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Os partidos políticos e a crise da democracia representativa

Os partidos políticos e a crise da democracia representativa

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1.Introdução

            Desde os primórdios do pensamento e filosofia políticas, a questão «quem deve governar?» tem sido um ponto central de debate e reflexão. Foi visualizando esta questão que Aristóteles (384-322 A.C.) elaborou sobre a problemática de qual a melhor forma de governo em Política, partindo da ideia de que, para que os homens se tornem bons, é necessário que o governo e as leis do país sejam orientadas para a consecução do bem, «pois a maior parte das pessoas obedecem mais à necessidade do que aos argumentos e mais às punições do que ao sentido do que é nobre. As leis são por isso necessárias, pois o controle público é plenamente efectuado por leis, e o bom controlo depende de boas leis».

            Quanto ao valor específico dos regimes políticos, Aristóteles foi prudente: todos os governos que têm por fim a utilidade comum dos cidadãos são bons e conformes à justiça, em sentido próprio e absoluto; mas todos os que tendem para o benefício particular dos homens que governam estão no caminho errado, pois não passam de corrupções ou desvios do bom governo. Daí retira Aristóteles a sua famosa classificação bipartida das formas sãs e degeneradas de governo: «uma vez que o governo é a autoridade suprema nos Estados, e que necessariamente essa autoridade suprema tem de estar nas mãos de um só ou de vários, ou da multidão: daí se segue quando um só, ou vários, ou a multidão, usam a autoridade de acordo com a utilidade comum, esses governos têm necessariamente de ser bons; mas aqueles que não usam o poder senão no interesse de um só, ou de vários, ou da multidão, são desvios em relação a esses bons governos».

            Questionando-se sobre o que considera como melhor forma de governo, Aristóteles conclui que a resposta não pode ser a mesma para todos os países e para todas as épocas, sugerindo que deve ser a ciência política a dar a conveniente resposta. (01)

            Como é que projectamos esta questão, no nosso tempo, a propósito do tema proposto: Partidos Políticos e a crise do Liberalismo? Não andaremos muito longe da verdade se afirmarmos que desde os inícios do Século XX, na sequência da II Revolução Industrial, da luta pelo alargamento do sufrágio universal e da criação – primeiro em Inglaterra, depois nos Estados Unidos e, finalmente no Norte da Europa – do movimento obreirista e trade-unionista, que daria lugar aos grandes partidos de massas socialistas e social-democratas, a questão de qual a melhor forma de governo foi preterida por uma asserção simples: o Povo deve Governar, o Povo tem o Poder…

            Talvez nenhuma outra ideia tenha colhido uma aprovação tão generalizada, uma quase reverência que goza nas democracias ocidentais como a meta-ideia do governo-povo. Sejam liberais, socialistas, conservadores, comunistas ou mesmo ultra-direitistas como o Sr Joerg Haider – a coqueluche da direita populista e xenófoba europeia – os líderes políticos não desdenham uma oportunidade para afirmar as suas credenciais democráticas ou jurar o seu compromisso perante o ideal democrático da representação popular.

            É esta popularidade, é esta ambiguidade conceptual que faz a ideia de «democracia» difícil de entender e delimitar com o mínimo rigor heurístico – porque quando um conceito significa tudo, para toda a gente, torna-se sem sentido.

            Na realidade, um número significativo de modelos de democracia desenvolveram-se em diferentes momentos históricos em várias partes do mundo. Nestes se incluem a democracia directa e indirecta, a democracia social e política, a democracia dita "socialista".

            Quanto à primeira distinção entre o carácter directo e indirecto da democracia, é preciso esclarecer, desde já, que as concepções modernas de democracia raramente são estruturadas no plano do autogoverno que tornaram antológico o pensamento político na Grécia Antiga. Concepções essas que radicam, provavelmente, no pensamento de Péricles, essa figura mítica do imaginário da Antiguidade Clássica.

            As premissas fundamentais do paradigma «democracia» são preenchidas pela ideia que o Povo elege os políticos e que estes e as forças políticas que integram ou lideram, por alguma forma o «representam» e agem em seu benefício, materializando, na sua acção as expectativas de progresso e bem-estar. Nunca a imagística do bem-estar e o culto da felicidade esteve tão presente e obsessivo como na sociedade dos nossos dias. Ora, este crescendo exponencial de expectativas quanto às respostas que a sociedade deve dar coloca o interessante problema do que é que significa a representação nas sociedades liberais dos nossos dias e como pode ser materializada. Mutatis mutandis, será igualmente de questionar o que é efectivamente representado: a vontade do Povo, dos vários grupos que constituem o substracto humano do Estado-Nação, das classes em que a sociedade se estratifica, dos agrupamentos de interesses? É a representação o humus da democracia ou um pretexto para afastar os cidadãos da gestão directa dos negócios públicos ou, apenas, o menor denominador comum da democracia?

            Finalmente, os governos democráticos invocam governar em nome do interesse nacional ou público. Contudo o que significa numa democracia plural "interesse público"? E qual o papel dos partidos na organização e prossecução de interesses?

            Em termos metodológicos e por simplificação de exposição remeteremos para anotação pontos complementares que constituem do nosso ponto de vista aprofundamentos das asserções avançadas.


2.Democracia e a exegese da Liberdade

            O termo democracia e a clássica concepção do governo democrático provêm da Antiguidade Clássica, berço da civilização ocidental e sobretudo da Grécia Antiga. A palavra «democracia» tem como raiz etimológica as palavras demos e kratos, significando, na acepção mais corrente, o governo de muitos ou do povo. Na Antiguidade Clássica, como é patente nas obras de Platão e Aristóteles, o conceito como o entendemos nos nossos dias – o governo de todos – tem uma valoração negativa. Significa o governo das massas ignorantes e deserdadas e fundamentalmente a anarquia das massas, a «mob rule», preferindo estes autores respectivamente a aristocracia e a politeia, como melhores formas de governo.

            A democracia é para eles o inimigo da liberdade e da sabedoria, predicados caros ao homem clássico e educado, já que só o cidadão poderia acrescentar algo ao governo da pólis, pois só ele dispunha da qualidade de membro. (02) (03)

            Curiosamente, este preconceito da menoridade do homem comum para participar e influenciar por alguma forma a gestão dos negócios públicos subsistiria por séculos, sendo também um elemento informador do liberalismo clássico – posteriormente abandonado – mas constituindo em todo o século XX um dos elementos que caracterizam o pensamento político reaccionário, legitimista, e ultradireitista (04).

            O conceito moderno de democracia é distinto. É dominado pela forma de democracia eleitoral e plebiscitária maioritária no Ocidente, a que chamamos democracia liberal (05) ou representativa. Mas não obstante a sua aceitação generalizada – sobretudo no pós-guerra Fria - a democracia liberal é apenas uma das formas de representação balanceada de interesses, compreendida num conceito global de isonomia (06).

            Na verdade, e de forma crescente, a ciência política comparada vem ganhando novo interesse no estudo de outras experiências civilizacionais, como as das sociedades orientais ou africanas, em que a representação do colectivo assume corporizações antigas muito próprias, profundamente consensualizadas e estabilizadas em termos de dinâmica social. Naturalmente, a nossa arrogância cultural eurocentrista e cristã conduz-nos, muitas vezes, a considerá-las como não democráticas.

            No seu famoso "Discurso de Gettysburg", proferido na Guerra Civil Americana, Abraham Lincoln exortava as virtudes do que chamou o «governo do Povo, pelo Povo e para o Povo». Ao fazê-lo e entre duas noções alternativas de democracia, proclamava a do "Governo do Povo" no sentido do governo em que participa o colectivo população que se governa a si própria. Acentuava, por outro lado, o "Governo para o Povo" na perspectiva de que a finalidade do governo é o interesse público e que este deve ser exercido em benefício do povo, de uma forma directa ou indirecta.

            Discípulos de Montesquieu, os Founding Fathers da América retomam a sua teoria em favor de um pluralismo político a que darão o nome de República, em detrimento da pureza antiga da sua formulação grega. Benjamin Constant fixará o sentido desse regresso na oposição entre "antigos" e "modernos", os primeiros reconhecendo a alguns a necessidade de uma participação directa e permanente nos assuntos públicos; os segundos situando a liberdade no plano da independência, da diversidade de opiniões e de modos de vida.

            Mas é sobretudo Alexis de Tocqueville (07) que vem dar a contribuição mais importante à noção de democracia no mundo moderno. O facto gerador da democracia, a chave da imagem de si própria e da sua ligação ao Homem, dos seus valores e da representação do povo – acrescenta - é a igualdade das condições que condicionam a vida humana. Assumido como um dado natural e histórico para Constant, a igualdade torna-se para Tocqueville o «local de um processo misterioso, absolutamente inédito e superiormente importante». Momento epilogar da democracia, a ideia da liberdade trabalha nas sociedades do velho continente marcadas pela sua história e toma conta das desconfianças derivadas das hierarquias, do ódio dos privilégios, das aspirações de uma liberdade reflectida na identidade dos indivíduos.

            Princípio instituidor das sociedades modernas, a liberdade transporta o seu sentido nas revoluções que desperta, as razões do carácter inelutável da forma democrática existente no seu seio, mais as incertezas que pesam sobre os meios de a concretizar «as nações dos nossos dias não sabem produzir senão no seu seio as condições para serem desiguais; mas depende delas a igualdade que as conduza à servidão ou à barbárie, à prosperidade ou à miséria» concluirá significativamente Tocqueville.

            A moderna noção de democracia que se desenvolveu durante todo o Século XIX e se firmou no Século XX está, assim, intimamente ligada ao ideal de participação popular, que remonta aos gregos, mas que enriquece enquanto polifenómeno com os contributos da Revolução Francesa, do Governo Representativo Liberal inglês e, finalmente, da Revolução Americana, como experiências de libertação do Homem e afirmação da sua autonomia.

            Recordamos, a esse propósito, que uma das pedras cúbicas da democracia ateniense era a participação contínua e empenhada dos "cidadãos" na vida pública da pólis. (08) Outras configurações da sempre adiada participação directa dos cidadãos nas decisões da vida colectiva pode ainda ser encontrada nas formas comunalistas de organização política do Norte de Inglaterra, da Suíça e de vários comunidades rurais nos Estados Unidos.

            Mesmos nos Estados modernos do Norte e Centro da Europa, onde existe uma entroncada tradição de mediação de interesses através da instituição parlamentar, a figura do referendo aparece nos nossos dias e a propósito tanto de questões regionais ou locais como um regresso a uma certa forma de plebiscito vivificador, de auscultação da vontade das populações até aí resignadas a um estatuto de menoridade intelectiva. Um pouco na consciência que a representação política, embora cómoda e apropriada à complexidade da vida moderna, tem efeitos perversos, o menor dos quais não será a exclusão dos eleitores de uma monitoragem efectiva da acção dos seus representantes nas assembleias representativas.


3.O Governo Representativo e o pathos democrático

            Têm sido várias, nos últimos anos, as vozes dos que vêm alertando para um perigoso artificialismo, abulismo e distanciamento dos representados face às instituições parlamentares, o qual é reflexo não menos desprezível da crise do Estado-Nação ou da própria civilização judaico-cristã.

            Nos tempos actuais, o governo é deixado nas mãos de políticos profissionais que são investidos na responsabilidade de tomar decisões, em nome do Povo. A democracia representativa assume-se, assim, como uma forma limitada ou indirecta de democracia. Limitada, no sentido que a participação popular é tanto pouco frequente como muito breve, reduzindo-se, a mor das vezes, ao uso do direito de voto sazonal e periódico, consoante o ciclo nacional e local. Indirecto, no sentido que o público, o eleitor é «mantido à distância» pelo governo e pelos parlamentos: o povo participa unicamente através da escolha de quem deve governar, fenecendo nesse acto, por um período relativamente alargado, o direito a remover os seus representantes.

            Mas esta crítica necessária e pertinente ao governo representativo não nos deve levar longe de mais quanto à admissibilidade, outra vez, da alternativa totalitária seja qual for a sua cor ou invólucro. A profissionalização excessiva dos políticos, a mediocridade no seu recrutamento, a corrupção e o tráfico de influências, o abstencionismo eleitoral, constituem fenómenos associados ao Poder Democrático, que devem e podem ser invertidos. Mas não obstante esses anátemas a democracia representativa continua a ser uma forma referencial de democracia. Embora limitado no seu alcance e ritualista no seu procedimento, o acto de votar em que a democracia se plasma, persiste como a fonte vital do poder popular e da soberania fundada na vontade do Povo, livremente expressa.

            Porquê? Porque muito simplesmente os eleitores têm, com o seu voto, o poder soberano de "dispensar" os maus governos, de derrotar os partidos em que perdem confiança, de remeter para as prateleiras do esquecimento os políticos que persistem no logro, o que constitui pilar fundamental do controlo popular da representação política e expressão da sua «public accountability», para usarmos o conceito frequente na teoria política anglo-saxónica.

            O principal tipo de democracia política dos nossos dias é a democracia liberal ou representativa.

            A democracia, diz Jurgen Habermas é definida como o «Estado político governado por uma legitimidade em que o princípio consiste na formação discursiva da vontade» antecipando, portanto, a existência de um consenso que só pode dar sentido ao seu descanso e torna-se, assim, capaz de imaginar uma situação de comunicação ideal, exemplo de persuasão, onde se forjará um acordo sobre a ética da discussão» (09).

            Ela assenta na convicção de que o homem é livre e que se pode e deve opor a todas as tentativas ilegítimas para ferir ou limitar a sua liberdade individual (10).

            A democracia liberal traz associada o combate ( a oposição ) a todo o tipo de despotismo ou totalitarismo: a rejeição em nome da consciência da liberdade dos obstáculos das imposições como que uma autoridade externa, seja qual for a sua origem ou sua finalidade, visa paralisar as determinações individuais. Isso não significa que seja uma sociedade isenta de conflitos.

            Paul Ricouer afirma (11) a este propósito que a democracia não é um regime sem conflitos, mas é um regime em que os conflitos são abertos e negociáveis segundo as regras de arbitragem conhecidas. Daí que a questão da democracia seja conexa da questão da modernidade. Afrontar a parte da indeterminação da sociedade democrática sem ceder à vertigem é tomar consciência da existência de um senso comum, no mundo moderno, o projecto de um pragmatismo universal desenvolvido por Habermas (12) no sentido da procura no funcionamento da linguagem das condições de legitimidade plural.

            Criada no mundo industrializado, já no Século XIX, com o alargamento do sufrágio a toda a população activa e às minorias, o apelo da democracia rapidamente se estendeu ao mundo ex-comunista e ao Terceiro Mundo. Na verdade, na sequência da implosão do comunismo, na União Soviética e com a queda consequente da Europa de Leste e do bloco do Pacto de Varsóvia, vários autores – com destaque para Francis Fukuyama e Immanuel Wallerstein – proclamaram o triunfo universal da democracia liberal, descrita como o Fim da História (13) ou a Economia-Mundo (14), parecendo significar, com isso, o declínio de uma Ordem caracterizada pelo conflito e competição entre modelos ideológicos e cosmovisões antagónicas e exclusivas e o perecimento da procura da Sociedade Ideal como meta última da construção da sociedade humana.

            Fukuyama refere logo a abrir The End of History que as origens do livro (e das suas teses) podem ser encontradas num artigo intitulado «o Fim da História» que escreveu para a revista "The National Interest" no Verão de 1989. Nela defendeu que, nos últimos anos, tinha ocorrido por todo o mundo um consenso notável quanto à legitimidade da democracia liberal, como sistema de governo, à medida que esta triunfou sobre as ideologias rivais, como a monarquia hereditária, o fascismo e, mais recentemente, o comunismo. Nele defendia que a democracia liberal poderia constituir o «ponto terminal da evolução ideológica da humanidade» e a«forma ideal do governo humano» e, como tal, «o fim da história».

            E conclui esta ideia dizendo que " embora alguns países da actualidade possam não ter atingido um desenvolvimento liberal estável e outros possam regredir para formas de governo mais primitivas como a teocracia e a ditadura militar, o ideal de democracia liberal não pode ser aperfeiçoado».

            Um pouco na mesma linha, mas com uma proveniência política diferente o economista político Immanuel Walerstein sublinha na obra que assina com Terence Hopking que "um elemento crucial da ciência newtoniana tem sido a sua reivindicação de universalismo, uma questão que se reflecte directamente no liberalismo, a ideologia dominante no mundo, nos últimos duzentos anos e que veio definir as geoculturas do sistema-mundo. O mais reconfortante elemento da ideologia liberal é o seu argumento relativo às trajectórias de múltiplos vectores do sistema-mundo. O liberalismo apregoa o triunfo de uma gradual convergência no bem-estar da humanidade, bem como a eventual eliminação da violência que resultará se exigida pela crescente coesão dos Estados e posta em agenda pela diminuição das desigualdades. Num certo sentido, o liberalismo ofereceu a prática de um paciente reformismo para solucionar as crises e satisfazer os descontentes da civilização."

            Fechando o vértice, o filósofo Karl Popper enfatiza na sua introdução a "A Sociedade Aberta e os seus Inimigos" (15) que a nossa civilização é caracterizada pelas suas aspirações humanitárias e pelos seus ideais de racionalidade, igualdade e liberdade. É uma civilização que ainda não recobrou do choque do seu nascimento - a transição de uma "sociedade fechada" ou tribal, com a submissão a forças mágicas, para uma "sociedade aberta", que liberta os poderes críticos do Homem. O choque da transição é um dos factores que tornou possível o surgimento daqueles movimentos reaccionários que tentaram, e ainda tentam, derrubar a civilização e retornar ao tribalismo.


4.A génese programática do Liberalismo Clássico

            O elemento «liberal» no conceito de liberal democracy terá emergido antes dos Estados se poderem qualificar como democracias. Na verdade, muitos Estados europeus desenvolveram formas de governo constitucional no Século XIX, num tempo em que a capacidade eleitoral era restrita a terratenentes ou proprietários fundiários e a homens. (16)

            A doutrina do liberalismo está profundamente ligada ao conceito de democracia e é certamente muito difícil distinguir o que é liberal do que é democrático, nas nossas democracias. Por outro lado, ela assumiu formas históricas diferentes, na Revolução Gloriosa, em Inglaterra de 1688-1689, na maior parte dos países europeus no Século XIX, nos Estados Unidos, na sequência da revolução que conduziu à Declaração de Independência.

            O Estado Liberal foi baseado no princípio do «governo limitado», a ideia que os indivíduos devem gozar de uma efectiva forma de protecção contra os abusos do Estado. Como escreve António Paim (17) «em seus primórdios, a doutrina liberal não guardava compromissos com o ideal democrático. Seu propósito era criar freio e limites ao poder absoluto do monarca. A experiência inglesa comprovou que a reacção monárquica assumia formas de extrema violência. Somente a elite proprietária tinha condições de levar essa luta a bom termo (…) o sistema concebido por Locke reflectia o consenso da parcela significativa da elite. A prática do século XVIII configurou-o como modelo (18)».

            Em sentido confluente Roger Scruton (19) acentua que a história do liberalismo é contemporânea com a história do governo limitado, i.e., com a tentativa bem sucedida dos que se encontram subordinados a um governo de, com vista a restringir os poderes deste, obter em seu benefício constituições (constitutions), cartas (charters), estatutos (statues), instituições e formas de representação que garantam aos indivíduos direitos contra as invasões do poder soberano. Mas foi preciso esperar pelo boom do racionalismo trazido pela Revolução Francesa para que as crenças fundamentais defendidas pelo Estado monista da res publica christiana fossem contraditas pelas conquistas da ciência e da investigação e estas começassem a dar respostas aos problemas das pessoas, dando corpo à laicização do Estado que o movimento da Contra-Reforma será o húmus.

            Os princípios estruturantes do liberalismo consubstanciados num documento fundamental com a Magna Carta de 1215 são considerados como uma criação do Século XVIII ou do Século XIX, em razão das obras de filósofos políticos como Spinoza, Locke, Montesquieu, Kant, Bentham, J.S. Mill, Benjamin Constant, Jefferson ou Madison, conjuntamente com muitas figuras do Iluminismo. A ideia da liberdade e da preservação da liberdade, entendida esta na sua expressão económica, política, individualística é, portanto, uma das bandeiras justamente atribuídas ao liberalismo, a que outras doutrinas – de fusão – como a social-democracia, o socialismo democrático, o social-liberalismo, o socialismo "de rosto humano" - foram buscar pontos significativos de demarcação perante as formulações totalitárias do Século XX como o fascismo, o nacional-socialismo e o comunismo.

            Entendemos aqui liberdade no conceito epistemológico que vem de Max Weber (20), como a faculdade presente em todo o homem de agir segundo a sua própria determinação, sem ter de suportar outros limites, para além daqueles que são necessários para a liberdade dos outros. (21)

            Estamos portanto no campo da liberdade interpessoal ou social a que se refere às relações de interacção entre pessoas e grupos e dentro deste na mais importantes das liberdades sociais: a liberdade política entendida por Oppenheim (22) como a liberdade dos cidadãos ou das suas associações em relação ao Governo. Preenchida, numa primeira fase, pela liberdade de religião, de expressão, de imprensa, de associação e de participação, a ideia da liberdade política ganha novos contornos quando explodem os anseios de liberdade económica, de autodeterminação face ao Estado colonial.

            Como traço primeiro do pensamento liberal emerge a defesa de uma sociedade civil vigorosa e próspera, baseada no respeito dos direitos individuais e da propriedade, na crença da oportunidade do sucesso (23) e do progresso social, em que se coligam o governo democrático liberal e o sistema económico capitalista. Matriz desta concepção de sociedade, que é ao mesmo tempo uma forma nova de organização das relações económico-sociais e uma ideologia é, naturalmente, a crença num conjunto de direitos inalienáveis, que ficariam "a coberto" das arremetidas do poder absoluto do soberano.

            Locke trata-os de uma forma paradigmática no seu Two Essays on Civil Government (24) e que poderemos sumariar da seguinte forma: quando, por convenção unânime – o contrato social – os homens renunciam à sua liberdade primitiva absoluta – que herdaram do Estado de Natureza (25) – para fundar a autoridade pública, não abdicaram em benefício do poder senão a parcela da sua independência original incompatível com a existência de uma ordem social. O que conservam da sua liberdade primitiva constituem os direitos individuais. Esses direitos, resíduos da liberdade absoluta primitiva, nada devem ao Estado, nem na sua origem, nem na sua consistência. Porque anteriores podem ser-lhe opostos, e ao Estado cabe respeitá-los e garanti-los (26). Mas mais, os homens precisam de sair do estado de natureza porque eles esperam encontrar melhores condições numa ordem organizada, com leis positivas, juízes para as interpretar e um poder executivo para as aplicar. A acumulação de riqueza e a desigualdade na sua repartição precisam de ser considerados fora do estado de natureza, mas esta mudança não é negativa: o sucesso material dos indivíduos promete o bem-estar público.

            Destes direitos, a Declaração de 1789 conferiria a definição e o inventory que os perpetuaria. Já no caso inglês, tanto o Bill of Rights como a Act of Settlement de 1786 são consagrações de liberdades, mas de uma natureza diferente: são liberdades históricas e tradicionais da nação - não de um ser abstracto - ou seja promovem um individualismo de acordo com as exigências da vida social, moderado (27) e pragmático. É um pouco no casamento destas duas etho-visões do indivíduo que a experiência americana irá beber: a fé no homem como ponto de partida, mas a convicção profundamente ética e moral que não é ao seu título abstracto de homem racional que o homem deve a liberdade que reivindica, mas sim à convicção de que pertence a cada homem forjar o seu próprio destino – o the pursuit of happyness, na Constituição Americana.

            O traço segundo referenciador do liberalismo, enquanto doutrina política, é a ideia que a «eleição popular é a única fonte legítima de autoridade política». Eleições que devem respeitar o princípio da igualdade política e ser baseadas no sufrágio universal e na ideia «um homem, um voto». As eleições para serem democráticas devem ser regulares, abertas e acima de tudo competitivas. A pedra cúbica do processo democrático é, portanto, a capacidade indeclinável do povo fiscalizar e "julgar" os políticos que faz eleger. Daí que o pluralismo político, a concorrência aberta entre partidos, movimentos e organizações políticas seja a verdadeira essência da democracia representativa.

            Joseph Schumpeter sublinharia esta característica essencial da visão liberal em Capitalism, Socialism & Democracy (1942) (28), «aquele arranjo institucional para alcançar decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir através de uma competição aberta, pelo voto popular (…) os votos exercem o mesmo poder no mundo político que o consumidor desempenha no mundo económico».

            Esta accountability é reforçada pela capacidade dos cidadãos exercerem uma influência directa no governo através de grupos de pressão e de interesses. A questão da plasmagem da prossecução de interesses à representação política é tão antiga quanto a existência da democracia e ganhou novo alento com o fim do conflito Este-Oeste, roubando legitimidade aos partidos que se reivindicam duma estrita visão ideológica e programática no combate político. Na verdade, há medida que as velhas doutrinas: socialismo, liberalismo, comunismo ou fascismo, deixaram de responder às crenças e expectativas dos eleitores, a prossecução e representação dos interesses caldeados á sociedade substitui e substitui-se à competição ideológica, quebrando a velha matriz ordenadora que os arruma da esquerda à direita.

            Estreitamente relacionado com este ponto assinalámos anteriormente que a democracia liberal é baseada na ideia que os políticos agem como representantes do Povo. Mas o que é que isso significa? Que uma pessoa representa a outra? Que representa um certo grupo de pessoas – os eleitores – ou um certo grupo de interesses?


5. Governabilidade e Liberalismo

            A representação configura uma relação entre duas entidades jurídico-políticas separadas e distintas: os governantes e os governados. Pressupõe que através dessa ligação os interesses, os pontos de vista, dos representados são assegurados e prosseguidos. A natureza precisa dessa ligação e a sua mobilidade têm sido pontos intermináveis de desacordo na teoria política .

            Para começar, na origem não há um único e comummente aceite modelo de representação. Os representantes, «os eleitos», têm sido muitas vezes vistos como os que «sabem mais» e dessa forma podem servir de uma forma mais adequada e diligente os interesses dos representados. Mesmo nos sistemas de monarquia absoluta, considerava-se que os monarcas governavam com o conselho dos estamentos, designadamente os proprietários fundiários e o clero.

            Nessa perspectiva, os políticos não devem se entender vinculados como «delegados» em razão dos interesses dos eleitores, mas ter a capacidade de pensar por si próprios e utilizar de, per si, a sua capacidade de julgamento. No seu famoso Discurso aos Eleitores de Bristol em 1774, Edmund Burke (1729-1797) (29) refere:

            «A felicidade e a glória de um representante devem consistir em viver na união mais estreita, na correspondência mais íntima e numa comunicação sem reservas com os seus eleitores. Os seus desejos devem ter, para ele, grande peso, a sua opinião, o máximo respeito, os seus assuntos uma atenção incessante(...) O vosso representante deve a vós não somente a sua indústria, senão o seu juízo, e atraiçoa-vos em vez de vos servir, se se sacrifica à vossa opinião»

            e acrescenta de forma significativa:

            «O Parlamento não é um congresso de embaixadores que defendem interesses distintos e hostis, interesses que cada um dos membros deve sustentar, como agente ou advogado, contra outros agentes ou advogado, ele é senão uma assembleia deliberante de uma Nação, com um interesse: o da totalidade; de onde devem prevalecer não os interesses e preconceitos locais mas o bem geral que resulta da razão geral do todo. Elegeste um Deputado mas quando o escolheste, não é ele o deputado por Bristol, mas um membro do Parlamento.»

            Na doutrina de Burke, que influenciou todo o pensamento político-constitucional inglês, o deputado não guarda obediência a instruções imperativas, mandatos explícitos dos seus eleitores (30), porque isso seria «desvirtuar a sua missão e a ordem e temor da nossa Constituição». A essência da representação é para ele o serviço dos seus constituintes através de um julgamento amadurecido de uma consciência esclarecida.

            Este modelo de representação - o trustship - é o que confina o mandato através do qual uma pessoa é investida com a responsabilidade formal de representar e agir por conta da propriedade e negócios de outro. A representação assume aqui o papel de um dever moral.

            John Stuart Mill (1806-1873) confina o seu pensamento com a mesma natureza do mandato representativo em Considerações sobre o Governo Representativo (31):

            «Desde o princípio temos afirmado, e nunca perdemos de vista, a importância igual de dois requisitos do governo: 1)a responsabilidade perante os que em cujo proveito político o poder deve ser empregue; 2)o exercício dessa função por pessoas de inteligência superior, especialmente treinadas para essa tarefa por meio de uma longa meditação e uma disciplina prática(...)se o propósito for de obter representantes superiores em inteligência à média dos seus eleitores, deve-se esperar que o representante tenha por vezes opinião diferente da dos seus eleitores, e quando a tiver, a sua seja frequentemente a mais certa das duas. Decorre daí que não estando agindo sabiamente os eleitores se impuserem como condição para a manutenção do cargo, conformidade absoluta com suas opiniões por parte do representante».

            A perspectiva de Mill tem como fundamento que embora todos os indivíduos tenham o direito de ser representados, nem todas as ideias políticas têm o mesmo valor. Mill irá propor um sistema de voto plural em que quatro ou cinco votos serão destinados a eleitores com estudos académicos, dois ou três a operários especializados e supervisores e um a operários sem especialização. No mesmo sentido, ele argumentava que os eleitores "racionais" suportariam preferencialmente políticos que actuassem sabiamente em seu benefício, mais do que políticos que reflectissem os pontos de vista dos eleitores.

            Esta ideia hoje naturalmente controversa – mas ao tempo nem tanto – de limitação do poder eleitoral activo a certas classes de eleitores não é exclusivo do pensamento liberal tradicional, de matriz inglesa (32). A Constituição monárquica francesa de 1791 reservaria o direito de voto aos cidadãos activos, isto é àqueles que pagavam impostos, na perspectiva de uma clara estratificação social das élites dirigentes.

            Thomas Paine, o conhecido autor inglês e posteriormente exilado na América contraporia no seu famoso panfleto Common Sense (1776) que se os políticos, nessa lógica, fossem autorizados a exercer o seu julgamento, usariam essa margem de acção para prosseguir os seus próprios interesses pessoais e não quem representavam. Nesta perspectiva, a representação tornava-se um puro substituto da democracia.

            É contra a visão mitigada de soberania popular que se vão revoltar os enciclopedistas e os philosophes em geral com Voltaire, Diderot, Rousseau e o próprio Paine.

            Rousseau escreve no Contrato Social (33) que o contrato não é um contrato entre indivíduos (como em Hobbes) nem um contrato entre indivíduos e o soberano (como em Suarez). É um contrato em que cada indivíduo se une a todos. «Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direcção de uma vontade geral, e nós recebemos em corpo cada membro como parte indivisível do todo. Cada associado se une a todos e a ninguém se une em particular; só obedece deste modo a ele próprio e fica tão livre como anteriormente». O soberano é para Rousseau essa vontade geral, que é a vontade da comunidade e não dos membros que constituem essa comunidade. É obedecendo às leis que o homem realiza a sua liberdade:

            «Um povo livre obedece, mas não serve; tem chefes, e não senhores; obedece às leis; e é por força das leis que não obedece aos homens».

            O governo apenas desempenha um papel subordinado. O soberano faz as leis, que têm um valor para-religioso, já que são o reflexo de uma ordem transcendental. O governo é um simples executante da lei, o depositário do poder. Foi contra a tentação totalitária implícita na doutrina da soberania popular e a limitada abertura concedida pela Reforma Eleitoral de 1832 que o liberalismo anglo-saxónico se rebelou no século XIX. Essa rebelião veio concretizar no movimento cartista a exigência de uma reforma substancial do sistema de sufrágio eleitoral e com ele o voto secreto, a anualidade das eleições, a supressão da exigência de renda como requisito da capacidade de ser eleito – o reconhecimento do direito do "homem" abstracto de aceder ao sufrágio patente na sua Carta de Liberdades do Povo.

            Foi em resposta ao movimento cartista que o Parlamento britânico empreendeu o caminho da reforma eleitoral patente na introdução do voto secreto (1872), na divisão do país em distritos eleitorais (constituencies) de idêntico peso, elegendo cada um deles um deputado. O movimento cartista seria responsável pela profunda democratização da ideia liberal, que fala António Paim (34) mas seria o movimento trade-unionista que está na origem do Labour, que lhe dará o impulso decisivo.

            É o povo dos cidadãos que passa a constituir a base do poder do Estado Liberal. Naturalmente, à medida que as instituições democráticas e o referido alargamento do sufrágio se tornam realidade, esse povo é cada vez mais numeroso, um povo que ignora classes. A Nação tem uma voz, a dos órgãos que ela cria para querer em seu nome.

            É nas assembleias parlamentares, periodicamente eleitas, que se estabelece a expressão concreta da representação política dos eleitores. A representação política será como noção um mecanismo político para a realização de uma relação de controle regular de checks & balances entre governantes e governados.


6. Sistemas de Representação Política

            Será útil referir, neste ponto, que se colocam fundamentalmente três sistemas de representação política na história recente da democracia, no que respeita à relação entre representantes e representados. Segundo Norberto Bobbio (35): 1) a representação como relação de delegação (delegation), em que o representante é concebido como executor privado da iniciativa e da autonomia das instituições que os representados lhe distribuem – no fundo é uma espécie de "embaixador"; 2) a representação como relação de confiança (trustship), tendo o representante autonomia no exercício do seu mandato político, supondo a sua única orientação o interesse dos representados como foi por ele percebido e que vimos patente em Burke; 3) a representação como "espelho" ou representação sociológica (resembalance) concebendo a organização representativa como um microcosmos que fielmente reproduz as características do corpo político.

            Na perspectiva do primeiro modelo descrito por Bobbio, o delegado é uma pessoa que é escolhida para actuar por outra com base em orientações claras e instruções precisas. É como que um embaixador ou um agente de vendas que não é autorizado actuar de acordo com o seu julgamento. Quem prefere este modelo cria mecanismos que asseguram que os políticos estão vinculados – tão perto quanto possível – às perspectivas dos eleitores. Isso inclui o que Paine designa por uma "interacção frequente" entre representantes e seus constituintes, na forma de eleições regulares e mandatos curtos (36). A virtude do que podemos chamar de "delegação de representação" é que o sistema providencia maiores oportunidades para uma participação popular e serve para fiscalizar as inclinações do self-serving dos políticos profissionais. Constitui, portanto, a forma de representação mais próxima do ideal distante da soberania popular. Os principais defeitos do modelo incluem um estreitamento excessivo do mandato representativo, um ponto de fricção entre delegados e eleitores.

            O modelo referido encontra-se hoje rejeitado pela proibição explícita do "mandato imperativo" por parte das principais leis constitucionais e eleitorais europeias e ocidentais.

            O segundo modelo encarna, segundo Bobbio, a ideia do representante como "fiduciário" tendo a Nação normalmente como centro focal de representação ou pela inoportunidade do colégio eleitoral do representante, entendido como parcela fragmentada do todo que é a Nação.

            Não é despiciendo sublinhar que este modelo ganha novo fôlego, nos nossos dias, à medida que o Estado Unitário, incapaz de responder às necessidades, à diversidade territorial e cultural dos países, se descentraliza e regionaliza. As novas regiões autónomas vêm os interesses das suas circunscrições institucionalmente prosseguidos e defendidos por parlamentares que fazem valer os interesses regionais, respondem pelas suas circunscrições eleitorais e intervêm, por vezes como balança e factor de desempate, nas crises políticas de âmbito nacional. (37)

            O último modelo é naturalmente o mais utilizado em termos de engenharia eleitoral (38).

            O modelo tem menos a ver com a maneira como os representantes são seleccionados do que com a forma como eles tipificam ou "espelham" o grupo que pretendem representar. A noção está imbuída de uma representação alargada – cross-section – como se lhe referem os marketeers políticos. De acordo com esta formulação, um governo representativo deverá constituir um microcosmos de uma sociedade mais vasta, compreendendo membros provenientes de todos os grupos e estratos da sociedade ( em termos de classe social, sexo, etnia, religião, idade, etc) e no mínimo que seja proporcional à dimensão dos grupos sociais em si.

            O modelo-espelho sugere que cada pessoa que vem de um dado grupo e partilha as suas experiências e vivências pode se identificar plenamente com os seus interesses. Facto que em si é discutível. Por outro lado, o modelo tem um efeito perverso: configura a representação como algo de restrito e exclusivo, acreditando por exemplo que só uma mulher pode representar as perspectivas das mulheres, um negro ou um indiano as minorias rácicas, um ecologista os amigos do ambiente. A questão que daí resulta é que se os representantes políticos apenas representam os interesses dos grupos donde provêem o resultado será uma profunda estratificação social e conflitualidade latente, já que ninguém será capaz de defender o bem-comum ou o interesse da colectividade.

            Por outro lado, um Governo que seja o espelho de uma sociedade, no sentido literal, reflectirá tanto os seus pontos fortes como as suas fraquezas. Ora o modelo só é exequível com fortes restrições à escolha eleitoral e, sobretudo, ás liberdades individuais. Em nome deste modelo, os partidos podem ser pressionados pela opinião dos seus eleitores a escolher quotas para as mulheres, os ecologistas, os homossexuais, os negros, os muçulmanos e outros grupos ditos "minoritários".

            Os sistemas eleitorais proporcionais têm sido um eficaz instrumento institucional para reproduzir as características políticas, ideológicas, mas também sociológicas dos grupos populacionais dispersos pelo território nacional mas tem presidido uma preocupação de moderar os ímpetos estratificadores do modelo. Daí que não se possa deixar de conceder que as formações políticas que visavam responder a um "espelho" de determinados estratos da população – como os partidos operários, agrários, confessionais, étnicos ou feministas – ganharam no fim do Século XX uma nova projecção, já que a profissionalização da vida política fomenta uma maior representatividade sociológica relativamente a perfis não-estritamente políticos, caso dos ecologistas. Mas isso não se traduziu no curto-circuitar do modelo do governo representativo.

            Há autores que adiantam, ainda, um modelo intermédio, o modelo de mandato, o qual convive com o actual modelo de mediação política através dos partidos.

            Este modelo é baseado na doutrina que ao vencer as eleições um partido ganha um mandato popular que o autoriza (e legitima) a executar as políticas e programas com que se comprometeu na campanha eleitoral. Sendo um mandato em benefício de uma entidade colectiva – o partido – e não de políticos individuais, a doutrina do mandato confere uma adequada justificação para a unidade partidária e a disciplina organizativa e de voto.

            Nesta perspectiva, os políticos servem os seus constituintes não por julgarem por eles próprios mas por serem leais ás orientações do partido que integram e as suas políticas.

            A vantagem decisiva do modelo de mandato de representação é que confere uma lógica aos resultados eleitorais, assegura uma revisitabilidade das promessa eleitorais aquando da campanha para novas eleições e possibilita uma separação mais nítida das opções políticas em confronto numa sociedade plural e democrática.

            O modelo peca, no entanto, por algumas assunções precipitadas. Em primeiro lugar acredita que os eleitores votam sempre nos partidos de acordo com as suas fronteiras ideológicas e as suas políticas seriadas nos programas. Os votantes nem sempre são tão racionais e previsionais como a convicção subjacente revela. Hoje, cada vez mais, os eleitores são influenciados (e incutidos) por um vasto leque de factores "irracionais" e extra-ideológicos como a personalidade, o carisma dos líderes, a linearidade das mensagens e condicionamentos sociais e hábitos vários.

            Em segundo lugar, é discutível que os eleitores sejam atraídos pelos compromissos assumidos nos "manifestos" eleitorais, na perspectiva que o voto seja um endosso ao manifesto na sua plenitude e não num ou noutro aspecto em que os eleitores e revejam. Finalmente, o modelo é fortemente condicionador: limita as políticos do governo ás propostas que o partido anunciou na campanha eleitoral e deixa reduzida margem á capacidade de as adaptar ou mudar em razão de circunstância supervenientes. A doutrina é significativamente aplicável em sistemas de maioria eleitoral, fundamentalmente em sistemas bipartidários.


7.A génese dos Partidos Políticos

            A ambição de ocupar o poder é uma característica essencial da política. O político quer o poder – na forma mais genuína ou propagandística – porque tem uma solução para o interesse público. O Partido é a organização política em que os membros desenvolvem uma acção conjunta com vista à conquista e exercício do poder (39), por meio eleitoral ou qualquer outro, para atribui-lo a uma pessoa, a um grupo ou para fazer vingar uma certa ideologia. O Partido reflecte também este comportamento individual e adiciona e sumaria a energia e os propósitos dos que entendem que só ocupando o Poder lhes permite executar um projecto que na sua forma genuína diz respeito ao futuro da comunidade política e na forma mais perversa à satisfação de interesses sectoriais e privados.

            Até ao chamado Estado Liberal de Direito, os titulares dos órgãos do poder político – as Cortes – limitavam-se a exercer o papel de meros núncios ou mandatários a título imperativo. O reconhecimento da natureza representativa do mandato só se verifica com o estabelecimento de mecanismos democráticos para a sua designação, afirma Marcelo Rebelo de Sousa. (40) (41)

            Os primeiros partidos modernos nasceram, por um lado, da relação com a tradição parlamentar burguesa das sociedades industrializadas do Ocidente ou com o ambiente das mesmas sociedades, o que adita razões aos que entendem que o desenvolvimento de partidos políticos, a interiorização de um sistema pluripartidário poderão ser identificados como sinais de modernização e pluralismo (42).

            Maurice Duverger (43) utiliza, a este propósito, a distinção entre partidos de criação eleitoral e os de criação exterior, consoante surgem relacionados com a citada tradição parlamentar das sociedades liberais ou com circunstâncias históricas excêntricas a esta tradição. Configuram o primeiro tipo, os de criação eleitoral e parlamentar , os partidos fundados com vista ao estabelecimento de uma ligação permanente entre grupos parlamentares, de um lado, comités eleitorais, de outro. O partido cria, a partir do centro, novos comités eleitorais e assim cresce, conferindo a si próprio uma direcção central distintiva da secção parlamentar. Reconhecem-se nos segundos, os de criação exterior – provindos de grupos sociais situados para além do sistema político propriamente dito (44): associações camponesas, sindicais, cooperativas, seitas religiosas, franco-maçonaria, associações de antigos combatentes e outros grupos de interesses ou de pressão, partidos que nascem de certa maneira em oposição ao sistema.

            Deverá se ter em atenção, antes de irmos mais adiante, que existem segundo um conhecido cientista político Joseph La Palombara (45) quatro critérios para distinguir os partidos de outros grupos de pressão, clubes, grupos parlamentares ou cliques. Os Partidos deverão ser assim, em primeiro lugar organizações duráveis, cuja esperança de "vida política" seja superior ao dos seus dirigentes, podendo resultar da iniciativa de um grupo ou de um líder carismático. Em segundo lugar, deverão ser uma organização completa da direcção central até ao nível local, ou de base. Em terceiro lugar, deverão ter a vontade explícita de exercer directamente o poder, sozinhos ou em coligação com outros, ao nível local ou nacional. Finalmente, deverão procurar e conquistar o apoio popular, quer seja a nível de militantes ou de eleitores.

            Para Max Weber (46) o partido político é uma associação que visa um fim determinado, seja objectivo, como a realização de um plano com intuitos ideais ou materiais, seja "pessoal" , destinado a obter benefícios, poder e, consequentemente, glória para os chefes e os sequazes, ou então voltado para todos esses objectivos conjuntamente. A concepção é francamente mais lata que a de La Palambora.

            Os primeiros partidos políticos modernos organizam-se nos Estados Unidos, a partir de 1828, sob o impulso do Presidente Jackson (47). Os partidos britânicos nascem das reformas eleitorais de 1832 (Reform Act) e 1867 que conduzem ao alargamento do sufrágio e à criação das registration societies donde saem as organizações locais dos partidos que se criam após a lei eleitoral de 1832. Em França, os partidos políticos surgem depois de 1848. No Terceiro Mundo, curiosamente os partidos emergem para dar corpo aos movimentos nacionalistas e de autodeterminação contra o poder colonialista e partem, regra geral, de uma situação de ostensiva clandestinidade e ostracismo. Os partidos emergem, na origem, da necessidade de afirmação do poder da classe burguesa contra os privilégios da velha aristocracia e tornam-se com a explosão do movimento socialista e operário porta-vozes do proletariado urbano contra a nova classe possidente. Ou como diria Marx, os parteiros da revolução:

            Em suma os comunistas apoiam em todos os países todo o movimento revolucionário contra a ordem social e política existente. Em todos estes movimentos pôem à frente a questão da propriedade, qualquer que seja a forma mais desenvolvida que revista, como a questão fundamental do movimento. Finalmente, os comunistas trabalham para a união e o acordo entre os partidos democráticos de todos os países (…) Proclamam abertamente que os seus objectivos só podem ser alcançados derrubando pela violência toda a ordem existente. Que as classes dominantes tremam ante a ideia de uma Revolução Comunista! Os proletários não têm nada a perder com ela, além dos seus grilhões. Têm, em troca, um mundo a ganhar (48).

            Daí que se possa afirmar que os partidos nascem com o liberalismo moderno, quer em sintonia com o seu modelo político-económico de sociedade, quer em ruptura com esse modelo. Não que os partidos nasçam automaticamente com o governo representativo, como que num passo de mágica. Isso ocorre porque os processos de tímida representação política, franqueada pelos aristocratas fundiários e seus partidos, desencadeiam reacções vivas de exigência de participação no processo de formação das decisões políticas, por parte de classes e estamentos inferiores da sociedade, excluídos numa lógica de representação censitária elitista e possidente.

            O movimento em direcção à constituição de elites políticas organicamente estruturadas ocorre num tempo de grandes transformações económicas, sociais, culturais que abalam a ordem tradicional da conservadora sociedade liberal e põem definitivamente, em causa, a lógica dos equilíbrios do poder.

            É nesta ocasião que emergem grupos mais ou menos organizados que se propõem agir em ordem à ampliação da gestão do poder político a sectores, que excluídos ou marginalizados, propõem uma estruturação política e social diferente e inovadora para a sociedade.

            Na Inglaterra do Século XVIII os dois grandes partidos políticos da aristocracia, entretanto surgidos – os tories e os whigs – não tinham fora do controlo parlamentar qualquer relevância ou tipo de organização. Correspondiam a simples labels atrás dos quais se acantonavam os representantes de grupos homogéneos, não divididos por conflitos de interesses ou por diferenças ideológicas substanciais, que aderiam a qualquer deles por tradições familiares, locais ou nobiliárquicas. A eles refere-se Max Weber afirmando tratar-se de séquitos de poderosas famílias aristocráticas tanto que quando um Lord, por qualquer motivo, mudava de partido, toda a estrutura social que dependia dele passava, na mesma hora, para o partido oposto (49).

            Só com o Reform Act começam a surgir em Inglaterra algumas estruturas organizativas que têm como finalidade ocupar-se do processo de eleição de representantes para o Parlamento e de recolher votos em favor deste ou daquele candidato. Estas são as primeiras associações locais de suporte eleitoral ás candidaturas ao Parlamento, organizadas por este ou por grupos de aristocratas que se haviam organizado para fazer representar, naquele, os seus interesses confluentes. Associação com um número restrito de "fiéis" que funcionam quási exclusivamente nos períodos eleitorais, dissolvendo-se após estes. A sua identidade partidária, a sua expressão programática começa e acaba no Parlamento, preparando o programa e fazendo eleger os líderes do partido. A isto acrescia que os deputados tinham um mandato absolutamente livre, não sendo responsáveis pela sua actividade política, nem perante o partido, nem frente aos eleitores, respondendo, como se dizia, pela sua «própria consciência».

            Nos anos que precederam e se seguiram ao fim do Século XIX, a situação começa a mudar, com o desenvolvimento do movimento operário. As transformações económicas, sociais, populacionais, despertadas pelo fenómeno da industrialização capitalista cataduplaram para a ribalta política as massas populares até aí mantidas ostensivamente à margem da vida pública e da agrupação de interesses. Com reivindicações que inicialmente se expressavam em movimentos espontâneos de protesto contra as miseráveis condições de vida, os magros salários, as condições desumanas de organização do trabalho e alojamento social, rapidamente adquiriram uma dimensão mais política, por acção de intelectuais burgueses que enquadraram essas exigências, aditando-lhe pontos reivindicativos de clara transformação social e de ruptura política com o status quo.

            Na verdade, com o desenvolvimento do movimento operário surgem os primeiros partidos de massas - os partidos socialistas - em 1875, na Alemanha, em 1892, na Itália, em 1900, em Inglaterra, e em 1905, na França. Estes distinguem-se dos partidos de notáveis ou de quadros em vários aspectos: têm um vasto apoio de massas, uma organização difusa e estável com um corpo de funcionários profissionalizados (50) e um programa político-sistemático.

            Estes aspectos visam responder ao desígnio da criação dos partidos socialistas, enquanto partidos dos trabalhadores adstritos a uma lógica classista de representação horizontal e emancipação económica, social e política das massas laboriosas.

            Para esse objectivo era necessário educar as massas, torná-las politicamente activas e conscientes do seu papel. Para que isso ocorresse era necessário mais que uma genérica agitação política aquando das eleições e não tinha grande interesse a actividade parlamentar. Era essencial que se criasse uma estrutura organizativa estável e articulada, capaz de enfrentar uma acção política contínua que envolvesse o maior número possível de trabalhadores e que atingisse toda a esfera da sua vida social, que enquadrasse as suas exigências específicas e as articulasse num programa geral.

            A estrutura assim criada desenvolve-se numa geometria piramidal: na base, as uniões locais, secções ou círculos, enquadrando os militantes de base de determinado espaço territorial, têm reuniões periódicas onde discutem os principais problemas políticos e organizativas, ocupando-se da actividade de propaganda e elegendo os seus próprios órgãos de direcção; por sua vez, as secções estão organizadas a nível provincial e regional em federações, que constituem os órgãos intermediários do partido, com funções fundamentalmente de coordenação; finalmente , a cúpula é constituída pela direcção central, eleita pelos delegados enviados pelas secções ao Congresso Nacional, órgão máximo de deliberação dentro do partido, o qual estabelece a linha política a que devem sujeitar-se todos os níveis do partido, desde as secções à direcção central. Todas as funções de responsabilidade são de carácter electivo, sendo função dos Congressos escolher os candidatos às eleições. Estes se eleitos têm um mandato imperativo e são obrigados a uma rígida disciplina partidária na sua actividade parlamentar.

            Este era o modelo que podemos chamar hoje em dia de «partido de aparelho» ou «partido de organização de massas» e que se aplica claramente á evolução do partido social-democrata alemão, do Labour, dos partidos socialistas francês, italiano ou espanhol.

            A introdução do sufrágio universal, a rápida ascensão dos partidos operários e socialistas no mundo industrializado, a ruptura com os partidos comunistas, a sua parcial ou total integração no sistema político veio produzir mudanças sensíveis nos partidos do sistema. Depois de numa primeira fase revelarem uma acentuada hostilidade em relação aos partidos de massas, os partidos de notáveis não puderam, por fim, mais que render-se à lógica de alargamento da participação popular nos círculos e comités eleitorais, que claramente beneficiava os partidos socialistas, os quais a partir da criação da Internacional Socialista decidem romper a unidade com os comunistas e democrata-revolucionários e jogar dentro do sistema.

            É curioso assinalar que tendo nas suas mãos o controlo do poder político, do exército e da burocracia estatal, os partidos burgueses puderam impedir, durante algum tempo, a integração política dos partidos dos trabalhadores e neutralizar a concorrência do seu aparelho mais bem organizado e mobilizador, consolidado nos distritos eleitorais.

            Na Grã-Bretanha – onde o Partido Trabalhista, fundado pelas trade-unions foi aceite como aspirante legítimo ao exercício do poder - o Partido Conservador britânico inicia a sua transformação em partido de massas, no fim da 1ª Guerra Mundial. Na Europa continental isto só veio a ocorrer depois da 2º Guerra Mundial, quando os partidos de comités eleitorais são obrigados a criar um aparelho estável para garantir uma eficaz penetração nos eleitores, criando uma clientela de massas e uma malha de coligações com grupos e associações da sociedade civil, capaz de conferir aos partidos uma base estável de mobilização e unicidade programática e política.

            Daí que os partidos de notáveis tenham evoluído para partidos eleitorais de massa não dirigidos a uma classe ou estrato social homogéneo da sociedade, não se propondo uma gestão alternativa da sociedade e do poder, mas procurando ganhar a confiança eleitoral dos mais diversos estratos da população, decalcando a sua organização no modelo dos partidos operários. Baseados em plataformas amplas e flexíveis, procurando responder aos mais diversificados anseios e problemas sociais, os partidos eleitorais de massa ganham proeminência.

            Precisamente porque os seus objectivos são essencialmente eleitorais, a participação de militantes na formulação da plataforma política e na escolha de dirigentes é puramente formal e ritualista. Mais que o debate político de base, a actividade crucial destes partidos é a ratificação da escolha dos candidatos às eleições, que devem responder a um conjunto de requisitos destinados a aumentar o potencial eleitoral do partido, já que ocupando posições-chave na sociedade podem procurar para o partido novas clientelas e fornecer os meios financeiros necessários ao seu crescimento. O partido eleitoral de massa é o último a surgir no plano europeu.

            A conquista de lugares no Parlamento e a gestão dos negócios públicos a nível nacional e local vai permitir o aumento das massas votantes nos partidos eleitorais de massas, que a partir dessa posições podem corresponder às exigências dos vários grupos da população e legitimar o seu apoio. Dado não existir, neste tipo de partidos, uma disciplina partidária que coordene a acção dos vários representantes eleitos para a assembleia parlamentar, pelos círculos eleitorais, nenhuma acção política organizada e unificada, o partido assume tantas «faces» quanto a natureza e expressão societária dos interesses, camadas sociais ou zonas geográficas que agrega e representa. Na ciência política, estes partidos são por vezes designados por partidos-pega-tudo (51).

            Em termos de simbólica a normalização do sufrágio e o crescente papel partidário associados ao mandato imperativo conduziram a uma identidade entre o representante e o partido político que faz parte, na qual é polarizada a opção do eleitorado. Com a transição para o chamado Estado Social de Direito, as leis constitucionais começam a acolher no quadro legal os partidos, consagrando neles o exclusivo da representação política geral.

            A adopção do modelo de escrutínio proporcional vai pôr em destaque a mediação partidária, destruindo os últimos sinais do Estado Liberal, na vertente da independência do representante face ao eleitorado e ao partido. Paralelamente assiste-se ao reforço da importância da representação política parcelar, estratificada, do papel das minorias no Estado Democrático, do reforço da acção e multiplicação dos grupos de lobbying político, económico e social.

            Como o constatam Seymour M. Lipset (52), Stein Rokkan (53), Richard Rose (54) e Derek Urkin (55), de 1945 a 1967, não se verificam grandes mudanças na estratificação e sistema de partidos. A explosão de movimentos independentistas no Terceiro Mundo trará á ribalta um novo tipo de partidos de massas, profundamente nacionalistas, com uma direcção político-censitária decalcada dos partidos de notáveis do século XVIII na Europa, mas legitimados por um fervor ideológico que se irá confundir com os Estados Nacionais que criam das cinzas do colonialismo.

            A crise do sistema de representação proporcional que se agrava durante os anos 70 e 80 vai problematizar os anacronismos e as mistificações de um Estado de Partidos que aparecem aos olhos das elites como profundamente redutor e totalitário quanto à representação dos interesses plurais da sociedade. O papel das novas minorias sociais profundamente militantes e não-acomodatícias, o ascenso de novos estratos sociais, o esvaziamento ideológico dos partidos, a partidarização da representação local e municipal de interesses vem pôr em causa a estabilidade do sistema.

            O fim dos anos 80 vai assistir ao aparecimento de partidos de contestação que não se revêem na desmobilização programática dos partidos clássicos e lançam novas temáticas políticas, como a defesa do meio-ambiente, a ecologia, o combate à energia nuclear. Questões que pelo seu carácter segmentário escapam á lógica massificadora dos partidos tradicionais, eleitorais de massas. Configurando, no início, um fenómeno particular das sociedades desenvolvidas do Norte da Europa, estas formações partidárias despertam em toda a Europa, pondo em causa a lógica da bipolarização favorecida pelos sistemas de representação proporcional (56). Não obstante algumas opiniões que prevêem a diminuição das acções políticas de protesto e contestação, à medida do desenvolvimento e expansão de influência das sociedades pós-industriais do Ocidente, outros argumentam com a frequência dos protestos e outras formas de acção política "desenquadradas" nos últimos vinte anos, precisamente nas nações mais desenvolvidas (57). Tendência que se reforçará no futuro.


             

8.O estiolamento da função representativa

            Embora os partidos políticos sejam definidos por uma função central – a conquista e exercício do poder - o seu impacto no sistema político é substancialmente mais complexo. Daí que as funções que cumprem em democracia podem ser extensas, acompanhando a complexidade do fenómeno político.

            A representação é vista, no entanto, como a mais importante das funções políticas. Simboliza a capacidade dos partidos representarem e articularem os pontos de vista quer dos seus membros, quer dos eleitores. É instrumento de integração privilegiado que assegura que o governo acolha as necessidades e sentimentos nutridos pelo vasto espectro da sociedade.

            A função de representação é claramente melhor cumprida num sistema aberto e competitivo que force os partidos a responder ás preferências dos eleitores. Anthony Dowes (58) caracteriza esta função sugerindo de uma forma singular que o mercado político é semelhante a um mercado económico em que os partidos actuam como empresários à procura de votos, transformando os partidos em estruturas empresariais. O poder reside, ao fim e ao cabo, nos consumidores, os votantes.

            O modelo de Dowes é susceptível de crítica quanto ao diminutio ético que implica, mas é hoje evidente que com a complexidade dos fenómenos eleitorais, com a penetração dos media como concorrente mediador da sociedade, o combate político recorre mais aos instrumentos do marketing research do que do confronto de projectos políticos claros e distintos, firmados em princípios. O apelo á irracionalidade do eleitor é tentacular e profundamente sedutor.

            Por outro lado, dado o papel crucial que os partidos desempenham nas sociedades pós-industriais dos nossos dias, como espelho que são da realidade social em que se encontram embebidos, a crise de um certo modelo de representação proporcional desperta interrogações quanto aos interesses que verdadeiramente servem. São os partidos verdadeiras instituições democráticas que possibilitam a participação dos militantes e aderentes em todos os aspectos da vida colectiva? Ou são simplesmente instrumentos de legitimação dos líderes cooptados pela elites e impostos aos militantes?

            Um dos contributos clássicos para a discussão desta problemática foi dada por Robert Michel num trabalho intitulado «Political parties: a sociological study of the oligarchical tendencies of modern democracy», em que analisa a distribuição do poder do SPD alemão. Michels (59) argumenta que não obstante a organização formalmente democrática do partido, o poder concentra-se na mão de um pequeno número de líderes, segundo uma lógica que designa por «a lei de ferro da oligarquia». Segundo esta lei, existe uma tendência inevitável para as organizações políticas – e por extensão todas as organizações – serem oligárquicas.

            Isto ocorre segundo Michel por três razões fundamentais: primeiro porque dados os custos de transação em grandes organizações, os partidos só conseguem uma adequada coordenação por diferenciação funcional e relações hierárquicas de controle organizacional por líderes designados; em segundo lugar, a massa dos apoiantes não tem os recursos nem as inclinações para governar a organização pelo que é dirigida por líderes fortes, com forte carisma; em terceiro lugar, os líderes são políticos profissionais que vivem da política, mais que para a política. Todos estes factores favorecem o status quo.

            Conclui Michel que as estruturas participativas ou democráticas não podem controlar estas tendências, unicamente podem disfarçá-las.

            A visão «conspirativa» subjacente à tese de Michel foi vivamente criticada pela sociologia política (60), mas seria ulteriormente retomada por Robert McKenzie que num trabalho de 1955 (61) sobre o sistema partidário inglês, combateria a visão tradicional que o Partido Conservador era elitista e dominado por uma lógica de hegemonia dos líderes, enquanto o Labour se caracteriza pela forte cultura democrática interna. McKenzie conclui que não obstante as lógicas internas distintas e diferentes sistemas de valores, ambos os partidos são dominados pela rede dos líderes parlamentares e rendem-se à lógica dos seus interesses, sendo por outro lado os grupos parlamentares «câmaras de eco» das orientações das direcções parlamentares e rendem-se à lógica dos seus interesses, sendo por outro lado os grupos parlamentares «câmaras de eco» das orientações da direcção parlamentar.

            Procurando contrariar esta tendência concentracionária, várias reformas são tentadas ao longo dos anos 70 e 80 para reforçar a democraticidade interna e a participação dos militantes na vida partidária. Iniciativas que têm lugar sobretudo quando os partidos sofrem pesadas derrotas eleitorais, que os afastam vários anos do poder (62).

            Este problema é fundamental porque imbrica directamente com a outra função dos partidos políticos a que aludimos em primeiro lugar. Se nos partidos políticos preside uma lógica aparelhística, oligarquista de perpetuação política da elite que dirige o Partido e o representa no Parlamento, é discutível que quer o partido quer os deputados se sintam "obrigados" em responder ás expectativas e anseios da sociedade civil. É que não obstante a proibição do "mandato representativo" subsiste na lógica da representação política mediada pelos partidos uma obrigação não só moral, como política de responder pelos distritos (constituencies) em que os candidatos à eleições são propostos.

            Não é este o local para desenvolver esta questão, mas sempre se adiantará que a opção por círculos plurinominais ou por listas, em que os candidatos partidários aparecem geograficamente por círculos que não da sua naturalidade ou residência – conforme o interesse partidário na distribuição das front figures – retira credibilidade á pretextada responsabilidade dos deputados pelos seus eleitores.

            A evolução nas nossas democracias de sistemas de governo multipartidário para bipartidário, por forma a propiciar maiorias parlamentares pré ou pós-eleitorais duradouras pode ser considerada como uma das causas da deficiente accountability dos sistemas políticos modernos mediados pelos partidos.


9. A crise do Sistema de Partidos e o Pós-Modernismo

            O fenómeno da representação política através dos partidos é o aspecto mais decisivo e ao mesmo tempo controverso das democracias representativas modernas. Os partidos assumem-se como promotores de programas políticos e de formulação de alternativas políticas de gestão dos assuntos públicos, mas dificilmente conseguem concretizar os seus intentos, forçados a negociar coligações ou apoios parlamentares, por vezes espúrios, para poderem cumprir uma legislatura.

            O mecanismo da representação política é hoje o resultado de um processo de encenação entre organizações partidárias, na melhor estratégia para a conquista e manutenção do poder, que quási se esgota em si próprio face a um público que funciona formalmente como um juiz, mas muitas vezes como mero espectador que se espera cinzento, taciturno e pouco activo.

            O papel do deputado tornou-se, portanto, equívoco, adstrito à lógica da disciplina partidária: ecoar no mecanismo plural dos votos na Câmara as decisões da direcção partidária, votar de acordo com elas, sendo-lhe raramente permitido que vote "por consciência" em questões de valoração pessoal, de forte componente ética ou moral.

            Há hoje face à clara desvalorização do debate ideológico e programático entre esquerda e direita, socialismo, liberalismo e conservadorismo, um claro predomínio dos partidos eleitorais de massas como a essência do regime representativo. Daí que a distinção entre partidos ideológicos e partidos democráticos tenha, talvez, perdido sentido: o núcleo programático que até há pouco tempo os diferenciava em conservadores, liberais ou socialistas, deixou de ser um elemento com qualquer relevância na mobilização e escolha dos eleitores.

            Hoje as eleições ganham-se e perdem-se nos debates televisivos, na forma como se faz passar a imagem do líder partidário nos media, fazendo revestir o candidato-chave dos facies que representem o sentir, as expectativas das várias classes de eleitores, num determinado momento conjuntural. Neste sentido, poderemos afirmar que existe uma clara descaracterização ideológica dos partidos, em benefício da obsessiva personificação mediática do líder partidário. Líder este que vale por si, muitas das vezes contra o estilo e o perfil do próprio partido e do seu aparelho ou grupo de notáveis.

            As eleições ganham-se hoje ao centro, no eleitorado da classe média que não guarda fidelidades, nem convicções, mas que avalia em cada momento de viragem (ou de entropia) qual o partido que melhor pode responder aos seus anseios ora de mudança, ora de estabilidade e consumismo.

            Ecoa-nos, por isso, o incontido libelo de Rousseau contra o artificialismo da representação política própria do Estado Liberal (63):

            A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa: ou é a mesma, ou é outra – não existe meio-termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser os seus representantes; são simples comissários, e nada podem concluir definitivamente. Toda a lei que o povo não tenha ratificado directamente é nula, não é uma lei. O povo inglês pensa ser livre, mas está redondamente enganado, pois só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, ele é escravo, não é nada. Nos breves momentos de sua liberdade, pelo uso que dela faz bem merece perdê-la.

            Talvez porque por vezes perceba que pouco vale tê-la, o eleitor moderno tenha hoje um comportamento sui generis: quando chamado a eleições regateia a maioria aos partidos que a reivindicam, tornando-os dependentes das coligações de interesses explicitadas pela vida parlamentar; ou pura e simplesmente demite-se do exercício do direito do voto (64).

            Na opinião de Russel J. Dalton (65), o sistema de representação encontra-se em crise uma vez que os partidos estabelecidos foram confrontados com novas exigências e desafios e a mudança partidária tornou-se notória. Na base deste desenvolvimento está uma relação decrescente entre as clivagens sociais tradicionais e a escolha partidária. Por causa desta erosão na tradicional base social do votante, os sistemas partidários tornaram-se mais fraccionados. As flutuações nos resultados eleitorais aumentaram. O voto é agora caracterizado por altos níveis de instabilidade partidária ao nível agregado e individual. Por outro lado, como refere outro autor (66) paralelamente a estas tendências existe o que podemos chamar por «anti-política», isto é, a emergência de movimentos e organizações políticas cujo único ponto comum parece ser a sua antipatia face aos convencionais centros de poder e a sua oposição aos partidos estabelecidos. Exemplos disso são o partido do bilionário Ross Perot que nas eleições presidenciais de 1992, obteve 19% dos votos expressos, o sucesso do empresário dos media Silvio Berlusconi com a Forza Italia em 1994.

            Os Partidos que provieram da Revolução Industrial confrontam-se, hoje, com questões novas que manejam com alguma imperícia ou relutância como a protecção do meio ambiente, a igualdade social, a energia nuclear, a igualdade sexual e formas alternativas de sexualidade, a legalização do consumo dos estupefacientes, a inclusão das minorias étnicas ou a explosão das novas tecnologias e da sociedade de informação.

            Um dos problemas é que os "partidos do status quo" são vistos, sobretudo pelos novos estratos dos eleitores como máquinas políticas burocratizadas onde o contributo dos militantes é senão desprezada pelo menos despiciendo. Por isso, os grupos de protesto temáticos têm maior sucesso em atrair militantes e apoios nomeadamente entre os jovens, provavelmente porque são mais flexíveis, mais locais, mas também porque coloca uma maior ênfase na participação e na militância. A imagem pública dos partidos do status quo tem sido atingida pela sua conexão com o tráfico de influências e com os sinais de corrupção.

            Os cidadãos exigem maiores oportunidades de participação nas decisões que afectam directamente a sua vida, actuam de uma forma por vezes egoísta em relação ao interesse geral e pressionam por uma maior democratização da sociedade e da política. Democratização que querem, apesar dos partidos e regra geral fora deles. Há provavelmente uma emancipação das exigências de bem-estar ou melhoria das condições de conforto e sociabilidade comunitária extra-partidário e muitas vezes contra eles (67).

            Daí que vários autores (68) refiram que estamos a assistir a uma reestruturação permanente dos alinhamentos políticos como resultado das mudanças socio-económicas da industrialização avançada. Eles defendem que as democracias industriais estão a experimentar uma terceira revolução – a Revolução Pos-Industrial – como resposta aos novos interesses, aos novos modos de participação, às novas expectativas àcerca do papel do cidadão na sociedade. Os sistemas partidários estão em estado de acentuada catarse, mas é difícil concluir se o fim do actual sistema de partidos está à vista.

            Uma outra explicação é que a actual crise do sistema representativo seja um sintoma do facto que as modernas sociedades são cada vez mais difíceis de governar. Desilusão e cinismo cresceu e instalou-se á medida que os partidos proclamam a sua capacidade para responder a todos os problemas das pessoas mas uma vez no poder esquecem-se do implementar. Isso reflecte-se nas cada vez maiores dificuldades com que se confronta qualquer partido no poder face ao poder expansivo dos grupos de interesse e de uma economia global. Outra explicação é que os partidos estão em crise porque as identidades sociais e as tradicionais afinidades que os projectaram estão a desaparecer e as próprias solidariedades que consolidam uma sociedade civil estão fragmentadas.


10.Conclusão

            O fenómeno da representação política no mundo contemporâneo traveja-se na doutrina do governo representativo que vem de Locke, Bentham, John Stuart Mill, Benjamin Constant, mas também de Alexis de Tocqueville e na procura, sempre inacabada, de uma adequada representação de interesses e expectativas da sociedade civil. Essa projecção no corpo político dos anseios e expectativas da base social, é algo fundamental na história do liberalismo e na sua visão da necessidade e plausibilidade de aperfeiçoamento da sociedade humana, com base na defesa dos direitos do indivíduo, da democracia e do pluralismo, do sufrágio eleitoral e nas virtualidades do mandato representativo.

            Os checks and balances da representação política vêm caracterizando as democracias ocidentais, constituindo um instrumento fundamental para as manter vivas e obstar ao desvio que sempre as espreita para o totalitarismo, o despotismo, o abuso de poder, o tráfico de influências, a corrupção. O manejamento dos interesses existentes na sociedade, sobretudo os menos transparentes, é de facto dos maiores e mais difíceis desafios das sociedades pós-industriais, porquanto o seu agrupamento como mecanismo de pressão sobre o político não tem tido uma resposta eficaz e moralizadora por parte do poder político, possibilitando nessas meias-tintas o aumento da desconfiança do público (e do eleitor) quanto à honorabilidade do político e as suas promessas de honrar o interesse público e servir quem o elegeu.

            A criação do chamado terceiro poder – os media - e o seu disparar em termos de importância, nos últimos decénios, pode constituir um outro factor de lubrificação do sistema político, de reforço da legitimidade da representação política, da transitoriedade do exercício do poder, que o que distingue, a final, um regime democrático de um ditatorial.

            Os partidos políticos, criação do Estado Liberal, estão hoje confrontados com este tipo de desafios e padecem de um evidente afastamento face aos novo segmentos de leitores, que não se revêm na lógica burocrática, aparelhista, que os caracteriza e que pouco menos que cilindra a diversidade de opiniões, a autonomia individual, o direito á indiferença, mostrando um profundo desconforto perante as novas questões sociais como a defesa do meio ambiente, a protecção das minorias, as novas sexualidades, o combate à exclusão. E estão cada vez mais afastados do seu eleitorado tradicional que desconfia das suas intenções, da sinceridade dos seus programas e promessas eleitorais, da responsabilidade dos seus eleitos para o Parlamento em cumprir ( e responder) pelo mandato que periodicamente lhes é confiado.

            O ideal da soberania popular directa defendido por Rousseau é em si um ideal, difícil, senão impossível de concretizar nas sociedades complexas, exigentes dos nossos dias. A tentação do desvio totalitário, como vimos no terror robespierriano, na sovietização imposta por Lenine á coronhada, é a ameaça latente que o confronta e invalida. A democracia directa subsiste como fenómeno residual nalguns cantões da Suiça, nas comunidades agrárias quaquers e mormons dos Estados Unidos e pouco mais.

            Democracy is the worst form of government except all the other forms that have been tried from time to time, disse Sir Winston Churchill num discurso famoso em 1947 na Câmara dos Comuns. A democracia não é um fim mas um meio disse outro autor.

            A democracia representativa persiste como o modelo possível, exequível, de poder mediado através dos representantes, agrupados em partidos políticos. É evidente e não pode ser negada a crise do sistema de representação e dos partidos. Por pressão das circunstâncias e dos tempos os partidos transformaram-se mais em máquinas eleitorais de eleição de líderes do que em plataformas de concepção e propositura aos eleitores, de opções políticas claras, distintas.

            Os partidos deixaram, pouco a pouco, de ser partidos de massas, vivendo das suas energias, dos seus entusiasmos, da sua mobilização. São máquinas de produção de líderes cooptados por elites dirigentes e submetidos a sufrágio censitário. São partidos de notáveis de uma nova aristocracia, sufragada pelas câmaras de televisão, pelos pools de opinião, amovível á velocidade (e cansaço) dos eleitores-consumidores.

            Porque se tornaram artificiais, viram surgir ao lado movimentos, partidos cujo único ponto comum é serem frontalmente contra os interesses instalados e se mobilizarem por objectivos parcelares, normalmente singulares e que vorazmente captaram os votos dos eleitores inconformados, ávidos de mudança e, sobretudo, desejosos de uma política mais autêntica.

            Estamos, certamente, a assistir a uma reestruturação dos alinhamentos políticos, das famílias ideológicas, das estruturas de representação para dar corpo (e forma) a estes novos interesses da sociedade que não se revêem no sistema político vigente. Irá o governo representativo resistir a essa mutabilidade nas preferências dos eleitores ou irá adaptar-se a elas é a questão que fica em aberto.


Notas

            1 «Compete a uma mesma ciência procurar a propósito da melhor forma de governo, o que ela é, quais são as condições que podem dar-lhe a perfeição desejável, independentemente de todos os obstáculos exteriores, e qual é a que convém mais a este ou aquele povo, pois é provavelmente impossível à maior parte deles possuir a mais excelente «...» Não se trata apenas de considerar a melhor constituição, mas a que for mais praticável, e a que for de mais fácil execução, e a que se ajustar melhor aos diferentes Estados».

            2 Diz Platão (427-347 a.c.) nas Cartas «o género humano não verá melhores dias até que os legítimos partidários da verdadeira filosofia recebam o poder nas suas mãos, ou que aqueles que geralmente têm o poder nas mãos se transformem, mediante a influência de poderes mais altos em verdadeiros filósofos»

            3 Diz Platão na República que a democracia é a menos boa das formas boas e amenos má das formas más de Governo e acrescenta «sob todo o aspecto é fraca e não traz nem muito benefício nem muito dano se a compararmos com outras formas de governo, porque nela estão pulverizados os poderes entre fracções, entre muitos. Por isso de todas as formas legais, é esta a mais infeliz, enquanto que entre outras que estão contra a lei é a melhor. Se todos forem desenfreados é na democracia que há mais vantagem em viver».

            4 Acolhemos aqui a caracterização do espectro político e partidário feito pela ciência política americana e que posiciona as várias opções face à ideia de mudança política e de valores políticos, alinhando-as da esquerda para a direita, respectivamente: radical, liberal, moderado, conservador e reaccionário. Neste perspectiva analítica, o pensamento reaccionário ou ultra-direitista propugna o regresso a um estado anterior da evolução social e política ou a outra escala de valores entretanto precludida pela obra da modernidade. Ver Negel Ashford e Stephen Davis, A Dictionary of Conservatism and Libertarian Thought, New York, Routledge, 1991, Robert A. Nisbet, Conservatism, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986.

            5 Referenciamos aqui «liberalismo» numa dupla acepção, compreendendo o liberalismo clássico (classical liberalism) e o liberalismo contemporâneo (modern liberalism). A distinção assenta no seguinte: enquanto os liberais clássicos tendiam a focar-se nos direitos individuais (liberties), de propriedade, relativos, portanto respeitantes à salvaguarda da liberdade do self, os modernos liberais vêem as pessoas em termos colectivos e enfatizam os direitos humanos. Mas ambas as concepções ou etapas na evolução do pensamento liberal partilham a mesma crença na individualidade, na liberdade, na razão, na igualdade, na tolerância, no consenso e no constitucionalismo.

            6 A igualdade perante a lei dos gregos.

            7 Alexis de Tocqueville, The old regime and the French Revolution, 1856 (1947), Oxford, Blackwell.

            8 Diz Péricles na Oração Fúnebre «Um cidadão ateniense não descura o Estado a favor dos seus negócios particulares. Mesmo aqueles de entre nós que procuram o lucro estão imbuídos de ideias políticas esclarecidas. Um homem que não se interesse pelos problemas públicos é para nós não apenas perigoso, mas inútil. Bem poucos de nós são autores, mas todos somos críticos da Política».

            9 Desde que o indivíduo toma a palavra em público, afirma Jurgen Habermas em ‘’The Theory Of Communicative Action – 1. Reason and the rationalization of Society’’’, Polity Press, Nova York, 1996 «pretende enunciar uma verdade e supõe, imediatamente, a possibilidade de uma argumentação racional num espaço comum segundo as regras universais».

            10 Diz Montesquieu no Esprit des Lois que a república democrática é aquela em que a soberania está nas mãos do Povo, distinguindo a democracia directa da representativa. O princípio prevalecente é o civismo e a sua legislação deve manter a igualdade e a pureza dos costumes.

            11 In ‘’Soi-même comme un autre’’, Paris, Seuil, 1990.

            12 Ver ‘’The Theory Of Communicative Action - 1 Reason And The Rationalization Of Society’’, Jurgen Habermas.

            13 Francis Fukuyama em The End of History and the Last Man, Penguin Books, London, 1992, pág. XI

            14 Immanuel Wallerstein com Terence Hopking em The Age of Transition – Trajectory of the World System, 1945-2025, Zed Books, London, 1996.

            15 Na tradução portuguesa publicada na Editora Fragmentos, Lisboa, 1996.

            16 As mulheres só viram reconhecido o seu direito a participar no sufrágio e na vida pública só muito recentemente – na Suiça só em 1971. Antes da era moderna, o povo era desencorajado de encontrar soluções para os seus próprios problemas. A população deveria fazer o que lhe era ditado pelos seus líderes espirituais e temporais. Às pessoas comuns não era permitido participar no sistema político. A política estava reservada aos reis à frente de uma pequena classe dirigente. Frederico II da Prússia comentaria a propósito ‘’uma guerra é qualquer coisa que não deve preocupar o meu povo’.’

            17 In Liberalismo Contemporâneo, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 2000, pág. 23.

            18 Como refere António Paim de acordo com o modelo de Locke «os eleitores foram agrupados em circunscrições limitadas, que tomavam como base as divisões administrativas consagradas. Cada shire (condado ou distrito) elegia dois representantes. Existindo 300 dessas divisões, o Parlamento constituía-se de 600 deputados. Os eleitores tinham que possuir bens de raíz e determinados níveis de renda».

            19 In ‘’A Dictionary of Political Thought’’, Macmillan Reference Books, 1982, pág. 268.

            20 Max Weber, ‘’From Max Weber: essays in sociology’’, 1948, Londres, Routledge & Kegan Paul.

            21 ‘’A liberdade consiste em poder fazer aquilo que não prejudica os outros’’ diz o artigo 4º da Declaração francesa de 1789. ‘’Embora o estado de natureza seja um estado de liberdade não é de modo algum um estado de libertinagem’’ clarificava Locke no Tratado do Governo Civil. Atento á reserva da liberdade dos outros, escrevia Montesquieu em ‘’L’Esprit des Lois’’: «a independência provoca a anarquia e desemboca na opressão; a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que se deve querer e em não ser obrigado a fazer aquilo que não se deve querer»

            22 Felix E. Oppenheim in ‘’Dimensioni della libertá’’, 1962.

            23 É muito curiosa a aproximação de Georges Burdeau a esta faceta da sociedade liberal «o liberalismo dá mais importância ao seu fundamento que às suas consequências. E a liberdade pertence a todos os homens, ainda que nem todos estejam igualmente habilitados a usá-la. Todavia essa desigualdade no uso da liberdade não é uma predestinação; é a consequência duma falta de jeito que a experiência e a reflexão podem corrigir(...) O facto de essa liberdade se exteriorizar no plano económico pela promoção dos vencedores, o facto de socialmente essa liberdade os instalar numa situação dominante, nada tem que deva surpreender e muitos menos causar indignação. As diferenciações que provoca não infirmam a sua universalidade; provam apenas que se todos os homens têm a vocação da liberdade, pertence a cada um realizar as suas promessas pelo uso que dela sabe fazer» in ‘’Le Libéralisme, Éditions du Seuil, Paris, 1979, pág. 27

            24 Na versão portuguesa publicada pela Martins Fontes.

            25 Diz Locke no Ensaio sobre o Poder Civil que o Estado de Natureza sendo um estado de paz – uma situação em que a sociedade civil não existe - o contrato social pode bem ser uma convenção limitada, condicional e revogável conduzindo á liberdade e não à servidão. No estado de Natureza os homens são livres e iguais, a família existe com o poder paternal, diferente do poder político. O direito de propriedade é respeitado. O princípio de cada um neste estado é a conservação individual, o princípio de «de todos» é a salvaguarda do género humano. No Estado de Natureza, as violações do direito natural são sancionadas pela justiça privada.

            26 Reza a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, «consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: todos os homens são criaturas iguais, são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis e, entre estes, acham-se a vida, a liberdade e a ânsia da felicidade; os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados; quando a forma do governo se torna opressora desse fim, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo».

            27 Em rigor, a clivagem entre pensamento liberal francês e inglês a propósito da conceptualização dos direitos consagrantes da liberdade é artificial: os homens da Revolução Francesa foram hostis ao poder, mas o Estado que eles combatem é o Estado Absolutista, opressor da autonomia individual, colocando e claramente defendendo um outro Estado fundado sobre o contrato social, mas que fosse respeitador da ordem natural, não tendo outros poderes que aqueles que os homens lhe delegaram para que ele garantisse a sua liberdade. O impulso para a estigmatização do Estado, vem de um outro leque de pensadores liberais, entre os quais Benjamin Constant e Spencer, que viam na acção do Estado um pretexto para a correcção de injustiças decorrentes dos excessos de autonomia individual e da iniciativa burguesa.

            28 Publicado pela Routledge, London, 1996.

            29 Edmund Burke, ‘’On government, politics and society’’, Londres, Fontana, 1975.

            30 Como refere António Paim in ob. cit supra «o mandato imperativo é a denominação que se dá ao tipo de delegação que era atribuída aos representantes dos Estados Gerais ou Cortes. Essa instituição existiu em diversas monarquias europeias e não tem maior relação com o Parlamento moderno»

            31 John Stuart Mill, Utilitarism, Considerations on Representative Government, Philosophy and Religious Writing, Everyman, London.

            32 É incontornável também o contributo de Edmund Burke (1729-1797) para esta questão, designadamente na crítica feroz que faz da Revolução Francesa em Reflections on the Revolution in France concluindo que desde que a revolução separou a França do seu desenvolvimento passado, substituindo a monarquia pela república colocou uma ameaça dramática à própria civilização francesa. Burke acreditava que as instituições de uma sociedade são o resultado de uma sabedoria acumulada ao longo de séculos. Nenhuma geração tem o poder de produzir mudanças abruptas que melhorem a sociedade. Ao mexer com instituições que aperfeiçoaram ao longo de séculos os povos podem destruir as próprias sociedades. Nesta perspectiva, o primeiro objectivo do governo é a manutenção da ordem. Defendendo o governo representativo, Burke identificava-o com a própria instituição do Parlamento, o qual não deveria ser controlado pelo povo. Ao contrário, o Parlamento seria uma instituição através da qual a minoria deveria governar a maioria, embora de uma forma benevolente. Daí que o critério de recrutamento dos governantes deveria passar por três requisitos cumulativos: ability, property e high birth. Como consequência directa, Burke recusou a ideia de Locke que os membros do Parlamento estão vinculados aos desejos e pontos de vistas dos seus constituintes, o que é curioso num pensador conservador mas próximo da perspectiva liberal que vimos acompanhando. Benjamin Constant tem, neste aspecto, uma visão censitária de representação política quando respiga «se bem que seja desejável que as funções representativas sejam ocupadas, em geral, por homens, senão da classe opulente pelo menos abastada. O seu ponto de partida é mais vantajoso, a sua educação mais cuidada, o seu espírito mais livre, a sua inteligência melhor prepara para as luzes. A pobreza tem os preconceitos como a ignorância». Benjamin Constant in’’Principles de politique, Paris, 1815, pág 364.

            33 In ‘’The Social Contract World´´s Classiques’’, Oxford University Press, 1996.

            34 In Liberalismo Contemporâneo, ibid, pág. 20-1.

            35 In O Futuro da Democracia, Publicações Dom Quixote, 1988.

            36 É essa por exemplo a tradição que se verteu na Constituição Americana, por influência de Jefferson, Washington, Hamilton e outros Founding Fathers.

            37 É esse o caso político-constitucional português e espanhol em que as Regiões Autónomas fazem valer o voto dos seus deputados nos debates nacionais decisivos, como a aprovação do programa do governo e dos orçamentos anuais, contra por vezes a própria disciplina das direcções partidárias, para ganhar dividendos políticos ou viabilizar governos de minoria e de maioria, à tangente.

            38 Ver A.H. Birch, Representation, Londres, Macmillan, Praeger, 1972 e L. LeDuc, R. Nienni e P. Nunies, Comparing Democracies: elections and voting in global perspective, Londres, Sage, 1996.

            39 É incontornável o contributo tantas vezes esquecido de Carl Schmitt para uma análise hobbesiana da vida política, a que ciclicamente somos compelidos a regressar, para não perdermos clarividência. Ver ‘’The concept of the Political’’, ed. George Schwab, New Brunswick, N.J. Rutgens University Press, 1976 e ‘’The crisis of Parlamentary Democracy’’, Massachussets, MIT Press, 1986.

            40 Regimes e Sistemas Políticos, Marcelo Rebelo de Sousa, edição policopiada, Faculdade de Direito de Lisboa.

            41 Referimos já anteriormente que até ao advento do governo representativo no Século XIX, o que se designa por partidos mais não passam de facções ou cliques, grupos de apoio político constituídos me redor de um líder, um chefe de clã, uma família. Os partidos das Cortes, por exemplo, formaram-se dentro das monarquias absolutas como resultado da luta para influenciar notáveis e conselheiros reais.

            42 Robert A. Dahl, Polyarchy, participation and opposition, New Haven, Yale University Press, 1971, P.D. Graham, Representation and Party politics: a comparative perspective, Oxford, Blacwell, 1993, P. Mair, The Western European Party system, Oxford, Oxford University Press, 1992.

            43 In Les Partis Politiques, Paris, A. Colin, 1967.

            44 E exluídos, portanto, do jogo parlamentar da representação de interesses.

            45 In Political Parties and Political Development, Princeton University Press, 1966.

            46 In Economy and Society Economy and Society : An Outline of Interpretive Sociology, Guenther Roth (Editor), Claus Wittich (Editor), University of California Press, 1986

            47 Não obstante a reserva sentida pelos Founding Fathers que redigiram a Constituição Federal, o Partido Federalista (mais tarde o Whigs e depois de 1830 o Partido Republicano) aparece como um partido de massas durante as leições de 1800.

            48 In Manifesto do Partido Comunista, edições Avante.

            49 Economia e Sociétá

            50 Pagos portanto para desempenhar uma actividade política de organização, estruturação e captação de financiamentos para suportar a vida partidária, dentro e for a do quadro eleitoral.

            51 Marcelo Rebelo de Sousa assinala, ob.cit., supra, que na sequência da II Guerra Mundial a crise do parlamentarismo e a transição dos Estados Liberais para Estados Sociais de Direito para acorrer às exigências de reconstrução económica e coesão social impostas pela consolidação da paz conduz ao desaparecimento de vários partidos de quadro – designadamente os liberais, agrários e centristas – e a reconversão dos restantes por forma a aproximarem-se doa grandes partidos de massa, tendo em conta as oportunidades de acesso ao governo – no caso os partidos soaial-democratas nórdicos. O partido político aparece como elemento nuclear do estado contemporâneo, porque a sua mediação é inamovível e tendencialmente exclusiva no instituto da representação política global; porque o mandato dos parlamentares se acha progressivamente condicionado por directivas partidárias, porque os partidos alargam o leque dos seus fins e funções. Por isso há quem chame ao Estado Moderno, o Estado dos partidos, ou mais sibilinamente uma partidocracia.

            52 Seymour Lipset com Stein Rokkan, Politics Man: the social basis of politics, Baltimore, John Hopkins University Press, 1981.

            53 Stein Rokkan, Party Systems and voter alignements, Nova Iorque, Free Press, 1967.

            54 Richard Rose, Do parties make a difference?, Chatham, N.J. Chatam House, 1984.

            55 Derek Urkin, Persistance and change in Western party systems since 1945, Comparative Political Studies, 18, p.. 287-319.

            56 Neste sentido, Jan Van Deth e j. Janseen in Party attachments and political fragmentation in Europe, European Journal of Political Research, 25, pp. 87-109

            57 G. Powel, Contemporary Democracies, Cambridge, Harvard University Press, 1982, pp. 129-132.

            58 Anthony Dowes, An economy theory of democracy, Nova Iorque, Harpers & Row, 1957.

            59 Rober Michels , 1911, Nova Iorque, Collier.

            60 Ver um recente e excelente trabalho de análise do contributo de Michels em ‘’Citizens, politicians and Party cartellization: political representation and state failure in post-industrial democracies’’, Herbert Kirtschelt, European Journal of Political Research, 37, 2000, pp 149-179.

            61 Robert McKenzie, British Political Parties, 1955, Londres, Heinemann.

            62 Este foi seguramente o caso dos partidos social-democratas e socialistas europeus que na década de 80 estiveram for a do Governo, na sequência da onda conservadora que se seguiu à eleição de Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos e à esmagadora vitória de Margaret Tatcher à frente do partido Conservador britânico. Curiosamente, a ‘’psicanálise’’ por que passam os partidos na esquerda social-democrata conduz á emergência da Terceira Via como única alternativa à interiorização do novo pensamento liberal de Nozick e outros libertarians pelas lideranças conservadoras.

            63 Jean Jacques Rousseau, O Contrato Social, Edições Martins Fontes, São Paulo, 1999, pp 112-116.

            64 Como o comprovam as eleições europeias e as recentes eleições presidenciais americanas os representantes do povo são hoje eleitos por um colégio eleitoral de menos de 50% dos inscritos nos cadernos eleitorais. A questão que esta tendência – intransponível? – coloca é da própria legitimidade do título de representação.

            65 In Citizen Politics, Public Opinion and Political Parties in Advance Societies’’, Catham House Publishers, New Jersey, 1996

            66 Andrew Heywood, Politics, Foudations, Londres,1993.,pp 246-249

            67 Os exemplos mais evidentes desta tendência ‘’libertária’’e por vezes irracional nas reivindicações dos cidadãos são o caso do movimento contra as centrais incineradoras e aterros sanitários em Portugal, o bloqueio em Inglaterra, França e Espanha contra o aumento dos combustíveis, as manifestações contra o estacionamento de submarino nuclear em Espanha. Elas têm um ponto em comum: o apoio ou tentativa de aproveitamento dos partidos é ostensivamente rejeitada.

            68 Daniel Bell, The coming of the Post-industrial Society, New York, Basic Books, 1973 e Ronald Inglehart, The Silent Revolution, Princeton, Princeto University Press, 1977 e Culture Shift in Advanced Industrial Society, Princeton, Princeton University Press, 1990.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Arnaldo Manuel Abrantes. Os partidos políticos e a crise da democracia representativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 707, 12 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6818. Acesso em: 19 abr. 2024.