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A terceirização e a proteção jurídica do trabalhador.

A necessidade de um critério para definição da licitude das relações triangulares. A responsabilidade solidária da tomadora e da prestadora de serviço

A terceirização e a proteção jurídica do trabalhador. A necessidade de um critério para definição da licitude das relações triangulares. A responsabilidade solidária da tomadora e da prestadora de serviço

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A terceirização, além de promover substancial alteração na definição típica da relação de emprego, bilateral por natureza, pode redundar em grave precarização das condições de trabalho.

1 INTRODUÇÃO

1.1 Origem e conceito

A terceirização não é um instituto jurídico. Trata-se de uma estratégia na forma de administração das empresas, observada a partir da Segunda Guerra Mundial com a sobrecarga na demanda por armas. A indústria bélica passou a delegar serviços a terceiros para conseguir dar conta da enorme procura por armamentos. Tal experiência acarretou uma mudança no modelo de produção tradicional. Do fordismo, com a noção de centralização de todas as etapas da produção sob um comando único, passou-se ao toyotismo, com a desconcentração industrial, o enxugamento das empresas, mantendo apenas o negócio principal, e o aparecimento de novas empresas especializadas (sistemistas), gravitando como satélites ao redor da empresa principal. A estrutura vertical horizontalizou-se com o objetivo de concentrar as forças da empresa em sua atividade principal, propiciando maior especialização, competitividade e lucratividade.

Sob a ótica do direito do trabalho, Mauricio Godinho Delgado define a terceirização como "fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente" [1]. Carmen Camino enfatiza que na terceirização os elementos típicos da relação de emprego são analisados de modo mais flexível, a fim de permitir a delegação de certas atividades da empresa a terceiros [2]. Daí dizermos que a terceirização integra o processo de "flexibilização do direito do trabalho". Para arrematar, José Martins Catharino, essencialmente pragmático, acrescenta que "‘terceirização’ é meio da empresa obter trabalho de quem não é seu empregado, mas do fornecedor com quem contrata. Ter quem trabalhe para si, sem ser empregado, é a razão básica da ‘terceirização’ " [3].

1.2 Espécies de terceirização

A terceirização pode ser adotada por uma empresa não apenas quanto aos serviços, mas também quanto a bens ou produtos. Assim, podem ser estabelecidos contratos de natureza civil – empreitada, subempreitada, prestação autônoma de serviços e parceria – ou contratos de natureza mercantil – engineering, franchising, contrato de fornecimento, concessão mercantil, consórcio, assistência técnica e representação comercial autônoma.

Interessa-nos, no presente estudo, a terceirização dos serviços de uma empresa (tomadora) mediante a contratação de outra empresa (prestadora) para o fornecimento de serviços. O contrato entre as empresas é de natureza civil e a prestadora contrata trabalhadores nos moldes da relação de emprego.

1.3 Importância para o direito do trabalho

Além de aumentar a especialização e a competitividade e, por conseqüência, os lucros, as empresas enxergaram na terceirização uma forma imediata de baixar os custos com mão-de-obra. Assim, essa estratégia de administração de empresas repercute de forma contundente no direito do trabalho, visto que além de promover substancial alteração na definição típica da relação de emprego, bilateral por natureza, pode redundar em grave precarização das condições de trabalho em nosso país.

1.4 Direito comparado [4]

A Suécia, a Espanha e a Itália proíbem a terceirização sob a forma de trabalho temporário. A Bélgica, a Dinamarca, a Noruega, os Países Baixos e a França têm regulamentação para a matéria. A Alemanha, a Inglaterra, a Suíça, a Irlanda e Luxemburgo permitem a terceirização, embora sendo desregulamentada, com espaço para a negociação coletiva.

A Argentina, a Colômbia e a Venezuela admitem a terceirização. O México a proíbe, salvo restritas exceções legais, e o Peru limita a possibilidade dessa contratação.

No Japão e nos "tigres asiáticos" (Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Cingapura, dentre outros) a terceirização é prática comum e amplamente utilizada. Há no Japão lei específica, existindo sindicato dos trabalhadores subcontratados e necessidade de autorização do Ministério do Trabalho para o funcionamento das fornecedoras de mão-de-obra.

Merece destaque o art. L 125-1 do Código do Trabalho francês:

"Toda operação com fim lucrativo de fornecimento de mão-de-obra que tiver por efeito causar um prejuízo ao trabalhador afetado ou frustrar a aplicação das disposições da lei, do regulamento ou da convenção ou acordo coletivo de trabalho é proibida" [5].

1.5 Direito brasileiro

Nosso ordenamento jurídico não disciplina a totalidade das situações existentes na sociedade brasileira envolvendo a terceirização de serviços.

Os primeiros diplomas legais dizem respeito à reforma da administração pública ocorrida em 1967, tendente à descentralização. Devem ser destacados o caput e o § 7º do art. 10 do Decreto-lei 200/67 e o parágrafo único do art. 3º da Lei 5.645/70 [6], por trazerem importante referência ao tema.

Na esfera privada, o trabalho temporário foi tratado na Lei 6.019/74 e o trabalho de vigilância bancária na Lei 7.102/83. Com a Lei 8.863/94 a hipótese de terceirização na área de vigilância foi ampliada para toda a área de vigilância patrimonial, pública ou privada, inclusive para pessoa física. Portanto, trabalho temporário e vigilância patrimonial são as duas hipóteses expressamente previstas em lei para a terceirização.

A Lei 8.949/94 introduziu na CLT um parágrafo único em seu art. 442, estimulando as terceirizações por meio de cooperativas. Deve-se ter presente que a utilização de cooperativas de trabalho em atividade-meio é plenamente viável, com o trabalho por conta própria dos cooperativados. No entanto, a terceirização por meio de cooperativas de mão-de-obra é temerária, pois a fraude é praticamente certa, visto que haverá intermediação de mão-de-obra sem que a cooperativa esteja enquadrada na Lei 6.019/74, que admite essa intermediação apenas por meio das empresas de trabalho temporário, como alerta Carmen Camino [7].

Para tentar preencher o enorme vácuo legislativo, o TST publicou, em 1986, o Enunciado 256 de sua Súmula de Jurisprudência:

Nº 256Contrato de prestação de serviços. Legalidade.

Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nºs 6.019, de 03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços.

Extremamente restritivo, o entendimento sumulado sofreu fortes críticas do setor empresarial e, cedendo às pressões, o TST revisou o Enunciado 256, publicando o desastroso Enunciado 331 em fins de 1993:

Nº 331Contrato de prestação de serviços. Legalidade.

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).

II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993).

Até os dias de hoje a jurisprudência está se debatendo na tentativa de definir o que seja "atividade-meio do tomador" para fixar os limites da licitude da terceirização. Além disso, com a previsão de responsabilidade subsidiária do tomador de serviços o processo de execução tem se delongado desnecessariamente.


2 TERCEIRIZAÇÃO E TRABALHO TEMPORÁRIO

A terceirização pode ser classificada como de duração determinada, em que se insere o trabalho temporário, ou de duração indeterminada, nos demais casos, conforme sugere Catharino [8].

O trabalho temporário é prestado por pessoa física a uma empresa para atender à necessidade transitória de substituição de pessoal regular e permanente ou para atender acréscimo extraordinário de serviços (art. 2º, Lei 6.019/74). O contrato interempresarial – entre a empresa tomadora de serviços (ETS) e a empresa de trabalho temporário (ETT) – e o contrato de trabalho celebrado entre o trabalhador temporário e a ETT devem ser formulados por escrito, sendo este requisito formal de validade (art. 104, CC/02). O prazo máximo de prestação de serviços do trabalhador temporário a cada tomador é de três meses, o que mantém a coerência com a finalidade do instituto.

O trabalhador temporário tem direito a salário eqüitativo, previsto na alínea "a" do art. 12 da Lei 6.019/74, embora sofra restrição de direitos trabalhistas por esta lei. Diz a referida alínea:

a) remuneração equivalente à percebida pelos empregados de mesma categoria da empresa tomadora ou cliente calculados à base horária, garantida, em qualquer hipótese, a percepção do salário mínimo regional;

O trabalho temporário (terceirização de duração determinada) distingue-se da terceirização de duração indeterminada pela existência de pessoalidade e subordinação jurídica direta com o tomador de serviços (ETS) e pela possibilidade de o trabalhador temporário atuar tanto na atividade-fim como na atividade-meio da empresa tomadora. Na terceirização de duração indeterminada há contratação de serviços, sendo vedada a intermediação de mão-de-obra; na terceirização de duração determinada o que se contrata é a mão-de-obra e o que existe é a sua intermediação. Por tais diferenças, dentre outras que enumera, Carmen Camino entende que trabalho temporário e terceirização não se confundem, possuindo em comum apenas o fato de serem formas de flexibilização do direito do trabalho ortodoxo [9]. Ponderando que a terceirização implique em delegação de certas atividades empresariais a terceiros, o que não ocorre no trabalho temporário, é procedente a divergência da referida autora. Contudo, a delegação não é colocada como conditio sine qua non para a caracterização da terceirização pelo restante dos doutrinadores. Basta, para os demais, que se coloque um trabalhador prestando serviços a alguém que não é seu empregador para que se configure a relação triangular. Triângulos contratualmente distintos, é verdade, mas que podem receber o nomen juris de terceirização.


3 TERCEIRIZAÇÃO LÍCITA E ILÍCITA – ENUNCIADO 331 DO TST

3.1 Ausência de pessoalidade e subordinação jurídica direta com o tomador (exceto no trabalho temporário)

O primeiro pressuposto de licitude para a terceirização, fixado pela jurisprudência (item III do Enunciado 331 do TST), é a ausência de subordinação jurídica e pessoalidade entre os trabalhadores terceirizados e a empresa tomadora de serviços. A prestadora de serviços deve colocar um preposto no âmbito da tomadora de serviços encarregado de dirigir e fiscalizar a prestação de serviços de seus empregados à tomadora. A prestadora detém o poder de comando e os seus empregados são a ela subordinados. Não se admite que a tomadora "tome" essa posição. O mesmo ocorre quanto à pessoalidade, que ocorre somente em relação à prestadora. Pouco importa à tomadora qual o trabalhador que a prestadora colocará no posto de serviço para se desincumbir de sua obrigação contratual oriunda da relação interempresarial.

Na hipótese de se caracterizar a subordinação jurídica ou a pessoalidade diretamente com o tomador de serviços, é estabelecido o vínculo empregatício diretamente com este, salvo no caso da Administração Pública, como se verá adiante. Salienta-se que não precisam estar presentes os dois elementos para macular a licitude da terceirização; basta existir um deles para deflagrar-se a pecha.

Exceção ocorre quanto à terceirização de duração determinada – trabalho temporário – em que pela própria natureza da relação triangular a lei prevê, expressamente, que o "assalariado" será colocado "à disposição" da empresa tomadora (art. 11, Lei 6.019/74):

Art. 11 - O contrato de trabalho celebrado entre empresa de trabalho temporário e cada um dos assalariados colocados à disposição de uma empresa tomadora ou cliente será, obrigatoriamente, escrito e dele deverão constar, expressamente, os direitos conferidos aos trabalhadores por esta Lei.

3.2 Hipóteses lícitas de terceirização

3.2.1 Trabalho temporário. Serviços de vigilância patrimonial. Serviços de conservação e limpeza

A terceirização só tem amparo legal nas restritas hipóteses previstas para o trabalho temporário – Lei 6.019/74 – e para os serviços de vigilância patrimonial – Lei 7.102/83. Por construção jurisprudencial do TST, os serviços de conservação e limpeza também passaram a ser admitidos nessa forma de contratação, não apresentando qualquer dificuldade de conceituação.

3.2.2 Serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador

O item III do Enunciado 331 do TST abriu a possibilidade, ainda, para a terceirização dos "serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador". No entanto, a definição de "atividade-meio" é tarefa árdua, suscitando polêmica na doutrina e na jurisprudência por ter ampla e variada compreensão. Trata-se de flexibilização de um dos elementos tipificadores da relação de emprego, a não-eventualidade.

A expressão "atividade-meio", conforme leciona Carmen Camino, refere-se aos serviços de apoio, acessórios, embora permanentes e necessários à atividade da empresa. É possível sistematizar os serviços não-eventuais de uma empresa (permanentes e necessários) como um gênero que compreende como espécies os serviços essenciais ligados à atividade-fim empresarial e os serviços de apoio ligados à atividade-meio. Em oposição a esse gênero encontra-se outro gênero, os serviços eventuais, ligados a necessidades circunstanciais, emergenciais, prestados de forma pontual. Camino elucida a questão: "Em síntese, a essencialidade não é sinônimo de não-eventualidade, mas uma espécie de não-eventualidade" [10].

3.2.2.1 A contribuição de Vilhena

Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena aprofunda a investigação. Inicialmente destaca que a classificação das atividades de uma empresa em atividade-fim e atividade-meio trata-se de questão de fato (quaestio facti). Assim, o exame é casuístico, conforme a estrutura operacional de cada empresa.

Entende o jurista mineiro que para a caracterização da atividade-meio esta deve ser desenvolvida como um serviço de apoio, adicional, que não comprometa a qualidade e a autenticidade do exercício das funções componentes da atividade-fim. As atividades "não se interimiscuem", não se amalgamam, não se fundem. A prestadora de serviços deve desenvolver uma atividade técnica autônoma, com "mecanismos próprios de operacionalização que prestam um concurso adicional a qualquer outra atividade empresarial".

Vilhena sustenta que os serviços terceirizados devem ser organizados de forma autônoma porque são serviços de apoio, podendo ser destacados da atividade-fim e não interferem diretamente no processo de produção da tomadora. Conclui dizendo que "a empresa prestadora de serviços deve estabelecer os modos de sua operação com total desvinculação da empresa por quem é contratada, destacando-se dela não apenas quanto ao aspecto instrumental (...), mas também quanto àquele ligado ao pessoal" [11].

3.2.2.2 Sugestão de um critério para apuração da licitude da terceirização

Inspirados por Vilhena, estabelecemos uma analogia entre a relação contratual interempresarial (prestadora e tomadora) e a relação de emprego clássica, para buscar um critério de definição de atividade-meio para apuração da licitude dessa hipótese de terceirização.

É possível traçar um paralelo com a autonomia da empresa prestadora de serviços e o trabalho autônomo prestado por pessoa física. O "modo de ser" da prestação autônoma de serviços não pode ser dirigido e fiscalizado pelo tomador de serviços, sob pena de caracterizar-se vínculo empregatício. Se há ingerência da tomadora de serviços sobre o "modo de ser" das operações realizadas pela prestadora, como o poder de comando na relação de emprego, trata-se de atividade-fim. Se precisa intervir de modo efetivo na suposta atividade-meio é porque não houve a delegação de serviços inerente à essa espécie de terceirização (de duração indeterminada).

Cabe ressaltar, ainda, que o item III do Enunciado 331 prevê a terceirização de "serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador", o que restringe ainda mais as hipóteses lícitas dessa contratação. A exemplo do que ocorre com o trabalho temporário – art. 4º da Lei 6.019/74 – a qualificação dos trabalhadores naquele ramo de serviços terceirizado também integra os pressupostos de licitude da terceirização.


4 RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS

4.1 Subsidiária – item IV do Enunciado 331 do TST

Ainda que regular a terceirização, com a manutenção do vínculo empregatício entre o trabalhador terceirizado e a prestadora de serviços, o item IV do Enunciado 331 do TST prevê a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços diante do inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador, desde que tenha participado da relação processual e conste do título executivo judicial (exigência inspirada no Enunciado 205 do TST, cancelado em 21-11-03, o que pode refletir no Enunciado 331). A condenação subsidiária decorre da culpa in eligendo e da culpa in vigilando, com base no caput do art. 927 do Código Civil de 2002.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Deve ser observado que o verbete jurisprudencial prevê tão-somente o "inadimplemento das obrigações trabalhistas" para a condenação subsidiária do tomador. Logo, verificado o inadimplemento, o tomador de serviços é, de plano, responsável subsidiariamente. Não há necessidade de "prova efetiva da inidoneidade financeira da real empregadora", como sustenta corrente minoritária da doutrina e jurisprudência. As sentenças trabalhistas costumam demonstrar a inidoneidade das prestadoras de serviços pela revelia ou ausência a audiências de prosseguimento – o que é usual na prática forense – bem como pela ausência de documentação exigida por lei, quando tais fatos são meros reforços de argumentação diante do inadimplemento constatado nos autos do processo, que é suficiente para a condenação subsidiária do tomador.

4.2 Solidária – fraude

Na hipótese de fraude aos preceitos trabalhistas pela prática de terceirização ilícita incidirá o art. 9º da CLT, sendo considerados nulos de pleno direito os atos relativos à "terceirização", formando-se o liame empregatício diretamente com o tomador. O terceiro que participou da fraude como "empresa prestadora de serviços" responderá solidariamente, com base no art. 942 do Código Civil de 2002.

Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

4.3 Solidária em todos os casos – contribuição de Souto Maior

Jorge Luiz Souto Maior [12], partindo da idéia de que tanto na terceirização como no grupo econômico é verificada a formação de uma cadeia produtiva que se aproveita conjuntamente da força de trabalho fornecida pelo trabalhador, ainda que de forma horizontal na terceirização, defende a responsabilidade solidária do tomador e do prestador de serviços em todos os casos de descumprimento à legislação trabalhista.

Ataca o benefício de ordem da responsabilidade subsidiária sustentando que, a par do que ocorre no art. 827 do CC/02, este deve ser invocado pela parte, que deverá nomear bens do devedor principal suficientes para solver o débito.

Art. 827. O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor.

Parágrafo único. O fiador que alegar o benefício de ordem, a que se refere este artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no mesmo município, livres e desembargados, quantos bastem para solver o débito.

Diante da exigência do art. 265 do CC/02,

Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes,

propõe a aplicação analógica do art. 455 da CLT, que se ajusta perfeitamente à situação de terceirização:

Art. 455 - Nos contratos de subempreitada responderá o subempreiteiro pelas obrigações derivadas do contrato de trabalho que celebrar, cabendo, todavia, aos empregados, o direito de reclamação contra o empreiteiro principal pelo inadimplemento daquelas obrigações por parte do primeiro.

Parágrafo único - Ao empreiteiro principal fica ressalvada, nos termos da lei civil, ação regressiva contra o subempreiteiro e a retenção de importâncias a este devidas, para a garantia das obrigações previstas neste artigo.

Propõe o abandono do elemento culpa, quer in eligendo ou in vigilando, atraindo a noção de culpa objetiva decorrente da responsabilidade civil prevista no parágrafo único do art. 927 do CC/02:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Destaca, ainda, o disposto no art. 187 do CC/02:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Souto Maior, repudiando a responsabilidade subsidiária e o benefício de ordem em favor do tomador dos serviços, conclui: "Não há incidência possível nesta situação da regra de que ‘a solidariedade não se presume, resultando da lei ou da vontade das partes’ (art. 896, antigo CC; art. 265, atual Código), porque a solidariedade em questão é fixada por declaração judicial de uma responsabilidade civil, decorrente da prática de ato ilícito, no seu conceito social atual. Aliás, neste sentido, a regra do artigo 265 não parece nem mesmo ser afastada, vez que a solidariedade declarada, com tais parâmetros, decorre, agora, da própria lei (art. 942, atual Código)".

Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

4.4 Direito comparado

Na Argentina, Colômbia, México, Venezuela, Espanha, França e Itália há previsão legal para a responsabilidade solidária da tomadora de serviços quanto aos encargos trabalhistas e previdenciários inadimplidos pela prestadora de serviços. Não há notícia de responsabilidade subsidiária nos países estrangeiros pesquisados.


5 ENTES ESTATAIS E TERCEIRIZAÇÃO

Por força do art. 37, II e § 2º, da Constituição Federal, é vedado o estabelecimento de vínculo empregatício com o ente público tomador de serviços, ainda que na realidade dos fatos muitas vezes seja possível constatar a existência de típica relação de emprego entre o trabalhador "terceirizado" e o tomador de serviços.

A Administração Pública é o exemplo mais recorrente de abusos quando se fala em terceirização. Terceirizam serviços públicos intrinsecamente ligados à sua atividade-fim, de forma escancarada e indiscriminada, como a coleta do lixo urbano. Desenvolvem a relação com o "terceirizado" com acentuado poder de comando versus subordinação jurídica, renovando infinitamente aquele mesmo funcionário naquele mesmo posto de serviço "porque trabalha tão bem há tantos anos". Basta alterar a prestadora de serviços de tempos em tempos, mediante licitação, mas com a indicação do profissional para determinadas atividades.

Portanto, não-eventualidade, subordinação jurídica, pessoalidade e onerosidade não resultam em reconhecimento de vínculo empregatício com a Administração Pública porque não houve prévia aprovação em concurso público. É que a Constituição Federal de 1988 moralizou e democratizou o acesso ao serviço público, dando uma lição de ética que deve prevalecer sobre o direito fundamental ao reconhecimento da relação de emprego estampado no inciso I de seu art. 7º. É uma questão de sopesar valores, quando entram em aparente conflito duas regras constitucionais.

A responsabilidade da Administração Pública na terceirização é subsidiária, como os demais tomadores de serviços, ainda que tenha tentado esquivar-se por meio do § 1º do art. 71 da Lei 8.666/93. A Resolução 96/2000 do TST alterou o item IV do Enunciado 331 para fazer constar expressamente que a responsabilidade subsidiária estende-se "inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista". Deve ser ressaltado que o § 2º do referido art. 71 prevê a responsabilidade solidária da Administração Pública pelos encargos previdenciários resultantes da execução dos contratos por ela firmados [13].

Em casos de fraude à terceirização, como o desvirtuamento do instituto no intuito de esquivar-se de deveres próprios da Administração Pública, deve ser cogitada a responsabilidade solidária, principalmente diante do previsto no § 6º do art. 37, que adota a teoria do risco administrativo com a responsabilidade civil objetiva. Diz o preceito constitucional:

Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.


6 CONCLUSÕES

6.1 Necessidade imperiosa de regulamentar o fenômeno – critério de licitude e responsabilidade das empresas

Por todo o exposto, conclui-se que há necessidade emergencial de um tratamento legal à terceirização em nosso ordenamento. As relações jurídicas estabelecidas por meio da terceirização já estão disseminadas em nossa sociedade e presentes em nosso quotidiano. Nesse setor, o direito não tem acompanhado a dinâmica dos fatos. E a situação fica ainda pior quando o Tribunal Superior do Trabalho tenta legislar sobre a matéria, baixando Enunciados descompassados. Primeiro (Enunciado 256) restringe ao máximo as hipóteses cabíveis, para depois escancarar as porteiras da terceirização, com o parâmetro indefinido da "atividade-meio" (Enunciado 331).

É preciso uma legislação que defina, de uma vez por todas, os limites para a prática da terceirização regular, esclarecendo quais as atividades empresariais passíveis de serem terceirizadas ou a forma pela qual deverão desenvolver-se tais relações. Além disso, urge a previsão expressa de responsabilidade solidária das empresas participantes da terceirização, para afastar o obstáculo da responsabilidade subsidiária que vem protelando a efetividade do processo de execução trabalhista. E há muito mais amparo legal para a condenação solidária das empresas do que para a subsidiária.

6.2 Uma reflexão final: quem é o terceiro?

Para encerrar esta análise da terceirização, cabe uma provocação: quem é o terceiro? Onde está o tertius? [14]

Em um primeiro momento, entendendo a terceirização como uma estratégia de administração de empresas, parece que a resposta estaria na empresa prestadora de serviços, um terceiro a quem a tomadora contrata e delega parte de suas atividades.

Do ponto de vista do contrato de trabalho, o tomador de serviços é o terceiro, estranho à relação de emprego estabelecida entre o empregado terceirizado e a empresa prestadora de serviços, sua empregadora.

Mas, considerando a realidade da terceirização em nosso país, entendemos que o terceiro é o trabalhador. O que tem merecido maior atenção nessas relações triangulares é o contrato interempresarial, de natureza civil, sendo a força de trabalho tratada como simples mercadoria. Na prática, a terceirização tem promovido a precarização do trabalho humano. Todos nós conhecemos as condições degradantes a que são submetidos os empregados terceirizados, que acabam, na prática, obedecendo a duplo poder de comando e ficam sujeitos a uma instabilidade de emprego ainda maior – como se fosse possível – do que aquela enfrentada pelos empregados com relação de emprego bilateral clássica.

Na terceirização o trabalhador é colocado em segundo plano, um terceiro sem importância, mero instrumento ou modo pelo qual a empresa prestadora de serviços se desincumbe de sua prestação obrigacional para com a empresa tomadora de serviços. Contudo, se a terceirização é uma forma inexorável de organização dos meios de produção, deve-se ter presente que, na omissão do legislador, o julgador deve interpretar as relações triangulares de trabalho conforme aos direitos fundamentais sociais e ao valor social do trabalho humano, considerado pela Constituição Federal como um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito. Nesse caminho, parece ser possível assegurar uma proteção jurídica mínima à "pessoa humana" [15] do trabalhador, cuja dignidade constitui o fundamento do direito do trabalho.


Notas

1 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 1ª ed. São Paulo: LTr, 2002, pág. 417.

2 CAMINO, Carmen. Direito individual do trabalho. 4ª ed. Porto Alegre: Síntese, 2003, págs. 235-6.

3 CATHARINO, José Martins. Neoliberalismo e Seqüela: privatização, desregulação, flexibilização, terceirização. São Paulo: LTr, 1997, pág. 72.

4 Obra de referência do tópico: MARTINS, Sergio Pinto. A terceirização e o direito do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, págs. 29-37.

5 "Toute opération à but lucratif de fourniture de main-d"oeuvre qui a pour effet de causer un préjudice au salarié qu''elle concerne ou d''éluder l''application des dispositions de la loi, de règlement ou de convention ou accord collectif de travail, ou "marchandage", est interdite" (Code du Travail – Article L 125-1).

6 Decreto-lei 200/67: Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada. § 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.

Lei 5.645/70: Art. 3º – Parágrafo único. As atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas serão, de preferência, objeto de execução indireta, mediante contrato, de acôrdo com o artigo 10, § 7º, do Decreto-lei número 200, de 25 de fevereiro de 1967.

7 Ob. cit., págs. 243-4.

8Ob. cit., págs. 76-82.

9 Ob. cit., págs. 300-2.

10 Ob. cit., pág. 236.

11 VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Recursos trabalhistas e outros estudos de direito e de processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2001, pág. 200.

12 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Trabalho descentralizado. A terceirização sob uma perspectiva humanista. www.jusvi.com.br

13 Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. § 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95) § 2º A Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95)

14 como indaga Arion Sayão Romita in A Terceirização e o Direito do Trabalho, Revista LTr, São Paulo, LTr, mar./92, pág. 273.

15 Art. 1º, III, da Constituição Federal.


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SCHNELL, Fernando. A terceirização e a proteção jurídica do trabalhador. A necessidade de um critério para definição da licitude das relações triangulares. A responsabilidade solidária da tomadora e da prestadora de serviço. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 703, 8 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6855. Acesso em: 19 abr. 2024.