitucionalidade ou interesse público, devendo, em qualquer caso, motivar os vetos (CF, art. 66, § 1º). Não se esquece que a repartição das funções foi emergida por ARISTÓTELES, mas sua atribuição a órgão distintos ocorreu com a doutrina de MONTESQUIEU. Ensina, TEMER (2000, p. 138), que o "Chefe do Poder Executivo participa do processo de elaboração de lei, seja pela ''iniciativa'', (...) seja pela ''sanção'' (...). Ou, ainda, pelo veto, quando se tenta impedir a modificação do sistema normativo." E que "''vetar'', na significação constitucional, é discordar dos termos de uma projeto de lei."

MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1995, p. 172 ) revela que o Presidente da República "recusa a sanção a projeto de lei já aprovado pelo Congresso, dessa forma impedindo sua transformação em lei. Essa recusa, porém, há de ser fundamentada".

Na mesma orientação dos autores retro, são também as lições de REBELLO PINHO (2002, p. 33/34) e ALEXANDRE DE MORAES (2002, p. 585).

Como se constata, o Presidente da República exerce o controle preventivo de constitucionalidade e de interesse público ao vetar dispositivos de projeto de lei ou por inteiro, sempre motivadamente, como fez por meio da Mensagem n. 25/02 (idem), em relação ao projeto que originou a Lei n. 10.409/02.


7. O VETO AO ARTIGO 56 DO PROJETO DE LEI N. 1.873/1991

Como dito acima, o artigo 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991, da Câmara de Deputados - n. 105/96 no Senado Federal, que deu origem a Lei n. 10.409/2002, dispunha:

"Art. 56. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17, 18 e 19, se caracterizado ilícito transnacional, caberão à Justiça Federal.

''Parágrafo único. Se o lugar em que tiverem sido praticados for Município que não seja sede de vara da Justiça federal, o processo e julgamento referidos no caput caberão à Justiça Estadual, com interveniência do Ministério Público respectivo, com recurso para o Tribunal Regional Federal da circunscrição."

Ou seja, seu parágrafo único repetia a essência do artigo 27 da Lei n. 6.368/76, com a devida vênia constitucional (art. 109, § 3º), ambos tratando de delegação de competência (e não procedimento)!. Ocorre que o artigo 56 foi vetado pelo Presidente da República, por orientação do Ministério da Justiça, impedindo sua entrada no ordenamento jurídico, pois o veto gera essa conseqüência.

No caso em questão, entretanto, o raciocínio pode ser outro, como adiante se anota, desde que esmiuçadas e entendidas as razões do veto presidencial.

7.1. O Capítulo IV da Lei n. 6.368/76 foi integralmente derrogado?

Primeiramente, não se pode admitir que todo o Capítulo IV da Lei n. 6.368/76 foi derrogado pela Lei n. 10.409/02. A norma do artigo 27 daquela e do artigo 56 do Projeto desta referem-se a competência, enquanto o mencionado Capítulo IV e os Capítulos IV e V da Lei nova tratam de procedimento. Por isso, a importância de se reconhecer a diferença entre esses dois conceitos: competência é medida da jurisdição; procedimento é o rito, conjunto de atos a serem seguidos.

Evidente que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 cuida de competência e está equivocadamente disposto no capítulo chamado de "Procedimento Criminal". Reforça esse entendimento o fato de o Projeto da Lei 10.409/02 corrigir essa atecnia legislativa, retirando o artigo 56 dos capítulos que determinam sobre procedimento e inserindo-o no "Capítulo VIII - Disposições Finais".

Como retrodito, o novo procedimento não derrogou inteiramente o Capítulo IV da Lei n. 6.368/76, mas tão-somente os artigos que falam do mesmo assunto, qual seja, o procedimento para processar e julgar os crimes relativos a entorpecentes.

Leia-se a ementa do Superior Tribunal de Justiça, já citada: "A Lei n. 6.368/76 permanece em vigor naquilo em que não confronta com a Lei n. 10.409/02, não podendo o magistrado deixar de aplicar o novo rito procedimental, que não foi vetado, produzindo seus efeitos desde a sua edição. A melhor solução para esse conflito aparente de normas encontra-se no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução do Código Civil, segundo o qual ''a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule inteiramente toda a matéria de que tratava a anterior''". (HC 24779/MS, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti).

7.2. Razões de veto ao Capítulo III do Projeto de Lei n. 1.873/1991

Compulsando as razões de veto ao art. 56 do Projeto de lei, verifica-se que ele foi feito em apenas duas linhas, in verbis: "O disposto no art. 56 e seu parágrafo único ficam prejudicados em face do veto sugerido ao Capítulo III." Não obstante a laconicidade, muito pode ser extraído dessa declaração. O motivo, como se percebe, foi a instabilidade jurídica que geraria - o que ocorreu em relação ao artigo 27 da nova lei - se fosse aprovado um dispositivo que fizesse remissão a artigos vetados por inconstitucionalidade e seus reflexos.

O Ministério da Justiça (Mensagem, idem), em relação ao capítulo que trazia os tipos e sanções penais, manifestou o seguinte:

"Em que pese a louvável intenção do legislador ao tentar conferir tratamento diferenciado ao consumidor de drogas, há vício de inconstitucionalidade do art. 21, que contamina a íntegra de vários outros artigos do capítulo em questão. (...) Em vista disso, somado o fato de que em vários artigos há remissão expressa ao art. 14, a permanência dos demais artigos do Capítulo III acarretaria difícil e temerária conjugação com os tipos previstos na Lei n. 6.368/76. Isso porque a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal."

Pelo contido na Mensagem (idem), alguns artigos do Capítulo III do Projeto, especialmente o art. 21, feririam os princípios da legalidade e da individualização da pena. Além do mais, outros artigos continham situação desinteressantes do ponto de vista de aplicação das normas penais. E o veto a alguns artigos e a aprovação de outros seria temerário, o que motivou o veto integral ao referido capítulo.

7.3 Razões de veto ao art. 56 do Projeto de Lei n. 1.873/1991

Vetando o Capítulo III, resultou impraticável e igualmente desgostoso manter o art. 56 do Projeto que menciona sua aplicação nos casos dos artigos antes vetados. Logo, o veto do art. 56 foi decorrente de sua prejudicialidade em relação ao Capítulo III, não por falta de constitucionalidade ou de inconsistência de seu conteúdo. Ou seja, foi um veto meramente formal, por ricochete, não atingindo seu mérito. Não se quer dizer que um dispositivo rejeitado deve ter eficácia. Mas que sua essência pode ser aproveitada, pois não padece de vícios de inconstitucionalidade ou desinteresse público.


8. VIGÊNCIA DO ARTIGO 27 DA LEI N. 6.368/76

Para se afirmar que o artigo 27 da Lei 6.368/76 mantém-se intacto é interessante trazer à luz o confronto de vários vetores, alguns deles já vistos antes.

Nesse condão, deve-se mentalizar que a Lei n. 6.368/76 não foi ab-rogada, mas somente derrogada no que pertine ao procedimento (e não a critério de competência!). Veja-se o que dispõe o art. 9º da Lei Complementar n. 95/98: "a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou dispositivos revogados".

O art. 59 do Projeto de Lei previa expressamente a revogação da Lei n. 6.368/76. Mas esse artigo também foi vetado, pois "a cláusula que revoga a Lei n. 6.368/76 não deve persistir, sob pena de abolição de diversos tipos penais, entre outros efeitos nocivos ao interesse público." (cf. Mensagem 25/02, idem).

Com isso, a Lei n. 6.368/76 continuar em vigor naquilo que não contrariar a novel legislação. Observe-se que a intenção da Presidência da República é expressa em manter os artigos definidores de crime da lei antiga e outros dispositivos igualmente interessante, dentre os quais o de delegação de competência à Justiça Estadual, no caso de traficância internacional.

Isso é revelado pela vontade legislativa ao introduzir o artigo 56 no Projeto, bem como as razões de veto não fazerem menção alguma quanto sua inconveniência, mas estritamente utilizou o critério de prejudicialidade, mesmo porque não poderia vetar apenas palavras (CF, art. 66, § 2º).

Talvez seja esse o exercício intelectual a ser feito para verificar a higidez do art. 27 da Lei n. 6.368/76. MIGUEL REALE (1995, p. 285) leciona que "interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondem àqueles objetivos."

Diga-se, sobretudo, que a instrução feita no local do delito é mais robusta e viva do ponto de vista probatório, revelando útil manter a regra de delegação de competência à Justiça Estadual. Sobre a questão do foro, GRINOVER, SCARANCE FERNANDES E GOMES FILHO (2001, p. 53) ditam que "no processo penal a competência territorial comum, pelo foro da consumação do delito (CPP, art. 70), é estabelecida mais no interesse público do que no da parte: é mais provável conseguir provas idôneas onde se deram os fatos, tanto assim que alguns ordenamentos elevam a nível constitucional a regra do ''forum comissi delicti''."

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, autêntico protetor das leis federais e condutor das orientações que cuidam de matérias não-constitucionais, caminha remansosamente ao entendimento de que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 foi recepcionado pela Constituição Federal e mantém-se aplicável:

"RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. ''ECSTASY''. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE SER INCOMPETENTE A JUSTIÇA ESTADUAL PARA ANÁLISE DO FEITO. MUNICÍPIO QUE NÃO É SEDE DE VARA FEDERAL,. COMPETÊNCIA DELEGADA A TEOR DO ART. 27, DA LEI N. 6.368/76 E ART. 109, INCISO V E § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. FALTA DE INDÍCIOS DE AUTORIA. INOCORRÊNCIA.

''Não sendo o município sede de vara da Justiça Federal, compete à justiça comum processar e julgar os crimes de tráfico internacional de entorpecentes. É o que dispõe o art. 27 da Lei 6.368/76, recepcionado pela CF/88'' (HC 75.173, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 17.06.97, Informativo n. 76, do STF.

''(...)" (RHC 12029/SC, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 27.11.2001, grifo atuais).

"HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. (...) JUSTIÇA ESTADUAL. INCOMPETÊNCIA RELATIVA. PRECLUSÃO. (...)

1. Em não sendo a Comarca sede de Juízo Federal, competente é a Justiça Estadual, ex vi do artigo 27 da Lei 6.368/76, para processar e julgar o feito relativo a tráfico internacional de drogas. (...)" (HC 22893/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 19.09.2002, grifos atuais).

O Supremo Tribunal Federal, defensor universal, não-exclusivo, da constitucionalidade normativa, apontou recentemente (22.02.2005), através de sua Primeira Turma - num debate sobre a competência federal absoluta em razão da matéria (crime cometido a bordo de aeronave) em confronto com a competência territorial por delegação - que o artigo 27 da Lei n. 6.368/76 continua em vigor, conforme noticiado no seu Informativo n. 377:

"Salientou-se, também, o caráter federal da jurisdição exercida por juiz estadual na hipótese do citado art. 27 da Lei 6.368 (...), reforçado pelo disposto no art. 108, II, da CF, que determina caber aos Tribunais Regionais federais o julgamento de recurso das causas decididas pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição". (HC 85059/MS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 22.02.2005).

A decisão que mais tem força orientadora, no entanto, é a proferida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que reúne as duas Turmas criminais (5ª e 6ª), composta pelos eminentes Ministros Laurita Vaz (Relatora), Felix Fischer (Presidente), Paulo Medina, Hélio Quaglia Barbosa, Arnaldo Esteves Lima, Nilson Naves, José Arnaldo da Fonseca, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti. Saliente-se que o julgamento foi por unanimidade, chamando a atenção também a sua data: 23.02.2005 (um dia após a decisão do STF retro), publicado ainda neste mês, em 07.03.2005:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. TRÁFICO INTERNACIONAL. JUÍZO ESTADUAL. DELEGAÇÃO. EXPEDIÇÃO DE CARTA PRECATÓRIA. CUMPRIMENTO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

1.Nos termos do art. 27 da Lei n. 6.368/76, c.c. art. 109, inciso V, e § 3º, da Constituição Federal, se o crime de tráfico internacional ocorreu em local que não é sede de Vara da Justiça Federal, caberá à Justiça Estadual processar e julgar o feito por delegação.

2.O cumprimento de carta precatória expedida por Juízo Estadual, no exercício de competência federal delegada deverá ser realizado por Juízo Federal.

3.(...)". (CC 40396/AM, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23.02.2005, publ. 07.03.2005, p. 138, grifos atuais).

Esse último decisum, corroborado especialmente pelo HC 85059 do STF, resume todo o trabalho exposto e responde à questão sugerida, conferindo vigência normativa ao artigo 27 da Lei n. 6.368/76. Com efeito, não há incompatibilidade seja vertical, seja horizontal, entre o art. 27 da lei velha com a Constituição Federal ou com a lei nova. Dessa maneira, sua vigência continua incólume, devendo ser aplicado aos casos de tráfico transnacional, desde que praticado em Municípios que não tenham sede da Justiça Federal, a teor da Súmula 522 do Supremo Tribunal.


9. CONCLUSÃO

Competência é a medida e o limite da jurisdição, utilizado como critério para distribuí-la entre os vários órgãos do Poder Judiciário (FREDERICO MARQUES, 1998, p. 220.).

A lei infraconstitucional pode delegar competência à Justiça Estadual local nos Municípios que não forem sede de Justiça Federal (art. 109, § 3º, da Constituição Federal).

Processo é a relação jurídica pela qual o Estado procede à composição da lide, aplicando o direito ao caso concreto e dirimindo os conflitos de interesses (CAPEZ, 2001, p. 13).

Procedimento, ou rito processual, é a sucessão ordenada, a concatenação de atos processuais para exteriorização do processo (MIRABETE, 1998, p. 475).

A revogação é o fenômeno que retira uma norma do ordenamento jurídico e manifesta-se em duas espécies: ab-rogação é a extinção total da norma anterior; a derrogação torna sem efeito uma parte da norma.

A revogação pode ser expressa, quando a nova lei declarar a retirada das normas anteriores, ou tácita, se houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga ou se as novas disposições regularem integralmente matéria tratada pelas anteriores (LICC, art. 2º, § 1º).

A nova lei derrogou somente os artigos da Lei n. 6.368/76 que tratam de procedimento, pois regula inteiramente a matéria.

Vetar, na significação constitucional, é ato do Presidente da República de discordar dos termos de uma projeto de lei. (TEMER, 2000, p. 138).

O Capítulo III da Lei n. 10.409/02 foi vetado, por vício direto e reflexo de inconstitucionalidade, por ofender os princípios da legalidade e individualidade de pena.

O veto ao art. 56 do Projeto da Lei n. 10.409/02 utilizou-se apenas do critério de prejudicialidade, pois fazia remissão aos tipos penais antes vetados, mesmo porque não poderia vetar palavras. Não fez menção alguma à sua inconstitucionalidade ou inconveniência quanto ao mérito.

A orientação da Súmula 522 do Supremo Tribunal Federal continua: "Salvo ocorrência de tráfico com o Exterior, quando, então, a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e o julgamento dos crimes relativos a entorpecentes."

Dispunha a Súmula 54 do Tribunal Federal de Recursos: "Compete à Justiça Estadual de primeira instância processar e julgar os crimes de tráfico internacional de entorpecentes, quando praticado o delito em comarca que não seja de Vara do Juízo Federal."

Conclui-se, portanto, que a vigência do artigo 27 da Lei n. 6.368/76 continua ilesa. O processo e julgamento dos crimes de tráfico transnacional de entorpecentes, originalmente de competência da Justiça Federal, serão delegados à Justiça Estadual do Município que não tenha Vara Federal, entendimento esse reforçado pelos recentes julgados do STF (HC 85059) e STJ (CC 40396/AM).


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JOUTI, Augusto Yuzo. Lei nº 10.409/2002: competência para o processo e julgamento do crime de tráfico internacional de entorpecentes. Art. 27 da Lei nº 6.368/76. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 697, 2 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6813. Acesso em: 18 abr. 2024.